Recentemente li um artigo muito bom chamado “Arendt in Crisis: Political Thought in Between Past and Future”, de Jakob Norberg. O artigo fala sobre a interpretação de Hannah Arendt sobre as crises, e como podemos aprender a lidar com elas. Deixe-me ser mais específico: esse artigo não vai ajudar você a lidar com crises emocionais ou outros dramas pessoais. Estamos falando de coisas maiores, como crises sociais, culturais e políticas. Embora, para ser justo, essas crises maiores são pano de fundo, algumas vezes, de nossos dramas pessoais.
A crise e suas duas dimensões
Para Arendt, a política trata das relações entre seres humanos, da natureza desses laços entre eles, os princípios que os unem, e a moldura que são os projetos locais e temporários que eles realizam juntos. A crise é a dissolução e a possível reconstituição dessas comunidades humanas. Daí que a “crise” é central para a “política”: nossas conexões com os outros humanos são questionadas; nós temos diante de nós a oportunidade de reafirmar ou negar nossos lações que antes eram garantidos. Para Arendt, é na crise que a política torna-se inevitável para todos. Vai ver é por isso que temos a impressão que todos têm algo pra dizer sobre ela o tempo todo.
Só que as crises têm dois efeitos, conectados, mas diferentes. Em primeiro lugar, a crise dá nome a um momento em que as reações habituais não dão mais conta de entender o que se passa; o jeito como fazíamos as coisas não adianta mais, não funciona mais.
Para Arendt, isso é ótimo! A crise derruba noções e falsas e expõe “ideias preconcebidas”. Isso é muito importante: ideias preconcebidas são a base do nosso dia a dia. Nós temos várias experiências iguais, repetidas, e aí esperamos que as coisas sempre aconteçam assim, do mesmo jeito. Paramos de pensar, simplesmente agimos: imagina se tivéssemos que pensar se a gravidade vai sempre funcionar ou não? Não, simplesmente agimos assumindo que o mundo vai funcionar de um certo jeito. A crise é como se de repente a gravidade não funcionasse: a gente não sabe o que fazer, e por isso somos obrigados a pensar. A crise significa, portanto, finalmente ter a oportunidade de pensar o que é alguma coisa de fato.
Mas a crise também tem outro lado. Ela é o desaparecimento do “senso comum”, mas para entender isso é preciso pensar exatamente o que, para Arendt, significa esse senso comum (até porque senso comum é o que mais se reproduz quando gente que nunca pensou em política começa a falar sobre política).
“Em toda crise”, escreve Arendt e traduzo livremente eu, “um pedaço do mundo, alguma coisa que é comum a todos nós, é destruído”. A crise destrói nossas “ideias preconcebidas”, sim, e nos força a olhar com atenção para alguma coisa que sobra depois da destruição; algo com o qual sempre interagimos mas sobre o qual nunca pensamos. Mas ela também destrói certas coisas sem deixar nada no lugar; nada sobra. Só ruínas.
E o que seriam essas coisas? Bem, aquilo que nos liga aos outros; um certo “senso comum”. Senso comum seria, portanto, uma sensação de que temos algo em comum com os outros. O que se perde com a crise é a sensação de que os outros veem o mundo de forma semelhante a nós. Fica difícil se orientar num mundo assim, em que não dá para saber se os outros vão sequer entender do que eu estou falando.
Lidando com as crises – através do julgamento
Em “O que é autoridade?”, Arendt descreve justamente a crise do conceito de autoridade. Para a filósofa, a autoridade sempre exige obediência, e essa obediência tira legitimidade de algum valor transcendental, ou seja, que não pertence ao campo da política mas está acima dele. “Obedeçam-me, porque…” e aí vem uma justificativa para essa obediência, obediência que faz com que acabem-se os questionamentos, as discussões, as decisões coletivas. Para Arendt, portanto, a política só é possível quando os humanos se livram da autoridade transcendental (ou seja, a crise da autoridade).
Só que, se essa é a face interessante da crise (Yeah, agora somos seres políticos!), há também uma face negativa como vimos acima. E ela é, como você já deve ter adivinhado, a perda do parâmetro comum para a vida em comunidade – a autoridade transcendental. A questão da política, portanto, não é nem tanto a “vida humana em comum” como colocamos no começo do post, mas algo mais complicado: Como viver em comum sem que todos vejam o mundo de forma semelhante?
A resposta talvez esteja na ideia de “julgamento”; diz-se até que Arendt, na época em que escrevia sobre Kant (escritos que foram publicados postumamente) tinha um ensaio inacabado sobre isso. Com “julgamento” não se quer dizer necessiramente juízes num tribunal, mas a ideia de escolha, de estabelecer uma análise sobre algo, de tomar uma decisão com base num pensamento cuidadoso.
O julgamento trabalha em duas frentes. Na primeira, ele cobre a destruição de nossas ideias preconcebidas. Quando julgamos algum evento isolado, em geral pensamos ele dentro de uma regra geral; isso se transforma em “ideia preconcebida” quando essa operação vira uma rotina, ou seja, nem julgamos mais, simplesmente olhamos para uma situação que achamos mais ou menos parecida e já pensamos sempre a mesma coisa. Quanto mais nos apegamos a essas regras nos tornamos o que Norberg chama, num termo engraçado, de “mão-de-vaca epistemológico”, pois ele se recusa a “gastar” seu cérebro prestando atenção ao mundo de fato, a cada situação – só aplica a mesma lógica sempre, sem pensar direito. O julgamento vem, depois da crise, formar novos padrões, novas ideias – mas depois que nós pensamos bem o caso; não vale apenas trocar seis por meia-dúzia. Se a crise é a oportunidade para repensar as coisas, temos que efetivamente repensar as coisas. Esse é um julgamento que Arendt, copiando Kant, chama de reflexivo. Um julgamento reflexivo acontece quando, ao contrário do julgamento do começo desse parágrafo, olhamos para um caso isolado e moldamos a regra geral de acordo com ele.
Mas e o problema da dissolução do mundo comum? O julgamento também lida com ele, segundo Arendt. A partir de uma ideia que vem de Kant, Arendt mostra também que julgamentos (especialmente o tipo de julgamento que fazemos sobre situações que geram crises), não são julgamentos técnicos, desses que têm que funcionar de acordo com a lógica ou estão simplesmente errados. Esses julgamentos são como opiniões, sendo sempre feitos tendo os outros em mente; são sempre feitos “antecipando a comunicação com os outros”. Um julgamento tem que tentar entender o problema sem ideias preconcebidas, mas também tem que fazê-lo pensando no que os outros vão pensar, e como eles vão agir na situação. É assim que, enquanto todos julgam as coisas, forma-se uma promessa de uma realidade compartilhada.
Mas é importante notar que a comunidade formada por esse processo não volta a ser o que era antes – formando uma “autoridade transcendental”. A comunidade não fica garantida para o futuro: ela está sempre em transformação, sempre em negociação, sempre dependendo dos indivíduos formarem esses julgamentos comuns para lidar com os projetos que desenvolvem juntos. Na crise o que surge é sempre uma “solidariedade sem solidez”. Para Arendt, ou melhor, para o autor do artigo que a analise, a beleza dessa descoberta é que uma comunidade que pratica a política deve entender que será, sempre, uma comunidade em crise.
Outras passagens interessantes…
“Como o historiador Reinhart Koselleck diz […], a crise e a crítica conspiram para acabar com a estabilidade: a crise é a mudança que nos pega despreparados, enquanto a crítica é a forma como planejamos causar a mudança.“
—
“A política é constituída pelo imprevisível jogo polêmico de posições diferentes, e isso não acontece quando ocorre uma submissão a uma verdade indiscutível, cujo meio é o filósofo [da grécia antiga]. Nós podemos até dizer que “a verdade é a mais perfeita forma de acabar com uma conversa” (Fuller 2005, 51)”. Essa frase de Fuller é maravilhosa: há muitas pessoas que discutem coisas absolutamente discutíveis do ponto de vista da “lógica”, sem perceber (ou querendo esconder) os valores diferentes (as posições básicas diferentes) que estão por detrás da discussão. Se alguém cai no erro de reconhecer o viés da “lógica”, acaba-se a política: não há discussão possível quando se está “errado”, afinal.
—
“Ideias preconcebidas parecem nos juntar uns aos outros apenas à medida que são um fenômeno coletivo, mas na verdade elas tornam a todos menos conscientes da existência dos outros. […] De acordo com Arendt, dependemos dos outros ao nível da cognição: percebemos o mundo juntos, ou não o percebemos nem um pouco.”
E você?
O que acha da visão de Hannah Arendt sobre as crises? Em que tipo de crises vivemos atualmente? Solte o verbo nos comentários!