Faleceu ontem o antropólogo David Graeber

David Graeber lecionando na LSE.

Este ano, estive no Reino Unido em doutorado sanduíche. Minha pesquisa é sobre o conceito de liberdade entre anarquistas. Na minha longa lista de leituras tinha cinco livros dele. Fui até a London School of Economics ver se conseguia conversar com ele. Acabei chegando meio tarde, mas fui mesmo assim, só pra ‘reconhecer o terreno’. Pra minha surpresa, ele saiu do elevador que eu estava esperando pra pegar.

Ele parecia estar de saída, então pra não incomodar muito só perguntei se as aulas dele podiam ser assistidas também por quem não era aluno ali. “Ah, podem sim”, ele disse. “A universidade não quer que ninguém saiba disso, mas podem sim”.

Falei com a secretária do departamento, Renata Todd, pra pegar o calendário do semestre da disciplina dele. No dia que escolhi, cheguei bem cedo, pra não dar erro. Sentei no fundo. A foto é desse dia.

Graeber foi um acadêmico brilhante. Discípulo de Marshall Sahlins, outro gigante da antropologia, ele fez contribuições em tantas áreas da teoria social, que dá até uma tontura: da arqueologia do conceito de dívida até a condenação dos “trabalhos nada a ver” (minha forma preferida de traduzir Bullshit jobs), passando por carros voadores, panpsiquismo, burocracia, magia, ação direta, imaginação, teoria do valor, super-heróis, polícia, violência, poder constituinte, propriedade, diálogo, pós-modernismo, neoliberalismo, desigualdades, bullying, soberania, entre muitas outras coisas, ele sempre tinha algo instigante a dizer. Podia não estar 100% certo – e ele mesmo sempre recuava das simplificações que fazia, apontando-as como tais – mas como diz o Clayton Peron, “conseguia realizar a conciliação quase impossível entre erudição e simplicidade”. Você acha que sabe o que uma coisa é, mas basta ler uma daquelas frases dele com a estrutura “na verdade, isso ali nada mais é que isso aqui” e pronto: sua mente explode com possibilidades.

Mas – e é preciso dizer, porque nem sempre a relação é automática – ele também era um excelente professor. Começou a aula dizendo que não ia usar slides porque eles nos emburrecem, e que teria apenas aquela aula (de uma hora) para explicar teoria social francesa por causa dos (bons) esforços para descolonizar o currículo. A aula foi principalmente sobre Mauss – mas, para chegar aí, ele foi desde o fracasso da Revolução Francesa até outros ‘desdobramentos’ de Durkheim, como Dumont. Foi uma aula extremamente didática, mas também divertida, cheia de referências inusitadas. Ao apresentar Comte como o secretário mentalmente perturbado de Saint-Simon, disse que o positivismo chegou a ter bastante influência em algumas partes do mundo, e perguntou se alguém sabia o que estava escrito na bandeira do Brasil (só vi aquele mar de cabeças à minha frente se virando quando respondi, após uns segundos de silêncio: “order and progress”).

Depois da aula, expliquei pra ele melhor quem eu era e o que eu queria. Graeber disse que adoraria conversar, até porque – pasmem – ele estava escrevendo um novo livro especificamente sobre o conceito de liberdade! Se eu poderia fazer uma entrevista com ele? Claro – só que ele estava cansado de dizer sempre as mesmas coisas; se eu lesse o livro antes, poderia fazer perguntas novas. Fui pra casa muito feliz naquele dia.

Alguns dias depois (e certa insistência, pois ele admitiu que era péssimo em responder emails), ele me mandou uma cópia do livro, que devido à pandemia nem foi publicado ainda (sai em novembro agora, parece). No email, disse: “Não compartilhe com ninguém! Ou vão ficar bravos comigo…”. Marquei um novo encontro com ele – e não posso agradecer Renata Todd o suficiente; já falei que ele era muito ruim com emails? – e… Ele esqueceu. Precisei encontrar com ele num restaurante vietnamita ali por perto, onde ele estava almoçando, às 3 da tarde.

Lá, ele me perguntou o que eu achei do livro. Até me mostrou um capítulo que estava escrevendo para outro, algo sobre o Estado não ter uma “origem” de fato – leu um trecho pra mim e perguntou se eu achava pretensioso demais (achei que não). Disse-me o quanto detestava ser chamado de “o antropólogo anarquista”, especialmente porque quem fazia isso geralmente nem se dava ao trabalho de se engajar direito com suas ideias (lembrei direto da coluna do João Pereira Coutinho na Folha).

Voltamos pro escritório, e gravei a entrevista com ele (vai sair ainda esse mês, na Revista Em Tese). Olhando pra trás, até mesmo algumas horas depois de já ter ido embora, fiquei pensando que deveria ter insistido mais em alguns pontos; feito algumas perguntas de outro modo. Aquela coisa básica de só pensar na coisa certa a se dizer horas depois. Mesmo assim, foi legal demais. No final, perguntou como andava o MST.

Eu saí daquela interação sabendo um pouco melhor o que me separava dele. Várias coisas que ele dizia, o lugar para onde a teoria dele caminhava, me deixavam um pouco agoniado, mas nunca soube explicar por quê. Vários foram os áudios trocados com o Cazé pra colocar as ideias no lugar… E mesmo assim, muitas mais coisas nos unem. Certas, erradas, ou em algum lugar no meio do caminho, as coisas que ele escreveu vão continuar reverberando por muito tempo dentro e fora da academia. Alguns exemplos:

A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

Pra ser sincero, eu ainda penso naquele magistrado romano anônimo. É engraçado: quando falamos das origens clássicas da nossa civilização (e estou me referindo a esse ponto na civilização mundial, da qual todo mundo participa hoje em dia em algum grau), as figuras que naturalmente vêm à cabeça são homens como Péricles ou Eurípides ou Platão, mas nunca esse cara – ele nem tem um nome – embora seja possível argumentar que ele moldou nossas vidas de maneiras muito mais profundas. O homem que imagino é um oficial do senado na república romana tardia ou começo do império, que patrocina jogos, faz julgamentos prudentes quanto a questões como leis de propriedade, e daí vai pra casa ter suas necessidades mais íntimas atendidas por escravos que são em termos legais pessoas conquistadas, sem quaisquer direitos, e com quem ele pode fazer o que quiser, estuprar, torturar, matar, com total impunidade. Ele é um monstro. E no entanto sua perspectiva sobre o mundo, seus julgamentos, estão na base de todas as nossas ideias liberais sobre liberdade, e suspeito que muito mais além disso.

Não há nenhuma área da vida humana, em qualquer lugar, em que não se pode encontrar cálculo auto-interessado. Mas tampouco há qualquer lugar em que não se possa encontrar gentileza ou aderência a princípios idealistas: a questão é por que um, e não a outra, é colocado como a realidade ‘objetiva’

Economias de mercado […] negam ‘o verdadeiro fundamento de suas próprias vidas’, uma vez que elas constantemente obscurecem o fato de que toda atividade ‘econômica’ é em última instância um meio para a criação de certos tipos de pessoas.

Uma divisão aguda entre liberdade e obrigação é, como aquela entre interesse e generosidade, em grande medida uma ilusão causada pelo mercado, cuja anonimidade torna possível ignorar o fato de que dependemos de outras pessoas para praticamente tudo. Em sua ausência, é preciso necessariamente estar ciente de que, a não ser que se deseje viver em solidão, a liberdade basicamente significa a liberdade de escolher que tipo de obrigações alguém quer contrair, e com quem.

Uma razão pela qual passo tanto tempo re-escrevendo o passado é porque estou convencido que ele está atualmente sendo escrito da forma como está para tornar quase impossível que imaginemos um futuro viável.

Por toda a internet hoje li muito que ele cunhou a frase “nós somos os 99%”. Não é verdade, ele me disse (assim como já disse em várias entrevistas): ele fazia parte do grupo que pensou essa frase. Ele era assim: amigo de Rojava, colocava esse aspecto coletivo em primeiro lugar sempre, seja na teoria, seja na prática militante. Foi um grande acadêmico, um grande ativista, uma grande pessoa. Deixará saudades. Fará falta.