Muita gente pensa da seguinte forma: tudo que é “natural” é imutável no comportamento humano; é fruto de um instinto inexorável que todos nós temos apenas por existir enquanto espécie. Tudo que é “cultural”, por outro lado, não seria “necessário”, e portanto é absolutamente modificável.
Certa feita discutimos a maternidade em sala de aula. Algumas das mães da sala começaram a descrever como elas se sentiam intimamente ligadas a seus filhotes enquanto estavam ainda em suas barrigas; como aquela sensação era um instinto tão profundo que não poderia jamais ser algo “relativo” e “cultural”.
A questão é que a pecha de natural é “anexada” (culturalmente – haha) àquilo que queremos salvaguardar de discussão; o que é natural é assim porque é assim, então é assim e pronto (cala a boca). Qualquer discriminação mais cedo, mais tarde, vai tentar se fundamentar em alguma teoria biológica, genética, química (negros têm cérebros menores, mulheres cuidavam das cavernas e por isso são melhores em fazer várias coisas ao mesmo tempo, besteiras do tipo). Esse é um dos grandes problemas que nós, cientistas sociais, temos com a ideia de “natureza”: ela é um discurso; uma arma utilizada em batalhas ideológicas que visam, na maior parte das vezes, esconder a origem sociocultural das coisas que sentimos e pensamos para que ninguém tente questioná-las.
A antropologia é justamente uma fonte tão poderosa de onde tirar defesas contra essa arma porque todo o argumento tem uma grande falha: para funcionar, ele precisa englobar cada homo sapiens do planeta no presente, no passado e no futuro – e o fazer ainda de acordo com uma lógica bastante consistente. É possível dizer que sentir fome é natural, não só porque todos os seres humanos a sentem, mas porque entendemos como a fome funciona (precisamos de comida para viver), e também porque isso é uma constante em praticamente todo animal. Dizer, por exemplo, que a monogamia é natural é algo fácil de contra-atacar: é só mostrar exemplos de sociedades inteiras em que a monogamia não é a regra.
Esse, é claro, é um processo bastante próximo do que conhecemos como “relativismo cultural”: afinal, os proponentes da tese de que a monogamia é natural podem simplesmente dizer que esses povos poligâmicos são aberrações antinaturais ou coisa parecida; o relativismo (e um bastante razoável até aqui) vem com o reconhecimento de que não podemos julgar a cultura dos outros dessa forma; para eles, o que eles fazem provavelmente parece muito mais natural do que a monogamia.
No entanto, o grande problema é que muitos pensam que com esse relativismo passamos a ter um enfraquecimento da cultura enquanto tal. Afinal, se todas as culturas são igualmente válidas e praticamente tudo é cultural, daqui a pouco todo mundo vai fazer o que quiser. O fato de que há um jeito necessariamente certo de ser no mundo pressupõe a exclusão, a oposição de seu inverso.
As mães do exemplo anterior ficavam quase ofendidas quando dizíamos que aqueles sentimentos eram culturais, e não naturais. A razão para isso é mais do que o sentimento de que estávamos atacando a santidade da instituição maternidade: é como se disséssemos que o que elas sentiam não era forte; que não era sequer verdadeiro, mas sim “uma coisa que colocaram na cabeça delas”.
E isso é exatamente o que acontece, mas perceba: não é porque algo é cultural que é falso. Sim, todo um conjunto de ideias sobre a maternidade é passada de geração a geração como algo muito natural – é algo colocado na cabeça das pessoas. Mas isso não deixa de ter poder. Sentimo-nos compelidos a comer pela fome, mas a cultura é capaz de produzir uma pressão igualmente forte sobre as pessoas. Se esse não fosse o caso, só de sabermos que em algumas culturas todos andam pelados, a vergonha de usar roupas em público desaparecia num passe de mágica. Obviamente esse não é o caso.
A maternidade transforma o corpo de várias formas, e é uma questão importantíssima do ponto de vista biológico, e aqui é importante fazer uma distinção: a maternidade é cultural não porque ela não pode ser natural, mas porque nós somos seres extremamente culturais, e tudo que fazemos, inclusive as coisas que se originam desses processos que chamamos de naturais, passa por um “filtro” cultural. A questão não é negar que a dor e a alegria acompanham praticamente toda maternidade; é que essas coisas são interpretadas de acordo com papéis e símbolos sociais contingentes. Se você chegar para uma mãe e dizer “você pode se sentir diferente sobre ser uma mãe, se quiser; tome, aqui está um texto sobre como o povo nômade x do lugar y se sente em relação à maternidade. Estude isso e mude sua atitude!”. Isso… Não funcionaria. Mesmo que a mãe estivesse disposta a passar por essa transformação e resistisse a toda uma pressão dos outros para que ela mantenha-se fiel à própria cultura, o resultado final jamais seria uma pessoa completamente reformulada, com uma cultura nova que tenha tomado o lugar da antiga completamente.
Logicamente, esse assunto é extremamente mais complexo que esses poucos parágrafos, mas escrevo isso em tom de utilidade pública porque gostaria que mais pessoas tivessem em mente duas coisas, mesmo que seja para atacar essas duas coisas (o que é melhor do que o ataque a espantalhos que resulta da desinformação): em primeiro lugar, dizer que algo é cultural, ao invés de natural, é uma frase sobre as origens de um costume, de uma situação, de uma atitude. Quando digo que a maternidade é uma instituição cultural, estou fazendo uma observação sobre o que a origina, não necessariamente tornando-a algo pior ou tentando fazer com que mães e filhos adotem outras atitudes e costumes (eu poderia estar perfeitamente satisfeito em relação a isso e ainda assim observar que não se trata de algo natural). E, em segundo lugar, dizer que algo é cultural não significa dizer que a pessoa pode simplesmente “escolher se sentir como quiser”. A cultura não é uma questão de pura escolha individual!
Contudo, dizer que algo que muitos insistem em naturalizar é cultural é o primeiro passo para uma mudança: é como dizer “ei, olha só: é assim agora. Mas não precisa ser assim. Com o tempo, temos a capacidade de mudar de pensamento. Fazendo um esforço, as novas gerações quem sabe não terão mais contato com esse velho jeito de ser. E assim, a gente pode mudar”. Se a discussão começar a partir da ideia de que algo é naturalmente de um jeito ou de outro, a mudança jamais sairá do metafórico papel. Ou seja, dizer que algo é cultural tem uma força epistemológica, e é isso que deve ser levado em consideração. No entanto, não estou aqui para enganar ninguém: assim como o discurso de naturalização é uma arma política, colocar em evidência a natureza sociocultural de algo também pode sê-lo.