Ruptura [Severance] é uma das séries mais extraordinárias do momento. Ao final da segunda temporada, me peguei pensando em como a série vai além da crítica à alienação laboral e aborda questões diferentes sobre a subjetividade.
Explicando a primeira premissa: a série mostra efeitos negativos da divisão entre “externo” e “interno”, entre a vida pessoal e a laboral. Se a pessoa pudesse não saber o que faz no trabalho, e no trabalho não saber nada sobre o resto de sua vida, ambas as “vidas” sairiam empobrecidas desse processo. Eticamente, você – seu corpo, sua existência – não faz ideia dos projetos com os quais colabora ao trabalhar; ainda, apenas uma parte de você retém qualquer agência sobre esse estado de coisas, e assim a “exploração de si” neoliberal – movida por escolhas, mas ainda assim exploratória – ganha contornos materiais diretos.
O problema é que a exploração de si seria uma reconceituação de todo o seu ser. A divisão da série (a ruptura) seria então uma forma de “resolver” essa contradição. Ela não resolve nada, contudo, porque a exploração deixa então de ser uma escolha, e passa a ser uma imposição sem a contrapartida da esperança. Como Foucault já analisava sobre o poder neoliberal, o poder não só reprime, mas produz; a exploração de si ainda se assenta em um imaginário de sucesso por meio da provação. Ao “interno” da série não sobra mais esperança – a não ser que o ambiente de trabalho seja reconfigurado como algo positivo, todo envolvente; um lugar em que se pode viver bem, e isso ser algo ao que aspirar. Na série, isso depende tanto de uma dimensão espiritual (a mitologia da família fundadora) quanto de divertimentos, práticas rituais, símbolos, etc., muito embora isso parece ter precedido a existência de uma divisão de ruptura na empresa. Isso retoma a atualidade na crítica se pensarmos que quanto mais a dominância neoliberal se intensifica, mais abandona-se qualquer pretensão de que suas promessas são reais – em vez de validar a esperança de um fora-do-trabalho positivo, que o trabalho torne-se então um sentido maior (total, inclusive) na vida de cada um, o que não é nada novo: é mais um capítulo nas disputas sociopolíticas pelo sentido coletivo da vida, em torno de ideias como a ética do trabalho, etc. Se estamos assistindo a uma intensificação disso é um debate complexo, mas parece que é isto que está posto nas intenções da empresa a partir da estrutura da premissa da série.
Poderíamos falar muito mais disso em termos de detalhes e questões secundárias, como essa mitologização da figura do “fundador” com vistas à legitimação do poder corporativo, etc. Mas eu acho que essa é a camada mais direta e óbvia da simbologia da série, e eu queria falar mais do que foi colocado a partir da segunda temporada. Na medida em que o drama se torna mais individualizado – mais baseado no drama de personagens específicos que em uma questão mais ampla sobre o que a ruptura é e está fazendo com “as pessoas” – temos um conflito mais pensado para criticar tanto o abuso instrumentalista das pessoas por parte de um poder corporativo que se vê como um guia moral da sociedade (pertinente no caso das big techs) quanto a forma como “gerenciamos” diferentes partes de nós mesmos.
Antes a “reintegração” aparecia como uma possibilidade interessante na série: você é a mesma pessoa, são só as suas memórias que estão separadas. Assim, se você pudesse reintegrá-las – seu externo lembrar do que o interno lembra, o interno lembrar do que o externo lembra – seria possível liberar o interno de sua vida limitada e o externo da sua falta de controle no trabalho. Na segunda temporada a série avança sobre essa questão ao mostrar que memórias não são só memórias, mas partes importantes da construção da subjetividade, até porque modificam nossas proclividades e, acima de tudo, nossas vontades. E ao modificar nossas vontades, o nosso “vetor” decisório, resultante de tudo aquilo que queremos num dado momento, modificam também quem somos, pois essa vetorização indica aquilo que eventualmente valorizamos e, assim, nossos caminhos, nossos comprometimentos, a visão que temos sobre nós mesmos.
A conversa entre o Mark externo e o interno no final da segunda temporada destrói, então, a ilusão reintegrativa. Não há reintegração possível porque as vontades são completamente diferentes – não há reintegração feliz porque há dois desejos excludentes que não poderão ser mutuamente satisfeitos. E se essa metáfora for aplicada às diferentes vontades que temos na vida, associadas a diferentes partes de nossa personalidade, identidade, a diferentes grupos com os quais convivemos, projetos dos quais fazemos parte, etc. – temos então essa questão do equilíbrio não só entre vida pessoal e laboral mas entre diferentes partes de nós que podemos honrar e cultivar; que merecem expressão assim como o Mark interno merece vida, ou especificamente a fruição daquilo que se constituiu como seu desejo.
Mas não é porque não há reintegração possível que não há convivência possível. Eu estou escrevendo sobre isso porque o que me chamou a atenção foi a convergência entre essa questão da série e o capítulo sobre diversidade subjetiva na minha tese de doutorado. Lá eu tinha argumentado que uma visão libertária sobre nossa subjetividade envolve respeitar e fomentar a diversidade subjetiva, buscando não uma hierarquização de nossos afetos / vontades / identidades, mas um equilíbrio entre eles que se refletiria também num equilíbrio social – isto é, na igualdade entre indivíduos e grupos para que toda essa diversidade pudesse ser apreciada e realizada (até porque também argumento que a diversidade interna simultaneamente reflete e instiga essa diversidade externa, entre pessoas e grupos).
Em outras palavras, a questão é combater relações de poder que permitem uma identidade ter precedência sobre outra (no caso o poder corporativo da Lumon, etc.), assim como promover um diálogo honesto entre as identidades para chegar a acordos de realização mutuamente benéficos.
Não acho que isso invalida a crítica anticapitalista da série, como vi um usuário do reddit escrever (“não faz sentido falar em exploração porque algumas pessoas gostam dos seus trabalhos!”). E tampouco acho que invalide outro jeito possível de interpretar a metáfora, qual seja, que a divisão subjetiva é uma materialização interna do “dividir para conquistar”. Eu não sei se essa interpretação funciona tão bem se estivermos falando de trabalhadores, na verdade, uma vez que os “internos” ainda conseguem aproveitar as brechas para se unir e subverter as coisas. Mas funciona melhor se pensarmos na ruptura não como forma de aliviar a tensão da exploração neoliberal de si, e sim como forma de engessar as divisões subjetivas.
Ou seja: sem o procedimento tecnológico da ruptura, você pode ter vontades conflitantes, e precisar de uma “negociação interna” para formar uma vida em que essas diferentes partes de você possam florescer (e isso exige equilíbrio de poder externo, ou seja, que as relações de poder sociais não exijam que você priorize absolutamente apenas uma parte de si). Só que há uma maior probabilidade de essas partes “entenderem” umas às outras pois fazem parte de um todo, de uma visão totalizante do self, que tem como base as memórias, as experiências compartilhadas. Então embora haja uma competição pelo tempo, pelo controle, por aquilo que você vai efetivamente fazer, o tempo gasto efetivando outra parte do self também gera uma satisfação e uma realização pessoal que reverbera por todo o ser, ainda que possa entrar em conflito com outras vontades e causar sofrimento também. Após a ruptura, as partes não compartilham mais nada; não conseguem se ouvir, não conseguem se sentir, e portanto isso dificulta muito essa negociação subjetiva. A ruptura, assim, poderia simbolizar visões de identidade tão fechadas e absolutas – e/ou, num sentido coletivo, polarização afetiva, etc. – de modo que as pessoas não conseguiriam mais negociar essas diferenças.
Se a reintegração é impossível e até antiética porque sinalizaria “assimilação”, submissão, hierarquização do desejo e da identidade, a ruptura prejudica também a solução libertária, que buscaria a diversidade e a igualdade, no momento em que, destruindo a memória compartilhada, dificulta o diálogo.