Como decidir o que os personagens vão dizer num diálogo

A comunicação só existe entre iguais, e por isso mesmo é rara entre nós. No momento em que conhecemos alguém nos enredamos em pontes de poder. O desequilíbrio é a regra, não a exceção. O ‘ser igual’ a alguém é um constante processo de ‘tornar-se igual’, processo que colabora de forma considerável com a formação de nossa personalidade, de nosso ser social, ao praticarmos a elevação ou o rebaixamento, ao abdicarmos ou reivindicarmos, ao pegarmos ou largamos, pelo bem de verdadeiramente ouvir e ser ouvido.


Como colocar palavras nas bocas dos personagens? Eis uma decisão complicada. Não falo aqui de estilo (literalmente quais palavras escrever), mas da direção da conversa, para onde ela vai a partir do que os personagens resolvem dizer.

A primeira coisa que costuma aparecer na cabeça do autor num diálogo comum, parte qualquer no meio da história, é: o que é preciso para levar a história adiante? Ao rascunhar o “esqueleto” da narrativa, você já sabe o fio geral que transforma o começo no fim. O que os personagens dizem é em grande parte determinado por esse fio. Ao falar e fazer coisas, os personagens põem em marcha os acontecimentos planejados.

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Photo by Nick Kenrick.

Vamos a um exemplo. Você precisa que a personagem Maria descubra que seu namorado João comete adultério com Joana. Por alguma razão você quer que ela descubra isso por uma conversa com outra personagem, não num flagrante. Por isso, nessa parte, você pode criar um rascunho que simplesmente diz “Mário conta para Maria que João tem um caso com Joana”. Na hora de escrever de fato essa parte, pode rolar algo como “Maria, tenho que contar uma coisa… O João tem um caso com a Joana”, e a Joana responde “Não! Não é possível! Não acredito!”, e Mário responde “Mas é verdade, você tem que acreditar”.

Repare que o diálogo se encaminha para a prova de que Mário está dizendo a verdade, porque a história precisa ir adiante; a próxima coisa que você já decidiu que vai acontecer é que Maria vai até a casa de João pra conversar sobre o assunto, e para isso a Maria tem que minimamente acreditar na revelação. Pense em qualquer mundo fantástico invadido por pessoas do “nosso” mundo: elas têm que ter um tempo para se surpreender, mas eventualmente devem parar de achar que estão loucas e aceitar a realidade, ou então nada acontece na trama. Isso é uma coisa potencialmente difícil (por conta da tensão entre realismo e eficiência narrativa) que Perdida, por exemplo, executa bem.

O diálogo acima (super tosco, eu sei) é eficiente: ele pode ser tão pequeno quanto necessário para que o ritmo continue sendo rápido, ou mais longo se você precisa dar uma parada no fluxo – até para focar, de repente, a subjetividade da Maria, que sofre com a descoberta. Tudo depende. Mas há vários outros critérios que podem ser usados em diálogos para moldar o que os personagens vão dizer – e, em geral, o processo constante de revisão ao qual o autor submete seu próprio trabalho acaba lidando com eles.

Contexto e motivação

Uma das piores coisas que se pode acontecer com um diálogo “eficiente” é que, na ânsia de fazer ele executar a função para a qual foi planejado, coisas mais elementares são esquecidas: o que os personagens querem. Por que Mário contou isso pra Maria?

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Photo by Philippe Boukobza

Contexto também é fundamental. Por que eles se encontraram naquele momento e naquele lugar? Isso importa, porque a suspensão de descrença não fraqueja só em filmes de super heróis; se você precisa tanto que Mário conte isso pra Maria que você está disposto a fazer eles se encontrarem aleatoriamente no centro da cidade, muitos leitores serão estapeados por essa conveniência absurda: vai ficar claro que o autor precisava dar um jeito de Mário falar com a Maria e, como não conseguiu nada de bom, fez os dois se encontrarem por acaso. Mas em ficções, [um] Deus existe. As pessoas esperam responsabilidade, causalidade e lógica das histórias que os humanos escrevem – ou poesia.

Se o encontro (entre Mário e Maria) for surpreendente, isso ainda será abordado no diálogo – afinal, quando nos encontramos com alguém por acaso e temos tempo para conversar sobre relacionamentos e traições, certamente iniciaremos a conversa com “O que você está fazendo aqui? Que coincidência!”. Isso confere mais naturalidade e fluidez ao diálogo.

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Isso depende muito do estilo do livro e do fluxo da história, mas o exemplo anterior é duplo: não só é sempre interessante providenciar, no diálogo, um pouco do contexto da conversa e das motivações de seus participantes, o fato é que raramente vamos ao ponto do que queremos falar – especialmente no começo de uma conversa, no princípio de encontro com outra pessoa. “O que você está fazendo aqui? Que coincidência” é ótimo para começar, mas Mário não cortaria Maria imediatamente para “Precisamos conversar sobre o João” (ou talvez sim, depende do contexto, mas ignoremos isso por um momento). É muito mais possível, se são duas pessoas normais e não espiões soviéticos, que Mário responda a pergunta e faça mais “conversinha”.

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Photo by h.koppdelaney

Talvez é a partir dessa conversinha que Mário chegue ao pensamento de que talvez seja bom falar sobre o que sabe sobre o João (“Cadê o João?”, “Ah, tá trabalhando hoje”. “Hm. Pois é… Então, desculpa te falar, mas… Acho que não”).

Assimetrias

A comunicação é cortada e perpassada por relações múltiplas de poder. Só há comunicação entre iguais, mas a maioria entre nós, em relação a outros, somos desiguais.

Digo isso porque o planejamento de um diálogo geralmente passa, como dito acima, pela listagem das coisas que se precisa que os personagens digam – ou melhor, o que o leitor precisa tirar daquela conversa – e então a organização temporal dessas coisas. Mário diz isso, Maria diz aquilo, aí Mário diz isso, e Maria diz aquilo. Se não há cuidado, os personagens acabam sendo receptáculos vazios de informações – sendo raquetes de um ping pong de palavras.

Isso parece bastante óbvio e às vezes já está embutido no planejamento do autor. Se Mário tem interesse romântico em Maria e é um homem confiante, vai provavelmente falar de uma forma bastante incisiva e proselitista sobre o que João está fazendo. Se é mais inseguro, vai provavelmente se desculpar milhões de vezes por falar daquilo, com medo de magoá-la, de perder suas chances com ela… E já vai ter sido muita a coragem de falar em primeiro lugar. Se Maria tem um interesse romântico em Mário, como vai reagir a ele falando isso para ela? É mais do que a forma como o narrador vai mostrar que ela se sente; como isso impacta o que ela vai dizer pra ele nesse diálogo? Ou ela não vai aguentar o que vai encarar como uma humilhação e vai sair correndo, evitando o diálogo completamente?

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Photo by streetwrk.com

Isso pode estar entranhado na premissa da história de tal forma que não abandone a mente do autor, mas há outros cenários, e isso faz diferença também com personagens menos tridimensionais, como “coadjuvantes” e “quase-figurantes”. Se Mário é o chefe da Maria, ele vai abordar uma discussão assim pessoal (por mais que ele entenda que é para o bem dela ou coisa parecida), de uma forma muito diferente – e também muito diferente, em outro sentido, se for um chefe escroto. Em ambos os casos, a forma como Maria responde deve levar em consideração esse diferencial de poder. Se Maria é chefe de Mário, aí a coisa também muda. Se eles são colegas de trabalho, também é outra coisa. Todo tipo de interesse e de relação de poder que incide entre eles pode ter consequências palpáveis sobre as palavras que escolhem para dizer o que dizem – e principalmente sobre o que não dizem.

Esse processo psicológico pode ser revelado por um narrador em primeira ou terceira pessoa… Ou permanecer escondido – o que é formidável também, porque incita o leitor a formar suas próprias conclusões sobre o que exatamente está por detrás das escolhas de palavras (e informações) dos personagens. É só lembrar, por exemplo, a confrontação entre Bentinho e Capitu sobre a paternidade de Ezequiel.

Ineficiências

Os personagens dialogam dentro de um contexto específico e o que eles querem dizer e fazer deve moldar o diálogo mais do que aquilo que a história exige deles no momento. Os diálogos, quando isso se acomoda bem ao estilo e ao ambiente da obra, deveriam incluir mais do que somente as “informações essenciais”, mas também coisas menores e corriqueiras que nos ajudam a ter uma noção dos personagens e da interação entre eles. E falando em interação, é preciso sempre se perguntar como as diferenças entre os personagens, de interesses e de “posição”, formulam e reformulam aquilo que eles escolhem dizer e como escolhem dizê-lo.

Só que falta uma coisa ainda. O parágrafo acima, que resume a postagem até então, pretende aperfeiçoar o diálogo no que interessa a primeira característica que discutimos: sua eficiência. Ele ainda traz ao leitor o que ele precisa saber, mas o faz de forma mais natural e robusta. Só que, especialmente se você quer uma certa “naturalidade” em sua obra e uma relação mais humana entre os personagens, você deve abandonar, em parte, até a eficiência.

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Photo by archer10 (Dennis) (68M Views)

Pense em todas as discussões acaloradas que você teve com alguém: é muito provável que em grande parte delas, quando você ainda está de cabeça quente horas depois, você “descubra” alguma coisa perfeita que poderia ter dito pra outra pessoa. Mas, infelizmente, o tempo passou – a oportunidade foi perdida e você se morde por só pensar agora nessa frase perfeita para contra-atacar seu adversário.

O escritor não deveria se aproveitar do fato de que pode “voltar no tempo” – revisar uma discussão de novo e de novo e de novo, quantas vezes achar necessário – para aperfeiçoar uma discussão. A ideia de que você pode colocar num papel o que Mário tem que dizer / quer dizer, o que Maria tem que dizer / quer dizer, e aí “dar um jeito” de encaixar tudo numa conversa, é problemático – porque na vida real isso nunca acontece. Sempre ficam coisas por serem ditas, coisas mal ditas, coisas ditas a mais a partir de uma derivação do assunto original da conversa – e isso não se trata apenas de brigas, mas do dia a dia. Mesmo coisas bem expostas pelo emissor podem ser mal interpretadas pelo receptor.

No entanto, o escritor precisa encontrar um equilíbrio: um jeito de fazer cada conversa passar mais ou menos ideias que se quer que o leitor “pesque” (sem esfregar na cara dele, por favor) a, ao mesmo tempo, dar autenticidade à conversa. Uma forma boa de fazer isso é ter em mente uma ideia vaga sobre o que cada personagem quer daquela conversa, ou como está reagindo a novas informações, e escrever uma primeira versão instintivamente – pondo no papel a primeira resposta que vem à cabeça. Obviamente aquilo pode ser imperfeito demais para servir aos propósitos da trama – e consertos terão que ser feitos. Mas consertos a partir de um bom molde inicial têm mais chance de resultarem em algo “natural” e eficiente na medida certa do que um molde planejado meticulosamente demais.

De coisas que buscam aprimorar o diálogo até aquelas que, com o mesmo objetivo, retiram-lhe atributos (mas não de maneira forçada), essas são boas dicas para criar um diálogo dinâmico e informativo.