Eu não sei qual é o estado da arte em pesquisas científicas sobre as “funções” dos sonhos – desses que a gente tem ao dormir. Da última vez que ouvi falar algo sobre, cogitava-se uma espécie de “desfragmentação do disco”, em que experiências do dia eram meio que analisadas e compactadas para que a nossa cognição continuasse fazendo sentido de tudo, inclusive ocorrendo aquele esquecimento básico de coisas irrelevantes ou repetidas (muito semelhantes às que acontecem em outros dias, como a memória exata de como foi trancar a porta de casa ao sair). Isso explicaria, por exemplo, como que elementos aleatórios de um dia entrariam nos cenários e nas tramas de um sonho.
Fico me perguntando se há por aí alguma teoria de sonhos baseada em ansiedade. Assim como a ansiedade teria uma função “evolutiva” no sentido de nos fazer imaginar cenários terríveis para que nos preparemos para eles, os sonhos poderiam ser apenas uma forma mais conveniente de fazer isso – afinal, já que não estamos fazendo nada naquele momento, melhor fazer essas projeções de possibilidades terríveis então do que quando estamos acordados e precisamos pensar em outras coisas ao mesmo tempo.
Por exemplo, acabei de ter um sonho em que estava me preparando para uma cirurgia ortodôntica. Mas esse foi um pesadelo – um filme de terror, ainda que mais cult e focado na ambientação do que em jump scares. E nem todos os sonhos são pesadelos. É verdade, mas – e se os próprios sonhos positivos, bons, forem essa bifurcação de um caminho que se enraíza num medo? Sim, as coisas podem dar errado – mas podemos imaginá-las dando certo. É um jeito evolutivamente inteligente de lidar com as consequências negativas da ansiedade. Afinal de contas, seria terrível se tudo que a nossa imaginação pudesse produzir fosse um conjunto de péssimas possibilidades. Sonhos bons ainda poderiam estar enraizados em medos; são apenas respostas otimistas a eles, jeitos de fazermos ecoar pela consciência a perspectiva de que conseguiremos lidar com eles.
Se este modelo tiver algo de verdade – e ele não é de todo incompatível com a ideia de “análise do dia pregresso”, pois este pode ter trazido suas próprias doses de medos e incertezas – será que ele pode ser aplicado à ideia de “sonhar acordado”? Isto é, chamamos nossas aspirações de “sonhos”. Fazemos isso, no mínimo, no ocidente – em inglês, português, espanhol… E, assim, chuto que em mais uma penca de outras línguas. Não sei quão universal é isso, mas se a associação foi feita uma vez me pergunto que verdades ela pode revelar.
Estou pensando essas coisa em parte inspirado em “The Liquidation of Belief”, um livro que Jesse Cohn está escrevendo, e que ele fez a gentileza de me enviar na fase em que quer receber críticas antes de enviar pra publicação. Em uma parte dele, ele discute a ressonância entre distúrbios de saúde mental, como delírios, incluindo a síndrome de Capgras, e o pensamento – ou a visão de mundo, talvez – de extrema direita contemporânea (“pós-fascista”). Ele não faz isso pra dizer algo simplista como “fascistas são doentes mentais”, até porque seria redundar numa compreensão empobrecida dos distúrbios mentais. Eu acho que ele analisa de forma mais sofisticada esses fenômenos da cognição, como se eles pudessem nos dizer algo mais profundo sobre a situação humana do que simplesmente “são problemas”.
A inspiração vem do fato de que, se podemos analisar “delírios” de uma forma mais produtiva, podemos estender essa análise também para os sonhos, até porque, não só linguisticamente como conceitualmente, socialmente, é muito fácil que uma coisa escorregue para a outra a depender da perspectiva. Um sonho de revolução anarquista, por exemplo, para muita gente é exatamente, precisamente, um delírio. Mas aí a diferença, é claro, é que estamos falando de uma projeção para o futuro, reconhecida mais como um desejo que precisa de ação prática para acontecer, do que um delírio típico que se refere a fatos do passado / presente que na verdade não são fatos, não aconteceram, não são assim, etc. Mesmo assim, um desejo que é colocado como projeto, e não como uma hipótese fantástica (“ah, como seria bom poder comer sem engordar nem sujar os dentes…”), imbrica também uma leitura do passado e, principalmente, do presente: se achamos que vale a pena fazer coisas que seriam consequentes para um projeto – um sonho – de revolução anarquista, é porque achamos que a realidade suporta esse projeto; que isso é, em algum nível, possível. E aí está a leitura do presente, elemento que pode ser lido por outrem como delírio.
Se é possível entender o delírio como função – como uma resposta cognitiva, se não razoável, funcional – o sonho, o sonhar acordado, poderia ocupar esse mesmo espaço, a partir da mesma ideia que levantei acima sobre o sonho que se tem dormindo: sonhos têm raízes nos medos. O sonho de ficar podre de rico, no medo da pobreza; o sonho de se casar, no medo da solidão; o de casar na igreja, com uma festa de arromba, no medo de não ser levado a sério por seus círculos sociais se não se conformar a certos rituais; o de morar no mato, nos medos da cidade; o de morar fora do país, no medo de nunca se descobrir se se deixar ser engolido pela cultura local, com a qual tão pouco se é congruente.
Se essa parte da leitura foi “autorizada” por ideias ressonantes que encontrei em Cohn, elas na verdade me vieram de uma ideia que tenho há tempos sobre como a esquerda em geral lida com os “sonhos” neoliberais. Sobre a narrativa do empreendedor de si que conquista tantos imaginários, eu fico pensando que a esquerda tem muitas respostas “estatísticas”, “sociológicas”, que, embora corretas, são também pessimistas – ou, talvez na linguagem de Cohn, tragam consigo um “afeto triste”. Elas são sempre no sentido de desestimular sonhos, de dizer: mas isso é um delírio. Não vai dar certo. São apenas instrumentos de controle capitalista. Acorde!
Demandar para que alguém acorde é uma coisa que me chama a atenção, uma peça inesperada da metáfora que estou tecendo. Primeiro: ninguém gosta de ser acordado com um berro. Segundo: ser acordado com um berro se a pessoa está tendo um sonho bom é ainda pior. Terceiro: qual o propósito de acordar? Para que a pessoa possa “viver na realidade”; viver com os outros, ter efeitos reais no mundo. Mas aí, também, depende de qual é o projeto de vida real. “Poxa, você foi me acordar pra isso?”. Assim como Cohn depois discute sobre a importância da construção de confiança e em projetos “lentos” de transformação, seria preciso acordar com carícias? Mais que isso, importa quem acorda, e para quê. Porque no âmbito da discussão ideológica pública com adversários que não compartilham um laço social minimamente relevante, um chamado para que a pessoa acorde é basicamente um chamado à conformidade. No âmbito de uma discussão desafixada de um projeto que energiza porque se trata de transformar, de melhorar, é uma exigência que o outro capitule-se aos fatos duros, ruins, nos quais o sonho se enraíza: aceite que as coisas são assim. Levante, não porque temos que lutar por esse sonho, mas porque você tem que pegar o ônibus pra trabalhar.
Mas tem outra coisa aí. Porque o próprio chamado a acordar – ou seja, considerar o “sonho” do outro menos projeto que delírio, e atar a respeitabilidade deste outro à condição que aceite uma versão da realidade que exige a aceitação daquilo que ele não acha justo ou bom – cria a própria análise deste projeto como sonho. As coisas podem ser discutidas de outra forma, mas se uma decisão é tomada de caracterizar as coisas de tal forma que terminam com você dizendo (com todas as letras ou não) que o outro tem que acordar, é aí que entramos no reino retórico do onírico. E nesse caso – e eis o pulo do gato – se estamos abordando os sonhos, estaríamos abordando também os medos. Rir do sonho do outro – o que é efetivamente o que fazemos, mesmo se estamos sérios, ao caracterizar o projeto como delírio – é o mesmo que rir de seus medos. Alguém rir do meu sonho é duplamente ultrajante, porque não só a pessoa julga minha cognição, meu entendimento do que é ou não possível no mundo; o sonho é uma exposição, uma vulnerabilidade, porque acaba comunicando também meus medos. E alguém que ri dos meus medos passa a vibe de um vilão que descobre o ponto fraco do herói. Quem ri do medo dos outros – não o riso leve, por exemplo, que vem quando a gente superestimou o medo, e agora fica tranquilo que é algo fácil de ajudar; um riso ácido, perfurante, pesado – quer diminuir o outro, reduzi-lo a seus medos; indignificar a pessoa.
Não quero transformar esse texto em algo muito mais longo do que precisa ser, e certamente haveria uma avenida pra isso aqui se agora eu quisesse estender essa metáfora ao infinito de todas as “mais indicadas” formas de luta social. Ainda assim, acho que uma saída útil aqui, nesse nível interpessoal, é a ideia de sonhos lúcidos. Não precisamos que a pessoa acorde. Não precisamos diminuir ninguém. Há que se compreender, e respeitar, medos. Mas é necessário estabelecer conexões. E nesse sentido, é possível conversar com a pessoa levando seus sonhos a sério, mas pensando em suas consequências. O que vai acontecer se você realmente concretizá-lo? Você consegue imaginar possíveis consequências ruins disso? Quais são os custos, para você e para os outros, de concretizar esse sonho? Você consegue imaginar como tudo isso afetaria sua relação com os outros? Qual é o seu objetivo, realmente, na vida – ter boas relações e experiências com os outros, ou chegar sozinho a algum lugar ou situação que idealizou? É possível recalibrar um pouco nossas expectativas, ter um pouco de coragem pra aceitar que, quanto a alguns medos, não vale a pena tentar neutralizá-los de todos, em nome de um sonho que não é só seu, mas um sonho de vivermos melhor uns com os outros, de formas menos destrutivas, mais saudáveis?
Talvez o objetivo não seja acordar ninguém, até porque no fundo o melhor mesmo, para qualquer ciclo de sono, é a pessoa acordar no seu próprio tempo. Talvez o melhor objetivo seja fomentar a transformação de sonhos em sonhos lúcidos: lentamente introduzir estímulos, a partir de uma posição de cuidado, e portanto confiança, de modo a fazer com que a pessoa controle seu sonho, em vez de ser controlada por ele.