Se tem uma coisa que adoro (e não sabia) é ser surpreendido por um livro clássico: digo, todo mundo já ouviu falar do Pequeno Príncipe. E quando a gente ouve falar demais em alguma coisa temos a impressão de saber muito sobre aquilo e, mesmo que eu não fosse capaz de fazer pra ninguém um resumo da obra, achava que já tinha uma noção do que me esperava. Mas não! A narrativa surpreendeu, e o que eu achava que era um prefácio acabou tornando-se silenciosa introdução. Well played, Exupéry, well played.
Que livro mais encantador! É muito, muito legal – achei que fosse cheio de “lições de moral” (e, de certa forma, é), mas não é de forma alguma enfadonho ou bobo, mesmo nas partes mais melosas. No meio de sua fantasia descompromissada, de traços fofos – das aquarelas às letras – dá para se emocionar sem deixar de rir. Nem de pensar.
O primeiro detalhe que me surpreendeu foi a hostilidade (leve, claro) com os baobás. É que na pesquisa para o livro conheci as árvores e, devo dizer, são impressionantes! Tadinhas, seu Exupéry, por que tanta raiva em relação a elas? Saiba que no deserto (tudo bem, não cresce no deserto do Saara, mas mesmo assim) teriam sido fonte fácil de água para você. Teria sido uma ÓTIMA inserção na história – mas não se pode ter tudo, não é?
Negócio legal do livro clássico também é que você fica procurando o tempo todo pelo “momento” famoso; é como saber que alguém vai tentar te assustar e você fica imaginando a cada esquina quando vai acontecer. Ou como ver Matrix e ficar esperando pela hora que Neo para as balas com a mão, ou ver Titanic e esperar pela hora… E agora, qual é a cena mais icônica? De qualquer forma, o que foi legal de refletir foi justamente a relação entre o famoso momento do “cativar” (que foi mais longo do que eu imaginava) e a forma como vivemos em sociedade (em oposição, talvez, a ‘em comunidade’?).
Porque cativar é criar laços – e outra coisa que a leitura de verdade desse livro me proporcionou é clareamento quanto a isso. Eu sempre fui um pouco ranzinza quanto a essa frase feita (tu és responsável por quem cativas, etc) – ora, pensava eu, cativar é criar um afeto, mas eu também não sou culpado se alguém se afeiçoa a mim. Tira essa responsabilidade de mim! Tira!
Mas a verdade é que esse é um posicionamento ético consistente com um ser-no-mundo que vivencia a empatia; que percebe que vive necessariamente em conjunto com outros seres humanos tão merecedores de carinho e atenção quanto qualquer outro. Veja, a responsabilidade é algo grande – ainda mais se for por alguém. Podemos não sentir dessa forma o tempo todo, mas às vezes podemos perceber isso (especialmente, e isso é triste, quando falhamos nessa responsabilidade). Então dá para ver o caminho que nós, avessos ao apego comunitário, trilhamos: eu não quero ser responsável por ninguém. Portanto, não posso concordar que essa criação de laços me faça responsável. Em último caso até evitamos a construção de laços; é mais fácil assim, que nem nos justificarmos teoricamente precisamos.
Temos sim responsabilidade. E isso dá medo. De certa forma podemos até ter pena dos personagens tão julgados pelo Pequeno Príncipe: todos à volta ou com a impossibilidade de criar laços ou com mecanismos para lidar com essa responsabilidade: o homem de negócios, o bêbado (e achei meio cruel zombar de um dependente químico dessa forma; não lhe ocorreu perguntar por que bebia? Foi a única parte que achei verdadeiramente triste, tanto na superfície do papel como por detrás dele), o rei, o vaidoso…
E aí chegamos à política, afinal de contas: a criação dos laços nos dota de responsabilidades sim, mas deveríamos mesmo querer criar laços (ou nos sentir enlaçados) com mais de 200 milhões de pessoas? Não é essa – se esses laços são a condição para uma virada cultural que nos faça sentir essa responsabilidade pelo rumo do país – uma expectativa nada razoável? Derrida reclama que Rousseau prioriza a fala à escrita quando repete a hierarquia metafísica básica da nossa cosmologia ocidental, mas Rousseau tinha sim um pouco de razão ao dizer que de fato as comunidades menores é que são boas, rapaz – quer dizer, não só ele: de Montesquieu a qualquer teórico anarquista vemos isso. Ademais, de que serve (para além da utilidade militar mesmo, coisa de “gente grande”, pra usar o linguajar do livro) nossa preocupação com a responsabilidade nacional se o máximo que isso acarreta é a influência que pessoas do Rio Grande do Sul exercem sobre outras, do Rio Grande do Norte, e vice-versa, sem nunca terem se falado, sem nunca terem se cativado? Não quer dizer que Derrida esteja errado em querer reabilitar a escritura, e o trabalho dele é essencial, mas… Nesse ponto Rousseau não estava idealizando nada não. Estava era bem lúcido.
Por outro lado, essa pode ser só mais uma vontade de tirar de nós a responsabilidade – já vemos isso ser feito tantas e tantas vezes, não é mesmo? Todas as vezes que nossos flagelos sociais são relegados à delegacia isso é posto em marcha: temos que prender, matar, execrar, etc. Somos um pouquinho esse Príncipe, essa figura da nobreza que, mesmo que tenha se arrependido depois (acontecerá isso frequentemente entre nós?) abandonou a Rosa por causa de seus defeitos; que julgou aqueles que não estavam prontos para os laços, sem querer se envolver muito com eles, e foi embora. Só se quer ter responsabilidade com quem não precisa de cuidado: deseja-se que sobre só gente que mereça ser cativado, sem se importar (de novo, tira essa responsabilidade de mim!) com toda a conjuntura estrutural que leva a desigualdades, injustiças, etc. Mas, por outro lado, qual é o limite? Temos que nos deixar cativar só pelos brasileiros, ou pelo mundo todo? Ou só mesmo por aqueles próximos de nós (que é o que dá pra fazer), e o resto que se exploda, de modo que se todo mundo se tornasse esse Príncipe da noite para o dia mesmo assim não alcançaríamos a paz na Terra? A atitude adulta, ao invés de própria de um infante de classes privilegiadas, não seria assumir a responsabilidade de combater a injustiça e o sofrimento, especialmente o estrutural, onde quer que ele se encontre, ao invés de tornar-se responsável apenas por aquilo que se cativa?
Ou não?
Outras coisinhas:
- Me preocupa um pouco uma certa preocupação com o “ser único”. O autor-narrador vai ser o único que terá “estrelas que sabem rir”. Mas se ele não fosse o único, isso mudaria de alguma maneira o que ele sentiria? Digo, se houvesse outro sentindo essa conexão também, com outras estrelas? Cada um tem que ter a sua relação única com algo especial, pelo que entendi; mas compartilhar essa fonte de felicidade não é possível, ou ela só existe enquanto há exclusividade?
- Aquele rei pode ser visto sob a ótica da antropologia anarquista de Graeber / ou dos trabalhos de Pierre Clastres e, ao mesmo tempo, de um aforismo muito bom de Nietzsche, o número 124 do livro Aurora. O cara manda, manda, manda, mas não pode ser obedecido – porque não tem, é claro, um aparelho coercitivo para fazer valer suas decisões. Aliás, é bom mesmo que o Príncipe não tenha dado muita bola para ele, porque toda essa conversinha de que o Rei tem direito de mandar porque manda com sabedoria, porque não exige de ninguém mais do que a pessoa pode dar, etc, é uma bela de uma bosta. Ah, e quanto a Nietzsche, aqui vai o que ele tinha a dizer:
O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?
Em suma, é um livro super recomendado. Não deixe de ler achando que é uma história manjada ou infantil. É mais complexa do que parece – ainda que seja, talvez, por sua simplicidade que ela tanto nos cative.