Texto publicado na Revista do Centro de Cultura Social.
O apoio mútuo parece se chocar com a liberdade, ao menos quando ajudar uns aos outros pode conflitar com vontades individuais. É claro que é possível querer praticar o apoio mútuo, mas assim como caridade não se confunde com justiça, uma sociedade e uma economia baseadas nesse princípio não podem se fiar no acaso, no “faz quem quer”. A cooperação precisa constituir ativamente tudo que fazemos. Como é possível, então, combinar apoio mútuo e liberdade?
Libertas, lá no latim, era o status de quem tinha nome, terras… De quem não era escravo. Hoje, entre catracas e muros, vigias e polícias, inspetores e moralistas, também crescemos entendendo que fazer o que se quer é um privilégio. O dia a dia ensina que é o dinheiro que leva à satisfação – produtos, serviços, acesso aos espaços; no fundo, formas diferentes de se relacionar com as pessoas e com o ambiente. Você pode ir mais longe, entrar onde antes não entrava, ter uma “propriedade privada”, quer dizer, um lugar onde você é o mandachuva – enfim, ter tudo entregue na sua porta em vez de ser você a entregadora.
Só que o indivíduo tem limite. Maiores liberdades exigem formas de cooperação – até mesmo pensando a liberdade como dinheiro. Por exemplo: você pode ser uma pessoa que, com o primeiro emprego, passou a alugar seu próprio canto, comprar umas coisas que antes não conseguia… Mas pro que extrapola demais o orçamento – um carro, uma casa, um projeto – é preciso crédito. Se a pessoa não conhece alguém que tenha pra emprestar, vai ao banco, que amontoa riqueza e assim tem o poder de julgar quem merece confiança.
Em certo sentido, então, o apoio mútuo não é uma revolução, nem algo feito por esporte, ou que ocorra por acidente. Também não é um mandamento moral, uma coisa que alguém tenha que “se forçar” a fazer, como se o egoísmo é que viesse naturalmente. É uma forma de agir, uma tática, uma estratégia, que por ser tão simples quanto potente, desenvolveu-se nos seres vivos como instinto, uma tendência, e assim como algo que nunca pode ser extirpado da experiência humana.
Redes de solidariedade entre vizinhos, colegas, em espaços religiosos, etc., são essenciais pra tornar a vida melhor, ou minimamente suportável, em situações de vulnerabilidade. Certa vez uma taxista carioca me contou sobre os filhos que criava sozinha: os biológicos, porque o pai sumiu, e os da vizinha, porque ela (outra mãe solo) faleceu e não tinha familiares conhecidos. Ela contava bastante com o resto da comunidade. Mas o cenário não precisa ser tão dramático, nem periférico. Todo mundo já teve laços fortalecidos com pessoas que ofereceram socorro em tempos difíceis, ou deram um “voto de confiança financeiro” fundamental para alcançar “liberdades” maiores.
Mas vamos com calma: o apoio mútuo enquanto postura, modo de agir, é só uma sombra do que ele pode ser quando realmente permeia nossas relações, orienta os ritmos do dia a dia, dá forma às expectativas para o futuro. Não dá pra abordar a solidariedade para a sobrevivência romanticamente, ignorando a pornográfica concentração de renda a nível nacional e mundial. Uma coisa é um terremoto criar “tempos difíceis”, outra é uma vida inteira no olho do furacão, uma tragédia que, como várias outras, podia ser evitada se o princípio de apoio mútuo estruturasse nossas vidas. Sem falar que, para cada história de um “empréstimo emocionante”, tem aquele primo que pede dinheiro e nunca mais aparece… Nesses casos, a moral da dívida pode atropelar nuances, gerando ressentimentos e conflitos. O crédito financeiro é, na verdade, o pior exemplo de apoio mútuo possível – justamente porque não é mútuo! A questão é: o “livre mercado”, imposto como fundamento das nossas vidas, naturaliza e aprofunda desigualdades. Isso deturpa a cooperação. Afinal de contas, a questão é: quem está em posição de julgar se alguém merece confiança? Quem está em condições de ajudar os outros? Apoio mútuo de verdade exige tornar real uma igualdade que, no Estado, é um “juridiquês” vazio.
Então, não é bem que uma liberdade maior de se fazer o que se quer exige formas de cooperação – isso deixa de fora a questão da igualdade. Essa liberdade é um privilégio (a massa popular precisa de muito “crédito” para fazer o que quer) por causa da dominação histórica que o capitalismo colonial representa. A grande maioria do povo é obrigada a se virar, cada um no seu quadrado, e aí é fácil de entender como o individualismo viraliza. E se o dinheiro é o caminho para ter mais liberdade para si, “o que se quer fazer ou ser” tem que se encaixar no molde que o mercado impõe. Só assim você ganha dinheiro para, depois, gastar no próprio mercado, comprando o que se quer.
Ora, para que esse “intermediário”? Por que é que a gente não se “organiza direitinho”, conforme o que sabemos, podemos, e queremos, pra permitir a cada um desenvolver suas potências e realizar seus desejos em equilíbrio, compartilhando tanto os frutos quanto os fardos? Isso sim seria dar corpo e vida ao apoio mútuo: pegar a lógica que se vislumbra hoje entre brechas e ranhuras de um cotidiano massacrante e fortalecê-la, expandi-la. Que lógica? O princípio de “cada um faz o que pode, cada um pega o que precisa”. Isso nada mais é que o comunismo: trabalhar menos, trabalhar todos; produzir o necessário, distribuir tudo.
Não seria fácil, nem simples, mas essa não é a questão. Ou é? Porque o “marketing” do capital diz que o mercado é um jeito “indireto”, porém “eficaz”, de fazer justamente isso, toda essa coordenação “livre” de trabalho e valor. A coisa parece simples e fácil. Mas, como quase sempre no marketing, é um engodo, um truque. Por meio dos mecanismos de mercado, quem tem dinheiro e poder transforma a condição básica da realização humana (a liberdade de “poder fazer ou ser o que quer”) num prêmio. Mil desculpas esfarrapadas fantasiadas de ciência buscam nos convencer de que a gente tem que “merecer” dignidade. A corrida para caber no pódio impede que a gente se esforce para, juntas, garantir esse prêmio como um fato para todas as pessoas.
Nessa corrida, aliás, a própria liberdade deixa de significar o que se pretendia, já que, no capitalismo, quem quer liberdade tem que se submeter. Aliás, o “prêmio” é uma fraude, porque a promessa é que com o “sucesso”, a partir do seu próprio “mérito”, a submissão acaba. Mas participar da “corrida” é reproduzir um sistema violento, que destrói as condições de sobrevivência das pessoas no planeta (em vários sentidos), e ao chegar no topo da pirâmide, a pessoa percebe que as demais terão que ficar lá, na base. No fim, permanecer no topo depende de continuar se conformando – só que, dessa vez, a um papel de vilão.
É isso que nos leva a defender o comunismo libertário – uma forma de viver organizando o apoio mútuo diretamente, reconhecendo nossa interdependência em vez de uma ilusória independência, pra chegar na liberdade. Isso é diferente das soluções que outras ideologias oferecem. Relações de crédito são relações de endividamento, e assim de controle, de “entrar na linha”. E mesmo as propostas como renda universal, que são bacanas e estão ficando famosas hoje em dia por conta do auxílio emergencial da pandemia de Covid-19, não vão 100% ao xis da questão, que é o controle sobre o trabalho. No fim, elas acabam botando nossa liberdade na mão de uma instituição essencialmente violenta e opressora, que é o Estado – tudo que ele dá, ele pode tirar. É só por meio da posse comum dos meios de trabalho que garantimos, por nós, a nossa liberdade. Se pudéssemos igualmente fazer o que quiséssemos, nossos objetivos e nossos esforços seriam trabalhados em conjunto. Se o que eu quero fazer é machucar ou dominar outras pessoas, isso não posso, porque dependo delas. Mas outras tampouco podem me machucar ou me dominar porque também dependem de mim. É a ação de todas que ajuda a sustentar esse mundo em que cada uma está capacitada a buscar seus sonhos.
Mas o conflito persiste: e se quero machucar ou dominar outros? Devemos lembrar que as nossas vontades não estão separadas da nossa situação. Somos o que fazemos, e quando o apoio mútuo embasa nossos atos e muda tudo à nossa volta, ele no fundo define também quem somos. Existe mesmo a vontade de dominar? Ou só vontades, físicas e psicológicas – alimentar-se bem, estar protegido, ser amado, respeitado – que, numa sociedade hierárquica, aprende-se desde cedo que é preciso dominar para conseguir? Nossos desejos podem ser aleatórios, profundamente pessoais, únicos… E mesmo assim o “formato” deles vai depender das nossas relações. Se o mundo deixa claro que a única chance de ter a liberdade de alcançar o que se quer vem de “subir na vida” por cima dos outros, não dá pra culpar as pessoas quando esses desejos surgem, como se elas fossem malvadas. O vírus não é a humanidade, mas sim o capitalismo. A cura? Lutar contra a fonte desses impulsos transformando diretamente a nossa realidade.
Não quer dizer que dá pra erradicar de vez qualquer desejo antissocial. Não seria nem bom – a rebeldia vem do choque com a injustiça; é como um alarme de incêndio, um aviso da defesa civil contra desastres “naturais”. Eles permitem que a gente veja que alguma coisa não está indo bem, e mesmo uma sociedade fundada no apoio mútuo pode falhar. Não tem problema – nada nunca vai ser perfeito mesmo. A diferença está em como lidar com isso. Na sociedade imperfeita que temos, a rebeldia é punida. No comunismo libertário, ela é um assunto sério, mas não necessariamente motivo para expulsar, bater, prender (pode ser até celebrada). Mas, garantindo primeiro certa segurança, o próximo passo é o que importa: reavaliar nossos esforços para melhor nos ajudar mutuamente, realmente pensando como é que fazemos para atender a diversidade das nossas demandas. Isso é, sem dúvida, um quebra-cabeças muito difícil. Ninguém me convence que a gente não dá conta.
Por toda sua obra, em vários contextos, Kropotkin pensa esse desafio. Mas ele não é (nem nunca disse que foi) um gênio que “inventou” essas noções. O apoio mútuo já é um princípio fundamental de outras tradições políticas e cosmológicas, especialmente dos povos não-ocidentais. Para essas tradições, combinar liberdade e apoio mútuo é um falso dilema, porque reconhecer a nossa interdependência sem ilusões muda o que a liberdade significa. Não precisamos, afinal, deixar o latim decidir pra sempre o sentido das coisas. Não tem por que continuar se apegando a uma ideia de liberdade enquanto “fazer o que se quer” quando não é isso que queremos dizer ao defendê-la.
Noções indígenas de liberdade legitimam a rebeldia contra tudo – a ganância, a violência, a separação – que ameaça o equilíbrio entre pessoas e por toda a natureza. Lembro aqui de Anthony Fiscella expondo o racismo das noções ocidentais de liberdade e buscando alternativas: uma delas é a partilha de responsabilidades. Dividir os pesos da vida com as pessoas à nossa volta é o que nos torna livres. Quanto maior a escala dessa divisão, mais a gente assegura nossas condições para crescer, experimentar, relaxar, e de sermos elementos ativos do mundo, ajudando as demais pessoas a serem livres também.
A liberdade de “fazer o que se quer” é um produto do mercado. A liberdade baseada no apoio mútuo é uma genuína relação social: algo que não se pode simular ou impor, que torna a vida digna e prazerosa, que nos transforma e nos empodera.