Há várias formas de organizar diálogos / conversas em textos. O mais comum deles, por ser padrão editorial no Brasil, é o diálogo com travessão.
— E aí, como vai? — disse Pedro.
— Vou bem, e você? — disse Marta.
— Muito bem.
— Eu também estou bem! — intrometeu-se Carlos.
Uma coisa que eu considero particularmente importante nesse tipo de conversa é a separação entre o que realmente foi dito e o que se trata de “explicação” do narrador, ou de outras coisas que o narrador possa dizer. Assim, ler O Triste Fim de Policarpo Quaresma é um tantinho irritante, pois muitas vezes as conversas são escritas dessa forma:
— Estou aqui por alguns dias apenas, disse Marta.
— Pois deveria ficar mais, Pedro suspirou.
Isso pode provocar uma confusão momentânea – algo que sempre subtrai da experiência de leitura (não se trata de uma confusão narrativa, que pode tornar a história intrigante, mas sim do próprio fluxo do texto — aí é ruim).
Outro tipo de diálogo é um mais “anglo-saxão” – usando justamente as aspas como modelo.
“E aí, como vai?”, disse Pedro.
“Vou bem, e você?”, disse Marta.
“Muito bem”.
“Eu também estou bem!”, intrometeu-se Carlos.
Isso faz alguma diferença? Tudo faz diferença. Em se tratando de escrever, não só as palavras são o nosso material, mas também o meio — a tipografia, o espaçamento, tudo faz diferença porque o fluxo de leitura é importante pra experiência geral. A questão é saber qual diferença faz, e aí entramos em um território de ambiguidade.
Pra mim, o fato de que as aspas marcam menos graficamente o diálogo faz com que ele esteja mais integrado à narração. Os travessões não tornam o texto uma peça de teatro ou um roteiro de cinema – com o nome de quem fala aparecendo em letras maiúsculas antes mesmo do que é dito, ou com cada trecho da conversa destacada, flutuando acima do resto – mas ainda o organizam de forma a lhe dar alguma especificidade, alguma proeminência no encaminhar do que acontece.
Um aspecto interessante das conversas organizadas por travessões é algo que um editor uma vez me sugeriu: partes descritivas da narração devem estar separadas das conversas. Por exemplo, isto aqui estaria, em tese, errado:
— Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto. Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Isto é o que deveria ser escrito:
– Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto.
Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Além disso, o travessão também exige que você separe as conversas a partir de quem fala. O exemplo a seguir quebraria convenções de forma que, para a grande maioria dos leitores, seria extremamente confuso e frustrante:
– Não, nós vamos sim – insistiu Alberto. – Mas como é que vai ficar seu pai, filho? – questionou Maria.
As duas falas deveriam vir em linhas separadas. É justamente por essa sequência alternada que os travessões criam – Alberto Maria Alberto Maria Alberto Maria – que é imprescindível marcar o falante após uma pausa imposta pelo narrador se o falante ainda é o mesmo. No exemplo a seguir:
– Ele não precisa ficar sabendo…
Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto.
– Vai ser só por um dia.
Considero muito importante adicionar um “— disse Alberto” à última linha, pois a dinâmica dos travessões faz crer que o próximo é uma fala de outra pessoa. Até porque, sendo da mesma, o exemplo anterior poderia ser organizado da seguinte forma:
– Ele não precisa ficar sabendo… – Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto. – Vai ser só por um dia.
A diferença, é claro, é que o primeiro formato faz crer (mesmo que de uma maneira bastante sutil) um pouco mais de tempo entre as duas falas de Alberto.
A organização por aspas permite que o diálogo se “integre” mais à narração. Isso é ótimo quando se trata de primeira pessoa, mas não só nesse caso. A integração favorece aspectos poéticos da prosa, e mesmo quando isso não é prioridade a história fica mais “compacta”, e o que está acontecendo ganha mais destaque do que está sendo dito.
Peguei meu chapéu e fui me encaminhando pra porta. “Você pode ligar, pelo menos?”, ela perguntou, e eu não sabia mais como aguentar aquilo. Raspei o restinho de paciência que tinha ficado ainda no fundo de mim mesmo e o mordi com força para dizer que sim. “Se eu tiver crédito”, adicionei, já me virando. “Eu ponho pra você…”, sugeriu ela, esperando que eu fosse me demorar mais. Foi difícil acelerar o passo com a mão fechada na mala de rodinhas, mas era o que eu tinha que fazer.
Nada impede que as aspas sejam usadas de forma muito semelhante aos travessões. Todo esse parágrafo, por exemplo, poderia ser separado em vários, com aspas iniciando cada um. Mas o que foi feito aqui não poderia ser feito em um só parágrafo apenas com travessões, por se tratar de duas pessoas falando. É preciso notar que as mesmas distinções valem para conversas com mais de uma pessoa, e vale ressaltar o que parece óbvio: a vantagem de poder comprimir conversas e costurá-las à narração é um ganho, no mínimo, de espaço / número de páginas.
É possível misturar as duas organizações? Com certeza, mas é preciso cuidado. Ficaria estranho e confuso usá-las alternadamente e para o mesmo propósito — por isso, na maioria das vezes em que os dois estilos são empregados, trata-se de uma divisão de tarefas: os travessões ficam com o que é dito, e as aspas com o que se pensa.
– O ônibus já chegou? – Ele perguntou.
– Não. – “Tá vendo ele, imbecil?”
Outra forma de usar os dois estilos ao mesmo tempo é usar um como primeira fala, e o outro como réplica (e isso ao longo das falas e réplicas). Isso tem dois efeitos extremamente interessantes: em primeiro lugar, novamente, comprime o texto (deixa a leitura mais rápida, o que influencia a percepção de tempo e dinamismo do leitor, e faz o escritor ganhar espaço), mas também estabelece um falante como ativo, e o outro como mais passivo. Considere:
— Eu não quero mais voltar — “Tem certeza?”, ele perguntou. — Eu não vou mais voltar, Gregório — respondi, virando o rosto pra janela. Eu não queria que ele me visse chorando. — Eu cansei, já. Não dá mais. Me recuso — “E se eles acharem a gente?” — Eu já disse que posso proteger nós dois.
Ouvi um movimento do meu lado, mas não adivinhei a postura dele. — Você duvida? — perguntei de soslaio. Ouvi um tímido “não” e não quis insistir; não agora.
Por outro lado, se o objetivo é interconectar a narração à conversa não há nada melhor (e mais experimental, e mais único, e mais maluco, e mais divisivo), do que o “diálogo de Saramago”. Se você nunca leu Saramago e não sabe do que estou falando, trata-se de uma conversa, mesmo entre múltiplos personagens, sem nenhuma demarcação entre fala e narração. Tudo, da cadência do narrador às pausas dos personagens, é separado por vírgula, no máximo um ponto e vírgula. Esse é um diálogo “ame-o ou deixe-o” que você pode tentar usar, e os efeitos, considero, são um pouco imprevisíveis. É confusão que se quer passar? Ou uma ideia de complementaridade tão grande entre o casal que as falas dos apaixonados já são indissociáveis? Ou ainda é emoção, rapidez, o quão afoito alguém está? Recentemente li este conto de Natália Nami (Procure por “Briga de casal” na página), que foi selecionado pelo prêmio Machado de Assis 2014 do SESC/DF. Ele mistura vários desses elementos (aspas, a vírgula de Saramago e a narração em primeira pessoa) e o resultado final é muito, muito bom.
Bem, estas são as formas mais conhecidas de organizar conversas na literatura. Elas têm diferentes efeitos, propósitos e tradições. E vocês, escritores e leitores – qual é o seu estilo preferido?
Como esse livro pode ter conseguido tantos prêmios literários?
Bem, talvez porque a mensagem que o livro passa é boa. As mensagens, porque há várias contidas nisto que é essencialmente uma fábula. Aceite os desafios da vida, seja feliz com as pequenas coisas, faça o bem sem ver a quem – mas, principalmente, “se você é um merda, pode superar essa condição e se tornar alguém”. Essa é uma parte bacana do livro, mas é uma parte. A mensagem não é responsável pelo valor literário de uma obra; como amante da literatura, julgo um livro pela forma como as letrassão usadaspara passar a mensagem! Ela, a vibe positiva, não pode ser usada como desculpa para o final horroroso que esse livro tem, além da série de problemas narrativos e estilísticos que fazem dessa história uma gigantesca decepção.
Não é nada contra Zusak (afinal, A Menina que Roubava Livros é incrível). É que a mensagem aqui carrega tanto peso, canibaliza tanto a história, que esse livro seria melhor avaliado como auto-ajuda. Mas não é; é ficção, e para uma ficção só a droga da mensagem não basta!
Descompasso
Em se tratando de construir um personagem, ou você tem um proletário desiludido ou tem um poeta desiludido.
Ed Kennedy é uma pessoa simples e sem ambições. Não se importa nem com o próprio trabalho, nem com valores burgueses como ter uma casa limpa ou impressionar os vizinhos – é basicamente um cara do povo, só que meio deprê e sem esperança.
Mas isso não casa com a voz interior dele, que é o narrador do livro. Há um descompasso gritante entre quem ele é e o jeito como ele pensa. Um “tipo proletário” pode ser poeta por dentro, mas a poesia dele não vai ser a de Camões, e sim algo como Racionais MCs ou Emicida – a depender de vários fatores (eu estou discutindo estereótipos aqui, afinal) vai ser provavelmente mais rasgada, cínica, irônica, seca. Por exemplo:
Pego a faca do chão e a seguro firme.
Pena que não dá pra abrir o mundo todo com ela. Se desse, eu cortaria o mundo em duas fatias e subiria em uma delas. (p. 263)
Pena que não dá pra abrir o mundo todo com ela? Quem PENSA assim? Quem tem ESSE fluxo de ideias?
Etudo bem ser bobo se você é um poeta desiludido, mas esse simplesmente não é o personagem que nos foi apresentado!
O cheiro da rua faz de tudo pra colocar as mãos em mim, mas eu não deixo, e vou andando. Toda vez que me dá um arrepio nos braços e nas pernas, eu aperto o passo, sem saber se Audrey está precisando de mim, ou talvez Ritchie ou Marv… Cara, tenho que correr.
O medo é a rua.
O medo é cada passo. (p. 258)
O medo é a rua… Pelo amor. Esse é o problema quando você quer escrever em primeira pessoa mas não está disposto a realmente entrar na cabeça do personagem (Liberdade é um bom exemplo de como fazer isso bem, mesmo que o estilo não mude tão radicalmente de um ator para outro). Você, como escritor, quer fazer suas metáforas, comparações, jogos linguísticos bonitos e imagéticos. E nós, seres humanos, fazemos isso de vez em quando. Mas não todos do mesmo jeito! Isso aí não é o Kennedy pensando, é o Zusak usando a boca do Ed Kennedy. O real Kennedy, como muitos de nós ficaríamos se estivéssemos correndo, na rua, à noite, com medo de não chegar a tempo para alguma coisa, não ficaria pensando “ah, o medo é a rua. Oh, cada passo que eu dou é medo, oh, oh”. Não, metade do tempo seria gasto inutilmente com “putaqueopariuputaqueopariuputaqueopariu” e na outra metade nosso cérebro, muito à revelia do que um eu racional quereria, ficaria imaginando em loop os piores cenários possíveis.
Uma prova de que se trata do escritor simplesmente dando um jeito de escrever algo que ele achou fofo só porque ele quer, e não porque faz sentido e casa com o personagem, é que não é só o Kennedy quem faz isso. Marv, um trabalhador de construção civil casca grossa e orgulhoso, quando tem uma confissão emocional a fazer, diz:
É este o meu estado às três da manhã, Ed. Todo dia. Vejo aquela garota – aquela garota pobrezinha e espetacular. Às vezes eu vou ao milharal e caio de joelhos. Ouço meu coração batendo, mas eu não quero. Odeio as batidas do meu coração. São muita altas naquele campo. Elas caem. Direto de mim. Mas então voltam, igualzinho como eram. (p. 281, grifos meus)
Não. Simplesmente não.
Repare que até a parte destacada a frase vai bem. Depois é que Zusak não se aguenta e tem que colocar a parte bonitinha que Marv jamais diria. Isso não é só ruim pela sensação esquisita que dá; trata-se de uma oportunidade roubada do personagem dizer a mesma coisa, mas à sua própria maneira – o que nos permitiria ficar mais à vontade com ele; faria com que ele se tornasse mais tridimensional para nós.
É verdade que o livro todo não é assim. Não é como se eu pudesse simplesmente abrir uma página aleatória e encontrar uma parte vergonhosa dessas, e há frases boas, em que o jeito de cada personagem marca bem a interação entre eles. Muito do embaraço pode se dever à tradução (“poor spectacular girl”, eu presumo, é bem melhor que “aquela garota pobrezinha e espetacular”, combinação de palavras que 99,99% dos falantes da língua portuguesa vão passar a vida sem jamais pronunciar ou escrever), mas não descontaria muita culpa por causa disso… A verdade é que se isso vai ficando mais irritante à medida que você conhece Ed (porque o descompasso fica mais evidente), a narrativa tem uma série de outros problemas maiores.
Um desperdício de suspense, uma abundância de narração
Esse livro é uma comédia ou um suspense? É acima de tudo auto-ajuda, é claro, mas você pode fazer uma “suspédia” ou um “comense” sem problemas; o duro é quando a comédia envenena o suspense.
A premissa do livro é interessante e desafia o leitor: quem está mandando essas cartas misteriosas? Isso é fantástico. Zusak quer o suspense, quer o drama. Ele quer que o leitor se sinta com medo por causa de Ed; quer que sintamos que alguma coisa está em jogo se ele não conseguir o que quer.
Só que aí, quando nosso herói está sendo brutalmente atacado por dois mascarados…
– Mesmo quando acordou, o bicho entrou pra pedir o que comer.
– E?
– A gente deu uma tortinha pra ele.
– Assaram primeiro ou deram congelada mesmo?
– Assada, Ed! – ele se ofendeu. – Não somos selvagens, tá sabendo? Até que somos bem civilizados. (p. 98)
Oh… OK. Esses são as caras, perceba, que dão uma surra nele como “corretivo” ou coisa parecida.
A próxima vez que eles aparecem proeminentemente é assim:
– Exatamente, Keith, é simplesmente perigoso demais pro Ed chegar a pensar em comer essa torta com molho (…) Vai cair nesta linda camisa branca, e o infeliz ainda vai ter que lavar a desgraçada. E esta é a última coisa de que precisamos agora, concorda? (p. 261; os “bandidos” discutem por que não trouxeram ketchup junto com as tortas que ofereceram a Ed).
Tudo bem você ter comédia no livro. Há várias partes boas nesse sentido. Mas você não precisa pegar todo o seu potencial de suspense, de mistério, de que algo sério está acontecendo, e então transformar numa piada. Tirando dois momentos (de violência, aliás), quase não há a sensação de que alguma coisa importa aqui. A narrativa fica muito mais domesticada.
Todo o resto da narração se arrasta por explicações desnecessárias e comentários expositivos. É o velho “show, don’t tell” levando múltiplos tapas na cara de novo; não são só coisas que simplesmente subtraem do impacto do que está acontecendo – pare de ficar explicando que a sua vida mudou, Ed, que você mudou, e me deixe PERCEBER isso, diabo – mas também que compõemum excesso de “gordura” literária fenomenal.
Leia de novo aquele trecho da página 258 ali em cima – vai lá, eu espero – e me diga: o cheiro da rua faz de tudo pra colocar as mãos em mim… Mas eu não deixo. O que demônios quer dizer “eu não deixo”? O que o personagem fez, exatamente? Nada. O personagem não fez nada, essa é uma frase absolutamente vazia e, como tal, tem um efeito absolutamente nulo no leitor – ou quase, porque pode causar chateação pelo fato de ser inútil (como acontece com cada vez que ele sonha e avisa que vai descrever um sonho. Eu pulei todos os trechos de sonhos. Sério, ninguém se importa com o sonho de ninguém na vida real e não é em livros não-sobrenaturais que vão se importar). É poética a frase, é bonita, deveria soar como se o cara fosse corajoso ou algo assim e eu a levaria em consideração para uma narração em terceira pessoa, mas… Não está fazendo nada de bom aqui.
Quando o monstrinho acorda…
Sim, Ed menciona três ou quatro vezes que a vida dele mudou, que ele está diferente, etc. De vez em quando isso é mostrado através dos acontecimentos que compõem a narrativa – e deveria ter parado por aí; já estava ótimo (só que, claro, não parou). Mas, vamos analisar melhor o que aconteceu de verdade nessa narrativa, especialmente com as cartas.
Primeira carta: ele foi fazer companhia a uma velhinha, fez uma adolescente acreditar um pouco mais em si mesma (meh), fez um estuprador sair de cena. Segunda: encheu a igreja de um padre com cerveja de graça, bate num garoto pro irmão mais velho defender o mais novo, compra um sorvete para uma mãe solteira. Terceira: compra luzes de natal novas para uma família mais ou menos pobre, lava roupa suja com a mãe (metaforicamente) e… Vai no cinema costumeiramente vazio de um… Cara qualquer? Quarta: Ajuda o Ritchie a começar a procurar emprego, ajuda o Marv com a filha perdida dele e dança um pouquinho com a Audrey.
Metade dessas coisas não é lá muito transformadora, pra dizer o mínimo. De novo, a mensagem é boa, mas lá pela terceira carta, quando ele fica dizendo “Ai meu Deus, lá vem a quarta carta, o que vai ser de mim, Copas lembra corações e as pessoas sofrem ataques de coração e etc”, você se pega pensando “oh, tadinho, toma cuidado que é capaz de você comprar mais um sorvetinho pra alguém”.
Acho que o cachorro, “Porteiro”, concorre a melhor personagem do livro, mesmo que a simpatia natural por animais de estimação seja explorada um tantinho demais.
Os riscos a que ele está submetido são extremamente exagerados, especialmente porque o autor desfaz o mistério de algumas das partes de onde ele poderia vir (como quando o cara entra no taxi dele e manda ele seguir em frente, e tal – parece um assalto, mas o autor é incapaz de não transformar mais uma ameaça em caricatura e você já relaxa em dois parágrafos). De vez em quando o Ed leva umas pauladas e a primeira é tão absurda e desnecessária que só agora você pode entender que aquilo era uma exigência da história – para que você pudesse sentir um pouco de pena do Ed, já que é algo que não vem naturalmente.
“Mas e o estuprador?”, você pergunta. É o seguinte: aquela coisinha chamada “suspensão de descrença” é um monstrinho traiçoeiro. Se o livro fosse bem narrado e construído, tudo seria aceito numa boa. Mas quanto mais ele te irrita, mais você começa a pensar: o cara presenciou um estupro, descobriu que ele é regular, e ao invés de ir à polícia, a solução lógica é matar o cara. Sim, a polícia não é gentil com vítimas de estupro, mas ele é uma testemunha ocular que pode ajudar a fazer uma prisão em flagrante. Uma operação dessas é extremamente fácil de conduzir, principalmente naquelas condições.
E a coisa só piora. Você recebe uma carta de baralho com três endereços e… Leva a sério? Imediatamente entende que é uma “missão”, e seus amigos são compreensivos em relação a isso? Você tem a casa invadida, leva uma surra e, pela terceira vez, não vai à polícia denunciar a clara intimidação que está sofrendo? Você vê uma família desestruturada e acha que o problema é só uma briguinha de irmãos – e resolve solucionar o caso sentando o cacete no irmão mais jovem? Que porra é essa, Ed? Se o garoto é um bully proto-fascista revoltado, o irmão maior dele é o menor dos problemas. Você não resolveu caralho nenhum dando bola pra birra de uma criança que fica “ai, vou matar meu irmão, buh buh”.
Pessoalmente, eu me preocuparia mais com assistência social, frequência escolar e oportunidades de estágio. Se você pichou a cidade pra encher uma igreja, pode muito bem ir lá dar uma força na escola pública se ela estiver caindo aos pedaços.
Isso não faz sentido e, de novo, se o suspense fosse real e a narração menos preguiçosa e desleixada, ninguém nem pensaria nisso. Mas depois de um tempo, você começa a se perguntar que mundo é esse em que Ed vive em que as únicas instituições são uma empresa de rádio-taxi e uma igreja progressista. Por outro lado, o livro teria que ser muito bem escrito para apagar a decepção que foi esse final.
De How I Met Your Mother a Lost
Ok, vamos falar sobre uma coisa: Audrey é a única protagonista feminina. O arco narrativo dela é mais insignificante que o da mulher que ganha o sorvete e menos desenvolvido que o do irmão do padre. Pra você ter noção, caso tenha esquecido, Ed precisa ajudar Ritchie a vencer na vida pela primeira vez. Precisa ajudar Marv a reencontrar uma filha que foi tomada dele por uma família conservadora (de novo: Tribunais. Não. Existem nesse mundo.). Mas a Audrey, ah, o amor da vida dele, essa ele tem que ajudar demais… Fazendo ela aprender a encontrar o amor… Ok, ok, vamos ser justos, mesmo que isso seja um clichê de papeis de gênero ela é uma pessoa fechada e emocionalmente machucada, então… Ainda está valendo – como ele vai fazer ela se abrir para o amor?
Dançando uma música de três minutos com ela no quintal na frente da casa dela logo depois de ela ter transado com o namorado dela (que não é o Ed) e indo embora sem dizer nada e sem que nada mude.
Ele veio do nada, dançou um pouco e ao ir embora imediatamente depois deixou ela se perguntando se ele está precisando de ajuda psiquiátrica. De novo – poético, mas não faz o menor sentido.
Ela é quase a personagem mais sem graça e bidimensional do livro, o que torna isso tanto mais triste porque deveríamos sentir toda a empolgação do mundo por ela. Ela é o alvo das atenções do personagem principal!
Então por que o final é tão decepcionante? Primeiro porque pega essa personagem que, coitada, já é tão mal feita, e a piora. Em uma página, literalmente no epílogo, ela faz algo que não condiz com absolutamente nada que já tenha feito no livro inteiro – apenas para que possa servir de prêmio para o Ed, já que seria inconcebível que um merda que queira provar que é possível se dar bem na vida não tenha uma bela mulher ao seu lado. Não que ele não “mereça” o amor dela ou que ela não possa finalmente admitir o que sente por ele. Mas é súbito. É brusco. O diálogo deles, especialmente o que ela diz, é forçado e não tem nada a ver com a personagem (novidade!). É como Ron terminar Harry Potter com a Romilda, a Hermione com Krum, nenhum livro ter dado indicação de que eles estavam se aproximando e de repente, 17 ou sei lá quantos anos mais tarde… Eles aparecem casados um com o outro. Com filhos. Ou, embora tenha a ver com os personagens porém é brusco,quebra a narrativa e decepciona, o que aconteceu com o final de How I Met Your Mother.
Sinceramente? Eu seria capaz de apostar que a editora simplesmente não gostou que Ed e ela não ficaram juntos. Zusak, sem saco pra reescrever os últimos capítulos, jogou aquelas duas páginas de bosta ali para prometer um ao outro em matrimônio implícito.
E mais ou menos isso, eu ouso suspeitar, é exatamente o que aconteceu com o final inteiro. Zusak, em 2002, basicamente previu o destino da série Lost: uma premissa convoluta que no final não seria satisfeita por nenhuma solução – e a saída é qual? O deus ex machina de que tudo aquilo é uma ficção, Ed é um personagem de um livro (ha!) e quem estava mandando as cartas para ele era o escritor. Nossa, que inteligente.
Esse livro é fantástico. Tenho exatamente esta edição.
Sabe o que é inteligente? Foreshadowing. Motivos para você ao menos suspeitar do final do livro. Coisas sutis que façam você reler a obra (ou simplesmente relembrá-la) e pensar “Uau, eu não tinha percebido esse detalhe! Caramba, que genial!”. E isso é extremamente frustrante porque a premissa do livro, como dito acima, é um mistério bom. O mistério invariavelmente convida a conjecturas; você quer ler até o final basicamente para descobrir quem é o puto que está mexendo com a vida dele dessa forma. Minha teoria é a de que era a Audrey – o que seria genial, porque explicaria a razão para ela se manter distante e namorando outro cara (ela estaria fingindo que não sentia nada por ele para que esse fosse o “gran finale”), ela teria um motivo pra fazer isso (como dito no próprio livro… Ela poderia amá-lo e querer que ele fosse uma pessoa melhor) e ainda seria muito bacana porque ela teria planejado até mesmo a parte do cinema (reler esse livro seria fantástico sabendo que ela sabia de tudo).
Mas não.
Esse recurso não é nada original. Uma das mais famosas aplicações recentes dele foi em O Mundo de Sofia, fenômeno mundial lançado em 1991. A diferença é que nele essa premissa é central, e explorada em profundidade; é marcante, é sensível, é coerente com a trama toda. Aqui, nada disso. Aqui é absolutamente broxante.
Esse livro tem partes boas; tem coisas legais, elementos que funcionam. Tudo que se relaciona ao sexo é bem construído, até mesmo a arriscada conexão entre Ed e Sophie. A mensagem é positiva e você fica investido no que vai acontecer, é verdade. Mas não dá pra aceitar algo como “ah, então tanto faz; você ficou doido pra saber o que acontece e isso significa que o livro é bom”. Não, não significa, porque eu também estou doido pra saber como as eleições dos EUA vão terminar, mas se o Trump vencê-las elas ainda serão um desastre.
Se eu tivesse gostado do livro essa postagem seria outra. Minha maior reclamação seria, talvez, uma ponta solta ou um tema pouco explorado (o que é que no passado machucou tanto a Audrey? Não seria bom ver o Ed ganhar confiança também em sua performance sexual?). Faria uma análise sociológica sobre a mensagem do livro – o culto ao sucesso individual e o foco no “indivíduo” como o alvo de toda ação que visa melhorar o mundo – ou quem sabe até sobre a metafísica do sacrifício que se liga, inclusive, à ideia de liberdade de expressão como valor absoluto. Mas fiquei tão pra baixo que já não estou mais nem aí pra “mensagem”.
Esse livro tem uma premissa fantástica e consegue envolver o leitor, mas envolve que nem uma cobra; falha miseravelmente com um estilo inapropriado (que subdesenvolve personagens), uma trama que não se leva a sério, e um final indigno que transforma um suspense fraco numa auto-ajuda barata.
Perdida é um conto de fadas contemporâneo interessante. É estruturalmente super sólido e bem amarrado. Mesmo com uma ou outra coisa pouco polida (alguém teve uma impressão nítida sobre a personalidade da irmã de Ian? Que personagem mais bidimensional, se-nhor! A Teodora foi mil vezes mais interessante.), todos os “beats” são martelados quase à perfeição, e o ritmo é ótimo, medindo bem coisas que podem ser problemáticas em outras histórias (por exemplo: quanto tempo alguém leva pra parar de pensar que está maluco e aceitar logo uma situação impossível? Demore demais e a história fica chata; demore de menos e fica pouco realista (cof cofCrepúsculo cof…) ou surreal, como Alice no País das Maravilhas). Os clichês são reciclados tão bem que funcionam redondamente. A heroína é órfã? Claro. Tem um personagem Dumbledore-Gandalf-Mestre-dos-magos guiando o protagonista? Certamente. O interesse romântico é tão perfeito em suas imperfeições que até seu peido deve cheirar a lavanda? Óbvio. (Não. Mas quando ele fala “porra” é super fofinho).
Analisado tematicamente, o livro segue sendo sustentável… Uma crítica à tecnologia se interlaça sem problemas com o despertar do amor romântico em meio a um mundo cínico. Só que a narrativa fica sim um pouco retalhada no final.
Veja, esse é um conto de fadas feito após o feminismo, mesmo que informado por uma vertente mais liberal e senso comum do movimento: a heroína se vira sozinha e é independente. Quer trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro no século XIX. Mais do que isso, não só a protagonista encara o sexo de forma bastante liberal como efetivamente quebra convenções dos contos de fadas de outrora. Isso é maravilhoso, sim, mas o céu vai começando a nublar depois de um certo tempo: Ian se torna “a vida” da protagonista. Nada mais – nada mais! – importa. Bem, não que ela fosse a rainha da Inglaterra no tempo presente – seu trabalho não lhe despertava tanto interesse assim a ponto de ser um grande sacrifício ela ter ficado no passado… Mesmo assim, qual é a mensagem que mais retumba depois do ponto final? O amor é mais importante que tudo? OK. Mas que tipo de amor? Você deve mudar completamente sua vida para poder ficar com quem você ama? Indo direto ao ponto: é uma boa ideia para uma mulher no século XXI deixar de investir em sua vida, sua carreira, seus amigos, sua cultura até, para ficar ao lado de um homem? Dá pra conservar o poder da primeira pergunta sem ser contaminado pelo germe da resposta “sim” à última?
E vamos falar do “amor”, outro ponto fraco do final do livro: o desenvolvimento da relação entre Ian e Sofia é adorável e num ritmo extremamente acertado. A gradação é realmente impecável! Mas no fim, as consequências parecem grandes demais pra combinar com o que foi apresentado: Sofia basicamente deixa pra trás sua vida (que, novamente, pelo menos a autora mostrou que não era nada demais… Se ela tivesse que deixar pra trás um filho, uma mãe doente ou coisa parecida AÍ O BICHO IA PEGAR) por causa de duas semanas com um cara gostoso, educado e cheio da grana – mas principalmente gostoso, isso fica bem claro. A mensagem responsável e sem tabus que o livro passa sobre o sexo é louvável, mas por outro lado mostra um ponto de inflexão muito interessante entre “Perdida” e “Orgulho e Preconceito”: sem qualquer tipo de contato físico, o que transparece da relação entre Elizabeth e Darcy é principalmente aprendizado e admiração. O que transparece da relação entre Ian e Sofia é… Tesão (até a última página do livro, diga-se de passagem). Tem a hora em que ele deve acreditar nela e sua verdade sobre a viagem no tempo, mas isso foi um plot point necessário e, bem, a mão dele foi forçada devido às evidências. Se em ambos os livros as mulheres só se realizam na vida quando casam, só um livro tem circunstâncias históricas que justificam um “pano de fundo” como esse. Se as heroínas de Austen e Rissi são semelhantes, a da primeira parece ascender a essa posição, enquanto a da segunda parece regredir.
Agora, vamos lá: Perdida é (merecidamente) um fenômeno pop, e Orgulho e Preconeito é uma obra de Arte com A maiúsculo à qual Perdida presta muita homenagem. E eu não acho que a culpa da relação de Ian e Sofia parecer superficial (como tudo que é grudado pelo “destino”, em vez de por vontade e luta, invariavelmente é) seja do sexo em si; eu não ia me importar muito se rolasse um “perdemos a linha, sr. Darcy” no final de Orgulho e Preconceito. Mas é curioso pensar nisso porque, afinal, juntando os pontos, você acaba com a impressão de que “O amor é mais importante que tudo” pode ser trocado, como lema de Perdida, por “Os hormônios são mais importantes que tudo”. O que acontece com a Sofia que escolheu ficar no passado pra sempre e, quando percebe que Ian na verdade não é tão interessante assim depois da 500a transa seguida, lembra-se que não tem facebook pra aliviar o tédio do século XIX? Bem, que bom que não temos que nos perguntar, já que existem continuações e talvez elas resolvam algumas dessas coisas que estou escrevendo sobre esse primeiro livro (que, aliás, é autossuficiente e esse é outro ponto positivo).
Há outros problemas. A escritora é hábil em não tornar a heroína uma “damsel in distress” por qualquer razão tola – mas vamos lá: Sofia nunca foi descrita como uma guerreira, portanto… Faz sentido que Santiago a domine fisicamente. É compreensível que suas condições físicas e psicológicas depois de uma noite de chuva a pusessem de cama por dois dias. É logicamente aceitável que, tendo aparecido no século XIX de um minuto pra outro, ela tenha que depender da ajuda de seu benfeitor para conseguir fazer basicamente qualquer coisa. Mas com quantos “é compreensível” ou “é aceitável” se faz uma suspensão de descrença? Uma hora o leitor tem que perceber que ela basicamente só exerce sua agência quando Ian permite, e raramente é algo que tem importância na história.
O mais engraçado é perceber como a autora tem que dar um “spin” apropriado para algo que seria simplesmente abusivo e, sinceramente, bem amedrontador (me peguei pensando uma ou duas vezes ‘ei carai, agora que o machão desce a mão nela…’): o homenzarrão pega Sofia pelo braço e a força a ouvir ou falar alguma coisa… Mas tá tudo bem, porque ela gosta da pegada dele e não quer realmente sair dali. Bom, que ótimo pra ela, né, porque se quisesse tava frita…
Em suma, o que eu acho é que o livro é realmente muito, muito bom em ser o conto de fadas que ele é. Ele funciona, é super bem escrito e faz duas coisas positivas: apresenta uma mensagem interessante do papel que o sexo tem numa relação que se baseia (assim deveríamos acreditar) no amor romântico, que tantas vezes no storytelling pop é um “puppy love” chato e casto que começa, eu desconfio, a não funcionar mais com adolescentes (O filme “divergente” é diferente, mas foi feito pros americanos puritanescos anyway). Outra coisa que faz bem é provocar uma discussão sobre agência, amor e desigualdade de gênero. Amor é entrega; é vulnerabilidade, diálogo, confiança e principalmente transigência, mas… Haveria algum modo de escrever essa história de um jeito que A) Sofia não se tornasse psicologicamente dependente do futuro marido; e ao mesmo tempo B) O final fosse igualmente feliz e romântico?
Não sei. Acho que sim, mas não sei. Não acho que “Perdida” seja um livro machista; longe disso. Mas acho que ele joga um jogo cujas regras foram escritas quando o mundo era muito diferente. Assim como há certos limites para uma mulher independente no século XIX, há certos limites, ao que tudo indica, para um conto de fadas realmente popular nos anos 10.
O que faz uma história ser épica é a grandiosidade de cada momento — é claro que você precisa de uma ambientação, de todo uma narrativa que envolva o leitor. Mas dentro do envolvimento, a história não pode se deixar levar só pelo que acontece, numa série de eventos banais que leva a alguma conclusão… Não se trata de altos e baixos, não é o arranjo bem feito da experiência. É preciso que cada coisa que aconteça seja (não literal e tecnicamente, mas em sua essência) algo grandioso, espetacular, importante, histórico. Mas, e aí que vem, mais do que isso, é preciso que a pessoa imagine coisas que não aconteceram ainda (e talvez nem aconteçam), e fique pensando em como vai ser, como se fosse o maior encontro do universo, a batalha das batalhas, o verdadeiro fim do mundo! Como Harry Potter e Voldemort (e antes deles Voldemort e Dumbledore, algo ainda mais épico, acho), como Gandalf e Sauron (e a batalha do Abismo de Helm e a de Minas Tirith), como Edmond Dantès e Fernand Mondego.
“Enquanto o estilo literário é o espaço da incerteza, do indeterminado, de “brancos” que o leitor deve preencher, funcionando como máquina preguiçosa na expressão de Eco, na imprensa é o leitor que ocupará esse lugar da preguiça, sendo o trabalho do jornalista a colmatação das brechas possíveis, limitando o esforço interpretativo, construindo assim um leitor preguiçoso.”
Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.
E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.
Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?
A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.
Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.
Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:
“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”
Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:
“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “
Vai tentar a poética:
“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”
Vai tentar a perspectiva:
“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”
É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.
Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.
Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.
Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?
Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.