Em geral, há dois tipos de pessoas contrárias ao voto obrigatório. De vez em quando as motivações coincidem, mas devem ser consideradas separadamente.
- Diferencial de inteligência – Há quem faça uma apologia à “distribuição natural de talentos” entre os humanos. Ora, alguns são simplesmente mais inteligentes que outros, dizem; portanto, se nem todos forem obrigados a votar, escolheremos melhores representantes.
- Uma questão de princípio – Há quem seja a favor da liberdade no maior número de circunstâncias possível, e que, por esta razão, não deveríamos ser obrigados a nada – especialmente não a votar. Nessa visão, é comum ouvir dizer que votar é um direito, não um dever.
A primeira motivação é na maioria das vezes alguma forma disfarçada de classismo ou racismo. As pessoas que eles querem que não votem são os “burros” – que, para eles, se resumem a pobres, negros, favelados, nordestinos. Nas últimas décadas sempre ouvimos essa ladainha depois da vitória do PT nas urnas. Ah, se apenas os mais ric… Quer dizer, os mais inteligentes escolhessem o presidente. Aí teríamos Aécio. Ou Alckmin. Ou Serra.
A segunda revela algo mais profundo sobre o estatismo moderno; se o voto é um dever, há algo que interessa nele aos poderosos. Não é caridade ou “virtude cívica”; não é achar que fará bem às pessoas. É porque esse é um instrumento de legitimação. Como todo mundo vota, fica fácil virar para os eleitores e botar toda a culpa dos sistemas social, econômico e político nas costas deles. Quando isso acontece, a individualização e internalização da culpa não está muito longe, porque na massa disforme e monolítica dos “eleitores” o engenho de misturar “vocês” com “você” é facilmente empregado. Foram vocês que colocaram esses políticos aí. Não está gostando? Se fode, você deveria ter escolhido melhor.
Eu sempre fui contra o voto obrigatório, mas por causa do segundo princípio. É o que leva quase todo anarquista, arrisco dizer, a ser contra o voto obrigatório.
Mas venho escrever essa postagem para tentar destrinchar um argumento complexo, mas relevante, em especial para a comunidade anarquista: não importa muito por que ser contra o voto obrigatório; se é o motivo 1 ou o motivo 2. No final, o resultado acaba sendo o primeiro.
Uma vez que o voto obrigatório se desfaça em uma sociedade desigual e com baixo capital político como a da nossa população, o primeiro cenário se concretizará; não porque os “burros” não vão votar, mas porque quem é assim classificado pelos proponentes do primeiro cenário são aqueles que estariam mais propensos, por diversas razões, a não votar; desde a desilusão com o sistema até condições socioeconômicas e culturais.
Por outro lado, obviamente o voto não mudará nada. O que me leva a um jeito de explicar o que estou tentando dizer ao refrasear o título: votar torna um anarquista menos anarquista? Eu creio que não, porque aquilo que o anarquista sabe que é irreal, o tipo de feitiço que ele tenta quebrar em outras pessoas e na batalha cultural mais ampla, é a ligação entre voto e mudança sistêmica. O anarquista é aquele que olha para o voto e, embora possa até votar (seja pra evitar se incomodar com a multa depois ou por alguma outra razão), o que faz a diferença em sua ideologia é a perspectiva com a qual aborda seu próprio voto, em especial as expectativas em relação ao voto. O importante é saber que o voto não vai mudar nada. A diferença entre um petista e um anarquista votando no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 são as expectativas que cada um guarda em relação ao processo eleitoral.
Agora, esse parece ser um argumento bastante subjetivista; se não há diferença prática (os dois votam), então não há diferença, ponto. É justo argumentar dessa forma, mas é preciso entender que só abordei o lado indivíduo-a-indivíduo da questão: o voto obrigatório é um tópico social, e precisamos abordar esse lado também. O “cenário 2” do início da postagem trata simplesmente de direitos individuais. Há um outro, e gigantesco, lado da moeda.
O voto obrigatório traz a discussão política (ou pelo menos tem a intenção, e oportunidade, de fazê-lo) para dentro das casas de quem normalmente não discutiria política. É uma forma de envolver a todos no processo político. Ao meu ver, o anarquista que se opõe ao voto obrigatório está colocando uma picuinha pessoal (e admito que esse era eu: “mas que droga, eles estão me forçando a votar. Ugh…”) acima de uma boa oportunidade de desenvolver a discussão política. Isso tem a ver também, aliás, com uma visão contraproducente de liberdade – mas não creio que seja saudável contestar isso nesta postagem…
Em nossa visão de futuro, de sociedade desejável, queremos que as pessoas se envolvam. Queremos a responsabilidade de cada um pelas decisões da comunidade. Como faz sentido rejeitar esse mesmo envolvimento nesse exato instante? – Não é o mesmo envolvimento, responderiam alguns; e nem o mesmo modelo de sociedade. Sim, é verdade, é tudo verdade. Mas é algo próximo, próximo o bastante para servir como oportunidade de discutir princípios e ideias anarquistas. De acostumar quem não está acostumado a debater ideias, projetos, valores, caminhos, e também pessoas. Sim, porque a verdadeira democracia do anarquismo não pode funcionar sem o tipo de responsabilidade pessoal por projetos que implicam a discussão de pessoas para além da discussão de representantes que temos hoje, mas não muito aquém.
O voto obrigatório deve ser dimensionado de forma apropriada pelo anarquista; não é solução para nada – nem o obrigatório nem o voluntário – mas no esquema mais amplo das coisas como estão hoje, opor-se a ele não só ajuda o projeto de poder de quem está muito mais à direita dos anarquistas que a esquerda estatista, como também significa fechar os olhos para uma maré de discussão política que pode ser melhor aproveitada para nossos próprios objetivos.