Recentemente fiz a leitura de dois livros do filósofo Michael Sandel: “Liberalism and the Limits of Justice” e “Democracy’s Discontent”. Esses livros oferecem uma visão interessante da corrente republicana de pensamento dentro da ciência política (especialmente a nível mundial, ou seja, descontando o sentido partidário que a palavra “republicano” tem nos Estados Unidos). Ao longo da graduação conheci e me envolvi, em termos de pesquisa e leitura, com essa tradição de pensamento. Cheguei até ela através do debate sobre o conceito de liberdade: ser livre é mais do que ter mais possibilidades, mais caminhos para escolher; tem a ver com o fato de que você não está arbitrariamente dominado por outrem. Os republicanos se importam com instituições e práticas que garantam o autogoverno – a liberdade do indivíduo por meio de sua participação na comunidade política. Isso é importante: simplesmente olhar para o próprio umbigo e querer se livrar de amarras para fazer o que quiser não é ser livre; a liberdade não é apenas uma questão individual, mas sim um fenômeno social. Certas restrições à liberdade individual são necessárias não apenas para alcançar uma liberdade mais igualitária (ou seja, mais possibilidades para todos) como também é a participação na comunidade que garante as liberdades individuais em primeiro lugar.
É difícil conceituar em poucas linhas a tradição republicana de pensamento; em geral ela é muito mais que o parágrafo anterior, mas a ideia é mais ou menos essa.
Eu gosto dessa forma de pensar. Ela bate de frente (e forte) no liberalismo político e econômico que serve de base para o capitalismo que anarquistas em geral detestam. Isso é bom. Por outro lado, gostar não significa concordar com tudo – e a minha alegria intelectual de me jogar na complexidade e conviver bem com diversas ideias conflitantes vem justamente da oportunidade que seus adversários proporcionam para que você fortaleça suas ideias, caso não as modifique de todo. O que quero dizer é que, mesmo sendo um anarquista, toda minha vida acadêmica passou por ter uma boa relação com marxistas, liberais, republicanos e a ocasional direita (quando ela não é simplesmente beócia).
E isso é fantástico – se encaixa no que eu já pensava antes sobre o anarquismo e o que considero um dos nossos principais problemas teóricos: a questão da relação entre indivíduo e comunidade, que se reflete por sua vez na existência do anarcocapitalismo e na consequente briga quanto ao conceito de liberdade. Anarquistas em geral detestam o capitalismo porque veem nele uma força opressiva – mas em que sentido a liberdade afloraria mais? Com um capitalismo mais puro, em que os mercados seriam “verdadeiramente livres”? Ou adotando um outro sistema econômico? Existem grupos anarquistas de língua inglesa na internet que são dominados, ou amplamente influenciados, por anarcocapitalistas. A “tagline” de um que me lembro era algo como “numa sociedade realmente livre, os mercados também não deveriam ser livres?”.
A resposta é não, e o republicanismo é essencial para se chegar a essa conclusão. Todo o papo sobre liberdade como a coisa mais fundamental do mundo é excelente e fascinante sobre o anarquismo, mas enquanto você bebe somente dessa fonte pode cair no tipo de cilada em que tudo vale, tudo tanto faz como tanto fez – então por que não ter mercados livres? Porque nem toda liberdade favorece a liberdade – isto é, um certo sentido de liberdade é enganador, pois não é capaz de nos oferecer uma parte importante do que entendemos por liberdade em primeiro lugar (mas que às vezes é esquecido).
Nem toda liberdade é igual. Por mais que o conceito pareça claro, ele não é; é complexo e sem definição única. Se o anarquismo se focar na concepção liberal de liberdade, vai cair na armadilha da “inevitabilidade” do capitalismo, ou no mínimo, no caso, dos mercados abertos: se preocupar com o indivíduo a tal nível que se destrua completamente a ideia de comunidade e a importância de nos importarmos uns com os outros, a necessidade de construirmos uma vida comum que negue algumas possibilidades justamente para preservar a autodeterminação democrática do grupo – uma certa igualdade social, a política, a preservação e continuidade desse estado de coisas de liberdade que se considera bom.
O anarquismo se separa do republicanismo, contudo, no que tange à possibilidade de democracia direta; no que tange à ideia de que não se deve haver instituições separadas da população que contenham em si um poder coercitivo (Estado); de que deve haver esse tipo de “mediação” da população e do poder com vistas a gerar um “bom governo” (uma constituição mista). A forma que o anarquismo toma tem a ver menos com estabilidade do que com o respeito a princípios como liberdade e igualdade. O debate permanece, entre os anarquistas, sobre qual é o ponto de equilíbrio entre comunidade e indivíduo; para mim, adotar um sentido completamente liberal, negativo (no sentido Hobbesiano), voluntarista de liberdade e assim pressupor que toda comunidade anarquista deve ter como objetivo a liberação total do indivíduo frente ao grupo é um grande erro.
No entanto, são tantos os alarmes de teóricos políticos que soam bem, e devem ser ouvidos – brados contra a tirania da maioria e “groupthink”; a favor da criatividade, da individualidade, etc. Eles são importantes e relevantes caso um anarquista tente argumentar demais em favor da supremacia da comunidade. Para mim, o ponto de equilíbrio (o que não é dizer muito pois isto é abstrato e, como qualquer outra empreitada social, impossível de ser praticado à perfeição) significa uma comunidade forte, fortalecida e respeitada pelos indivíduos – cujo objetivo é justamente fortalecer a independência e a liberdade dos indivíduos.
Os republicanos põem extrema importância na lei, mas, sinceramente, essa é a parte que eu mais detesto no republicanismo. A lei não garante nada. O que garante a aplicação dela ou não são concidadãos imbuídos do espírito que ela pretende representar. Se a comunidade não estiver unida, constituída (e, mais que isso, constituindo os indivíduos) através do gosto e da defesa da liberdade individual e da igualdade (e reconhecendo que às vezes um pouquinho de liberdade individual pode ter que ser sacrificada para que se proteja uma liberdade mais ampla, proporcionada pela comunidade), nenhuma constituição vai proteger a liberdade e a igualdade.
Anarquistas e republicanos veem um grupo com dificuldades políticas e se perguntam: “como esse grupo deve agir para resolver seus conflitos?”. Aí as diferenças ganham contornos curiosos.
Republicanos são os geeks da ciência política – ou, quando mais afeitos às leis do mercado, são como os novos otimistas das startups cuja filosofia é a de que a tecnologia salvará o mundo.
“… Always turning to the market to find a solution for everything; like homelessness, like creating an app… It’s not that complicated, y’all! It’s not that crazy. We can actually, you know… We don’t have to… You know… Just keep on innovating, and like ‘yes, tech is going to save us’… No, it won’t.“
Só que nesse caso não se trata de tecnologia “física”, mas sim de uma “tecnologia” cultural, social, política. Para eles, a solução para uma boa comunidade não é a constituição dela em si e a relação entre seus membros, mas as regras – o aparato estatal, as instituições, as leis.
Imagine a seguinte situação: um grupo de amigos está brigando a partir de várias disputas internas. O que fascina o tipo republicano é propor ao grupo qual é o melhor sistema que vai gerenciá-los para que eles possam conviver apesar das brigas. “Veja, toda vez que falamos sobre política não dá certo. Então vamos proibir esse tópico. Por outro lado, descobrimos que quando bebemos duas latas de cerveja ficamos mais relaxados e brigamos menos, então vamos adicionar isso a toda reunião”. Todo o objetivo é desenhar um sistema que funcione bem, e de forma autônoma, na geração de uma comunidade política harmoniosa. “Bom, temos que ter leis que se aplicam a todos, até a um eventual monarca, e aí temos que ter revezamento nos cargos eletivos, e aí também a separação de poderes…”. Digo de forma autônoma porque, com notáveis exceções, o republicanismo é a tradição do ponto de equilíbrio; do “Eureka” de quem faz a descoberta final. De Platão aos romanos antigos, a discussão gira em torno da mais aperfeiçoada forma de governo: a cultura é jogada pela janela como algo realmente decisivo na forma como um povo vai se organizar; a estrutura pode ser julgada como justa e eficiente por critérios independentes, e ela se aplica a qualquer grupo humano. É duplamente curiosa mais essa analogia entre o republicanismo e os nerds, especialmente a galera hardcore da computação: todo problema com o sistema vira mais uma oportunidade pra reclamar do usuário, que está provavelmente fazendo alguma coisa errada. Pra não ser injusto, a reação a partir daí pode ser informar o cidadão e promover um debate para que se tome consciência do suposto funcionamento do sistema; mas pode surgir como mais uma mudança no sistema.
Os anarquistas respondem à preocupação de um modo diferente. Ao invés de evitar trabalhar com o “material humano”, é nele que buscam as respostas: pro grupo de amigos, diriam que tem que haver acordo, e seria especialmente bom que ele fosse motivado pelo desejo livre de permanecerem juntos como um grupo de amigos que se gosta. Na comunidade política, questões substantivas têm vez – e nesse sentido Sandel é extramente próximo do anarquismo que defendo – e podem ser discutidas. A solução está sempre em apelar para os valores que constituem a comunidade e como isso pode resolver diferenças e levar a acordos.
Anarquistas, obviamente, não são insensíveis a regras ou sistemas; as pessoas continuam sendo pessoas, e tecnologias (sociais, como as que os republicanos gostam de planejar) são parte de quem somos. Mas, informadas por valores diferentes (e, portanto, propósitos diferentes) e baseadas em processos constitutivos diferentes, essas tecnologias são diferentes entre uns e outros. Anarquistas gostam do processo decisório baseado em consenso, e isso é radicalmente diferente. E, é claro, há a questão econômica – que nos leva de volta ao início do artigo.
A liberdade como conceitualizada pelos republicanos é muito importante para o anarquismo, e é exatamente por isso que o capitalismo não pode ter vez numa sociedade realmente anarquista. A desigualdade na distribuição do poder que ele produz é perigosa demais para aceitar se a igualdade política é um objetivo fundamental. Republicanos muitas vezes têm dificuldades em falar sobre economia porque se preocupam demais com o poder político sem ir até as últimas consequências do que dizem, isto é, sem pensar de forma mais humana sobre os sistemas que eles criam; é muito legal construir “castelos conceituais” sobre como distribuir de forma justa e inteligente o poder político numa sociedade, mas se a economia continuar sendo tratada como um campo neutralizado e completamente independente da política (como se o poder no campo econômico também não precisasse de um sistema que o distribuísse melhor, com vistas à liberdade), esses castelos provarão ser de areia da praia.