Como decidir o que os personagens vão dizer num diálogo

A comunicação só existe entre iguais, e por isso mesmo é rara entre nós. No momento em que conhecemos alguém nos enredamos em pontes de poder. O desequilíbrio é a regra, não a exceção. O ‘ser igual’ a alguém é um constante processo de ‘tornar-se igual’, processo que colabora de forma considerável com a formação de nossa personalidade, de nosso ser social, ao praticarmos a elevação ou o rebaixamento, ao abdicarmos ou reivindicarmos, ao pegarmos ou largamos, pelo bem de verdadeiramente ouvir e ser ouvido.


Como colocar palavras nas bocas dos personagens? Eis uma decisão complicada. Não falo aqui de estilo (literalmente quais palavras escrever), mas da direção da conversa, para onde ela vai a partir do que os personagens resolvem dizer.

A primeira coisa que costuma aparecer na cabeça do autor num diálogo comum, parte qualquer no meio da história, é: o que é preciso para levar a história adiante? Ao rascunhar o “esqueleto” da narrativa, você já sabe o fio geral que transforma o começo no fim. O que os personagens dizem é em grande parte determinado por esse fio. Ao falar e fazer coisas, os personagens põem em marcha os acontecimentos planejados.

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Photo by Nick Kenrick.

Vamos a um exemplo. Você precisa que a personagem Maria descubra que seu namorado João comete adultério com Joana. Por alguma razão você quer que ela descubra isso por uma conversa com outra personagem, não num flagrante. Por isso, nessa parte, você pode criar um rascunho que simplesmente diz “Mário conta para Maria que João tem um caso com Joana”. Na hora de escrever de fato essa parte, pode rolar algo como “Maria, tenho que contar uma coisa… O João tem um caso com a Joana”, e a Joana responde “Não! Não é possível! Não acredito!”, e Mário responde “Mas é verdade, você tem que acreditar”.

Repare que o diálogo se encaminha para a prova de que Mário está dizendo a verdade, porque a história precisa ir adiante; a próxima coisa que você já decidiu que vai acontecer é que Maria vai até a casa de João pra conversar sobre o assunto, e para isso a Maria tem que minimamente acreditar na revelação. Pense em qualquer mundo fantástico invadido por pessoas do “nosso” mundo: elas têm que ter um tempo para se surpreender, mas eventualmente devem parar de achar que estão loucas e aceitar a realidade, ou então nada acontece na trama. Isso é uma coisa potencialmente difícil (por conta da tensão entre realismo e eficiência narrativa) que Perdida, por exemplo, executa bem.

O diálogo acima (super tosco, eu sei) é eficiente: ele pode ser tão pequeno quanto necessário para que o ritmo continue sendo rápido, ou mais longo se você precisa dar uma parada no fluxo – até para focar, de repente, a subjetividade da Maria, que sofre com a descoberta. Tudo depende. Mas há vários outros critérios que podem ser usados em diálogos para moldar o que os personagens vão dizer – e, em geral, o processo constante de revisão ao qual o autor submete seu próprio trabalho acaba lidando com eles.

Contexto e motivação

Uma das piores coisas que se pode acontecer com um diálogo “eficiente” é que, na ânsia de fazer ele executar a função para a qual foi planejado, coisas mais elementares são esquecidas: o que os personagens querem. Por que Mário contou isso pra Maria?

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Photo by Philippe Boukobza

Contexto também é fundamental. Por que eles se encontraram naquele momento e naquele lugar? Isso importa, porque a suspensão de descrença não fraqueja só em filmes de super heróis; se você precisa tanto que Mário conte isso pra Maria que você está disposto a fazer eles se encontrarem aleatoriamente no centro da cidade, muitos leitores serão estapeados por essa conveniência absurda: vai ficar claro que o autor precisava dar um jeito de Mário falar com a Maria e, como não conseguiu nada de bom, fez os dois se encontrarem por acaso. Mas em ficções, [um] Deus existe. As pessoas esperam responsabilidade, causalidade e lógica das histórias que os humanos escrevem – ou poesia.

Se o encontro (entre Mário e Maria) for surpreendente, isso ainda será abordado no diálogo – afinal, quando nos encontramos com alguém por acaso e temos tempo para conversar sobre relacionamentos e traições, certamente iniciaremos a conversa com “O que você está fazendo aqui? Que coincidência!”. Isso confere mais naturalidade e fluidez ao diálogo.

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Isso depende muito do estilo do livro e do fluxo da história, mas o exemplo anterior é duplo: não só é sempre interessante providenciar, no diálogo, um pouco do contexto da conversa e das motivações de seus participantes, o fato é que raramente vamos ao ponto do que queremos falar – especialmente no começo de uma conversa, no princípio de encontro com outra pessoa. “O que você está fazendo aqui? Que coincidência” é ótimo para começar, mas Mário não cortaria Maria imediatamente para “Precisamos conversar sobre o João” (ou talvez sim, depende do contexto, mas ignoremos isso por um momento). É muito mais possível, se são duas pessoas normais e não espiões soviéticos, que Mário responda a pergunta e faça mais “conversinha”.

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Photo by h.koppdelaney

Talvez é a partir dessa conversinha que Mário chegue ao pensamento de que talvez seja bom falar sobre o que sabe sobre o João (“Cadê o João?”, “Ah, tá trabalhando hoje”. “Hm. Pois é… Então, desculpa te falar, mas… Acho que não”).

Assimetrias

A comunicação é cortada e perpassada por relações múltiplas de poder. Só há comunicação entre iguais, mas a maioria entre nós, em relação a outros, somos desiguais.

Digo isso porque o planejamento de um diálogo geralmente passa, como dito acima, pela listagem das coisas que se precisa que os personagens digam – ou melhor, o que o leitor precisa tirar daquela conversa – e então a organização temporal dessas coisas. Mário diz isso, Maria diz aquilo, aí Mário diz isso, e Maria diz aquilo. Se não há cuidado, os personagens acabam sendo receptáculos vazios de informações – sendo raquetes de um ping pong de palavras.

Isso parece bastante óbvio e às vezes já está embutido no planejamento do autor. Se Mário tem interesse romântico em Maria e é um homem confiante, vai provavelmente falar de uma forma bastante incisiva e proselitista sobre o que João está fazendo. Se é mais inseguro, vai provavelmente se desculpar milhões de vezes por falar daquilo, com medo de magoá-la, de perder suas chances com ela… E já vai ter sido muita a coragem de falar em primeiro lugar. Se Maria tem um interesse romântico em Mário, como vai reagir a ele falando isso para ela? É mais do que a forma como o narrador vai mostrar que ela se sente; como isso impacta o que ela vai dizer pra ele nesse diálogo? Ou ela não vai aguentar o que vai encarar como uma humilhação e vai sair correndo, evitando o diálogo completamente?

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Photo by streetwrk.com

Isso pode estar entranhado na premissa da história de tal forma que não abandone a mente do autor, mas há outros cenários, e isso faz diferença também com personagens menos tridimensionais, como “coadjuvantes” e “quase-figurantes”. Se Mário é o chefe da Maria, ele vai abordar uma discussão assim pessoal (por mais que ele entenda que é para o bem dela ou coisa parecida), de uma forma muito diferente – e também muito diferente, em outro sentido, se for um chefe escroto. Em ambos os casos, a forma como Maria responde deve levar em consideração esse diferencial de poder. Se Maria é chefe de Mário, aí a coisa também muda. Se eles são colegas de trabalho, também é outra coisa. Todo tipo de interesse e de relação de poder que incide entre eles pode ter consequências palpáveis sobre as palavras que escolhem para dizer o que dizem – e principalmente sobre o que não dizem.

Esse processo psicológico pode ser revelado por um narrador em primeira ou terceira pessoa… Ou permanecer escondido – o que é formidável também, porque incita o leitor a formar suas próprias conclusões sobre o que exatamente está por detrás das escolhas de palavras (e informações) dos personagens. É só lembrar, por exemplo, a confrontação entre Bentinho e Capitu sobre a paternidade de Ezequiel.

Ineficiências

Os personagens dialogam dentro de um contexto específico e o que eles querem dizer e fazer deve moldar o diálogo mais do que aquilo que a história exige deles no momento. Os diálogos, quando isso se acomoda bem ao estilo e ao ambiente da obra, deveriam incluir mais do que somente as “informações essenciais”, mas também coisas menores e corriqueiras que nos ajudam a ter uma noção dos personagens e da interação entre eles. E falando em interação, é preciso sempre se perguntar como as diferenças entre os personagens, de interesses e de “posição”, formulam e reformulam aquilo que eles escolhem dizer e como escolhem dizê-lo.

Só que falta uma coisa ainda. O parágrafo acima, que resume a postagem até então, pretende aperfeiçoar o diálogo no que interessa a primeira característica que discutimos: sua eficiência. Ele ainda traz ao leitor o que ele precisa saber, mas o faz de forma mais natural e robusta. Só que, especialmente se você quer uma certa “naturalidade” em sua obra e uma relação mais humana entre os personagens, você deve abandonar, em parte, até a eficiência.

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Photo by archer10 (Dennis) (68M Views)

Pense em todas as discussões acaloradas que você teve com alguém: é muito provável que em grande parte delas, quando você ainda está de cabeça quente horas depois, você “descubra” alguma coisa perfeita que poderia ter dito pra outra pessoa. Mas, infelizmente, o tempo passou – a oportunidade foi perdida e você se morde por só pensar agora nessa frase perfeita para contra-atacar seu adversário.

O escritor não deveria se aproveitar do fato de que pode “voltar no tempo” – revisar uma discussão de novo e de novo e de novo, quantas vezes achar necessário – para aperfeiçoar uma discussão. A ideia de que você pode colocar num papel o que Mário tem que dizer / quer dizer, o que Maria tem que dizer / quer dizer, e aí “dar um jeito” de encaixar tudo numa conversa, é problemático – porque na vida real isso nunca acontece. Sempre ficam coisas por serem ditas, coisas mal ditas, coisas ditas a mais a partir de uma derivação do assunto original da conversa – e isso não se trata apenas de brigas, mas do dia a dia. Mesmo coisas bem expostas pelo emissor podem ser mal interpretadas pelo receptor.

No entanto, o escritor precisa encontrar um equilíbrio: um jeito de fazer cada conversa passar mais ou menos ideias que se quer que o leitor “pesque” (sem esfregar na cara dele, por favor) a, ao mesmo tempo, dar autenticidade à conversa. Uma forma boa de fazer isso é ter em mente uma ideia vaga sobre o que cada personagem quer daquela conversa, ou como está reagindo a novas informações, e escrever uma primeira versão instintivamente – pondo no papel a primeira resposta que vem à cabeça. Obviamente aquilo pode ser imperfeito demais para servir aos propósitos da trama – e consertos terão que ser feitos. Mas consertos a partir de um bom molde inicial têm mais chance de resultarem em algo “natural” e eficiente na medida certa do que um molde planejado meticulosamente demais.

De coisas que buscam aprimorar o diálogo até aquelas que, com o mesmo objetivo, retiram-lhe atributos (mas não de maneira forçada), essas são boas dicas para criar um diálogo dinâmico e informativo.

Eu sei que você não pensa assim

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Photo by Alyssa L. Miller

Tem uma coisa na ficção que pode ser explorada de forma a produzir resultados muito interessantes: o “eu sei que você não pensa assim”. Digo ficção porque isso pode ser feito de forma visual em filmes e peças, ou mais literal (descritivamente, aproveitando uma imersão psicológica) em literatura.

Essa “técnica” (Trope? Esquema? Dispositivo?) consiste no seguinte: o personagem A conhece a opinião do personagem B sobre algo. Quando o personagem C levanta o tema, A observa atentamente o que B tem a dizer, percebendo que B está sendo inconsistente.

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Photo by brian395

Bem atentamente

Essa situação é legal porque pode revelar muito sobre todos os personagens. Sobre o que o personagem C pensa, ou quis fazer, ao levantar o tema. Sobre o que preocupa o personagem A, já que ele prestou particular atenção a isso. E, principalmente, o que o personagem B pensa ou quer com sua fala.

É importante aprofundar aqui a questão do personagem B, porque o fato de que alguém ali sabe o que ele pensa é importante (estou pressupondo que o leitor entenda ou possa inferir que A conhece a opinião de B e também qual ela é, ou pelo menos que A conhece a opinião de B). Isto é: com esta nova situação, o leitor pode entender que B está mentindo para C? Ou que B mentiu, antes, para A? Qual é a verdadeira opinião de B? Há uma verdadeira opinião ou ele é puro oportunismo? Por que ele mentiu para quem ele mentiu? Ou ele mudou de opinião?

Além disso, a situação é relatable, isto é, você se identifica com ela porque ela acontece com frequência na vida real. Pode ser que você não se lembre assim de cabeça, mas não é raro ouvirmos algo de alguém e, mais tarde, ouvirmos algo diferente vindo da mesma pessoa quando o contexto é outro (e, é claro, podemos também ser nós mesmos os inconsistentes). Isso sempre levanta questões – o que significa, também, conflitos posteriores sobre isso entre A, B, e talvez até C. De qualquer forma, isso acontece e sempre problematiza um relacionamento, trazendo confrontos, obstáculos, e mesmo suspense para uma narrativa (no caso de suspense, pense numa pessoa que disse para o detetive que na hora do crime estava em casa, e na frente de outras pessoas disse que estava no supermercado).

Há ainda uma última possibilidade bacana: se bem escrito, um trecho como esse pode passar ao leitor alguma informação de forma sutil – fazer com que ele saiba de algo que talvez nem seja contraditório (para o personagem A, por exemplo) no momento, mas que depois adquira uma significância maior. Isso é sempre, sempre legal.

“Eu sou o mensageiro” é o Mundo de Sofia – só que ruim, e clichê

Eu sou o mensageiro

Como esse livro pode ter conseguido tantos prêmios literários?

Bem, talvez porque a mensagem que o livro passa é boa. As mensagens, porque há várias contidas nisto que é essencialmente uma fábula. Aceite os desafios da vida, seja feliz com as pequenas coisas, faça o bem sem ver a quem – mas, principalmente, “se você é um merda, pode superar essa condição e se tornar alguém”. Essa é uma parte bacana do livro, mas é uma parte. A mensagem não é responsável pelo valor literário de uma obra; como amante da literatura, julgo um livro pela forma como as letras são usadas para passar a mensagem! Ela, a vibe positiva, não pode ser usada como desculpa para o final horroroso que esse livro tem, além da série de problemas narrativos e estilísticos que fazem dessa história uma gigantesca decepção.

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Photo by jasleen_kaur

Não é nada contra Zusak (afinal, A Menina que Roubava Livros é incrível). É que a mensagem aqui carrega tanto peso, canibaliza tanto a história, que esse livro seria melhor avaliado como auto-ajuda. Mas não é; é ficção, e para uma ficção só a droga da mensagem não basta!

Descompasso

Em se tratando de construir um personagem, ou você tem um proletário desiludido ou tem um poeta desiludido.

Ed Kennedy é uma pessoa simples e sem ambições. Não se importa nem com o próprio trabalho, nem com valores burgueses como ter uma casa limpa ou impressionar os vizinhos – é basicamente um cara do povo, só que meio deprê e sem esperança.

Mas isso não casa com a voz interior dele, que é o narrador do livro. Há um descompasso gritante entre quem ele é e o jeito como ele pensa. Um “tipo proletário” pode ser poeta por dentro, mas a poesia dele não vai ser a de Camões, e sim algo como Racionais MCs ou Emicida – a depender de vários fatores (eu estou discutindo estereótipos aqui, afinal) vai ser provavelmente mais rasgada, cínica, irônica, seca. Por exemplo:

Pego a faca do chão e a seguro firme.

Pena que não dá pra abrir o mundo todo com ela. Se desse, eu cortaria o mundo em duas fatias e subiria em uma delas. (p. 263)

Pena que não dá pra abrir o mundo todo com ela? Quem PENSA assim? Quem tem ESSE fluxo de ideias?

E tudo bem ser bobo se você é um poeta desiludido, mas esse simplesmente não é o personagem que nos foi apresentado!

O cheiro da rua faz de tudo pra colocar as mãos em mim, mas eu não deixo, e vou andando. Toda vez que me dá um arrepio nos braços e nas pernas, eu aperto o passo, sem saber se Audrey está precisando de mim, ou talvez Ritchie ou Marv… Cara, tenho que correr.

O medo é a rua.

O medo é cada passo. (p. 258)

O medo é a rua… Pelo amor. Esse é o problema quando você quer escrever em primeira pessoa mas não está disposto a realmente entrar na cabeça do personagem (Liberdade é um bom exemplo de como fazer isso bem, mesmo que o estilo não mude tão radicalmente de um ator para outro). Você, como escritor, quer fazer suas metáforas, comparações, jogos linguísticos bonitos e imagéticos. E nós, seres humanos, fazemos isso de vez em quando. Mas não todos do mesmo jeito! Isso aí não é o Kennedy pensando, é o Zusak usando a boca do Ed Kennedy. O real Kennedy, como muitos de nós ficaríamos se estivéssemos correndo, na rua, à noite, com medo de não chegar a tempo para alguma coisa, não ficaria pensando “ah, o medo é a rua. Oh, cada passo que eu dou é medo, oh, oh”. Não, metade do tempo seria gasto inutilmente com “putaqueopariuputaqueopariuputaqueopariu” e na outra metade nosso cérebro, muito à revelia do que um eu racional quereria, ficaria imaginando em loop os piores cenários possíveis.

Uma prova de que se trata do escritor simplesmente dando um jeito de escrever algo que ele achou fofo só porque ele quer, e não porque faz sentido e casa com o personagem, é que não é só o Kennedy quem faz isso. Marv, um trabalhador de construção civil casca grossa e orgulhoso, quando tem uma confissão emocional a fazer, diz:

É este o meu estado às três da manhã, Ed. Todo dia. Vejo aquela garota – aquela garota pobrezinha e espetacular. Às vezes eu vou ao milharal e caio de joelhos. Ouço meu coração batendo, mas eu não quero. Odeio as batidas do meu coração. São muita altas naquele campo. Elas caem. Direto de mim. Mas então voltam, igualzinho como eram. (p. 281, grifos meus)

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Photo by ♔ Georgie R

Não. Simplesmente não.

Repare que até a parte destacada a frase vai bem. Depois é que Zusak não se aguenta e tem que colocar a parte bonitinha que Marv jamais diria. Isso não é só ruim pela sensação esquisita que dá; trata-se de uma oportunidade roubada do personagem dizer a mesma coisa, mas à sua própria maneira – o que nos permitiria ficar mais à vontade com ele; faria com que ele se tornasse mais tridimensional para nós.

É verdade que o livro todo não é assim. Não é como se eu pudesse simplesmente abrir uma página aleatória e encontrar uma parte vergonhosa dessas, e há frases boas, em que o jeito de cada personagem marca bem a interação entre eles. Muito do embaraço pode se dever à tradução (“poor spectacular girl”, eu presumo, é bem melhor que “aquela garota pobrezinha e espetacular”, combinação de palavras que 99,99% dos falantes da língua portuguesa vão passar a vida sem jamais pronunciar ou escrever), mas não descontaria muita culpa por causa disso… A verdade é que se isso vai ficando mais irritante à medida que você conhece Ed (porque o descompasso fica mais evidente), a narrativa tem uma série de outros problemas maiores.

Um desperdício de suspense, uma abundância de narração

Esse livro é uma comédia ou um suspense? É acima de tudo auto-ajuda, é claro, mas você pode fazer uma “suspédia” ou um “comense” sem problemas; o duro é quando a comédia envenena o suspense.

A premissa do livro é interessante e desafia o leitor: quem está mandando essas cartas misteriosas? Isso é fantástico. Zusak quer o suspense, quer o drama. Ele quer que o leitor se sinta com medo por causa de Ed; quer que sintamos que alguma coisa está em jogo se ele não conseguir o que quer.

Só que aí, quando nosso herói está sendo brutalmente atacado por dois mascarados…

– Mesmo quando acordou, o bicho entrou pra pedir o que comer.

– E?

– A gente deu uma tortinha pra ele.

– Assaram primeiro ou deram congelada mesmo?

– Assada, Ed! – ele se ofendeu. – Não somos selvagens, tá sabendo? Até que somos bem civilizados. (p. 98)

Oh… OK. Esses são as caras, perceba, que dão uma surra nele como “corretivo” ou coisa parecida.

A próxima vez que eles aparecem proeminentemente é assim:

– Exatamente, Keith, é simplesmente perigoso demais pro Ed chegar a pensar em comer essa torta com molho (…) Vai cair nesta linda camisa branca, e o infeliz ainda vai ter que lavar a desgraçada. E esta é a última coisa de que precisamos agora, concorda? (p. 261; os “bandidos” discutem por que não trouxeram ketchup junto com as tortas que ofereceram a Ed).

Tudo bem você ter comédia no livro. Há várias partes boas nesse sentido. Mas você não precisa pegar todo o seu potencial de suspense, de mistério, de que algo sério está acontecendo, e então transformar numa piada. Tirando dois momentos (de violência, aliás), quase não há a sensação de que alguma coisa importa aqui. A narrativa fica muito mais domesticada.

Todo o resto da narração se arrasta por explicações desnecessárias e comentários expositivos. É o velho “show, don’t tell” levando múltiplos tapas na cara de novo; não são só coisas que simplesmente subtraem do impacto do que está acontecendo – pare de ficar explicando que a sua vida mudou, Ed, que você mudou, e me deixe PERCEBER isso, diabo – mas também que compõem um excesso de “gordura” literária fenomenal.

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Photo by андрій мельничук

Leia de novo aquele trecho da página 258 ali em cima – vai lá, eu espero – e me diga: o cheiro da rua faz de tudo pra colocar as mãos em mim… Mas eu não deixo. O que demônios quer dizer “eu não deixo”? O que o personagem fez, exatamente? Nada. O personagem não fez nada, essa é uma frase absolutamente vazia e, como tal, tem um efeito absolutamente nulo no leitor – ou quase, porque pode causar chateação pelo fato de ser inútil (como acontece com cada vez que ele sonha e avisa que vai descrever um sonho. Eu pulei todos os trechos de sonhos. Sério, ninguém se importa com o sonho de ninguém na vida real e não é em livros não-sobrenaturais que vão se importar). É poética a frase, é bonita, deveria soar como se o cara fosse corajoso ou algo assim e eu a levaria em consideração para uma narração em terceira pessoa, mas… Não está fazendo nada de bom aqui.

Quando o monstrinho acorda…

Sim, Ed menciona três ou quatro vezes que a vida dele mudou, que ele está diferente, etc. De vez em quando isso é mostrado através dos acontecimentos que compõem a narrativa – e deveria ter parado por aí; já estava ótimo (só que, claro, não parou). Mas, vamos analisar melhor o que aconteceu de verdade nessa narrativa, especialmente com as cartas.

Primeira carta: ele foi fazer companhia a uma velhinha, fez uma adolescente acreditar um pouco mais em si mesma (meh), fez um estuprador sair de cena. Segunda: encheu a igreja de um padre com cerveja de graça, bate num garoto pro irmão mais velho defender o mais novo, compra um sorvete para uma mãe solteira. Terceira: compra luzes de natal novas para uma família mais ou menos pobre, lava roupa suja com a mãe (metaforicamente) e… Vai no cinema costumeiramente vazio de um… Cara qualquer? Quarta: Ajuda o Ritchie a começar a procurar emprego, ajuda o Marv com a filha perdida dele e dança um pouquinho com a Audrey.

Metade dessas coisas não é lá muito transformadora, pra dizer o mínimo. De novo, a mensagem é boa, mas lá pela terceira carta, quando ele fica dizendo “Ai meu Deus, lá vem a quarta carta, o que vai ser de mim, Copas lembra corações e as pessoas sofrem ataques de coração e etc”, você se pega pensando “oh, tadinho, toma cuidado que é capaz de você comprar mais um sorvetinho pra alguém”.

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Photo by dryfish

Acho que o cachorro, “Porteiro”, concorre a melhor personagem do livro, mesmo que a simpatia natural por animais de estimação seja explorada um tantinho demais.

Os riscos a que ele está submetido são extremamente exagerados, especialmente porque o autor desfaz o mistério de algumas das partes de onde ele poderia vir (como quando o cara entra no taxi dele e manda ele seguir em frente, e tal – parece um assalto, mas o autor é incapaz de não transformar mais uma ameaça em caricatura e você já relaxa em dois parágrafos). De vez em quando o Ed leva umas pauladas e a primeira é tão absurda e desnecessária que só agora você pode entender que aquilo era uma exigência da história – para que você pudesse sentir um pouco de pena do Ed, já que é algo que não vem naturalmente.

“Mas e o estuprador?”, você pergunta. É o seguinte: aquela coisinha chamada “suspensão de descrença” é um monstrinho traiçoeiro. Se o livro fosse bem narrado e construído, tudo seria aceito numa boa. Mas quanto mais ele te irrita, mais você começa a pensar: o cara presenciou um estupro, descobriu que ele é regular, e ao invés de ir à polícia, a solução lógica é matar o cara. Sim, a polícia não é gentil com vítimas de estupro, mas ele é uma testemunha ocular que pode ajudar a fazer uma prisão em flagrante. Uma operação dessas é extremamente fácil de conduzir, principalmente naquelas condições.

E a coisa só piora. Você recebe uma carta de baralho com três endereços e… Leva a sério? Imediatamente entende que é uma “missão”, e seus amigos são compreensivos em relação a isso? Você tem a casa invadida, leva uma surra e, pela terceira vez, não vai à polícia denunciar a clara intimidação que está sofrendo? Você vê uma família desestruturada e acha que o problema é só uma briguinha de irmãos – e resolve solucionar o caso sentando o cacete no irmão mais jovem? Que porra é essa, Ed? Se o garoto é um bully proto-fascista revoltado, o irmão maior dele é o menor dos problemas. Você não resolveu caralho nenhum dando bola pra birra de uma criança que fica “ai, vou matar meu irmão, buh buh”.

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Photo by hypertornado

Pessoalmente, eu me preocuparia mais com assistência social, frequência escolar e oportunidades de estágio. Se você pichou a cidade pra encher uma igreja, pode muito bem ir lá dar uma força na escola pública se ela estiver caindo aos pedaços.

Isso não faz sentido e, de novo, se o suspense fosse real e a narração menos preguiçosa e desleixada, ninguém nem pensaria nisso. Mas depois de um tempo, você começa a se perguntar que mundo é esse em que Ed vive em que as únicas instituições são uma empresa de rádio-taxi e uma igreja progressista. Por outro lado, o livro teria que ser muito bem escrito para apagar a decepção que foi esse final.

De How I Met Your Mother a Lost

Ok, vamos falar sobre uma coisa: Audrey é a única protagonista feminina. O arco narrativo dela é mais insignificante que o da mulher que ganha o sorvete e menos desenvolvido que o do irmão do padre. Pra você ter noção, caso tenha esquecido, Ed precisa ajudar Ritchie a vencer na vida pela primeira vez. Precisa ajudar Marv a reencontrar uma filha que foi tomada dele por uma família conservadora (de novo: Tribunais. Não. Existem nesse mundo.). Mas a Audrey, ah, o amor da vida dele, essa ele tem que ajudar demais… Fazendo ela aprender a encontrar o amor… Ok, ok, vamos ser justos, mesmo que isso seja um clichê de papeis de gênero ela é uma pessoa fechada e emocionalmente machucada, então… Ainda está valendo – como ele vai fazer ela se abrir para o amor?

Dançando uma música de três minutos com ela no quintal na frente da casa dela logo depois de ela ter transado com o namorado dela (que não é o Ed) e indo embora sem dizer nada e sem que nada mude.

Ele veio do nada, dançou um pouco e ao ir embora imediatamente depois deixou ela se perguntando se ele está precisando de ajuda psiquiátrica. De novo – poético, mas não faz o menor sentido.

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Photo by be creator

Ela é quase a personagem mais sem graça e bidimensional do livro, o que torna isso tanto mais triste porque deveríamos sentir toda a empolgação do mundo por ela. Ela é o alvo das atenções do personagem principal!

Então por que o final é tão decepcionante? Primeiro porque pega essa personagem que, coitada, já é tão mal feita, e a piora. Em uma página, literalmente no epílogo, ela faz algo que não condiz com absolutamente nada que já tenha feito no livro inteiro – apenas para que possa servir de prêmio para o Ed, já que seria inconcebível que um merda que queira provar que é possível se dar bem na vida não tenha uma bela mulher ao seu lado. Não que ele não “mereça” o amor dela ou que ela não possa finalmente admitir o que sente por ele. Mas é súbito. É brusco. O diálogo deles, especialmente o que ela diz, é forçado e não tem nada a ver com a personagem (novidade!). É como Ron terminar Harry Potter com a Romilda, a Hermione com Krum, nenhum livro ter dado indicação de que eles estavam se aproximando e de repente, 17 ou sei lá quantos anos mais tarde… Eles aparecem casados um com o outro. Com filhos. Ou, embora tenha a ver com os personagens porém é brusco, quebra a narrativa e decepciona, o que aconteceu com o final de How I Met Your Mother.

Sinceramente? Eu seria capaz de apostar que a editora simplesmente não gostou que Ed e ela não ficaram juntos. Zusak, sem saco pra reescrever os últimos capítulos, jogou aquelas duas páginas de bosta ali para prometer um ao outro em matrimônio implícito.

E mais ou menos isso, eu ouso suspeitar, é exatamente o que aconteceu com o final inteiro. Zusak, em 2002, basicamente previu o destino da série Lost: uma premissa convoluta que no final não seria satisfeita por nenhuma solução – e a saída é qual? O deus ex machina de que tudo aquilo é uma ficção, Ed é um personagem de um livro (ha!) e quem estava mandando as cartas para ele era o escritor. Nossa, que inteligente.

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Photo by Sunshine Lady !

Esse livro é fantástico. Tenho exatamente esta edição.

Sabe o que é inteligente? Foreshadowing. Motivos para você ao menos suspeitar do final do livro. Coisas sutis que façam você reler a obra (ou simplesmente relembrá-la) e pensar “Uau, eu não tinha percebido esse detalhe! Caramba, que genial!”. E isso é extremamente frustrante porque a premissa do livro, como dito acima, é um mistério bom. O mistério invariavelmente convida a conjecturas; você quer ler até o final basicamente para descobrir quem é o puto que está mexendo com a vida dele dessa forma. Minha teoria é a de que era a Audrey – o que seria genial, porque explicaria a razão para ela se manter distante e namorando outro cara (ela estaria fingindo que não sentia nada por ele para que esse fosse o “gran finale”), ela teria um motivo pra fazer isso (como dito no próprio livro… Ela poderia amá-lo e querer que ele fosse uma pessoa melhor) e ainda seria muito bacana porque ela teria planejado até mesmo a parte do cinema (reler esse livro seria fantástico sabendo que ela sabia de tudo).

Mas não.

Esse recurso não é nada original. Uma das mais famosas aplicações recentes dele foi em O Mundo de Sofia, fenômeno mundial lançado em 1991. A diferença é que nele essa premissa é central, e explorada em profundidade; é marcante, é sensível, é coerente com a trama toda. Aqui, nada disso. Aqui é absolutamente broxante.

Esse livro tem partes boas; tem coisas legais, elementos que funcionam. Tudo que se relaciona ao sexo é bem construído, até mesmo a arriscada conexão entre Ed e Sophie. A mensagem é positiva e você fica investido no que vai acontecer, é verdade. Mas não dá pra aceitar algo como “ah, então tanto faz; você ficou doido pra saber o que acontece e isso significa que o livro é bom”. Não, não significa, porque eu também estou doido pra saber como as eleições dos EUA vão terminar, mas se o Trump vencê-las elas ainda serão um desastre.

Se eu tivesse gostado do livro essa postagem seria outra. Minha maior reclamação seria, talvez, uma ponta solta ou um tema pouco explorado (o que é que no passado machucou tanto a Audrey? Não seria bom ver o Ed ganhar confiança também em sua performance sexual?). Faria uma análise sociológica sobre a mensagem do livro – o culto ao sucesso individual e o foco no “indivíduo” como o alvo de toda ação que visa melhorar o mundo – ou quem sabe até sobre a metafísica do sacrifício que se liga, inclusive, à ideia de liberdade de expressão como valor absoluto. Mas fiquei tão pra baixo que já não estou mais nem aí pra “mensagem”.

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Photo by Leonid Mamchenkov

Esse livro tem uma premissa fantástica e consegue envolver o leitor, mas envolve que nem uma cobra; falha miseravelmente com um estilo inapropriado (que subdesenvolve personagens), uma trama que não se leva a sério, e um final indigno que transforma um suspense fraco numa auto-ajuda barata.

Maze Runner (os filmes): quando o suspense fracassa

Recentemente vi os dois filmes da série Maze Runner lançados até agora, e vou dizer uma coisa: não são ruins. São legais. São bacanas. São bem dirigidos e são empolgantes.

Se eu tive os mesmos problemas com eles que muitas pessoas tiveram? Claro. WCKD quer TODOS os garotos que ocuparam o labirinto do primeiro filme porque eles são importantes para se conseguir a “cura”. Só que… Nem todos são imunes (o que fica evidente a partir da morte de um dos garotos no deserto). Mas tudo bem, digamos que todos sejam importantes, e eles precisem passar por testes para que se descubra a cura. Que porra de teste é esse de eles ficarem presos num labirinto por 3 anos? Não faz o menor sentido. Nem mesmo depois de ler um pouco sobre a backstory.

Mas tudo bem. Deixemos isso de lado e passemos à real questão que eu acho interessante analisar a partir desse filme: algo que acontece em várias histórias e é um perigo constante para qualquer narrativa de mistério, ou que envolve algum segredo.

O jogo do pronome (do Cinema Sins)

“Pecado” 76

Aparentemente já existe uma coisa chamada “o jogo do pronome”, mas eu me refiro especificamente ao tipo de coisa popularizada pelo canal Cinema Sins. Ao invés de dizer “Foi a Maria quem fez isso”, ou “Foi o João quem fez aquilo”, personagens vão o tempo todo usar pronomes – “foi ela”, “foi ele”, “foram eles”, etc. O efeito é um dentre dois: ou gera-se um mistério (quem é “ele”?) ou gera-se um impacto no diálogo (“foi ele”, “quem?”, “João”).

Só que o problema, é claro, é que precisamente nenhum efeito é atingido (ou o efeito é diminuído) quando isso é 1) artificial, e 2) usado um milhão de vezes. Isso porque… Usar pronomes não é muito comum. Não é assim que as pessoas falam – programando tudo que dizem para ser ambíguo ou impactante. Usamos a linguagem no dia a dia principalmente pra transmitir ideias com clareza! Quando queremos dizer que foi Maria ou João quem fez alguma coisa, não dizemos “foi ela” ou “foi ele” e esperamos que a outra pessoa entenda ou pergunte quem foi (para então confirmar dramaticamente). Simplesmente falamos!

E se isso pode até ser perdoado uma ou outra vez – podemos estar tão embebidos em contexto, e com pressa pra falar outra coisa, que largamos um pronome confiando que o interlocutor vai entender – se o artifício é usado o tempo todo o resultado é um certo cansaço cognitivo da audiência. Suspense se faz com história, e sim, até com diálogo – mas não com a ocultação deliberada de coisas que deveriam ser claras.

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Photo by Picturepest

Isso definitivamente acontece menos em livros, formato que dificilmente providencia justificação para o jogo do pronome. Filmes se prestam mais para isso – o que não justifica nem retifica a “técnica”. Maze Runner tem alguns momentos assim, mas o que os filmes da série mais fazem é uma extensão disso. O que se esconde não é tanto o nome dos personagens, mas basicamente toda e qualquer explicação.

Nem para bom entendedor

Veja: a “exposition” é um grande problema para a ficção científica e a fantasia. Se você vai construir um mundo novo, com toda uma lógica nova, você vai precisar explicar tudo para o leitor. O problema é que explicação é uma coisa chata. Você tem que disfarçá-la com inteligência através de contextos em que façam sentido.

O que Maze Runner faz funciona até certo ponto, porque realmente os começos dos dois filmes são verdadeiras armadilhas: você tem que explicar tudo que acontece ali, “dar nome aos bois” e tudo o mais, mas não pode parecer chato ou forçado. Eles conseguem fazer isso, mas em vários momentos o que fica forçado é a não-explicação. Eles dão um quarto de palavra em vez de meia, e nem pra bom entendedor isso basta.

Não que se deva exigir um padrão “Star Wars” de exposition (nos episódios I, II e III isso é particularmente ruim), mas deve-se seguir um fluxo natural de perguntas, respostas, e satisfação das respostas. Sim, é verdade que nem tudo que pensamos em dizer acabamos dizendo. É preciso refletir isso também nos diálogos. Mas é verdade que quando Thomas pergunta “o que aconteceu com ele?” e você responde “chamamos de transformação. Acontece quando você é picado”, você não fica com uma cara de paspalho; você reage a uma resposta que essencialmente não te diz nada (“transformação para o quê? Quem ou o quê picou ele?”). No começo do filme o dinamismo dos diálogos vem ao preço da boa vontade para com o filme: é pedir muito que alguém, quando explique o labirinto, diga que é um labirinto, que você não deve ir lá porque pode ficar preso, e que existem criaturas ruins lá que vão matar você? É muito difícil, isso? Não, na verdade é o que se espera de uma situação como essa. É o mínimo!

Basicamente, esse vídeo… Mas, pra resumir, pecado número 8.

É incrível a quantidade de vezes em que as coisas ficam “subditas” em Maze Runner. Você não precisa desse artifício para fazer as pessoas se sentirem confusas – como uma espécie de meta-estratégia em que você quer que o público sinta o que os personagens sentem. Se a história for intrigante e complexa o bastante, eles já se sentirão “confusos” num bom sentido. A confusão causada por diálogos que não parecem naturais faz o público apontar um culpado: sim, é justamente quem imaginou essa droga de diálogo.

Pode ser que o seu objetivo seja outro, como mencionado acima: manter o ritmo da narrativa rápido. Não há tempo para conversas longas – é preciso se mexer. Tudo bem, mas então aproveite as poucas conversas que tem para que elas sejam significativas – até porque os personagens provavelmente sabem que serão poucas, e portanto precisam ser significativas.

O melhor exemplo disso está no segundo filme. Teresa diz que recuperou sua memória – que se lembra de tudo – e que WCKD não é tão ruim quanto Thomas pensa. Como – como – essa conversa termina em dois segundos? Como Thomas não faz de sua prioridade número 1 entender o que diabos ela está dizendo ou no mínimo saber mais sobre as coisas que ela lembrou? Realmente não faz sentido – mas sabemos por que acontece; porque se a desavença tivesse sido resolvida ali, ela teria sido deixada pra trás e não poderia trai-los mais tarde.

Em suma, suspense se faz de várias formas – mas esse tipo de jogo em que a informação é escondida de forma artificial não me parece uma boa ideia.

Todos os contos de fadas devem ser machistas?

Perdida é um conto de fadas contemporâneo interessante. É estruturalmente super sólido e bem amarrado. Mesmo com uma ou outra coisa pouco polida (alguém teve uma impressão nítida sobre a personalidade da irmã de Ian? Que personagem mais bidimensional, se-nhor! A Teodora foi mil vezes mais interessante.), todos os “beats” são martelados quase à perfeição, e o ritmo é ótimo, medindo bem coisas que podem ser problemáticas em outras histórias (por exemplo: quanto tempo alguém leva pra parar de pensar que está maluco e aceitar logo uma situação impossível? Demore demais e a história fica chata; demore de menos e fica pouco realista (cof cof Crepúsculo cof…) ou surreal, como Alice no País das Maravilhas). Os clichês são reciclados tão bem que funcionam redondamente. A heroína é órfã? Claro. Tem um personagem Dumbledore-Gandalf-Mestre-dos-magos guiando o protagonista? Certamente. O interesse romântico é tão perfeito em suas imperfeições que até seu peido deve cheirar a lavanda? Óbvio. (Não. Mas quando ele fala “porra” é super fofinho).

Analisado tematicamente, o livro segue sendo sustentável… Uma crítica à tecnologia se interlaça sem problemas com o despertar do amor romântico em meio a um mundo cínico. Só que a narrativa fica sim um pouco retalhada no final.

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Photo by Savannah River Site

Veja, esse é um conto de fadas feito após o feminismo, mesmo que informado por uma vertente mais liberal e senso comum do movimento: a heroína se vira sozinha e é independente. Quer trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro no século XIX. Mais do que isso, não só a protagonista encara o sexo de forma bastante liberal como efetivamente quebra convenções dos contos de fadas de outrora. Isso é maravilhoso, sim, mas o céu vai começando a nublar depois de um certo tempo: Ian se torna “a vida” da protagonista. Nada mais – nada mais! – importa. Bem, não que ela fosse a rainha da Inglaterra no tempo presente – seu trabalho não lhe despertava tanto interesse assim a ponto de ser um grande sacrifício ela ter ficado no passado… Mesmo assim, qual é a mensagem que mais retumba depois do ponto final? O amor é mais importante que tudo? OK. Mas que tipo de amor? Você deve mudar completamente sua vida para poder ficar com quem você ama? Indo direto ao ponto: é uma boa ideia para uma mulher no século XXI deixar de investir em sua vida, sua carreira, seus amigos, sua cultura até, para ficar ao lado de um homem? Dá pra conservar o poder da primeira pergunta sem ser contaminado pelo germe da resposta “sim” à última?

E vamos falar do “amor”, outro ponto fraco do final do livro: o desenvolvimento da relação entre Ian e Sofia é adorável e num ritmo extremamente acertado. A gradação é realmente impecável! Mas no fim, as consequências parecem grandes demais pra combinar com o que foi apresentado: Sofia basicamente deixa pra trás sua vida (que, novamente, pelo menos a autora mostrou que não era nada demais… Se ela tivesse que deixar pra trás um filho, uma mãe doente ou coisa parecida AÍ O BICHO IA PEGAR) por causa de duas semanas com um cara gostoso, educado e cheio da grana – mas principalmente gostoso, isso fica bem claro. A mensagem responsável e sem tabus que o livro passa sobre o sexo é louvável, mas por outro lado mostra um ponto de inflexão muito interessante entre “Perdida” e “Orgulho e Preconceito”: sem qualquer tipo de contato físico, o que transparece da relação entre Elizabeth e Darcy é principalmente aprendizado e admiração. O que transparece da relação entre Ian e Sofia é… Tesão (até a última página do livro, diga-se de passagem). Tem a hora em que ele deve acreditar nela e sua verdade sobre a viagem no tempo, mas isso foi um plot point necessário e, bem, a mão dele foi forçada devido às evidências. Se em ambos os livros as mulheres só se realizam na vida quando casam, só um livro tem circunstâncias históricas que justificam um “pano de fundo” como esse. Se as heroínas de Austen e Rissi são semelhantes, a da primeira parece ascender a essa posição, enquanto a da segunda parece regredir.

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Photo by David Boyle in DC

Agora, vamos lá: Perdida é (merecidamente) um fenômeno pop, e Orgulho e Preconeito é uma obra de Arte com A maiúsculo à qual Perdida presta muita homenagem. E eu não acho que a culpa da relação de Ian e Sofia parecer superficial (como tudo que é grudado pelo “destino”, em vez de por vontade e luta, invariavelmente é) seja do sexo em si; eu não ia me importar muito se rolasse um “perdemos a linha, sr. Darcy” no final de Orgulho e Preconceito. Mas é curioso pensar nisso porque, afinal, juntando os pontos, você acaba com a impressão de que “O amor é mais importante que tudo” pode ser trocado, como lema de Perdida, por “Os hormônios são mais importantes que tudo”. O que acontece com a Sofia que escolheu ficar no passado pra sempre e, quando percebe que Ian na verdade não é tão interessante assim depois da 500a transa seguida, lembra-se que não tem facebook pra aliviar o tédio do século XIX? Bem, que bom que não temos que nos perguntar, já que existem continuações e talvez elas resolvam algumas dessas coisas que estou escrevendo sobre esse primeiro livro (que, aliás, é autossuficiente e esse é outro ponto positivo).

Há outros problemas. A escritora é hábil em não tornar a heroína uma “damsel in distress” por qualquer razão tola – mas vamos lá: Sofia nunca foi descrita como uma guerreira, portanto… Faz sentido que Santiago a domine fisicamente. É compreensível que suas condições físicas e psicológicas depois de uma noite de chuva a pusessem de cama por dois dias. É logicamente aceitável que, tendo aparecido no século XIX de um minuto pra outro, ela tenha que depender da ajuda de seu benfeitor para conseguir fazer basicamente qualquer coisa. Mas com quantos “é compreensível” ou “é aceitável” se faz uma suspensão de descrença? Uma hora o leitor tem que perceber que ela basicamente só exerce sua agência quando Ian permite, e raramente é algo que tem importância na história.

O mais engraçado é perceber como a autora tem que dar um “spin” apropriado para algo que seria simplesmente abusivo e, sinceramente, bem amedrontador (me peguei pensando uma ou duas vezes ‘ei carai, agora que o machão desce a mão nela…’): o homenzarrão pega Sofia pelo braço e a força a ouvir ou falar alguma coisa… Mas tá tudo bem, porque ela gosta da pegada dele e não quer realmente sair dali. Bom, que ótimo pra ela, né, porque se quisesse tava frita…

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Photo by x1klima

Em suma, o que eu acho é que o livro é realmente muito, muito bom em ser o conto de fadas que ele é. Ele funciona, é super bem escrito e faz duas coisas positivas: apresenta uma mensagem interessante do papel que o sexo tem numa relação que se baseia (assim deveríamos acreditar) no amor romântico, que tantas vezes no storytelling pop é um “puppy love” chato e casto que começa, eu desconfio, a não funcionar mais com adolescentes (O filme “divergente” é diferente, mas foi feito pros americanos puritanescos anyway). Outra coisa que faz bem é provocar uma discussão sobre agência, amor e desigualdade de gênero. Amor é entrega; é vulnerabilidade, diálogo, confiança e principalmente transigência, mas… Haveria algum modo de escrever essa história de um jeito que A) Sofia não se tornasse psicologicamente dependente do futuro marido; e ao mesmo tempo B) O final fosse igualmente feliz e romântico?

Não sei. Acho que sim, mas não sei. Não acho que “Perdida” seja um livro machista; longe disso. Mas acho que ele joga um jogo cujas regras foram escritas quando o mundo era muito diferente. Assim como há certos limites para uma mulher independente no século XIX, há certos limites, ao que tudo indica, para um conto de fadas realmente popular nos anos 10.

Épico

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Photo by uwdigitalcollections

O que faz uma história ser épica é a grandiosidade de cada momento — é claro que você precisa de uma ambientação, de todo uma narrativa que envolva o leitor. Mas dentro do envolvimento, a história não pode se deixar levar só pelo que acontece, numa série de eventos banais que leva a alguma conclusão… Não se trata de altos e baixos, não é o arranjo bem feito da experiência. É preciso que cada coisa que aconteça seja (não literal e tecnicamente, mas em sua essência) algo grandioso, espetacular, importante, histórico. Mas, e aí que vem, mais do que isso, é preciso que a pessoa imagine coisas que não aconteceram ainda (e talvez nem aconteçam), e fique pensando em como vai ser, como se fosse o maior encontro do universo, a batalha das batalhas, o verdadeiro fim do mundo! Como Harry Potter e Voldemort (e antes deles Voldemort e Dumbledore, algo ainda mais épico, acho), como Gandalf e Sauron (e a batalha do Abismo de Helm e a de Minas Tirith), como Edmond Dantès e Fernand Mondego.

Como fazer com que os leitores se importem com os personagens de uma obra ficcional

Bom, como vocês sabem, eu sou meio que bastante contrário a fórmulas simplistas. Em se tratando de arte e literatura, a complexidade que almejo tem a ver com um “gut feeling”, uma sensação de que esse troço está certo. Você lê, relê, pensa, repensa, lê, relê – e a coisa flui, tudo se encaixa, a sensação é arrebatadora na medida planejada (ou, surpresa, melhor que a planejada) e aí pronto: você não precisa do blá blá blá técnico chato, e evita pensar demais. Você só faz. Nada de jargão, nada dos caminhos já percorridos por outros. Se parece certo, está certo. Certo?

Não. Embora eu continue achando que essa intuição, esse “GPS artístico” é fundamental e ele tem que ter liberdade para voar enquanto você escreve e analisa o que escreveu, existem três problemas fundamentais com um approach absolutamente intuitivo:

  1. Esse seu GPS artístico tem que ser bom, e estar “calibrado”. A maioria de nós vai ter problemas em admitir que nossa intuição pode nos enganar; que ela pode não ser tão genial quanto às vezes pensamos, e pode nos levar a escrever merda. Embora seja poético pensar que o trabalho do escritor é um labor solitário, a verdade é que pontos de vista diferentes sobre a obra ainda em produção nunca pioram a arte final; tornam-na mais rica, de um jeito ou de outro, sempre. Isso sem nem falar no papel do editor… O que estou dizendo é: você precisa ler muito (e ler coisas com qualidade literária) e escrever muito para desenvolver uma sensibilidade artística boa. Isso tem a ver com confiança, orgulho, humildade, talento, habitus, capital cultural. E é uma coisa que cada autor tem que resolver consigo mesmo. (Observação: há também, obviamente, grande valor em conhecer as histórias que existem no mundo para não, ham, fazer nenhum plágio involuntário.)
  2. Talvez você esteja se atrapalhando. Veja, mesmo que você tenha um senso artístico incrivelmente arrojado; um senso super perspicaz do quê e de como escrever para alcançar aquele efeito no leitor, pode ser que você esteja escrevendo sobre algo, ou sobre algo de um jeito específico, por causa de algum momento na sua vida, de algum interesse passageiro, de algum demônio da mente que você precisa exorcizar. Isso tudo é muito bacana, e na verdade essas são boas motivações para escrever. Só que, talvez, influenciado por essas coisas, você ache super legal falar dessa ideia, e não percebe que… Na verdade ela não é muito boa. É preciso separar o que o público vai achar de uma ideia do que você, sabendo de todo o contexto de produção da obra, vai achar. (Observação: muitas vezes, contudo, você pode deixar o leitor saber do contexto de produção. Isso muda tudo; desde um “baseado em fatos reais” até “escrevi isso aqui através do whatsapp“).
  3. E se você não gostar do lugar para onde a sua intuição o levou? O que vai fazer? (Observação: temos ideias ruins o tempo todo. É parte do “brainstorming”.)

Para mim, o papel de teorias literárias, de estudos sobre a criação literária, é o de ferramentas que vão aparecer para consertar esses problemas. Se eles são aplicados desde o início, viram fórmulas; se as fórmulas ficam muito aparentes, são clichês. Mas, fórmulas ou clichês, histórias que têm como inspiração “modelos” de escrita são problemáticos não só por causa do que elas são, mas por causa do que elas poderiam ter sido. Forçadas desde o início a obedecer uma série de regras e ideias preconcebidas sobre o que um “bom enredo” deve ter, que tipo de genialidades elas poderiam ter sido, se esse lado diferente, ousado e (por que não?) “patinho feio” delas não tivesse sido silenciado na sua imaginação?

Primeiro a ideia, a inspiração, o planejamento completamente baseado no seu coração; depois, se você não estiver satisfeito (ou até mesmo se estiver), é hora de começar a pôr a ideia à prova; de questioná-la, analisá-la, dilapidá-la. É nessas horas que a teoria serve bem, e, novamente, o faz sempre sob o comando da sensibilidade artística. Não adianta nada mudar a sua ideia para encaixá-la numa “jornada do herói” se no final você não achar que ela ficou mais tão interessante – a saída deve ser outra, e pode estar em outras ideias teóricas sobre criação literária – ou, ainda, no meio do caminho, precisando de algum elemento até então desconhecido para surgir.

E os personagens?

Dito isso, seus personagens têm que ser esses monstrinhos vivos na sua cabeça. Demora até que se inflem e não tem problema se começam finos como papel. Eles precisam maturar. Pode demorar.

De todo modo, mesmo depois que eles parecem bem vivos e formados, ainda pode haver problemas, e você não consegue verbalizar exatamente quais são eles. Bem, eu tive esses problemas várias vezes, tenho ainda hoje, e uma grande pesquisa na internet me dotou de algumas ideias que resumo aqui para futura referência e para ajudar também quem esteja de repente procurando por isso e precise de um recurso assim. Vamos lá: como escrever bem um personagem – mas o que define um bom personagem? – como fazer com que o público se interesse, se importe com o seu personagem.

Motivação

Os personagens precisam precisar de alguma coisa. Ou querer alguma coisa, mas a linha que divide esses dois verbos é tênue.

Mais do que isso, precisamos entender o que está em jogo – ou seja, não adianta nada percebermos que um personagem quer alguma coisa se não conseguirmos

  • Entender (emocional e/ou racionalmente) o porquê daquela vontade / necessidade;
  • Entender o que vai acontecer se o personagem não conseguir o que quer / precisa;
  • Torcer para que ele consiga o que quer / precisa (o que tem tudo a ver com os outros dois pontos).

E, é claro, isso tudo não significa nada se o objeto de desejo do personagem for trivial ou fácil de conseguir. É preciso que seja difícil, e que ele precise se superar para conseguir o que quer.

Você percebeu que parei de falar de uma característica do personagem para falar sobre o arco do personagem? Seu arco é seu desenvolvimento durante a história: o quanto ele muda do começo ao fim de uma obra, a forma como ele passa de seu estado inicial A para algum outro estado, B. Estou chamando atenção para isso porque mencionei o arco de “superação” como se fosse o único que existisse, mas na verdade ele é a fundação básica de uma história com final feliz; gostamos dos personagens mais por causa do esforço do que por causa do sucesso, e numa história trágica o arco os leva à decepção, à falha, à lama de seus defeitos, etc. Mas a característica da superação, embora possa não ser o resultado final das ações dos personagens, continua sendo componente de sua motivação para agir: ninguém tem por objetivo ser cada vez pior. E se tiver, ela basicamente quer se superar no quão ruim é.

Superação

Uma das possíveis características de um personagem que se supera é ele ser um underdog – ou seja, o menos favorecido. Nós gostamos de torcer para o Davi contra o Golias. Por isso, aquela questão da dificuldade que acabamos de falar continua valendo: é preciso que sintamos o tamanho de sua desvantagem. E se o personagem em si é muito bom, é preciso dar-lhe uma desvantagem. Se a injustiça dessa “doação” nos faz odiar o vilão ainda mais, melhor ainda. Quem lembra da “batalha final” de Gladiador?

Mas há uma outra questão também: o personagem – underdog ou competidor de mesmo nível – para o qual torcemos vai brilhar à medida que se contrastar com o seu adversário. Quanto melhor for o inimigo (e melhor também enquanto personagem), mais o personagem vai precisar se esforçar para vencê-lo. O Coringa torna o personagem Batman mais interessante, e como o Coringa é extremamente inteligente e efetivo, as vitórias do Batman são muito mais valorizadas por nós. Isso pode parecer tolo, mas muitas vezes o que não funciona numa história e nem percebemos, é que o herói é super bacana, tem um objetivo bem legal e ele tem uma trajetória interessante até conquistá-lo… Mas o inimigo dele não é interessante, ou particularmente poderoso. Talvez o vilão seja só “as circunstâncias” (o que já foi dito, por exemplo, sobre os filmes da série Missão Impossível), e isso não é necessariamente ruim: muitas vezes temos vilões acessórios, secundários, que apenas marcam o ritmo numa história em que o verdadeiro enredo é o personagem principal lidando com uma situação péssima, que o desafia, que exige que ele dê o melhor de si. O antagonismo (ou mesmo agonismo) é de fato a chave.

A dimensão moral e um certo compromisso ético

Uma coisa interessante e que é muito citada em dicas para escrever bons personagens é uma certa dimensão moral: mesmo se o personagem for um babaca, dê-lhe um limite que ele não vá atravessar (o que lhe confere não apenas honra, convertida em respeito por parte do público, como também a impressão de que ele tem um coração, afinal). É importante também que ele tenha opiniões – podem não ser liberais e progressistas, mas que ele as tenha. Mesmo que nós sejamos apáticos e indiferentes em nossas vidas sobre uma série de assuntos, ou que encontremos pessoas assim, você tem que saber que a apatia completa pode cansar grande parte do público; irritá-lo, tornar a narrativa toda mais desinteressante. Isso porque a apatia se relaciona também ao problema da motivação – se alguém não se importa com muita coisa, o que ele na verdade quer? E se seus desejos são apenas egoístas ou fisiológicos, por que eu me importaria com isso? É possível que a superação sobre a qual você queira escrever seja alguém apático aprendendo a se importar com as coisas. Isso é interessante, e há um post muito bacana no Fuck Yeah Character Development falando sobre esse arco específico [inglês]. É importante dizer: não demore muito para tornar o personagem interessante… Ou demore, mas saiba os perigos que isso engendra em termos práticos (leitores abandonando a obra e dando uma estrela de nota no Skoob ou algo assim).

O problema que tenho com a dica da dimensão moral é o seguinte: sim, dê opiniões para os seus personagens. Faça o anti-herói assumidamente fora da lei se pôr em perigo para salvar algumas crianças de algum perigo. Faça um personagem bater o pé no chão em defesa de um princípio e não ceder sua posição. Isso tudo é ótimo. Mas tem que ser orgânico.  Tem que vir a partir da caracterização de um personagem como um todo; todo o resto do que ele é e toda sua história tem que contribuir para que ele tenha essas opiniões e atitudes. Mais do que isso, não adicione esses elementos aleatórios de natureza moral para que o público “se identifique com eles”. O público não vai se identificar com nada que parecer forçado anyway, mas a questão é que se preocupar com que o público se identifique com o personagem é um negócio supervalorizado.

Digo isso porque escrever um personagem com a deliberada intenção de que o público mais amplo se identifique com eles acaba em… Bella e Edward. Não são pessoas ou personagens, são cascas: eles têm apenas características muito básicas, apenas o suficiente para que uma porção estatisticamente significativa do público-alvo possa se pôr no lugar deles – e de maneira convincente, já que não há muitos traços de personalidade neles que atrapalhem esse processo de cosplay mental. Bella é a adolescente desajeitada e sem atrativos pela qual um homem perfeito se apaixona, e nada mais. Isso já foi analisado ad nauseum (e de forma muito melhor) por aí na internet, então não insistirei no exemplo.

Mas a identificação é importante. O meu argumento é que o livro, na forma como é [bem] escrito, garante essa identificação não por causa do que há de semelhante e de não-diferente, mas apesar do que há de diferente. De novo: a boa literatura (pombas, a boa arte) nos faz conhecer personagens diferentes de nós com os quais, por causa da literatura, conseguimos nos identificar de alguma forma. E essa é parte da magia e do poder da arte, afinal: expandir nossas mentes. Ao invés de nos prender ao que já conhecemos e ao que já somos, conecta-nos a essa alteridade, a essas formas outras de existência, de pensamento, de ser-no-mundo. A preocupação, a paranoia de fazer com que os leitores se identifiquem, se identifiquem, se identifiquem nos leva aos personagens-casca. O foco no “escrever bem, que a identificação vem” (escrever bem o estilo, a história, e também os personagens), nos dá identificação sem precisar mudar nada nos personagens com esse objetivo em mente.

Em suma, o primeiro método de identificação (personagem-casca) é eficaz, mas eu acho que usá-lo é meio… Triste. Entendo isso como um compromisso ético: se você realmente acha que “mais identificação” do leitor é igual a um personagem melhor… Vá em frente. Faça ele gastar tempo e energia defendendo alguma posição política ou fazendo um ato de incrível moralidade, mesmo que isso pareça meio forçado.

Mas se essas atitudes, contudo, forem bem desenvolvidas, de forma holística, aí temos algo mais legal de se ler.

Desvelando complexidades

Dar motivação, superação e um posicionamento contextual para o seu personagem são as dicas gerais em termos de técnica e teoria literária para que entendamos o que constitui um personagem forte.

Mas isso, obviamente, não é tudo.

O leitor entende a motivação do personagem? Essa é uma motivação boa? O leitor sabe nesse momento que se o personagem não vencer, as consequências serão essas? O personagem está enfrentando (e superando) dificuldades para conseguir o que quer? Está fazendo isso a partir de uma boa razão? Essas e outras perguntas norteadoras podem ser extremamente úteis para refinarmos nosso texto. Mas a criatividade, a sensibilidade de ler e dizer “isto está legal” ou “isto é uma bosta”, são essenciais para escrever personagens bacanas e histórias centradas em seus arcos narrativos.

Como um exemplo final do que quero dizer quando digo que não bastam as fórmulas e as preocupações técnicas, deixo uma tradução rápida de alguns parágrafos do texto “What if your characters don’t want anything?“. Ele mostra só algumas das ramificações de todo esse papo sobre motivação e sobre o que torna um personagem interessante e forte:

Vontades não têm que ser simples ou fáceis de identificar.

Muitos de nós têm desejos complicados e emaranhados ao invés de impulsos simples. Na verdade, quanto mais reais seus personagens forem, menos monomaníacas suas vontades provavelmente serão na maior parte do tempo. Sentimentos múltiplos, desejos conflitantes, e às vezes motivações neuróticas são todas partes da experiência de ser humano.

Seu personagem principal pode desejar uma abstração, como “redenção”. Ou “vingança”. Ou “a aprovação do meu pai”. Pode ser algo impossível, como a aprovação de um pai que na verdade já faleceu. Ou talvez sua personagem queira algo que ela não consegue admitir – até para ela mesma – que quer. Às vezes um desejo é como uma coceira num lugar que o personagem não consegue coçar, ou uma dor irritante com a qual eles não conseguem lidar.

Além disso, as pessoas nem sempre sabem o que querem – até não poderem ter o que querem. E quanto mais difícil for de obter o que não se tem, será mais provável que as pessoas se deem conta de que precisam disso.

E mais, as vontades das pessoas podem evoluir ao longo de uma história. Ou os desejos dos seus personagens podem mudar, ou eles podem se desenvolver e ficar mais claros, ou mais confusos.

E, finalmente, ver as pessoas não conseguirem o que querem é em geral mais interessante. Mesmo no final de uma história. As pessoas que conseguem o que querem são uns babacas, e não conseguimos nos identificar com eles porque na vida raramente conseguimos o que queremos. Então se você tiver que fazer uma escolha entre deixar seu personagem alcançar seu mais querido desejo e arrancar esse desejo dele – é sempre melhor deixar o personagem querendo mais.

Ser cínico com os “efeitos” da escrita ajuda ou atrapalha o escritor?

Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.

E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.

Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?

A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.

Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.

Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:

“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”

Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:

“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “

Vai tentar a poética:

“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”

Vai tentar a perspectiva:

“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”

É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.

Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.

Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.

Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?

Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.