Quase nunca quem quer nos dominar vai dizer isso abertamente, com todas as letras. Até os neonazis de Charlottesville choramingam que não são racistas – como se “nacionalista branco” já não fosse ruim o suficiente, eles sabem que “racista” é ainda mais mal visto.
Agora é precisao ficar alerta com essa loucura de “escola sem partido”. ATENÇÃO: Ninguém quer que o professor chegue em sala e em vez de falar de biologia, ou sociologia, ou física, fale de seu candidato a vereador. E ninguém quer que ele ofenda ou rebaixe a nota de algum aluno que tenha uma opinião política diferente. Mas essa lei efetivamente cria um enorme porrete que vai ser usado pra perseguir professores (já está sendo usado em cidades e estados pelo país inteiro) .
Não existe neutralidade; exigi-la é uma completa maluquice em termos práticos: o que pra um é verdade óbvia, pra outro é “doutrinação” (que, aliás, não é definida de maneira precisa no texto ctrl+c ctrl+v dessa gentalha que propõe esse absurdo). Em vez de fazer das instituições de ensino e pesquisa um local em que várias ideias são debatidas e analisadas, esse projeto patético quer deixar ao alcance de pais e alunos um jeito de forçar o professor a calar a boca. Entenda que qualquer um pode usar disso, não só uma ou outra ideologia, de modo que no fim das contas o professor não vai poder falar mais nada. Ensinou Marx? Não gosto, processo nele. Ensinou liberalismo? Não gosto, processo nele. Falou sobre gênero, não gosto, processo nele. Não falou sobre gênero, não gosto, processo nele. Entendem como esse é um mecanismo que basicamente permite que se vá a um juiz reclamar que o professor não está me agradando? Não importa se no final do processo, por exemplo, quase nenhum seja condenado. Até chegar a essa parte (sem falar das apelações), o professor já vai ter passado por um inferno pessoal em várias escalas: psicológico, econômico, social.
Por fim, sabemos muito bem que o mecanismo da justiça não é imparcial e equânime em seu acesso. É uma burocracia aparentemente igualitária, mas é uma minoria que vai usar desses processos pra intimidar e controlar o que está presente nas escolas. E vamos depender basicamente da cabeça de cada juiz, sem nenhum critério legislativo, o que vai contar como doutrinação ou não (de novo, ainda que você concorde com o espírito da coisa, em termos de lógica legislativa é no mínimo um projeto porco). O pessoal do “Escola sem partido” costuma ser o mesmo que fala que não gosta do Estado metendo o bedelho onde não deveria, mas olha só: eles querem usar da ameaça de força (Estado) pra calar a boca daqueles com os quais não concordam porque, sei lá, sentem que a maioria dos professores é de esquerda. Isso não só é uma MENTIRA – já que existem muitos professores de centro e direita no Brasil inteiro e em todos os níveis – como também significa desistir de ganhar a batalha cultural das ideias através das palavras: “já que não consigo convencer os professores, vou pelo menos calar a boca deles pra que eu possa evitar que o meu filho”, no caso das escolas de ensino fundamental e médio, “sequer saiba da existência de outras ideias”. Quão inseguras (no mínimo) essas pessoas têm que ser pra considerar uma coisa dessas?
E quanto ao ensino superior, que o projeto abarca, é engraçado que o projeto de lei inverte inclusive aquilo que pressupõe. Explico: está ali que o educando é a parte “mais fraca” na relação de aprendizado (não é). Só que se você dá ao educando a oportunidade de virar a vida do professor num inferno por causa de alguma coisa que ele tenha dito enquanto professor, ele acaba de virar a parte significativamente mais forte da relação. No ensino superior o aluno pode literalmente dizer “olha, eu não gostei muito do que você disse na outra aula quando fez um comentário ali sobre a taxa de juros… Se você não me deixar passar nessa disciplina eu posso ter que te processar porque você não apresentou todas as teorias quanto ao assunto…”.
Eu não quero que paradigmas científicos incorretos / ultrapassados (como a criminologia lombrosiana, ou o lamarckismo, ou a teoria do éter, ou a ideia de que o dinheiro evoluiu historicamente a partir do escambo, ou o prescritivismo linguístico, etc) sejam ensinados nas escolas, mas 1) isso se faz com melhoria da formação do professor, descaso eterno no Brasil, e 2) é preciso equipar alunos (de todas as ideias) com o ferramental cognitivo (e material – tipo dinheiro pra que escolas tenham bibliotecas e internet e etc) para analisar criticamente todas as ideias, inclusive pra separar fato de conjectura de opinião e em que medida a ideologia de uma perspectiva incide sobre essas coisas, etc etc etc – que se desenvolva como ser humano, mesmo. Isso não se faz tentando proporcionar pras crianças uma neutralidade que não existe. “Escola sem partido” _É_ uma ideologia (“queremos que seja ensinado só os fatos! Os fatos, no caso, são a sociedade como ela é agora e aquilo que eu acredito sobre ela”). Quanto a isso, este é um excelente texto (A Folha de SP, aliás, está cheia de colunas interessantes sobre o tema, inclusive de defensores dessa bosta).
Esse pessoal quer se vender como a ausência de ideologia. Não comprem essa falsidade. Sim, é razoável não querer pessoas oprimidas na escola por suas opiniões. Ninguém quer isso. Mas essa lei não fará isso!
Pra colegas de direita que estão achando isso tudo muito esquerdista, fecho aqui com um parágrafo maravilhoso de alguém que escreve no Spotniks, Joel Pinheiro da Fonseca (dificilmente dá pra ficar mais de direita sem entrar em extremos estúpidos, tipo o pessoal de Charlottesville):
Jovens terminam o ensino médio sem conseguir compreender um texto minimamente complexo ou calcular frações. O grande problema da educação no Brasil não é que jovens leiam muito Marx na escola, é que saiam da escola sem saber ler. Ao colocar uma corda no pescoço de todos os professores e fazer dessa carreira algo ainda mais estressante e menos atrativo, corre-se o sério risco de prejudicar nosso sistema educacional como um todo. O que já não é bom ainda pode piorar.