Uma defesa Nietzscheana do anarquismo

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 14 de maio de 2016. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

O livro “A Nietzschean Defense of Democracy: An Experiment in Postmodern Politics” foi escrito por Lawrence Hatab, professor da Old Dominion University. Tive o prazer de conhecê-lo em um colóquio ano passado na UFSC, junto com a professora Christa Acampora. Ambos foram incrivelmente gentis e me providenciaram uma cópia de seus livros (Acampora mandou dois, um deles o excelente Contesting Nietzsche), e agora pude enfim ler o de Hatab.

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Aqui a premissa é a seguinte: Nietzsche estava errado. Não pela perspectiva de seus críticos, mas por sua própria – ele detestava a democracia, e no entanto Hatab procura demonstrar “por eliminação” que esse é o único sistema político que Nietzsche conseguiria aprovar.

Hatab escreve incrivelmente bem; é claro, conciso, engraçado – seu estilo e voz pulam das páginas. E ele é principalmente honesto – a mais importante característica de qualquer investigação científica. Ele não varre para debaixo do tapete aspectos problemáticos de sua pesquisa. Nietzsche não é realmente pós-moderno? Ele faz uma bela exposição sobre o pós-modernismo e explica por que Nietzsche pode ser considerado um. Nietzsche na verdade era, basicamente, um nazista? Bem, ele cita as partes problemáticas do filósofo e explica por que ele considera que ainda assim pode argumentar da forma como argumenta.

Para ser sincero, nada ali me pareceu muito polêmico ou absurdo. Hatab simplesmente prefere que a defesa da democracia não se dê através de ideias essencialistas como “igualdade” ou “direitos humanos”. Antes, o procedimento institucional competitivo, aberto a todos e justo, seria justificável porque nenhuma narrativa pode se arrogar o título de ser “a” Verdade com V maiúsculo (entre outras coisas). Não pretendo aqui fazer um resumo do livro, até porque não fiz anotações que lhe fariam justiça; digo só que as ideias se encadeiam com naturalidade, e se você gosta de pós-modernismo e Nietzsche é difícil não acabá-lo concordando com tudo que foi escrito.

O problema é que sou anarquista.

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Photo by Gigi Ibrahim

A insustentável leveza de ser pós-moderno

Um dos aspectos mais importantes do sistema que Hatab idealiza é o “agonismo” – ele chega até a usar o termo “agonarquia” em alguns momentos – que é basicamente o ideal da competição esportiva, uma competição em que você não quer aniquilar seu adversário; quer, antes, que ele seja capaz, já que isso dá significado à própria vitória (que glória há no Flamengo vencendo, no futebol, um time de ensino fundamental?).

Ele (e Nietzsche) pretende que essa forma de competitividade seja usada também na arena cultural, filosófica, política. Eu concordo em grande parte com isso, mas o que me incomoda é que pode haver uma razão pela qual esse tipo de competição é e sempre foi o padrão nos esportes e nos jogos – uma razão pela qual ela faz todo sentido nessa arena, mesmo que em outras ela nem sempre foi tão bem considerada ou posta em prática. O esporte é precisamente aquilo que não significa nada. Exceto pelo simbolismo, pela diversão e quem sabe pela possibilidade de treinar certas habilidades físicas… Nada. É como a arte, só que incluindo de forma mais direta comparações de performances. A atividade esportiva é esportiva justamente porque não importa. É virtualmente inconsequente. Se não o fosse, seria outra coisa. Caça, guerra, assembleia. Tarefas de casa… Sexo. Você pode “gameificar” algo ou transformar algo numa competição, mas o “esporte” enquanto categoria inclui coisas como futebol americano e esqui – em si mesmas, nenhuma aplicabilidade prática.

Mas quanto ao resto – especialmente a política – não seria melhor não tratar tudo com essa leveza inconsequente? Aliás… Não seria prerrogativa de quem não tem muito a ganhar, ou perder, adotar essa perspectiva enquanto política – enquanto sistema recomendável a todo um grupo ao invés de mera filosofia pessoal? O anarquismo que defendo não é o clássico, que pode ter enamorado a ideia de domesticar e eventualmente eliminar certos instintos, certas vontades humanas, e sim aquele que os reconhece como parte da experiência humana mas busca redirecioná-los culturalmente. A competição jamais acabará, mas isso não significa que ela precise ser o elemento fundante da dinâmica social, econômica e política. De forma semelhante, você pode ser “agonista”, viver sua vida dessa forma, e ainda reconhecer que na política talvez alguns limites e dispositivos sejam necessários pra salvaguardar certas coisas.

Desenvolvo: é perigoso associar o pós-modernismo a mero “privilégio”, pois isso é quase um ad hominem – mas o fato empírico é que, ao redor do mundo, as pessoas não estão exatamente numa corrida para abandonar suas origens e tradições e se tornarem sopas de legumes existenciais. Como diz Raewyn Connell, “somos informados de que vivemos […] na pós-modernidade[, mas] a maioria da população do mundo não vive”. Nesse sentido, para quem o pós-modernismo foi feito? Eu me empolgo com o pós-modernismo, mas por outro lado sou um exemplo de privilégio e caretice tirado direto de um livro didático. Só que o que me interessa no pós-modernismo é uma desconfiança epistemológica – não há como ter qualquer certeza quanto a nada. Não me interessa nada nele uma certa paralisia (que Nietzsche inclusive critica) que alguns tomam como corolário necessário: se você não tem certeza de nada e nada tem uma base metafísica, como pode presumir certas coisas como verdadeiras para ser funcional no mundo, ou como pode defender um valor político, ou como pode cultivar uma identidade específica?

Ora, posso porque posso, bolas. O pós-modernismo, para mim, tem um valor instrumental que se impõe da mesma forma que a evolução se impõe ao biólogo que se dê ao respeito e veja a porra das evidências; eu gosto da forma como ele afia a mente e impulsiona à criatividade e perceptividade (ou seja, creio que eu seria menos criativo e perceptivo se tomasse o mundo como um dado concreto e absoluto). Será possível que uma sociedade inteira seja pós-moderna e agonista e mesmo assim escolha princípios, valores específicos, para nortear seu sistema político? É claro que é. A diferença é que enquanto povos não-pós-modernos poderiam tratar esses valores como religiosos, tabu, questão de natureza humana, etc, os pós-modernos que tratassem tais valores como uma escolha não deveriam ser obrigados necessariamente a permitir que outros valores venham a concorrer por preponderância sistêmica. Um sistema político que se queira aberto e plural (como o anarquismo deve ser) ainda pode ser pensado com base em valores dos quais não pode abrir mão.

A desingênua neutralidade

O anarquismo é “humanista cívico” no sentido de considerar a participação uma coisa essencial. E uma comunidade anarquista elege certos princípios como a base da organização política. Hatab busca em seu arranjo institucional, ao contrário, uma espécie de mecanismo frio desprovido de tais princípios; um esquema neutro, “regras do jogo” que não transformam nenhuma (mera) narrativa em metanarrativa (geral), e assim é o mínimo essencial para que as narrativas possam competir pela vitória temporária na arena política.

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Pois me parece que Hatab não foi tão fundo no próprio pós-modernismo. Fish (um pouquinho aqui, mas principalmente aqui) demonstra que não há como chegar ao lado de fora. Uma lei que proteja a liberdade de expressão é útil mesmo que a liberdade de expressão “não exista” porque qualquer iniciativa que vise limitar a expressão terá que passar por um grande escrutínio. Mas esse escrutínio não é neutro – uma arena hipoteticamente feita sob medida para a discussão política mais abstrata do mundo jamais conseguiria ser neutra. Pombas, Sandel falou exatamente a mesma coisa em relação ao liberalismo deontológico e ele nem é pós-moderno (eu acho).

Mesmo um esquema governamental que se proponha “sem uma concepção de bem” definida ainda falha em ser realmente isento nesse sentido; ainda pressupõe necessariamente algumas coisas. A esquemática de Hatab não é diferente; pressupõe um povo pós-moderno, que valoriza o agonismo, o pluralismo absoluto – o tipo de moral bacana (sem ironia aqui) que Nietzsche expõe para o mundo.

Hatab provavelmente diria que não – não, a agonarquia não precisa pressupor nenhuma identidade fixa, nenhum tipo de pessoa ou grupo em termos de metanarrativa; a sociedade pode ser inteiramente composta por uma pluralidade de pessoas, sendo que nem uma única delas seria pós-moderna / agonista, e mesmo assim esse sistema funcionaria – já que, como dita o sonho liberal que ele não completamente rechaça, a diversidade absoluta pode conviver perfeitamente (se apenas tivermos os instrumentos corretos, puxa vida…).

Duvido. Mesmo que esse sistema seja mesmo adotado “por eliminação” – “como não há outra alternativa e não queremos uma mutually assured destruction, adotemos regras que não favorecem ninguém a priori” – isso significa adotar, em alguma medida, o agonismo e o pós-modernismo como metanarrativa. É esse tipo de coisa que meio que dá base (contradizendo agora o que citei antes da Connell) para que pensadores contemporâneos declarem que o pós-modernismo ganhou / está ganhando. Se ninguém em alguma medida valoriza esse agonismo como metanarrativa, então não vai haver ninguém para defendê-lo – ou mesmo para legitimá-lo como é preciso que seja para que, no mínimo dos mínimos, instituições repressivas funcionem (se nem a polícia defender essas “regras do jogo” que ninguém, aparentemente, precisa realmente adotar como filosofia de vida… Danou-se). Hatab faz crer que grupos e indivíduos podem adotar a narrativa filosófico-política que quiserem (inclusive narrativas que advoguem contra essas regras neutras do jogo) e tudo vai dar certo. Mas se não houver uma defesa desse agonismo fundamental enquanto princípio, ou vai haver o tipo de dominação silenciadora e tirânica que ele teme, ou vai haver guerra. É lindo que Hatab queira que a democracia possa ser defendida por aqueles que não suportam o racionalismo limitado de um Rawls. Mas se as sociedades acabam estruturadas da mesma forma, acarretando os mesmos problemas, que diferença faz?

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É certo que ao final do livro ele admite uma perspectiva trágica, segundo a qual não é bom salvaguardar essas regras do jogo contra certas subversões (por exemplo, não seria bom proibir qualquer discurso, inclusive o racismo, fascismo, etc). Eu posso respeitar essa decisão, e concordar com ela, mas não entendo porque isso seja pós-moderno, mas não uma sociedade adotar o pós-modernismo como metanarrativa mesmo escolhendo preservar certos valores como essenciais à organização política. Um de seus argumentos mais fortes é “deixe o fascismo e o racismo existirem para que o combate a essas ideologias fortaleça perspectivas justas (e, em certo sentido, algo parecido sempre existirá, então falar em “deixar que exista” me parece irrelevante). As coisas se constroem em oposição, diria Nietzsche, pois a vida é vontade de poder, e vontade de poder é vontade de superação. O sonho último iluminista / positivista / cristão de varrer o sofrimento e os problemas é contrário a esse impulso essencial da vida. No entanto, seria o caso de estimular o sofrimento por toda a parte para que haja superação? Obviamente que não. Portanto, deve-se alcançar um equilíbrio da agência humana que visa a superação – para que ela não se torne destrutiva ao desejar a superação daquilo que proporciona a superação em primeiro lugar. Eu só não estou convencido de que o arranjo institucional de Hatab é melhor nesse equilíbrio do que um arranjo parecido, anarquista, que escolha alguns valores como imprescindíveis. Isso nem precisa significar censura e prisão perpétua a fascistas (de novo, o argumento pragmático é bom), mas pode significar um discurso público, uma pedagogia, uma estrutura orientada para a manutenção de certos valores como anteriores à discussão política mais minuciosa.

O importante é que esses valores balizem as discussões políticas. O fato de a competição, de o procedimento ser justo, é o que torna o resultado justo, e portanto binding, diz Hatab. Novamente lembro de Sandel e sua discussão demolidora quanto ao óbvio ululante (depois que você lê): não, o fato de que um contrato é um contrato não necessariamente o torna justo. A competição precisa de um critério de avaliação que, dentro de uma comunidade, não está perenemente em disputa (obviamente que tudo está, na prática, em perene disputa cultural – o que não significa que o sistema político precise ser esquematizado a partir disso, assim como seria escroto estimular o sofrimento no mundo para que as pessoas possam superá-lo e assim como eu não preciso sofrer de paralisia intelectual porque sou pós-moderno).

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Photo by NobMouse

O que mais me fascina é: quem se beneficia desse mundo político em que não há esse critério e simplesmente a maior facção ganha? Quem ganha com o rechaço a certos valores pré-definidos que balizem a discussão? Eu não vejo essa discussão no livro de Hatab – embora certamente ela esteja acontecendo em outro lugar, e não o culpo por não inclui-la – mas sinto como se a democracia agonística satisfizesse um senso de coerência intelectual de quem gosta de Nietzsche e de democracia… E esse seja seu único mérito (voltarei a isso logo). Será que é absolutamente impossível ter um ambiente cultural de não-conformidade, de inovação, uma política tolerante e vivaz como a que ele descreve, sem a necessidade de manter um sistema político absolutamente aberto, destacado de quaisquer valores?

Faltou uma coisa aí

Tem uma hora que Hatab discute se é preciso algum tipo de “positive regard” pelos concidadãos na arena política. Ele diz que não – obviamente, considerando seu objetivo de purgar valores essenciais do esqueleto político agonárquico. Basicamente, só precisamos do respeito pelas outras pessoas – algo um tanto quanto kantiano, ele diz, sobre tratar os outros como fins em si mesmos – e, de qualquer modo, uma pessoa geralmente machuca as outras porque não é “alegre” o bastante.

O que ele sugere não só é absurdo, é sintomático do que foi dito anteriormente sobre o desejo de ser consistente quanto à Nietzsche. Ele precisa evitar essencialismos e assim está disposto a ignorar que muitas pessoas tiram alegria do sofrimento dos outros com bastante frequência.

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Photo by Infynyxx

Adivinha onde a gente vai parar de novo…

Mas há um aspecto aí (mais uma vez, vindo dos pós-modernos) que eu fiquei chocado que ele não analisou. Sendo fiel a Nietzsche, ele introduziu o conceito da multiplicidade do “eu” (que está mais esmiuçado em Contesting Nietzsche, diga-se de passagem) e como o “indivíduo”, o “sujeito” iluminista significa pouco. Mas mesmo explodindo o conceito de eu, as “partes” que compõem essa noção não vão além do indivíduo físico – ou seja, é o corpo que ainda limita os ingredientes que farão parte desse novo “eu” contingente e contextual. Em A ilusão ocidental da natureza humana, Marshall Sahlins diz:

As pessoas são partes umas das outras; elas existem não apenas dentro de si mesmas ou por si mesmas, mas em relações mútuas do ser — pode-se ler Marilyn Strathern e seu trabalho na Nova Guiné, em que uma pessoa se realiza dentro dessas e através dessas mutualidades do ser, a forma como “mãe” e “filho” ou “pai” e “filho” assim tornam-se pela atuação mútua da ligação que assim os identifica. E enquanto a mãe e o pai trabalham em prol do filho, ou os cônjuges em consideração um do outro, o “outro” parental está internamente presente enquanto causa da intencionalidade de alguém. Nessa condição de mutualidade do ser — que parece ser uma boa definição de parentesco — os interesses não são mais confinados às satisfações do corpo individual do que os “eu”s são confinados aos seus limites. Antropólogos de sociedades do Pacífico falam, ao invés disso, do “eu transpessoal”, o “eu” enquanto um “complexo terreno de relacionamentos” ou um “locus de relações sociais compartilhadas ou biografias compartilhadas”. Muitas são as sociedades ao redor do mundo em que parentes devem ser recompensados pela morte de alguém, pelas ofensas que alguém recebe, ou até mesmo por terem cortado o cabelo de alguém.

Ou seja – será pedir demais que ele seja um pouco mais pós-moderno e menos fiel a Nietzsche (afinal, era o que Nietzsche queria, não é mesmo?) e considere também na concepção “múltipla” de sujeito… Outras pessoas? Outros corpos? É esse pressuposto epistemológico quanto ao que define uma pessoa que torna a consistência dele meio tosca, ainda que rigorosa: ele não pode admitir que as pessoas propaguem, como parte de um projeto político, como valor político, que as pessoas cuidem mais umas das outras. Não; só o auto-interesse é inteligível, e se você quer que as pessoas não machuquem as outras, deixam-nas satisfeitas o bastante para que elas não queiram fazer isso (você já viu os efeitos que essa espécie de self-absorption tem em tantos filhos únicos? Multiplique por 100 sob esse discurso…). Bem, que tal, para ser consistente e não tapar o sol com a peneira, considerar que quando agimos em consideração de outra pessoa, fazemos isso porque essa pessoa é também parte de nós, e é assim que relações de afeto funcionam? Isso evita a fantasia de um altruísmo angelical como motivador, ao mesmo tempo que acomoda uma parte enorme da experiência humana.

Por que não?

Olha, eu realmente gostei do livro, tanto na forma como no conteúdo. As críticas que faço vêm do meu anarquismo. Ele mesmo avisa, logo no início do livro, que ele pressupõe um Estado – e no entanto, à medida que lia, pensava: grande parte do que ele diz para defender, a partir de uma perspectiva Nietzscheana e pós-moderna, a democracia, poderia ser dito também para defender o anarquismo contemporâneo.

Mas será que ele realmente entende o anarquismo? Na página 64 ele diz que ele não o considera viável para análise porque se trata de um “desarranjo” em que “nenhuma perspectiva domina” (tradução livre). Sim, ele não vê nenhum problema com a dominação de uma perspectiva na arena política: ele só deseja divisar mecanismos que tornem a dominação fruto de uma vitória obtida numa competição justa e aberta. No entanto, é absolutamente equivocado dizer que no anarquismo não há uma perspectiva dominante – seria o mesmo que dizer que não há sociedade numa sociedade anarquista; que se trata de um bando de indivíduos desagregados (e se a única coisa que ele leu foi Stirner, não o culpo por pensar assim). Se há comunidade, se há política, há um entendimento básico quanto a uma série de coisas – esse entendimento é o que permitefunda a comunidade; Bourdieu discute isso, em parte, em seu texto sobre a violência simbólica. A linguagem, os valores, uma certa visão de mundo – é preciso que uma comunidade compartilhe isso para ser minimamente funcional. É claro que uma perspectiva domina. A questão é: como domina?

Ela certamente não domina à base de força, repressão ou violência simbólica; e certamente não domina como resultado de uma “vitória” endógena. Graeber argumenta que a democracia majoritária só existe quando há a ideia de que todos devem ter uma “voz” nas decisões políticas e, ao mesmo tempo, quando há um dispositivo de poder capaz de forçar a minoria a obedecer a maioria. Para Hatab a glória da política é o agonismo do combate constante entre narrativas, propostas, ideias – ele não é capaz de imaginar o anarquismo porque ele precisa poder forçar a mão dos perdedores.

Na página 65, ele se pergunta “que tipo de política teríamos se, por exemplo, esperássemos por unanimidade ou algum tipo de super-maioria”. Algo próximo ao processo decisório por consenso, e é de fato uma política bastante diferente. Não porque não pode ser agonista; ela é diferente porque é balizada por alguns princípios específicos. O mesmo convite ao debate amplo é feito, e o debate ocorre, mas a resolução dele se encaminha por outros meios. A vontade de superação – vontade de poder – não vai sumir nesse tipo de organização sociopolítica. Vai ser redirecionada para outros alvos, outras relações.

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“No fim das contas”, ele escreve, no fim do livro, “devemos deixar as pessoas viverem as vidas que elas quiserem viver”. Realmente, bastante pós-moderno – e digno de aplauso. Mas a questão é: como isso realmente se traduz em organização política e na própria concepção de “pessoa”? Quem são essas pessoas – indivíduos ou povos? Que interesses regulam essa concepção? Hatab diz que é precisamente porque devemos deixar as pessoas viverem como quiserem que esse sistema democrático Nietzscheano é tão bom. Mas seu processo decisório envolve, a cada decisão (sendo generoso o bastante para imaginar que a minoria não seja composta sempre pelos mesmos), um grupo de pessoas que não vai “viver a vida que elas quiserem”. O processo decisório por consenso (que, é preciso lembrar, não serve para submeter cada passo de todo mundo a constante análise; para isso, bem, existem Estados…) arranja através da cooperação e do entendimento mútuo formas de superar problemas e desafios da vida social. Uma democracia pós-moderna Nietzscheana tem como base para a aceitação geral das pessoas no sistema político o fato de que não se pode pré-estabelecer quem está certo e errado, quem tem ou não tem direito a ser ouvido – mas se o resultado é uma menor possibilidade de que “vivam a vida que quiserem” em vários “setores” da vida, o que é que as impede de se separarem do “grande grupo”, ou mesmo que continuem “juntas” (geográfica ou ideologicamente), ajam à revelia das decisões majoritárias? Ah, é mesmo – o tipo de força que as obriga a se dobrar para a vontade de uma maioria que pode ser tão pequena quanto 51% (e uma defesa Nietzscheana da democracia não pode pressupor algum tipo de “consciência” que as faça voluntariamente querer se submeter, já que exclui essencialismos…).

Se esse for o caso, qual é o sentido dessa democracia? Possibilitar que mais pessoas vivam as vidas que quiserem viver? Ou satisfazer um valor abstrato quanto ao cumprimento de processos e procedimentos? Ou ainda gerenciar as massas de recursos humanos aparentemente necessárias para criar e manter o conforto material? Em qual dessas alternativas as pessoas mais são tratadas como fins em si mesmas?

Na fórmula “viver a vida que se quer”, ajustar uma sociedade para que seus indivíduos sejam livres e ainda concordem implica defender valores como essenciais à vida em comunidade, porque isso influi no sentido do termo “quer” – o debate de valores é o que permite que as pessoas queiram chegar a um comprometimento em que todos saem ganhando, ou no mínimo ninguém sai perdendo. Sem um querer culturalmente balizado, resta a coerção como princípio – e que Hatab não é tímido em aprovar. Não se deve ter moralismos em relação ao poder, diz; condições de liberdade são tão importantes para a criatividade quanto as de restrição, e toda sociedade tem que ser um equilíbrio entre ordem e liberdade. Sim, é verdade; mas isso não significa que não possamos repensar o que dá origemlegitimidade à ordem, além dos mecanismos através dos quais ela se mantém.

O livro é fantástico e vale a pena ler. Apenas acho que, como diz Graeber, o ataque à imaginação fez aqui uma vítima: de que mais formas essa ideia poderia ter florescido se o anarquismo não fosse preterido, enquanto possibilidade, já de antemão?