Um pouco de eurocentrismo

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 2 de maio de 2016. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

É sabido que a pobreza é, em geral, fator da criminalidade. Isso não implica atribuir a um grupo (os mais pobres) a responsabilidade pela existência do crime; é simplesmente a constatação, tão amplamente confirmada por qualquer estatística, de que a criminalidade cresce junto com a desigualdade social.

Isso é inquietante para muitas pessoas porque significa pôr em cheque todo um modelo de civilização que tanto agrada ao topo de cima de uma sociedade desigual: a ideia de que existem pessoas do bem, e pessoas do mal; e que para vencer as forças do mal é preciso força, força do tipo policial, militar, ostensiva e truculenta. Há uma escolha a ser feita, e é entre a vida dos justos e a dos criminosos, a quem direitos humanos não se aplicam.

O problema é que essa visão precisa necessariamente partir de uma ideia da origem da criminalidade como uma escolha moral: “conheço algumas pessoas pobres e elas não precisaram roubar para viver; por que isso justifica aqueles que roubam?”. Obviamente não justifica, mas é preciso entender que essa ideia do ser humano frente a frente com a escolha da criminalidade é falsa.

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Photo by Editor B

Não porque a criminalidade não exista ou porque não faça mal a alguém. O problema é que essa “escolha” perante a criminalidade não é igual para todos, porque tudo no universo dessas duas pessoas hipotéticas difere a nível de conceito: o que elas entendem por comunidade, sociedade, lealdade, vida, futuro, certo, errado, isso tudo é muito diferente. Só que – e aqui, se o texto se encerrasse, todo tipo de higienista viria dizer que aí mesmo que não há salvação para essa gente – essa diferença vem das diferenças de socialização. Das diferenças de ambiente em que as pessoas crescem, das oportunidades que têm.

Quando alguém completamente de fora do circuito mainstream da sociedade olha para a vibrante urbanidade, o que vê? Sua história como o adolescente estrela do rock que alcança glória na televisão? Ou como algo completamente alheio, estranho, mas mesmo assim desejável, respeitável, única medida segundo o qual ele também será respeitável (e desejável)? Esse é só um dos lados da questão. Essa socialização diferente, o costume com a violência que marca as relações (que é diferente não por existir, mas por ser diferente da que marca as nossas), leva a uma visão completamente diferente de mundo. Se leva a uma desvalorização daquilo que nós, “do lado de cá”, valorizamos? Claro. Se isso, em situações extremas, marca às vezes a desvalorização do próprio valor da vida? Sim, claro, mas nas condições de guerra que a situação impõe estou discutindo justamente o quanto muitos “do lado de cá” simplesmente tampouco valorizam a vida quando é a vida desses “outros” “indesejáveis”.

Muitos não têm a fibra de esperar por cem metros para jogar papel num lixeiro ao invés de se livrar dele logo no chão, e põem a culpa nas circunstâncias: a prefeitura é que não instala lixeiros o bastante nas ruas. Mas muitos dos mesmos são os primeiros a exigir que, nas circunstâncias mais adversas (que muitos desses não conhecem), a fibra moral supere tudo e faça com que um excluído escolha a versão das coisas que mais se adeque às exigências de segurança e conveniência destas pessoas de bem.

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Photo by 4nitsirk

É importante notar justamente a posição no campo social, ou a disparidade que pode até mesmo, argumentar-se-ia, criar campos sociais distintos, e como isso influencia nossos discursos. Isso é (parcialmente) eurocentrismo, ou pelo menos um de seus efeitos. O pensamento do homem uno, cidadão que efervesce como espuma da Revolução Francesa, universal e indistinguível de seus pares; os valores pelos quais um responde têm que ser os valores pelos quais todos respondem. Mas a situação em que alguém aprende a viver, as regras que internaliza, são muito diferentes em situações de exclusão social. É difícil tomar distância do assunto (especialmente se alguém é atingido diretamente por ele), mas é preciso se quisermos verificar o óbvio: só respeita uma sociedade um membro que é por ela respeitado. Num mundo profundamente desigual vão existir diferentes valorações baseadas na realidade que se apresenta duríssima para alguns; e aí a exigência de valores iguais é a arma de privilegiados incautos, mesmo que bem intencionados, mas é também o desejo de que a realidade fosse outra não nas decisões das pessoas, mas na própria história das coisas. Por isso é essencial entender a estrutura que produz essa desigualdade e atacá-la em seu cerne: a partir daí poderemos vencer o obstáculo maior à produção de uma consciência mais uniforme, entre os cidadãos, em termos do que significa vivermos juntos, vivermos em conjunto, em sociedade, trabalhando uns pelos outros.

Quis escrever isso depois de ler um trecho do livro “A ilusão neoliberal”, do francês René Passet. Confesso que não gastaria dinheiro comprando esse livro se fosse hoje; a questão é que o tenho desde uma época em que não conhecia bem o neoliberalismo, e achei que esse livro me daria ideias interessantes sobre o tema. Mas quem estuda Ciências Sociais acaba se aclimatando bem ao tema, e eu já não precisaria do livro… Mas já que já o tenho, decidi terminá-lo.

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Photo by BAMCorp

Portanto entre passagens que explicam coisas que eu já sabia e outras mais convolutas encontro vez por outra novas informações que, mesmo que nada surpreendentes, acabam bem redigidas ou transmitem as ideias de uma maneira bem didática. Tem uma parte particularmente interessante que explica a obsessão da direita de sempre quanto à inflação: é importante controlar a inflação porque ela mantém o lucro real das rendas de investimentos – e, como bônus, pode ser usada como peça de propaganda para indicar que algo vai mal na economia, já que a alta de preços afeta os meros mortais também.

A passagem que me motivou é a seguinte:

Quando o salário é baixo demais, muitos consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia, em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000, proporcionalmente sete vezes mais que na França(…). Isso explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”, comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego americano.”

A exclusão leva à revolta uma juventude sem futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário, deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do crescimento haveriam de respeitar isso? Em nome do exemplo dado pelas “elites”? Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a “grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os homens. O problema dos bairros periféricos (…) não tem raízes apenas no urbanismo malbaratado, mas nessa lógica que em nome da competitividade transforma a substituição do homem pela máquina em drama da exclusão social.

Não bastará pintar as fachadas de rosa, mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.

Nos mais fracos, o sentimento de impotência ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo, fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na areia… Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos professores da virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.