Uma versão em inglês dessa resenha pode ser lida aqui.
Estou dividido quanto ao livro “Nature, Essence and Anarchy” (“Natureza, Essência e Anarquia”, em tradução livre), título recente do anarquista Paul Cudenec pela Winter Oak, disponível na Amazon. Quis ler esta obra justamente para conhecer melhor os argumentos de um anarquista contemporâneo que defende a ideia de “essência” – coisa rara hoje em dia. E se por um lado não me sinto confortável falando negativamente deste livro só porque não concordo com algumas de suas ideias – e o formato do texto, como nas outras coisas que Paul Cudenec escreve, é bem agradável – há algumas coisas que me incomodaram mais profundamente aqui. Eu gostaria de discuti-las.
O objetivo desta coletânea de textos é apresentar uma filosofia (não apenas política, mas holística) contrária ao capitalismo; uma que sirva, intelectualmente, a tarefa de combatê-lo. O autor considera que ela deve atacar o pós-modernismo, que tem um efeito doentio sobre nosso sistema intelectual, criando uma “paralisia” em ampla escala; há ao longo do livro uma conjunção total entre “pensamento pós-moderno” e “capitalismo”. Para Cudenec, a noção de um mundo “construído” é essencialmente proveniente do capitalismo: para o mundo capitalista construído, tudo o mais também foi construído.
Aware on some level of its own fundamental falsity, it defends itself by projecting that falsity on to everything else that exists, in order to level the playing field and create a theoretical realm in which its own artifice no longer stands out as aberrant, alien, toxic. It becomes impossible to accuse capitalism, in particular, of being fake if you accept its big lie that everything, in general, is fake, and that there is no such thing as truth, meaning, origin, essence and nature. (p. 2)
Assim, a solução para escapar ao capitalismo passa também por rejeitar a ideia de que toda realidade é socialmente construída – aceitando que somos parte da natureza (e que há uma natureza real e independente ao qual nos apegar) e, em segundo lugar, que a forma como deveríamos nos organizar, se entendermos corretamente nosso lugar enquanto parte da natureza, é o anarquismo.
Mas o pós-modernismo surgiu justamente em parte porque não ter entendido a realidade como socialmente construída foi causa de muitos problemas. Como lembra Graeber, “Stalinistas e sua corja não matavam porque sonhavam grandes sonhos […] mas porque achavam erroneamente que seus sonhos fossem certezas científicas”. Mas é possível dizer que embora os positivistas e afins tivessem afirmado um entendimento do real, fizeram-no mediante uma separação entre humanidade e natureza que é em Cudenec (de forma acertada) objeto de crítica. Nesse sentido, Cudenec advoga não apenas a consideração do “real”, mas um “real” para além do humanismo instrumentalista exacerbado dos tempos modernos.
É tão estranho assim admitir que “somos parte da natureza” e que “a natureza é algo real, e nem tudo é socialmente construído”? Claro que não. Mas isso é um truísmo, e o diabo está nos detalhes – com os quais Cudenec infelizmente não lida. Se teóricos pós-modernos apenas dissessem “não há natureza, apenas subjetividade”, isso também, de certa forma, seria uma afirmação fraca. É preciso mostrar, argumentar – como faz Derrida, por exemplo, na longa e deliciosa surra que dá em Lévi-Strauss, e toda sua teoria ao redor da proibição do incesto, em “Gramatologia”. A natureza é real, tudo bem, mas o que é a natureza? Cudenec não nos dá uma definição. Pelo menos não uma com a qual se possa trabalhar sem cair numa lógica circular a partir da qual não se pode estar errado nunca. Em um momento, a natureza é o meio-ambiente; em outro, é a essência humana; em outro, é outra coisa – a definição de Paracelso que ele cita é o mais perfeito cop-out: a natureza seria “de fato tudo que vemos diante de nossos olhos: árvores, minerais, animais, doenças, nascimento, morte… Mas o que ela nos dá é sempre algo a mais também: a manifestação de uma realidade ‘mais profunda’ – ainda que no momento não possamos definir essa profundidade mais claramente”. É irônico parafrasear a crítica feita por Sahlins a ninguém menos que Foucault, mas cai como uma luva: quando tudo é natureza, nada é natureza.
Não há nuance no entendimento que Cudenec faz do próprio pós-modernismo. Acho razoável que se diga que ele acaba colaborando com várias instituições que os anarquistas combatem; mas é um passo a mais tratá-la não só como epifenômeno do capitalismo, mas como desenvolvimento deliberado dele. O pensamento pós-moderno é equacionado com o estado de coisas em que vivemos de forma tão agressiva que poderíamos facilmente imaginar que os autores mais conhecidos dessa “tradição” (ha!) não sejam Derrida, Deleuze ou Spivak, mas sim Bill Gates, George Soros ou Rex Tillerson.
Procuro apreciar o pós-modernismo como uma forma de revisar profunda e seriamente nosso aparelho cognitivo, nosso ferramental conceitual. Pode ser que muitos tenham ido longe demais nesse revisionismo? Sim, claro. Como alguém que, por saber que sempre é útil revisar o carro antes de viajar, nunca consegue viajar porque assim que termina uma revisão, começa outra. E, como ouvi uma vez Ricardo Silva dizer, a ausência de assepsia absoluta não justifica que um médico faça uma cirurgia no esgoto. Existe uma impossibilidade prática de considerar que não há realmente uma “realidade” lá fora, e que tudo é uma ilusão, pois fazemos cálculos pragmáticos a cada segundo de nossas vidas. Apesar disso, nossa “necessária subjetividade” força a admitir que, no fundo, no fundo, podemos estar sonhando, ou vivendo uma realidade simulada: apesar da corretíssima regra quanto ao “ônus da prova”, o fato de que algo não é falseável só coloca a afirmação além do alcance da ciência, não além do campo do possível. E sim, eu entendo que isto é um agnosticismo perfeitamente criticável também – mas mesmo sem cair nesse cenário extremo, “erros” cognitivos de toda sorte, práticos e consequentes, são muito frequentes. Pessoalmente, considero cem vezes menos prejudicial um pós-moderno convicto do que um positivista / racionalista / dialético que se convenceu de que sabe a verdade e exatamente como se chegar a ela (é tão curioso como a galera da “dialética é tudo na vida” acha que o fato de que fundamentalistas religiosos e “Bolsonaros” estão errados os separa mais do que os une). Se parece óbvio que o desejável mesmo é nem um, nem outro, então o mesmo vale para uma abordagem razoável sobre a cognição humana. A melhor voz que já ouvi (li) discorrer sobre isso é a de Robert Anton Wilson, em Quantum Psychology.
Mas minha defesa do pós-modernismo não se dá apenas por essa malandra tentativa de me apegar ao que há de bom nele e ignorar o que há de ruim; aponto também como são fracas as tentativas de criticá-lo. Na maioria das vezes, o argumento é pragmático – o que é absolutamente ilegítimo do ponto de vista científico. “Se todo mundo acreditar no pós-modernismo, coisas ruins vão acontecer” – mesmo que isso fosse verdade (discutível), não significa que ele está incorreto, infelizmente. “Até Bruno Latour se arrepende de ter dado munição aos anticientíficos” – ele preferiria não ter contribuído, então, com as ciências sociais? Hmm. Talvez seria melhor Darwin não ter publicado sua teoria sobre a transformação das espécies, para não dar munição aos eugenistas? “A visão de que após a morte não há nada é muito amedrontadora, portanto não deve estar certa” – quase literalmente o que Cudenec afirma mais ao final do livro.
Uma visão crítica interessante engendrada por ideias pós-modernas é aquela que enxerga a conexão entre da definição de “naturezas” e “essências” (não importa quão benevolentes e não-“naturofóbicas”) até o julgamento dos que são “contra a natureza”. O autor mobiliza, por exemplo, uma concepção positiva de liberdade (sigo a classificação de Berlin, nesse caso), e há muitas coisas interessantes que ele diz ao fazê-lo; quando advoga, por exemplo, que a “negatividade” de um anarquista – aquilo que é geralmente considerado ruim por estar associado a, digamos, reações agressivas e destrutivas à dominação e à autoridade – é uma positividade uma vez que se relaciona à afirmação de determinados ideais e valores. Ou quando isso serve de crítica ao self liberal de um Rawls. Mas, em última instância, o problema permanece: a mesma estrutura de pensamento, os mesmos argumentos, o mesmo vocabulário de apelação à essência já foi usado com sucesso por grupos com objetivos muito diversos dos nossos – como no fascismo.
O autor fala de Kropotkin, que aparece no primeiro ensaio condenando de forma política a teoria da evolução de Darwin; um pouco depois, mostra-se como sua teoria de evolução a partir da ajuda mútua leva à conclusão de que “o anarquismo é natural – que, deixados por si sós, pessoas e outros animais tendem a cooperar com outros para o benefício coletivo” (p. 9). Hoje – talvez exceto na cultura popular, o que é um grande problema por si só – a biologia leva em consideração a cooperação como um fator importantíssimo do processo evolutivo. Mas a competição, principalmente aquela que não se dá necessariamente a nível consciente (isto é, não um leão violentamente atacando uma gazela, mas uma vegetação que infelizmente não é suficiente para uma população muito grande de animais) não pode ser descartada. Afinal, o que isso equivaleria a dizer? Que a cooperação é natural, mas a competição é antinatural? Se a natureza, ou a realidade, ou O Universo (como no último ensaio), são “tudo que existe”, então como aquilo que é poderia ser de tal forma que deveria não ser? A partir de que categoria deveríamos entender a competição? Pessoas e animais tendem a cooperar – que pessoas? Que animais? Em toda e qualquer situação? É verdade que muitos casos de violência entre seres humanos são usados como propaganda para avançar a ideia de que somos “naturalmente ruins” (e isso é burrice), mas o contrário é igualmente absurdo. E perigoso, também.
O que poderia garantir que nós, anarquistas, estamos certos sobre uma determinada racionalidade acerca da natureza humana? A introspecção, descreve-se (em termos meio místicos) em “Essência e empoderamento”, um dos textos da obra. Temos que olhar fundo para dentro de nós mesmos para descobrir nossa essência. O problema, é claro, é que este olhar não vai estar fora de um determinado contexto. Cudenec acusa o pós-modernismo de ser uma máquina de produzir silêncio (já que não há essência, não se pode falar dela), mas isto é estranho; é claro que se pode. O pós-modernismo não é uma máquina de silêncio – de “sensorial deprivation”, como começa o ensaio – mas uma máquina de “sensory overload”; seu problema é que há um certo estímulo a falar demais, sem foco, e não menos. Justamente por investigar fatores que influenciam o olhar que se empreende em busca da essência, e como os resultados dessa busca serão contingentes e contextuais a depender desses fatores, o pós-modernismo pode fazer parecer que a busca é inútil – mas não é; é preciso apenas se acostumar com a forma como certos critérios não-racionais (como nossos valores) a influenciam. Em outras palavras, o pós-modernismo não impede a introspecção; só avisa que ela jamais será pura.
O autor parece incorporar uma intuição em relação à insuficiência de “razão e introspecção” como caminho para encontrar a essência humana na própria estrutura do texto, especificamente na forma como cita outros autores. No primeiro ensaio, por exemplo, Cudenec está basicamente dizendo: “existe uma realidade objetiva, ela é a (ou faz parte da?) natureza (que é a realidade objetiva, ou faz parte dela – eu não sei!), e aqui está Paracelso, um pensador cujas ideias devemos recuperar, porque… Porque ele concorda comigo!“. Cudenec não argumenta de fato em favor da existência da tal “realidade objetiva” (exceto pela perspectiva pragmática que critiquei acima), e tampouco traz Paracelso à tona para que ele possa fazê-lo! Não há, de fato, argumentação, aqui, por parte de nenhum dos autores: separados por séculos, eles afirmam várias coisas, mas nada necessariamente com mais propriedade que seus adversários.
Quando Cudenec argumenta que há sim uma “realidade objetiva”.
Sim, estou perfeitamente em paz com a ideia de que há uma realidade à qual respondemos – mas é preciso ser exigente ao analisar ideias, e os pós-modernos são muito mais efetivos, mesmo quando argumentam o absurdo que é a negação disso, porque lidam em profundidade com as imensas dificuldades encontradas sempre que se tenta dizer uma letra sequer sobre o que esta realidade é. Se afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias, não é muito impressionante quando alguém vem dizer que é capaz de produzir um conhecimento útil e objetivo sobre a realidade humana se não vier com argumentos e indícios bem amarradinhos quanto a isso. Isso é algo que Graeber, por exemplo, ao beber da fonte de décadas de pesquisas antropológicas, faz de forma bem mais contundente (embora ainda reconheça no começo de “Fragmentos de uma antropologia anarquista”, citado acima, o perigo de uma disposição intelectual segura de si em demasia).
Mas o problema mais fundamental com a premissa de Cudenec é seu enquadramento crítico. Ele se pergunta: como podemos chamar o capitalismo de falso se tudo é falso e se não há mais significado, verdade, natureza, essência, etc? A resposta é simples: porque não precisamos chamá-lo de falso. Podemos chamá-lo de ruim. De contraproducente. E de anti-ético. Jesse Cohn demonstrou, no livro que mencionei acima, como o pós-modernismo é incapaz de produzir uma crítica ética da atualidade, uma vez que abandona este tipo de parâmetro ao relativizar tudo (e nisto Cudenec acerta em cheio). Contudo, isso não tira o mérito da crítica que ele promove aos riscos agudos da representação – uma operação necessária no pensamento que afere as “essências” e as “naturezas” dos seres. Por exemplo, uma parte muito boa do livro está na página 14:
in a world that sees only atomised individuals creating their own subjective realities, what place is there for this collective level of human life […]? In our capitalist world of separation, any authentic communal belonging has to be destroyed so that each isolated individual has to turn to the system for their sense of identity, which is sold back to them in fake form as part of a lifelong process of exploitation based on dispossession.
Essa é uma crítica muito bem colocada, mas a forma geral do argumento ao longo do ensaio não se sustenta. A construção da figura do ser humano como separada do e superior ao resto da natureza vem de no mínimo Descartes, e é justamente o tipo de coisa que o pós-modernismo condena. No entanto, numa conjunção muito mal explicada, essa separação entre humanidade e natureza é equacionada à ultrassubjetividade pós-moderna, como se a ideia de um ser humano independente e acima da natureza surgisse com Lyotard em 1979. A própria ideia de um “humanismo instrumentalista” como muito recente é estranha, considerando que a própria noção cristã de mundo é uma em que a terra e os animais foram criados por Deus para a satisfação das necessidades humanas. Certamente isto tudo não é um “lapso” por parte do autor: é mera consequência lógica da equalização de saída que se faz entre a filosofia pós-moderna e o capitalismo contemporâneo.
Na página 16, ao final do artigo, temos outra boa parte:
If our everyday experience is of traffic jams, shopping malls and office blocks, if our minds are constantly filled with images of consumerism, domination and war, how are we to see the world as “a vast organism in which natural things harmonise and sympathise between themselves”? The answer is in our imagination. As anarchists have long understood, another world is always possible and will flourish in our collective mind long before it becomes a physical reality. We need to imagine ourselves out of the suffocating confines of industrial capitalism, leaping over all the barriers of lies that it has erected around us.
Isto é muito bom; não só em termos retóricos, mas também lógicos. Sim, nossa imaginação encontra-se sob assalto – não só da mesma forma como toda imaginação é constrangida pela experiência e as estruturas sociais às quais ela se relaciona, mas também como na análise de Graeber acerca do “assalto à imaginação”, no qual o neoliberalismo basicamente se resume. E a consideração do mundo do possível é essencial: é uma realização acerca da hermenêutica e da estética anarquistas conforme expostas por Cohn, embora, curiosamente, elas tenham muito em comum com a tríade conceitual de “real”, “atual” e “virtual”, de Deleuze e Guattari. No entanto, este belo parágrafo logo cai em uma nova armadilha à medida que a construção dessa imaginação se dá através de um “sonho” com a “autenticidade”:
We need […] to allow nature to dream itself into the core of our inner being. “Freedom for Paracelsus is anything but the arbitrary will of the subject,” says Braun. “It is not defined on the basis of the subject, of the will of the subject. Instead, it’s an act of letting-be, letting nature illuminate itself in us”.
O que seria ótimo, se apenas a ideia de natureza não fosse ela mesma sempre contingente e socialmente construída! É ótimo que Cudenec pense na natureza humana dessa forma – mas isso é filosofia política; e enquanto ideia sobre as atitudes dos seres humanos, não tem força nenhuma a não ser que esteja operante em suas cacholas. A “natureza” não vai iluminar ninguém espontaneamente na direção do anarquismo a não ser que os anarquistas tenham sucesso em convencer as pessoas de que a natureza funciona dessa forma – porque até que o façam, a natureza vai dizer (e está dizendo) coisas distintas – aliás, para pessoas distintas.
Mas consideremos também, por um momento, o argumento pragmático; mesmo que se possa considerar o capitalismo e o pós-modernismo em seus termos, como fenômenos não automaticamente idênticos, ainda resta a possibilidade (como dito acima, bastante razoável), de que ele mais “atrapalhe” do que “ajude”. É nesse sentido que Cudenec cita a famosa obra de George Orwell: já que o “pós-modernismo” (ou uma versão antecipada de sua versão mais caricata) contribui com o governo autoritário descrito na ficção distópica, em nossa própria distopia atual ele também seria prejudicial.
Contudo, creio que há uma perda de foco quanto à mensagem do livro; quem sabe até uma inversão entre causa e consequência que impede que o pós-modernismo possua algumas qualidades redentoras. Não é que o “pós-modernismo” esmague a possibilidade de revolta e transformação: quem faz isso, em 1984, é a violência, a força; o poder concentrado na autoridade e disposto em um sistema hierárquico intensamente repressor. Cudenec trata como causa (o personagem principal, no fim do livro, acreditando que não há realidade objetiva), ou mesmo condição mínima, o que deveria ser compreendido como consequência incidental (não é à toa que esta parte é a última do livro).
Não é que o governo deseja que as pessoas parem de olhar pra realidade e passem a encarar tudo como relativo; não, é que ele tem o poder de machucá-las, de controlar o fluxo de informações (efetivamente destruindo-as, parte do trabalho de Winston) e controlar recursos, o que ajuda a manter e perpetuar este controle. Se não fosse por todo esse controle exercido à força, o pensamento pós-moderno teria sido absolutamente inconveniente, pois a factualidade, e principalmente as intenções do que o governo está dizendo seriam questionados.
O problema aqui não é tanto o pós-modernismo, mas a lógica mais profunda da dominação, que usaria para o mesmo objetivo palavras que Cudenec tanto adora: diria que a natureza humana é assim ou assada, da maneira como lhe convém. E não me parece muito histórico, em termos dos exemplos que temos, dizer que se uma concepção de natureza humana é errada ela simplesmente não vingará: tendo definido a realidade de uma certa maneira, e apoiando-se em algumas ferramentas de controle ideológico, de recursos e de violência, grande parte do que aparece depois, mesmo coisas de cunho científico, será vista de forma enviesada, que reforce aquilo em que já se acredita. Por isto que digo, ainda, que o “pós-modernismo” acaba sendo uma consequência “incidental”: O’Brien leu o diário de Winston. A tortura à qual o personagem principal é submetido pode ter sido “customizada” para ele: quando a ideia de uma realidade objetiva é o que ancora Winston a uma fagulha de esperança e rebeldia, é isso que tem que ser destruído. Mas para outro detento – alguém cuja rebeldia vem de um questionamento profundo e conceitual sobre todo o mundo que foi construído ao seu redor – a melhor tática pode ser reforçar justamente a ideia de que há certas coisas fixas e imutáveis, e que o governo está simplesmente promovendo-as, guardando (mesmo que com “remédios amargos”) seus cidadãos de males maiores, as coisas “antinaturais”.
Em ambos os casos, o que há em comum é o Estado e o controle totalitário que exerce. Mas apesar da leitura de 1984, que considero um pouco limitada, a relação entre o pensamento pós-moderno e este controle em pelo menos uma narrativa possível do mundo que Orwell criou é clara, e nos força a pergunta: o maior inimigo do anarquismo ainda é um conjunto de concepções fixas sobre o que o mundo é, o que as pessoas são, e como tudo funciona? Ou a tendência do pós-modernismo a dissolver certezas é ainda pior? Cudenec está triste porque acredita que o pós-modernismo dissolveu as certezas de que ele gosta; mas o poder das ideias de relativização e da desconstrução serve para dissolver qualquer uma, inclusive algumas ideias modernas que ele condena (como as próprias religiões organizadas – ou o Estado!). De minha parte, ainda creio que o poder dessa dissolução pode ser mobilizado de forma produtiva. Mas a questão estratégica maior que Cudenec põe através desse ataque frontal a algumas formas improdutivas dessa dissolução é fascinante.
Há, assim, dois eixos de discussão que o livro levanta, e que considero ser grandes méritos dele: não só a questão sobre qual é a maior ameaça à construção da autonomia popular, mas também até que ponto nossa relação com a ideia de construção não informa nossa estratégia de maneira singular. O autor tem um grande problema, parece, com coisas “construídas” em oposição a “naturais”. Mas, se a “essência humana” é de fato tão anárquica, por que, após centenas de milhares de anos vivendo no planeta Terra, nos encontramos, enquanto espécie, na situação em que nos encontramos? O autor acaba preso num certo paradoxo de Godwin – se o poder corrompe a verdade, como pode a verdade derrubar o poder? Em Cudenec, temos uma construção intelectual que corrompe a essência humana, mas a essência humana ainda pode ser usada para derrotar essa construção (… mas como, se foi corrompida? Foi ou não foi corrompida?). Claro que Cudenec é mais “dialético” (o que o crítico alemão Bode diz que falta a Godwin), mas ele precisaria, para sair do paradoxo, admitir que é preciso mais do que a existência de uma natureza humana objetiva; é preciso que ela seja efetivamente construída enquanto tal para que tenha efeito enquanto tal, o que deslegitima qualquer asserção mais contundente sobre o que ela é independente daquilo que a fazemos ser. Pior do que isso, aliás, é não só sua aproximação ao grande problema filosófico de Godwin, mas ao pragmático de Marx. Quanto mais se pinta a natureza humana como dotada de um poder extraordinário de permanência e identidade, menos é necessário, suponho, que façamos algo para que ela supere as restrições artificialmente impostas sobre ela pelo capital e o Estado.
Tendo dito isto, me pergunto se realmente posso criticar Paul Cudenec de forma tão abrasiva. Afinal, o que é que estou observando? Um trabalho de filosofia? De teoria política? Ou um panfleto? Como questionou-se Cohn, objetando a ideias como as de Fish e Rorty sobre textualidade: como convencer alguém de alguma coisa reconhecendo que ela não é uma verdade absoluta? Isso me lembra, por outro lado, do que Graeber diz sobre o valor da experiência e como é muito mais difícil convencer as pessoas na teoria de que algo é possível – é geralmente mais eficaz fazê-lo de fato, mostrando na prática que é possível. E efetivar uma possibilidade não significa um monopólio sobre o entendimento da natureza humana (se o Occupy Wall Street foi possível, então somos todos anarquistas); prova apenas que uma possibilidade em relação à natureza humana foi efetivada a partir dos nossos esforços conscientes, que foram empreendidos com base em valores éticos que consideramos bons através dos nossos valores, valores estes cultivados a partir de experiências (embora seja possível passar por uma experiência e não gostar dela… O que acabaria reafirmando outro valor, suponho?).
Não é que a realidade não exista e que não haja uma tendência maior por parte dela, e assim da “natureza humana”, para que certas possibilidades sejam realizadas. Mas, pelo menos de minha “natureza” enquanto acadêmico (ha!), procuro ter muito cuidado ao fazer essas afirmações, e o ceticismo pós-moderno pode ajudar um pouco no sentido de que quando empregamos nossa racionalidade para definir e entender exatamente essa natureza, não raro cometemos erros que custam caro. Não estou dizendo que Cudenec está errando em suas concepções sobre a natureza, ou a essência humana, e especialmente não estou dizendo que quaisquer erros seus custem caro – mas talvez sua falta de inibição, de um certo cuidado cuja afeição pelo pós-modernismo seja compreensível por ser academicista, é justamente o recurso que lhe permite construir um panfleto poderoso, um discurso inspirador que possa efetivar possibilidades humanas anarquistas. Nessa perspectiva, seu discurso aparece realmente como algo potente: poético, sonhador e aguerrido. Não o tipo de coisa que cientistas políticos dizem, mas o tipo de coisa que constitui objeto de estudo da disciplina; os feitos e dizeres daqueles que tiveram a coragem de defender grandes ideias de um jeito grande. Como é que eu vou falar mal de uma coisa dessas?