“Um mundo sem trabalho seria assim tão ruim?”, por Ilana E. Strauss

Tradução de “Would a Work-Free World Be So Bad?”, publicado no The Atlantic.

O medo de um ócio a nível de civilização se baseia demais nas consequências negativas do desemprego numa sociedade baseada no conceito de emprego.

As pessoas têm especulado há séculos quanto a um futuro sem trabalho e hoje não é diferente, com acadêmicos, escritores e ativistas mais uma vez alertando que a tecnologia está substituindo trabalhadores humanos. Alguns imaginam que o mundo sem trabalho que está por vir será definido pela desigualdade: alguns poucos ricos vão possuir todo o capital, enquanto as massas passarão dificuldade numa terra empobrecida.

Uma previsão diferente, menos paranoica porém não mutuamente exclusiva, mantém que o futuro será um desastre de um tipo diferente, caracterizado pela falta de propósito: sem empregos para dar sentido à vida, as pessoas vão simplesmente se tornar preguiçosas e deprimidas. De fato, os desempregados de hoje não parecem estar se dando muito bem. Segundo uma pesquisa da Gallup, 20 por cento dos estadunidenses que estão desempregados há pelo menos um ano disseram ter depressão, o dobro da taxa entre empregados. Além disso, algumas pesquisas sugerem que a explicação para taxas mais altas de mortalidade, problemas de saúde mental e vícios entre pessoas de meia-idade com menos educação formal é a falta de trabalhos com bons salários. Outro estudo mostra que as pessoas são frequentemente mais felizes no trabalho do que em seus tempos livres. Talvez seja essa a razão por que tantos se preocupam com o tédio agonizante de um futuro sem trabalho.

Mas a partir dessas descobertas não necessariamente se conclui que um mundo sem trabalho seria um mundo de mal-estar. Tais visões de futuro são baseadas nas consequências negativas do desemprego em uma sociedade baseada no conceito de emprego. Na ausência de trabalho, uma sociedade projetada com outros objetivos em mente poderia produzir circunstâncias enormemente diferentes em termos de trabalho e lazer. Hoje, a virtude do trabalho pode estar sendo um pouco superestimada. “Muitos trabalhos são chatos, degradantes, insalubres, um desperdício de potencial humano”, diz John Danaher, pesquisador da Universidade Nacional da Irlanda, em Galway, que escreveu sobre um mundo sem trabalho. “Pesquisas globais têm descoberto que a vasta maioria das pessoas são infelizes no trabalho”.

Atualmente, já que o tempo para lazer é relativamente escasso para a maioria dos trabalhadores, as pessoas usam o tempo livre para contrabalancear as demandas intelectuais e emocionais de seus trabalhos. “Quando eu chego em casa de um dia puxado de trabalho, eu geralmente me sinto cansado”, Danaher diz, adicionando que “em um mundo em que eu não tenho que trabalhar, eu posso me sentir de outra forma” – talvez de modo a investir em hobbies ou paixões com a intensidade que geralmente se reserva para assuntos profissionais.

Ter um trabalho pode assegurar um pouco de estabilidade financeira, mas além de se estressar com as necessidades da vida, os desempregados de hoje são frequentemente marginalizados. “Pessoas que evitam trabalhar são vistas como parasitas”, diz Danaher. Talvez como resultado dessa atitude cultural, a auto-estima e a identidade da maioria das pessoas estão intimamente ligadas aos seus trabalhos, ou à falta de um.

Ademais, em muitas sociedades contemporâneas, o desemprego pode ser simplesmente chato. Muitas cidades americanas de pequeno e médio porte não são de fato organizadas com uma abundância de tempo livre em mente: espaços públicos tendem a ser pequenas ilhas no oceano da propriedade privada, e não há muitos lugares gratuitos em que adultos possam conhecer novas pessoas ou entreter uns aos outros. As raízes desse tédio podem ser ainda mais profundas. Peter Gray, um professor de psicologia na Boston College que estuda o conceito de brincadeira [play], pensa que se os empregos desaparecessem amanhã, as pessoas poderiam ficar confusas quanto ao quê fazer, ficando entediadas e deprimidas porque esqueceram como brincar. “Ensinamos crianças a distinção entre brincadeira e trabalho”, Gray explica. “Trabalho é algo que você não quer fazer mas é obrigado a fazer”. Ele diz que esse treinamento, que começa na escola, eventualmente “extrai a brincadeira” das mentes das crianças, que viram adultos que ficam sem saber o que fazer quando têm tempo livre.

“Às vezes as pessoas se aposentam, e não sabem o que fazer”, afirma Gray. “Elas perderam a habilidade de criar suas próprias atividades”. Isso aparentemente nunca é um problema para crianças pequenas. “Não há nenhuma criança de três anos de idade que vai ficar preguiçosa e deprimida porque não têm uma atividade estruturada”, diz ele.

Mas as coisas precisam ser assim? Sociedades sem trabalho são mais do que apenas um experimento mental – elas existiram ao longo da história humana. Considere os caçadores-coletores, que não têm chefes, salários, ou oito horas de trabalho por dia. Há dez mil anos, todos os humanos eram caçadores-coletores, e alguns ainda são. Daniel Everett, um antropólogo na Bentley University, em Massachusetts, passou anos estudando um grupo de caçadores-coletores na Amazônia, os Pirahã. De acordo com Everett, enquanto alguns consideram que a caça e a coleta seriam uma forma de trabalho, os Pirahã não o fazem. “Eles pensam nessas coisas como uma diversão”, ele diz. “Eles não têm um conceito de trabalho da forma como temos”.

“É uma vida bem tranquila na maior parte do tempo”, diz Everett. Ele descreve um dia típico para os Pirahã: um homem acorda, gasta algumas horas andando de canoa e pescando, depois faz um churrasco, nada um pouco, traz o peixe de volta para sua família, e brinca até a noite. Esse tipo de vida com base em subsistência certamente não deixa de ter seus problemas, mas o antropólogo Marshall Sahlins argumentou num ensaio em 1968 que caçadores-coletores pertencem à “sociedade afluente original”, uma vez que eles “trabalhavam” apenas algumas horas por dia; Everett estima que os adultos Pirahã trabalham em média 20 horas por semana (sem contar que não têm chefes olhando por cima de seus ombros). Enquanto isso, de acordo com estatísticas oficiais, o Estadunidense médio empregado, com filhos, trabalha cerca de nove horas por dia.

Essa vida divertida leva à depressão e à falta de propósito que observamos entre tantos que hoje têm emprego? “Eu nunca vi nada remotamente parecido com a depressão lá, exceto pessoas que estão fisicamente doentes”, diz Everett. “Eles se divertem pra caramba. Eles brincam o tempo todo”. Enquanto muitos consideram que o trabalho é um fundamento da vida humana, o trabalho como ele existe hoje é uma invenção relativamente nova nos milênios de anos de cultura humana. “Pensamos que é ruim ficar sentado por aí sem nada para fazer”, diz Everett. “Para os Pirahã, é uma coisa bem desejável”.

Gray compara esses aspectos do estilo de vida caçador-coletor com as aventuras despreocupadas de muitas crianças em países desenvolvidos, das quais espera-se que em algum ponto de suas vidas deixem essas coisas infantis de lado. Mas nem sempre foi assim. De acordo com o livro A Social History of Leisure Since 1600, publicado em 1990 e escrito por Gary Cross, o tempo livre nos Estados Unidos era bastante diferente antes dos séculos XVIII e XIX. Fazendeiros – uma maneira bastante razoável de descrever um enorme número dos estadunidenses daquela época – misturavam trabalho e brincadeira em seus cotidianos. Não havia gerentes ou fiscais, então eles trabalhavam, faziam pausas, jogavam com vizinhos, faziam pegadinhas, e gastavam tempo com a família e os amigos conforme quisessem, trocando de atividade com fluidez. Sem contar os festivais e outros eventos: a França, por exemplo, tinha 84 feriados por ano em 1700, e o clima tornava o trabalho impossível por mais ou menos outros 80 dias por ano.

Isso tudo mudou, escreve Cross, durante a Revolução Industrial, que ajudou a substituir as fazendas com fábricas e os fazendeiros com empregados. Os donos das fábricas criaram um ambiente mais rigidamente controlado que claramente separava o trabalho do lazer. Enquanto isso, relógios – que estavam se disseminando na época – começaram a dar um ritmo mais acelerado à vida, e líderes religiosos, que tradicionalmente aprovavam as festividades, começaram a associar o lazer com o pecado e tentaram substituir festivais agitados por sermões.

À medida que os trabalhadores começaram a se mudar para as cidades, as famílias não passavam mais seus dias juntos na fazenda. Em vez disso, os homens trabalhavam nas fábricas, enquanto as mulheres ficavam em casa ou trabalhavam nas fábricas, e as crianças iam para a escola, ficavam em casa, ou trabalhavam nas fábricas também. Durante o trabalho as famílias ficavam fisicamente separadas, o que afetou a forma como se entretinham. Adultos pararam de participar de jogos e esportes “infantis”, e a diversão foi em grande parte eliminada das ruas à medida que famílias de classe média e alta consideravam as atividades do proletariado, como brigas de galo e jogos de azar, desagradáveis. Muitas dessas diversões foram logo banidas por lei.

Com as velhas válvulas de escape dos trabalhadores desaparecendo em meio à fumaça industrial, muitos deles se voltaram para atividades novas, mais urbanas. Bares se tornaram um refúgio em que trabalhadores cansados bebiam e assistiam a shows ao vivo com música e dança. Se tempo livre significa cerveja e TV para a maioria das pessoas nos Estados Unidos, esse pode ser o motivo.

De vez em quando, sociedades desenvolvidas produziram, para alguns poucos privilegiados, estilos de vida que eram quase tão brincalhões quanto o dos caçadores-coletores. Através da história, aristocratas que ganhavam dinheiro simplesmente por possuírem terras gastavam apenas uma porção minúscula de seu tempo preocupados com exigências financeiras. De acordo com Randolph Trumbach, professor de história na Baruch College, os aristocratas ingleses do século XVIII passavam seus dias visitando amigos, comendo refeições elaboradas, sediando eventos, caçando, escrevendo cartas, pescando e indo à igreja. Eles também passavam um bom tempo participando da política, sem serem pagos. Seus filhos aprendiam a dançar, tocar instrumentos, falar outras línguas e ler latim. Nobres russos frequentemente se tornavam intelectuais, escritores e artistas. “Como um aristocrata do século XVII disse, ‘nos sentamos para comer e nos levantamos para brincar, porque o que é um cavalheiro sem seu prazer?”, diz Trumbach.

É difícil pensar que um mundo sem trabalho seria abundante o bastante para prover a todos tais estilos de vida generosos. Mas Gray insiste que injetar qualquer quantidade adicional de brincadeira nas vidas das pessoas seria bom, porque, ao contrário do que dizia aquele aristocrata do século XVII, a brincadeira é mais do que puro prazer. Através da brincadeira, diz Gray, as crianças (assim como os adultos) aprendem a criar estratégias, formar novas conexões mentais, expressar a criatividade, cooperar, superar o narcisismo, e conviver bem com outras pessoas. “Mamíferos machos tipicamente têm dificuldade em viver muito perto uns dos outros”, ele diz, e brincar promove a harmonia, o que pode explicar por que isso pôde se tornar tão central às sociedades de caçadores-coletores. Mesmo que a maioria dos adultos de hoje tenha esquecido como brincar, Gray não acredita que é uma habilidade irrecuperável: não é incomum, ele diz, que avôs re-aprendam o conceito de brincadeira depois de passar algum tempo com jovens netos.

Quando as pessoas refletem sobre a natureza de um mundo sem trabalho, elas geralmente transpõem premissas atuais sobre o trabalho e o lazer para um futuro em que elas podem não mais fazer sentido; se a automação acabar tornando uma boa parte do trabalho humano desnecessária, a sociedade pode existir segundo termos completamente diferentes das sociedades de hoje.

Então com o que os Estados Unidos sem trabalho poderia se parecer? Gray tem algumas ideias. A escola, por exemplo, seria muito diferente. “Eu penso que nosso sistema de escolarização cairia por terra”, afirma Gray. “O propósito primário do sistema educacional é ensinar as pessoas a trabalhar. Eu não acho que as pessoas iriam querer fazer nossas crianças passarem pelo que fazemos elas passarem agora”. Em vez disso, Gray sugere que os professores poderiam construir aulas com base no que as crianças mais têm curiosidade. Ou, talvez, a escolarização formal desaparecesse completamente.

Trumbach questiona se a escolarização estaria mais relacionada a ensinar crianças a serem líderes, em vez de trabalhadores, através de disciplinas como filosofia e retórica. Ele também pensa que as pessoas podem participar mais da vida política e pública, como os aristocratas de antigamente. “Se um maior número de pessoas estivesse usando seus tempos livres para governar o país, isso lhes daria um sentimento de propósito na vida”, diz Trumbach.

A vida social poderia ser bastante diferente também. Desde a revolução industrial mães, pais e crianças geralmente passam seus dias separados uns dos outros. Num mundo sem trabalho, pessoas de diferentes idades podem se reencontrar. “Ficaríamos muito menos isolados uns dos outros”, imagina Gray, talvez um pouco otimista demais. “Quando uma mãe está tendo um bebê, todos na vizinhança iriam querer ajudar aquela mãe”. Pesquisadores descobriram que ter relacionamentos próximos é o elemento determinante mais importante para a felicidade, e as conexões sociais que um mundo sem trabalho possibilitaria poderiam deslocar a falta de propósito que muitos futuristas preveem.

Em geral, sem trabalho, Gray pensa que provavelmente as pessoas seguiriam suas paixões, se envolveriam com as artes, e visitariam amigos. Talvez o lazer deixaria de estar relacionado a relaxar depois de um longo período de trabalho duro, e em vez disso se tornaria algo mais variado e colorido. “Não teríamos que ser auto-centrados como achamos que temos que ser hoje”, ele diz. “Eu acredito que nos tornaríamos mais humanos”.