Bullying: sobre a estrutura fundamental da dominação

Tradução de “The Bully’s Pulpit: On the elementary structure of domination”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2015.

© RANDALL ENOS

Entre fevereiro e março de 1991, na Primeira Guerra do Golfo, forças dos Estados Unidos bombardearam, destroçaram, incendiaram milhares de jovens iraquianos que tentavam fugir do Kuwait. Houve uma série de incidentes desse tipo – a “auto-estrada da morte”, a “autoestrada 8” e a “batália de Rumaila” – em que o poderio aéreo norte-americano interceptou iraquianos em fuga, envolvendo-se em uma luta injusta em que inimigos acuados foram chacinados em seus veículos. Imagens de corpos carbonizados desesperadamente rastejando para fora de caminhões tornaram-se ícones da guerra.

Eu nunca entendi por que esse massacre de homens iraquianos não foi considerado um crime de guerra. É claro que, naquela época, o comando dos Estados Unidos tinha medo disso. O Presidente George H. W. Bush rapidamente anunciou um cessar-fogo temporário, e o exército se esforçou muito desde então para minimizar o número de causalidades, obscurecer as circunstâncias, difamar as vítimas (“um bando de estupradores, assassinos e bandidos”, insistiu mais tarde o general Norman Schwarzkopf), e evitar que as fotos mais reveladoras aparecessem na mídia do país. Há rumores de que existem vídeos do pânico dos iraquianos, feitos pelas câmeras montadas nas armas dos helicópteros, que nunca serão vistos pelo público.

Faz sentido que as elites se preocupassem. Afinal, aqueles eram em grande parte homens que tinham sido forçados a lutar e que, quando jogados no combate, fizeram precisamente o que alguém gostaria que todos os jovens numa situação como essa fizessem: mandaram tudo pro inferno, fizeram as malas, e tentaram ir pra casa. E por isso deveriam ser queimados vivos? Quando o Estado Islâmico fez isso com um piloto jordaniano no inverno passado, o ato foi universalmente denunciado como indescritivelmente bárbaro – e ele foi, é claro. Ainda assim, o Estado Islâmico poderia ao menos dizer que o piloto estava jogando bombas neles. Os iraquianos em fuga na “autoestrada da morte” e em outros exemplos de carnificina americana eram apenas garotos que não queriam lutar.

Mas talvez foi justamente essa recusa que fez com que os soldados iraquianos não ganhassem muita simpatia, não apenas nos círculos de elite, onde não dá para esperar tanto, mas também nas cortes da opinião pública. Em algum nível, vamos ser sinceros: esses homens eram covardes. Eles mereceram.

Parece haver mesmo uma falta de compaixão por homens não-combatentes em zonas de guerra. Mesmo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos falam de massacres como sendo dirigidos quase exclusivamente contra mulheres, crianças e, talvez, os idosos. O que está implícito, quase nunca dito claramente, é que homens adultos ou estão lutando ou há algo de errado com eles (“Quer dizer que existem pessoas por aí atacando mulheres e crianças e você não estava lá os defendendo? Você é um homem ou um rato?”). Aqueles que cometem massacres são conhecidos por manipular de forma cínica esse recrutamento tácito: como célebre exemplo, os comandantes servo-bósnios que calcularam que poderiam evitar acusações de genocídio se, ao invés de exterminar populações inteiras nas cidades e vilas conquistadas, matassem apenas homens com idade entre quinze e cinquenta e cinco anos.

Mas há algo a mais circunscrevendo a nossa empatia pelos soldados iraquianos em fuga, vítimas desse massacre. O público dos Estados Unidos foi bombardeado com acusações de que eles eram na verdade um bando de criminosos que estavam pessoalmente estuprando, pilhando, e jogando recém-nascidos fora de suas incubadoras (diferente daquele piloto jordaniano, que estava apenas jogando bombas em cidades cheias de mulheres e crianças a partir de uma altitude, pensava ele, segura). Todos nós aprendemos que os valentões, aqueles que exercem o bullying, são na verdade covardes, então aceitamos que o inverso deve naturalmente ser verdade também. Para a maioria de nós, a experiência primordial de exercer e sofrer bullying está no fundo de nossas mentes em discussões sobre crimes e atrocidades. Ela molda nossa sensibilidade e capacidade para a empatia de maneiras profundas e perniciosas.

A covardia também é uma causa

A maioria das pessoas não gosta de guerras e acha que o mundo seria um lugar melhor sem elas. Mesmo assim, o desprezo por covardes parece ter mais força. Afinal de contas, a deserção – a tendência que têm as pessoas forçadas a participar da glória de um exército pela primeira vez de escapar da marcha, procurar esconderijo na floresta ou fazenda mais próxima e então, tendo a tropa passado, descobrir uma forma de voltar pra casa – é provavelmente a maior ameaça às guerras de conquista. Os exércitos de Napoleão, por exemplo, perderam bem mais soldados para a deserção do que em combate. Exércitos recrutados à força geralmente têm que usar uma significativa parte de suas unidades para ameaçar o resto da tropa com tiros contra fugitivos. Ainda assim mesmo aqueles que dizem odiar as guerras sentem-se desconfortáveis celebrando a deserção.

Quase a única verdadeira exceção que conheço é a Alemanha, que ergueu uma série de monumentos rotulados como “Ao desertor desconhecido”. O primeiro e mais famoso, em Potsdam, lê: “A UM HOMEM QUE SE RECUSOU A MATAR OUTROS HOMENS”. Mesmo assim, quando falo sobre o monumento com meus amigos, eu geralmente encontro um retraimento instintivo. “É de se perguntar: eles realmente desertaram porque não queriam matar ninguém ou porque não queriam morrer?”. Como se tivesse algo de errado com isso.

Em sociedades militarísticas como os Estados Unidos, é quase axiomático que nossos inimigos devem ser covardes – especialmente se o inimigo pode ser rotulado como um “terrorista” (isto é, alguém acusado de desejar criar o medo em nós, transformando-nos, logo a nós, em covardes). Faz-se então necessário um ritual de inversão das coisas para insistir que não, eles é que têm medo. Todos os ataques contra cidadãos americanos são por definição “ataques covardes”. O segundo George Bush estava falando do 11 de setembro como um “ato de covardia” na manhã seguinte aos ataques. Mas se você pensar, isso é estranho. Afinal, não faltam coisas ruins que alguém possa dizer sobre Mohammed Atta e seus comparsas – pode escolher – mas com certeza “covarde” não é uma delas. Destruir uma festa de casamento à distância usando um drone pode ser considerado um ato de covardia. Pessoalmente chocar um avião num arranha-céus requer coragem. De qualquer maneira, a ideia de que uma pessoa pode ser corajosa defendendo uma causa ruim parece não ser um discurso público aceitável, apesar do fato de que muito do que passa por história consiste em incontáveis narrativas de pessoas corajosas fazendo coisas terríveis.

Sobre falhas fundamentais

Mais cedo ou mais tarde, todo projeto de liberdade humana vai ter que entender por que aceitamos que as sociedades sejam classificadas e ordenadas por violência e dominação em primeiro lugar. E me veio a ideia de que nossa reação visceral à fraqueza e à covardia, nossa estranha relutância em nos identificarmos até com as formas mais justificadas de medo, pode ser uma pista.

O problema é que o debate até agora tem sido dominado por proponentes de duas posições igualmente absurdas. De um lado, há aqueles que negam que é possível dizer qualquer coisa sobre seres humanos enquanto espécie; de outro, há aqueles que presumem que o objetivo é explicar por que é que alguns humanos parecem se comprazer com o sofrimento dos outros. Estes últimos invariavelmente acabam formulando teorias sobre babuínos e chimpanzés, geralmente para dizer que humanos – ou pelo menos aqueles de nós com testosterona o bastante – herdaram de nossos ancestrais primitivos uma tendência inata à agressão auto-engrandecedora que se manifesta na guerra, que por sua vez não pode ser eliminada, apenas canalizada rumo à atividade competitiva no mercado. Com base nessas presunções, os covardes são aqueles a quem falta um impulso biológico primário, e não surpreende que nós não gostemos deles.

Há vários problemas com essa linha de pensamento, o mais óbvio que ela simplesmente não é verdade. A perspectiva de participar de uma guerra não ativa automaticamente um gatilho biológico no macho humano. Considere a “parábola das tribos”, de Andrew Bard Schmookler. Cinco sociedades compartilham o mesmo rio em um vale. Elas podem viver em paz apenas se todas elas se mantém pacíficas. O momento em que um “mau elemento” é introduzido – digamos, os jovens de uma tribo decidem que a melhor forma de lidar com a perda de um ente querido é cortar a cabeça de um estrangeiro, ou que seu Deus os escolheu para serem os flagelos dos infiéis – bem, as outras tribos, se não quiserem ser exterminadas, têm apenas três opções: fugir, se submeter, ou reorganizar suas sociedades para favorecer a efetividade militar. Essa lógica parece difícil de refutar.

Contudo, como sabe qualquer um familiar com a história de, digamos, a Oceania, a Amazônia ou a África, um grande número de sociedades simplesmente se recusou a se organizar em termos militarísticos. De novo e de novo, encontramos descrições de comunidades relativamente pacíficas que simplesmente aceitavam o fato de que, a cada tantos anos, eles teriam que correr para as montanhas porque algum grupo local de malvados chegou para pôr fogo em suas vilas, estuprar, pilhar, e fazer infelizes retardatários de troféus. A grande maioria dos humanos do sexo masculino se recusou a perder tempo treinando para a guerra, mesmo quando era de seu interesse imediato fazê-lo. Para mim, isso é prova positiva de que seres humanos não são uma espécie particularmente belicosa.[*]

Ninguém pode negar, é claro, que humanos são criaturas falhas. Praticamente toda língua tem algum análogo ao inglês “humane”, ou expressões como “tratar alguém como um ser humano”, o que significa que simplesmente reconhecer outra criatura como um outro humano implica a responsabilidade de tratá-la com um certo mínimo de candor, consideração e respeito. É óbvio, no entanto, que em nenhum lugar os humanos consistentemente mantêm-se fiéis a esses ideais. E quando falhamos, deixamos para lá e dizemos que “errar é humano”. Ser humano, então, é ao mesmo tempo ter ideais e não conseguir alcançá-los.

Se é assim que vemos a nós mesmos, não é surpreendente que ao tentar entender o que possibilita estruturas violentas de dominação, tendemos a perceber a existência de impulsos antissociais e nos perguntar: por que algumas pessoas são cruéis? Por que elas desejam dominar outras pessoas? Essas, contudo, são precisamente as perguntas erradas a se fazer. As pessoas têm uma variedade infinita de desejos. Eles geralmente nos puxam ao mesmo tempo em diferentes direções. A mera existência de impulsos antissociais não significa nada.

A questão que deveríamos estar fazendo é não por que pessoas são cruéis às vezes, ou mesmo por que algumas pessoas são frequentemente cruéis (todas as evidências sugerem que verdadeiros sádicos são uma porção extremamente pequena da população geral), mas como acabamos criando instituições que encorajam esse tipo de comportamento e que fazem crer que pessoas cruéis são de alguma forma admiráveis – ou pelo menos tão merecedoras de simpatia quanto aquelas que elas violentam.

Aqui eu acho que é importante olhar com cuidado para a maneira como as instituições organizam as reações dos espectadores. Geralmente, quando imaginamos o cenário primordial da dominação, pensamos em algum tipo de dialética hegeliana mestre-escravo em que duas partes competem por reconhecimento mútuo, o que leva a uma sendo permanentemente vencida. Deveríamos imaginar ao invés disso uma relação de três elementos, que consiste em agressor, vítima e testemunha, uma relação em que ambas as partes em disputa apelam para o reconhecimento (validação, simpatia, etc) de um outro alguém. A batalha hegeliana por supremacia, afinal, é só uma abstração. Uma história qualquer. Poucos de nós testemunharam dois homens crescidos duelarem até a morte para que um reconheça o outro como verdadeiramente humano. O cenário de três elementos, em que uma parte machuca a outra enquanto ambas apelam para que aqueles ao redor reconheçam sua humanidade, é um que todos nós testemunharam e do qual participamos, em um ou outro papel, milhares de vezes desde a pré-escola.

A estrutura (do ensino) fundamental da dominação

Estou falando, é claro, do bullying no pátio da escola. Bullying, eu proponho, representa um tipo de estrutura fundamental da dominação humana. Se quisermos entender quando tudo começa a dar errado, é aqui que devemos começar.

Nesse caso também, condições devem ser estabelecidas. Seria muito fácil cair em argumentos evolucionários simplistas. Há uma tradição – A tradição Senhor das Moscas, podemos chamá-la – segundo a qual os valentões da escola são uma encarnação moderna do “macho alfa” primordial e ancestral, que instantaneamente restaura a lei da selva uma vez que não seja contido pela autoridade racional de um macho adulto. Mas isso é claramente falso. Na verdade, livros como O Senhor das Moscas são mais propriamente lidos como reflexões sobre os tipos de técnicas precisas de terror e intimidação de que as escolas públicas britânicas se serviam para transformar crianças de elite em oficiais capazes de gerenciar um império. Essas técnicas não vieram da ausência de autoridade; eram técnicas projetadas precisamente para criar um tipo de autoridade adulta, masculina, calculista e sangue-frio.

Hoje a maioria das escolas não são como a Eton e a Harrow dos dias de William Golding, mas mesmo naquelas que se orgulham de seus programas antibullying ele acontece em formas que de maneira alguma vão contra, ou ocorrem a despeito da, autoridade institucional. O bullying é mais como uma refração dessa autoridade. Para começar com uma coisa óbvia: as crianças não podem sair da escola. Normalmente, o primeiro instinto de uma criança quando ela está sendo atormentada ou humilhada por alguém maior é ir para outro lugar. As crianças na escola, contudo, não têm essa opção. Se elas insistirem em fugir rumo à segurança, autoridades as trarão de volta. Essa é uma das razões, eu suspeito, para a existência do estereótipo do valentão como o puxa-saco do professor ou monitor de corredor: mesmo quando não é verdadeiro, ele se alimenta do conhecimento tácito de que o valentão depende da autoridade da instituição pelo menos nessa única forma – a escola está, basicamente, segurando as vítimas para os valentões baterem. Essa dependência da autoridade é também a razão pela qual as formas mais extremas e elaboradas de bullying acontecem em prisões, onde os condenados dominantes e os carcereiros formam alianças.

Ainda mais importante, os valentões geralmente têm consciência de que o sistema provavelmente vai punir as vítimas que reajam mais fortemente. Assim como uma mulher que, confrontada por um homem que talvez tenha o dobro de seu tamanho, não pode se dar ao luxo de lutar de forma “justa”, e ao invés disso deve aproveitar um momento oportuno para infligir o maior dano possível ao homem que a tem abusado – uma vez que ela não pode deixá-lo em condições de revidar – também a vítima de bullying na escola deve responder com força desproporcional, não para incapacitar o oponente, mas para fazê-lo hesitar da próxima vez que quiser atacar.

Eu aprendi essa lição por experiência própria. Eu era magricela, mais jovem que os outros – eu pulei um ano – e então era um alvo perfeito para algumas das crianças maiores que pareciam ter desenvolvido uma técnica quase científica para dar socos em tampinhas como eu de forma rápida, dura e incisiva o bastante para evitarem ser acusados de terem atacado alguém. Quase não havia dia em que não me batiam. Finalmente, decidi que já era hora de aquilo acabar, encontrei o momento certo, e mandei um imbecil particularmente irritante voando pelo corredor com um soco bem dado na cabeça. Eu acho que posso ter rachado o lábio dele. De certa forma, funcionou como eu queria: por um ou dois meses os valentões, em geral, ficaram longe. Mas o resultado imediato foi que nós dois fomos levados ao diretor por brigar, e o fato de que ele me atacou primeiro foi determinado como irrelevante. Fui considerado culpado e expulso dos clubes de matemática avançada e de ciências (Uma vez que ele não tinha notas muito boas, não havia nenhum clube do qual pudesse ser expulso).

“Não interessa quem começou” são provavelmente as quatro palavras mais pérfidas da língua portuguesa. É claro que interessa.

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Crowdsourcing a crueldade

Muito pouco desse foco no papel da autoridade institucional é refletido na literatura da psicologia sobre o bullying, que, uma vez que é escrita principalmente para as autoridades escolares, presume um papel totalmente benigno para elas. Ainda assim, pesquisas recentes – e tem havido muitas desde Columbine – têm revelado, eu penso, várias coisas sobre essa forma fundamental de dominação. Vamos mais fundo.

A primeira coisa que essas pesquisas mostram é que a enorme maioria dos incidentes de bullying acontece na frente de um público. A perseguição privada é relativamente rara. A humilhação é uma grande parte do bullying, e seus efeitos não podem realmente ser produzidos sem alguém para testemunhá-los. Às vezes, o público instiga o valentão, rindo, incitando, ou ajudando. Mais frequentemente, o público fica passivo e quieto. É raro alguém defender um colega de classe sendo ameaçado, ridicularizado ou fisicamente atacado.

Quando pesquisadores perguntam às crianças por que elas não intervieram, uma minoria diz que eles acharam que a vítima teve o que mereceu, mas a maioria diz que eles não gostavam do que estava acontecendo, e certamente não gostavam muito do valentão, mas decidiram que se envolver podia significar que eles acabariam recebendo o mesmo tratamento que a vítima – e isso só ia piorar as coisas. O interessante é que isso não é verdade. Estudos também mostram que, em geral, se um ou dois observadores protestam, os valentões deixam a agressão de lado. Mesmo assim, a maior parte das testemunhas se convence de que o oposto vai acontecer. Por quê?

Primeiro porque quase todo tipo de ficção popular à qual eles provavelmente estão expostos diz a eles que vai. Super-heróis de quadrinhos o tempo todo entram em cena para dizer “Ei, pare de bater nele” – e invariavelmente os vilões de fato passam a odiá-los, o que resulta em todo tipo de problema (se há uma mensagem subliminar nesse tipo de ficção, ela com certeza é algo como “É melhor você não se envolver nesse tipo de coisa a não ser que possa lidar com um monstro interdimensional com lasers nos olhos”). O “herói”, como mostrado na mídia dos Estados Unidos, é principalmente um álibi para a passividade. Pensei nisso pela primeira vez quando vi um jornalista de TV local elogiar um adolescente que pulou num rio para salvar uma criança que estava se afogando. “Quando eu perguntei por que ele fez isso”, o jornalista disse, “ele disse o que os verdadeiros heróis sempre dizem, ‘eu só fiz o que qualquer pessoa faria nessas circunstâncias'”. Quem está assistindo deve entender que, é claro, isso não é verdade. Não é qualquer pessoa que faria isso. E não tem problema. Heróis são extraordinários. É perfeitamente aceitável que você, nas mesmas circunstâncias, fique parado e espere uma equipe profissional de resgate.

Também é possível que as crianças nas escolas reajam de forma passiva ao bullying porque elas já perceberam como a autoridade dos adultos opera e presumem erroneamente que a mesma lógica se aplica às interações com seus pares. Se é, digamos, um policial que está abusando de algum adulto desafortunado, então sim, é absolutamente verdadeiro que intervir vai provavelmente te dar uma séria dor de cabeça. E todos nós sabemos o que acontece com “dedos-duros” do governo (Você se lembra do secretário de estado John Kerry exigindo que Edward Snowden “fosse homem” e se submetesse a uma vida inteira de bullying sádico nas mãos do sistema de justiça criminal americano? O que é que uma criança inocente deve concluir disso?). Os destinos dos Mannings ou Snowdens do mundo são propagandas de alto nível para o princípio maior da cultura Americana: abuso de autoridade pode até ser ruim, mas apontar abertamente que alguém está abusando de autoridade é muito pior – e merece a mais severa punição.

Um segundo surpreendente dado de pesquisas recentes: os valentões não sofrem, na verdade, de baixa auto-estima. Psicólogos há muito tempo presumiram que crianças malvadas estavam descontando suas inseguranças nos outros. Não. Acontece que a maioria dos valentões agem como babacas mimados e arrogantes não porque estão sendo atormentado por duvidarem de si mesmos, mas porque são na verdade babacas mimados e arrogantes. Na verdade, a autoconfiança deles é tanta que eles criam um universo moral no qual seu “estilo” e violência se tornam o padrão a partir do qual os outros devem ser julgados; ser fraco, distraído, meio desajeitado ou reclamão não são apenas pecados, mas provocações que seria errado deixar de corrigir.

Aqui também eu posso oferecer um testemunho pessoal. Eu lembro bem de uma conversa com um atleta que eu conheci no ensino médio. Ele era um tonto, mas era querido. Eu acho que até ficamos chapados juntos uma ou duas vezes. Uma vez, depois de ensaiar para um drama de época, achei que ia ser engraçado entrar no dormitório em trajes renascentistas. Assim que ele me viu, partiu com tudo para cima de mim. Fiquei tão indignado que esqueci de ficar com medo. “Matt! Que porra é essa? Por que você quer me bater?”. Matt parecia tão surpreso que ele esqueceu de continuar a me ameaçar. “Mas… Você entrou no quarto usando calça de malha!”, ele protestou. “Quer dizer, o que é que você esperava?”. Será que Matt estava lidando com profundas inseguranças sobre sua própria sexualidade? Não sei. Provavelmente. Mas a verdadeira pergunta é por que presumimos que sua mente problemática é tão importante? O que realmente importa é que ele sentiu de verdade que precisava defender um código social.

Dessa vez, o valentão adolescente estava usando de violência para fazer cumprir um código de masculinidade homofóbica que também faz parte da autoridade adulta. Mas com crianças menores, esse geralmente não é o caso. Aqui vem um terceiro dado surpreendente da literatura psicológica – talvez o mais revelador de todos. No começo, não é a menina gorda, ou o menino com óculos, que tem mais chances de ser atacado. Isso vem depois, à medida que os valentões (sempre atentos às relações de poder) aprendem a escolher suas vítimas de acordo com os padrões dos adultos. Antes disso, o principal critério é como a vítima reage. A vítima ideal não é a absolutamente passiva. Não, a vítima ideal é aquela que enfrenta o valentão, mas o faz de uma maneira ineficaz, esperneando, chorando, ameaçando contar tudo pra mamãe, ou fingindo que vai lutar e depois fugindo. Fazer isso é precisamente o que torna possível criar um drama moral em que o público pode dizer a si mesmo que o valentão deve, em algum sentido, estar certo.

Essa dinâmica triangular de valentão, vítima e público é o que eu quero dizer com a estrutura profunda do bullying. Ela merece ser estudada em livros didáticos. Na verdade, ela merece estar em todo lugar em letreiros de neon gigantes: O bullying cria um drama moral em que a forma da reação da vítima a um ato de agressão pode ser usada como justificação retrospectiva para o próprio ato original de agressão.

Esse drama não aparece apenas no começo da infância; é precisamente o aspecto que permanece na vida adulta. Eu chamo isso de falácia “parem com isso vocês dois”. Qualquer um que frequenta fóruns de mídia social vai reconhecer o padrão. O agressor ataca. O alvo tenta ser superior a isso e não diz nada. Ninguém intervém. O agressor ataca com mais força. O alvo tenta ser superior e nada faz novamente. Ninguém intervém. O agressor ataca de novo.

Isso pode acontecer uma dúzia de vezes, cinquenta vezes, até que finalmente o alvo responde. Então, e só então, uma penca de vozes imediatamente surgem, dizendo “Treta! Treta! Olha só esses dois idiotas batendo boca!” ou “Será que vocês não podem se acalmar e aprender a ver o ponto de vista um do outro?”. O valentão esperto sabe que isso vai acontecer – e que ele não vai perder nenhum ponto por ser o agressor. Ele também sabe que se ele afinar sua agressão no tom certo, a resposta da vítima pode ser ela mesma representada como o problema.

Joselito: Você é um cara bacana, Pedrinho, mas eu tenho que dizer que você é um pouquinho idiota.

Pedrinho: Um pouquinho… Quê? Que caralhos você quis dizer com isso?

Joselito: Viu só? Te acalma, cara! Eu disse que tu era um cara bacana. Pra que falar palavrão? Você não viu que tem damas lendo a conversa?

E o que é verdadeiro quanto à classe social também é verdadeiro quanto a qualquer outra forma de desigualdade estrutural: daí epítetos como “mulheres loucas”, “nordestinos vagabundos” e uma variedade sem-fim de termos semelhantes. Mas a lógica essencial do bullying vem antes de tais desigualdades. É a matéria da qual são feitas.

Pare de bater em si mesmo

E essa, eu proponho, é a principal falha do ser humano. Não é que como espécie somos particularmente agressivos. É que tendemos a responder mal a agressões. Nosso primeiro instinto quando vemos uma agressão sem motivo é ou fingir que ela não está acontecendo ou, se isso se torna impossível, igualar o agressor e a vítima, colocando-os ambos sob um tipo de lógica de quarentena que, espera-se, pode evitar que contagie os outros (o que explica o fato, descoberto pelos psicólogos, de que as pessoas detestam valentões e vítimas em proporções mais ou menos iguais). O sentimento de culpa causado pela suspeita de que isso é um jeito essencialmente covarde de se comportar – já que é um jeito essencialmente covarde de se comportar – abre caminho para um jogo complexo de projeções, no qual o valentão é ao mesmo tempo um supervilão invencível e um fanfarrão inseguro que dá pena, enquanto a vítima se torna simultaneamente um agressor (aquele que viola seja lá qual for a convenção social que o valentão tenha invocado ou inventado) e um covarde patético que não quer se defender.

Obviamente, estou oferecendo apenas o rascunho mais mínimo de uma psicodinâmica complexa. Mas ainda assim, esses insights podem nos ajudar a entender por que é tão difícil estender nossas simpatias a, entre outros, soldados iraquianos chacinados enquanto fugiam do combate. Aplicamos a eles a mesma lógica de quando assistíamos passivamente a algum valentão da infância aterrorizar sua vítima: igualamos agressores e vítimas, insistimos que todo mundo é igualmente culpado (note como, sempre que se ouve uma notícia de uma atrocidade, alguns vão imediatamente começar a insistir que as vítimas devem ter cometido atrocidades também), e simplesmente esperamos que ao fazer isso, não vamos nos contagiar com a violência.

Essas são coisas difíceis. Eu não afirmo entendê-las completamente. Mas se almejamos uma sociedade genuinamente livre, então vamos ter que reconhecer como a relação triangular e mutuamente constitutiva de valentão, vítima e espectadores realmente funciona, e então desenvolver formas de combatê-la. Lembre-se, não somos um caso perdido. Se não fosse possível criar estruturas – hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum – que pelo menos às vezes evitam que essa dinâmica se inicie, então sociedades igualitárias de qualquer tipo jamais teriam sido possíveis. Lembre-se, também, de quão pouca coragem é geralmente necessária para parar valentões que não são apoiados por qualquer poder institucional. Acima de tudo, lembre-se de que quando os valentões são realmente apoiados por tal poder, os heróis podem ser aqueles que simplesmente vão embora.

[*] Mesmo assim, antes que demos um passe para os adultos do sexo masculino, devo observar que o argumento para a eficiência militar é uma faca de dois gumes: mesmo sociedades cujos homens se recusam a organizar a si mesmos efetivamente para a guerra também insistem, na gigantesca maioria das vezes, que as mulheres definitivamente não deveriam lutar. Isso é bem pouco eficiente. Mesmo se pudéssemos admitir que homens são, geralmente falando, melhor em combates (e isso não é de forma alguma claro; depende do tipo de luta), e se quiséssemos selecionar a metade da população com os corpos mais preparados para lutar, alguns destes corpos seriam femininos. De qualquer forma, em uma situação realmente desesperadora pode ser uma tática suicida não usar todos os recursos à disposição. Mesmo assim, várias e várias vezes encontramos homens – mesmo aqueles relativamente não-beligerantes – decidindo morrer em vez de quebrar seu próprio código social que diz que as mulheres jamais deveriam portar armas. Não surpreende então que tenhamos tanta dificuldade em ter empatia por vítimas masculinas de atrocidades: à medida que segregam as mulheres do combate, eles são cúmplices da lógica de violência masculina que os destruiu. Mas se estamos tentando identificar a falha principal ou o grupo de falhas na natureza humana que permite que essa lógica de violência masculina exista para começo de conversa, isso nos deixa com um cenário de confusão mental. Não temos, talvez, algum tipo de proclividade inata para a dominação violenta. Mas temos uma tendência a tratar aquelas formas de dominação que existem no momento – começando com a de homens sobre mulheres – como imperativos morais em si mesmos.

Nota do tradutor

Aconteceu de eu ler este texto logo depois de ver um vídeo do excelente canal Thunk. Eu absolutamente recomendo que você veja o seguinte vídeo como uma espécie de complemento – e também contraponto – ao texto traduzido acima.

Atualização: O vídeo abaixo conta agora com legenda em português brasileiro!