O ângulo maldito do Audible.com

Eu devia estar dormindo já há duas horas, mas enfim, aqui estou… Acabei vendo alguns vídeos antes de dormir e precisei vir escrever este texto, de tão agoniado que me senti em relação a esse tema.

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Photo by Macrophy (Grant Beedie)

Um agonia tipo essa, assim.

Se você assiste alguns canais estrangeiros no Youtube, como CinemaSins, Couch Tomato e Wisecrack (todos super recomendados), você vai perceber que muitas vezes eles são patrocinados pelo site Audible.com, uma loja de audio-livros (audiobooks) subsidiária da Amazon. O patrocínio significa que, logo depois que o conteúdo principal do vídeo termina começa uma propaganda feita pelo apresentador do conteúdo. A propaganda é feita de um jeito criativo; ela não parece ser feita unicamente por grana (o produto parece algo que as pessoas nesses canais realmente usam e gostam; o dia que o Jeremy do Cinema Sins fizer a propaganda de, sei lá, uma clínica de bronzeamento artificial, aí isso vai parecer falso), não é invasiva ou chata, é honesta (isto é uma propaganda) e é bastante útil, na verdade, especialmente porque depois de recomendar o site eles dizem algo como “e se você está procurando por uma recomendação de leitura, recomendamos <insira livro bacana e relacionado com o conteúdo aqui>”.

Só que tem uma coisa que me incomoda profundamente em algumas dessas propagandas: o ângulo, o rationale usado para incentivar o uso dos audiobooks. A ideia principal é: ninguém tem mais tempo, ou saco, pra ler hoje em dia. Então simplesmente ouça o livro.

Problema #1: há um problema

Mas o Audible está fazendo uma coisa boa, não está? Está reconhecendo que tem gente que não tem tempo ou paciência para ler, e muitas dessas pessoas tem algum tempo que, embora não possa ser aproveitado pra ler (estão dirigindo, ou se exercitando), pode ser aproveitado para ouvir coisas.

O Audible, sendo subsidiário da Amazon, não pode ter interesse em não incentivar vendas de livros. Talvez ele esteja sendo simplesmente simpático com quem não gosta de ler, aproximando-se dessas pessoas estrategicamente, como um “good cop”, e fisgando-as à literatura. Começam com audiobooks e, depois, acabam indo pros livros. Boom! É assim que você cria leitores. Com uma estratégia sorrateira, praticamente tirada das páginas de um Sun Tzu (ou de um audiolivro dele, narrado pelo… Pedro Bial ou coisa parecida).

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Photo by nickgraywfu

Muy amigo.

O problema é que eu tenho minhas dúvidas de que essa taxa de conversão seja necessariamente alta. Os audiobooks visam se adaptar à rotina das pessoas, e não o contrário; quem não tem tempo pra ler, mas quer ler, poderia encontrar a motivação pra abrir um espaço em suas vidas para um livro. Mas, com os audiobooks, elas não precisam mais disso: encontraram algo que se encaixa perfeitamente na rotina que elas já têm. Daqui em diante, é mais provável que elas continuem comprando audiobooks, se acostumem a eles, invistam nesse sistema de consumo de informação. A Audible pode não querer diminuir as vendas de livros de sua empresa-mãe – mas ela reconhece que algumas pessoas não vão comprar livros tão cedo, então constituem um nicho que ela pode conquistar sem medo de canibalização ou autossabotagem.

Problema #2: Conteúdo e formato

Ao tratar os livros como veículos de mensagens valiosas, você separa o conteúdo da forma de um modo absolutamente destrutivo para a arte. A mensagem é: você quer ler, mas não tem tempo. Mas existem coisas nos livros que você quer saber, então… Obtenha a informação sem a experiência. Porque ouvir as palavras de um livro vai certamente fazer com que você consiga reter algumas das coisas que entram pelos ouvidos, mas isso não tem nada a ver com o tipo de habilidade e virtude que a leitura simultaneamente exige e desenvolve: paciência, compromisso, investimento; a atitude de “stop and smell the roses” tão peculiar à análise calma, ao consumo apropriado de algo que quer ser uma experiência estética. O formato interessa. Não, só porque você conhece a história de um livro não quer dizer que o leu; só porque ouviu o conteúdo do livro, não quer dizer que o leu. Se um amigo lê o roteiro de um filme para você, ou o assiste numa sala separada e vai contando para você o que se passa na tela, não quer dizer que você viu o filme.

Isso vale mais para ficção, claro, embora a não-ficção não seja “neutra” a tal ponto que não exista uma voz, um estilo do autor. Mas é que com a não-ficção, a informação realmente vale mais: é na maioria das vezes a motivação da leitura. Eu tenho aqui um audiobook do John Keegan que estou louco pra ouvir, mas é porque quero a informação. Mas o Audible não se vende como plataforma para estudantes. Os audiobooks são vendidos, nessas propagandas, como perfeitos e convenientes substitutos de livros, inclusive os de ficção.

Problema #3: Ler é ativo; ouvir é passivo

Não só a experiência estética de ler um livro diretamente é diferente de ouvi-lo, a audição de um livro implica que alguém fez por nós as escolhas que são feitas no “processamento” que nosso cérebro faz de um texto ao lê-lo. O tom do que os personagens dizem, o ritmo; ler mexe muito mais com a nossa imaginação, porque nós temos que criar as vozes que dão vida e corpo à leitura; num audiobook, a voz é a do narrador, que faz por nós o tipo de escolha que vai nos ajudando a moldar essas vozes. Esse tipo de processo criativo faz da escuta de um audiobook uma experiência passiva, muito mais próxima da televisão que de um livro. A constituição da narrativa em nossa imaginação a partir dos sinais gráficos da escrita, muitas vezes abertos a interpretação, é uma experiência muito mais ativa. Um bom contador de histórias pode nos fazer visualizar a história, claro; mas se a ideia é “ler” audiobooks enquanto você dirige, não é nem para você ficar imaginando muita coisa.

Problema #4: Ler não vale a pena

Uma das coisas que mais me incomoda nessa propagação de que “ninguém tem tempo pra ler hoje em dia” é que isso contradiz pelo menos alguns dos cenários que o Audible defende. Você pode ler, por exemplo, enquanto faz esteira. Mas será que essas pessoas não podem fazer um pouco menos de esteira, ou fazer menos vezes a esteira por semana, para se dedicar a ler? Vamos supor que não: realmente não existe nenhum outro tempo na vida dessa pessoa que ela possa usar para ler, um pouco que seja?

É essa questão de prioridades que me deixa irritado. Pode ser que a vida de algumas pessoas seja tão louca que não sobre nenhum tempo pra ler. Mas muitos de nós temos a tendência a exagerar nossas obrigações e nossas rotinas, supervalorizando o quão “cheio de coisas para fazer” realmente estamos. Para essas pessoas, a mensagem construtiva é: Repense. Reestruture. Priorize. Encontre formas de fazer coisas que vão te fazer bem, ou que você vai curtir, e sua vida vai continuar legal – ela vai ser corrida de qualquer jeito, então inclua um pouco mais de leitura.

Mas não. O que o Audible diz é: se você pode não ler, e ainda assim se divertir, pra que ler? A mensagem ressoa porque é exatamente o que não-leitores já fazem (se você pode se divertir sem ler… Pra que ler?). O engodo é que isso dá a impressão de que a pessoa está interagindo com “livros”, quando não creio que seja bem o caso.

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Photo by Muffet

Joguem os livros na fogueira!!!1! Chegaram os audiobooks!!1!

Problema #5: Propaganda enganosa?

Pra fechar a discussão com chave de bosta, me pergunto: e audiolivros de fato poupam tempo? Um narrador não pode ler o livro correndo, porque se não muitos podem não entender e isso equivale a ler um livro escrito à mão com letra de médico. Tem que fazer uma leitura pausada, e eu, como leitor dinâmico, sei que progrido muito mais rápido que a fala de um narrador. Como leitor, eu posso pular partes – seja isso bom ou ruim, é uma decisão minha, e é especialmente relevante em livros de não-ficção – como espectador de um mp3, tenho que esperar ele terminar, ou ficar tentando adivinhar quanto tempo ele vai precisar pra ler aquela parte e pular especificamente aquela quantidade de segundos ou minutos (e essas adivinhações raramente dão certo de primeira).

Pior ainda, quantas vezes queremos voltar e reler aquele pedacinho que acabamos de ler? Isso deve ser um inferno de fazer com arquivos de áudio, ainda mais pra alguns dos cenários que o Audible afirma abranger (enquanto você faz uma bicicleta na academia? Enquanto dirige?). Isso me leva a pensar que talvez as pessoas não tem é tempo, nem saco, pra ficar ouvindo audiobooks – essa deveria ser a propaganda da Amazon pra vender livros, aliás…

Disclaimers

Não estou falando aqui da qualidade dos audiolivros, nem da importância desse segmento de mercado, por exemplo, para pessoas com deficiência visual; até porque não é esse o ângulo do Audible. Estou incomodado com a mensagem de que os audiolivros são bons porque dispensam a leitura; de que ninguém tem tempo, paciência ou força de vontade pra leitura.

Por outro lado, isso parece estranho vindo de quem reclamou que a leitura não deve ser incentivada com esse tipo de argumento racional voltado para seus efeitos práticos. E no entanto aqui estou eu, dizendo que os audiobooks não trazem tantos benefícios para a imaginação, a criatividade, o pensamento crítico, etc quando livros de papel… Mas acho que minha incomodação vai além disso. Com essas observações só quis marcar minha posição, reforçando o que acredito ser uma verdade incontornável: audiobooks não substituem a leitura. Ainda acho que a leitura deve ser incentivada e propagada, principalmente em relação às crianças e (pré-)adolescentes, como uma questão de prazer, de hábito, de hobby, de lazer. E esse é um dos aspectos da leitura que essa ação publicitária do Audible menospreza e diminui. Não curti.

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Photo by NatalieMaynor

“Com um fone de ouvido ficaria bem melhor” -n

E você, o que acha? Você consome audiolivros? Já usou o serviço do Audible.com? O que acha dessa forma de vender o serviço?

Amigos e amores

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Photo by Moyan_Brenn

Dizem que os nossos próximos, nós escolhemos; e há quem valorize a seletividade. Isso é mentira, ou ilusão. Escolhemos contatos, aliados, antidepressivos. Amigos e amores surgem de repente: vêm da destruição, não da criação — começam com a derrubada inequívoca de qualquer relação trivial que justificava nossa ligação a eles antes, antes dessa catástrofe que solidifica nosso laço.

Relações como essas, porém – admito – mantêm-se através da comunicação, da colaboração e do incentivo, nem que seja pela inveja e pela crítica. As pessoas que passam pela nossa vida, mas quase nada significam, ensinam a conveniência, o abandono, o interesse. Eles drenam forças. Os que estão no coração ensinam a sensibilidade, a confiança e a liberdade. Estar entre eles é estar em casa. É precisar de nada para se tornar igual.

Como incentivar e como não incentivar a leitura no Brasil

O tempo todo vemos dados alarmantes sobre o estado da leitura no Brasil. Precisamos urgentemente discutir estratégias para transformar essa realidade.

Afinal, a leitura é importante: ela nos deixa mais “inteligentes”, sem dúvida, e todos queremos um país mais inteligente, agora e no futuro. Só que, quando colocamos isso em evidência no contexto de incentivo ao hábito de leitura, confundimos algumas consequências da leitura com o que nos faz ler. Fazendo isso, erramos o alvo.

Ler faz bem à saúde

Leia mais ficção e você vai se sair melhor em provas e concursos – sua habilidade de interpretação textual vai melhorar; as palavras serão mais familiares, e textos de não-ficção, mais facilmente compreendidos. Logo você será capaz de solucionar problemas com mais eficiência. Desenvolver seu cérebro é o tipo de coisa que não tem efeitos colaterais negativos: sua lógica fica melhor, mas também sua memória, sua paciência, sensibilidade artística, perspectiva histórica, empatia, inteligência emocional, resistência a Alzheimer… Ler é como a melhor combinação de remédios e complementos vitamínicos, só que ministrada principalmente para suas habilidades intelectuais e profissionais.

Só que investir nessa visão (“ler é bom para você, então leia!”) pode ser um mau investimento, posto que apenas marginalmente efetivo, quando muito (mesmo que não conte como prejuízo, seria um desperdício de oportunidade). Se simplesmente saber que algo é ruim, danoso ou errado fosse o suficiente para que as pessoas não fizessem tais coisas – em suma, se Aristóteles estivesse certo quanto à origem do comportamento mau – o mundo seria substancialmente diferente do que é. Por mais que haja valor na conscientização (que  origem a atitudes; só não o faz exclusivamente), as coisas não são tão simples.

Do ponto de vista administrativo, a leitura é uma questão de “habilidade acadêmica”. Como dito acima, queremos um país de leitores. Se é a falta de leitura que ameaça nos “emburrecer”, então temos que fazer as pessoas entenderem que a leitura é boa para elas até elas lerem mais.

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Photo by CarbonNYC [in SF!] CC

O que escapa a essa lógica é que a leitura não é algo utilitário. A leitura é um prazer que, coincidentemente, traz benefícios a quem lê (e, trickle-down style, a todo mundo em volta desse bendito leitor). A matemática sofre do mesmo problema: ela é a manipulação da lógica; é arte com formas e abstrações. Mas, ensinada como uma ferramenta, e extraído dela todo o prazer da descoberta, tudo que os alunos veem é uma coisa que 50% das pessoas nunca vão usar no futuro (“e, de qualquer forma, existem calculadoras para quê, diabos?”). Você pode até convencer algumas pessoas a começar a ler por causa dessa questão “utilitária”, mas 1) não serão muitos; e 2) os resultados não serão duradouros, porque ao se aproximar da leitura com esse viés (“busca-se” alguma coisa, racionalmente; algum resultado, algum lucro, essa “inteligência” que é prometida) as pessoas logo vão se frustrar e… Bem, vão abandoná-la com o tempo, dando prioridade a outras coisas.

Um livro, mesmo um livro bom, não é a causa absoluta de seus efeitos; se fosse assim, todo mundo teria a mesma opinião sobre um livro. A forma como a pessoa encara a leitura vai influenciar enormemente suas impressões sobre ela. Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, os livros de Augusto Cury, de Dan Brown, de Nicholas Sparks, os 50 malditos tons… É possível que eles possam sensibilizar alguém que entre na literatura “por obrigação”, essa conveniência interessada. Mas também é possível que, lendo “por obrigação”, a pessoa não consiga entrar num mindset que permita que o prazer aflore através desses livros, ou de quaisquer outros.

Ficar enchendo o saco de alunos que não leem, fazendo um, digamos, non-reader shaming (como já vi professor fazer) só vai associar a leitura a sensações de vergonha, inferioridade, humilhação – a coisa de “escolhidos”. “Como eu não gosto muito de ler e até hoje nunca gostei, e eu não sou mesmo a pessoa mais brilhante do mundo, esse negócio de ler simplesmente não deve ser para mim…”

Tudo começa pelo hábito

Ler é uma questão de prazer – mas isso tampouco ajuda nossa causa. A leitura exige mais. Prazer por prazer, existem muitos; se posso ver um filme, beber e dançar, ou ouvir música no Youtube, por que eu deveria ler? Filmes e músicas também desenvolvem o cérebro e podem fazer pensar. A dança é também uma arte muito importante, e a corporalidade não pode ser desprezada. Tentar começar uma briga em relação a qual arte é mais prazerosa, ou (de volta ao argumento anterior) qual traz mais benefícios técnicos, não é interessante.

A chave está no hábito. Crianças aprendem coisas por causa da mais básica e fundamental dinâmica cultural da humanidade: elas querem fazer o que os adultos fazem. Mais tarde, com mais personalidade e experiência, querem fazer o que alguns adultos fazem (seus modelos e ídolos). Se estamos falando de nossas crianças e adolescentes (o “futuro da nação”), temos que mostrar aos atuais adultos que eles são seus modelos e ídolos. Claro, há outros (como as celebridades), mas estamos falando de coisas que estão ao nosso alcance, não é mesmo?

Não peça a seu filho para ler mais, explicando para ele que isso é importante, se você não lê. Não diga aos seus alunos que ler é importante para passar no vestibular, ou mesmo porque é legal – apareça com uma desgraça de livro debaixo do braço na sala de aula! Comente o que está lendo, compartilhe a experiência. Porque se essa experiência não “veio de casa” na forma de rotina, esse aluno vai precisar ser convencido de que essa é uma experiência em que vale a pena investir considerável tempo, energia, eventualmente dinheiro. Fale da trama, sem spoilers; do que você sentiu durante a leitura, do que achou mais interessante. Compare. Fisgue. Fale até de coisas que já leu, e como aquilo impactou você, pessoalmente. Pessoalmente, sim – a leitura é uma jornada pessoal.

E embora um livro não seja a causa absoluta de seus próprios efeitos, é preciso não tornar a leitura um campo minado. Jovens leitores podem ler coisas complexas; nós tiramos das obras de arte o que estamos preparados para absorver. Se não pudermos entender tudo, tudo bem. O problema não está tanto em ler a versão original ou a adaptada de Dom Casmurro; é achar que é preciso decidir qual é a leitura certa para cada idade ou grupo, ou mesmo eleger esses livros que “todo mundo deve ler”. Cada indivíduo é único em sua relação com a leitura, e deveria seguir a bússola de seus interesses. Obviamente que nem todo leitor pode começar a ler a Odisseia assim que for alfabetizado – mas volto a isso depois.

Fácil acesso

O acesso aos livros é uma pré-condição para o trabalho de incentivo à leitura. Obviamente que em escolas e localidades em que não se achem muitos livros em bibliotecas – ou mesmo sebos – é imprescindível abastecer o local com literatura; mas não se pode pensar que esse era o único problema antes, e que basta investimento em termos de compra de exemplares para que de repente haja uma proliferação miraculosa de leitores. A oferta não gera, automática e magicamente, demanda.

Sem considerar os locais com difícil acesso a livros físicos (onde a internet provavelmente também não é lá essas coisas), o acesso das pessoas em grandes centros urbanos também vem aumentando. Há centenas de escritores independentes publicando suas obras na internet (ahem…) e mesmo os ebooks tornam o caminho da decisão de leitura até a leitura em si uma coisa de 2 minutos; não é preciso nem sair de casa, nem esperar o livro chegar via correios. E só ler.

O problema é que as mesmas mídias que tornam significativamente mais confortável ler em aparelhos eletrônicos (celulares, tablets) também são aquelas que facilitam o acesso a tudo o mais – vídeos, facebook, jogos. Se antes a leitura já entrava em desvantagem na competição com outras forças de prazer e atividade de lazer, essa competição não ficou mais fácil. Ficou pior.

Uma questão humana

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Photo by kevin dooley CC

Isso aponta para uma única conclusão: o acesso mais fácil ajuda, é claro; e ajuda em especial aqueles que tinham um acesso nulo ou quase nulo em relação aos livros. Só que é só pré-condição; o que vai fazer diferença mesmo é o fator humano. Pais, professores e mediadores de leitura.

Sobre os pais e professores já falamos: adultos em geral que, se realmente querem ter uma influência direta sobre os pequenos a que têm acesso, devem começar a ler imediatamente e integrá-los a essa vida de leitor. Integrá-los, sim: já falamos sobre como a jornada do livro é pessoal, e isso às vezes é um problema. A criança só quer brincar, e aí vê o adulto fascinado, fechado em seu próprio mundo do livro. Parece um negócio tão solitário, esse de ler – é preciso mostrar pra essa criança por que alguém escolheria essa atitude solitária de vez em quando; como é legal, e como ela nem precisa ser solitária, na verdade. Boom – contar uma história antes de dormir, compartilhar o que você está lendo, trazer livrinhos infantis pra ir incentivando… Isso tudo conta muito mais que ficar explicando que a leitura é importante para ela tirar 10 na prova. Senhor, infinitamente mais.

Você viu o que estou fazendo aqui, não é, caro leitor [dessa postagem]? Dando uma razão racional, que não tem a ver com o prazer de ler, para que adultos comecem a ler. Bom, estou partindo do pressuposto de que adultos são muito mais propensos a agir com base nas consequências de suas ações, visando fins de mais longo prazo e valorizando coisas para além do calor do momento. Então eu realmente não estou ligando se esses adultos vão gostar de ler tanto assim; eles precisam, pra gerar leitores que, no futuro, vão ter uma relação de amor verdadeiro em relação à experiência de ler. Encare como um pequeno sacrifício que, não sei, vá que os faça abrir o coração e descobrir que também gostam de ler, afinal de contas. E que (esse é um desafio maior ainda), sempre tiveram mais tempo pra investir nisso do que achavam que tinham.

E quanto aos mediadores de leitura? Esses são profissionais importantíssimos também. Sabemos que introduzir alguém à leitura não se trata de jogar qualquer livro para eles lerem. Trata-se de alcançar os interesses deles (com sugestões e convites) quando eles podem ser muito jovens ainda para saber exatamente o que querem ler. E é importante ajudá-los nas primeiras leituras, até que eles se sintam confortáveis para começarem a ler sozinhos. Não é preciso uma formação universitária para fazer isso, claro, mas estudos, e um certo conhecimento pedagógico, ajudam a tornar esse processo mais eficiente.

Capacitação é a palavra-chave: se queremos mais leitores, temos que investir na formação do tipo de profissional que vai ser capaz de tornar a leitura interessante. Ouvi dizer que vai ser gasto bastante dinheiro numa campanha midiática, por parte do governo, em favor da leitura. Pra quê isso, gente? Que impacto real vocês acham que vai ter algum ator global falando algo como “ler é legal para caramba, melhora seu desempenho escolar e é o que o Brasil precisa, um país é feito de homens e livros blá blá blá blá blá blá leia mais!”? Seria melhor se o ator em questão se deixasse fotografar por um paparazzi lendo um livro. É um fenômeno conhecido, especialmente quando envolvem celebridades do mundo infanto-juvenil, como, sei lá, Justin Bieber. Se ele for pego lendo um livro, muitas e muitas fãs que às vezes nem gostavam de ler antes vão ver do que se trata. O fanatismo pop tem um lado bom, também.

Mas, voltando à crítica da tal campanha, e de todo o dinheiro que vai ser jogado nela: o que é preciso é investir na rede grassroots de profissionais que estará no chão da escola, trabalhando com os alunos como indivíduos merecedores de respeito que são – jornada pessoal, sim? Não dá pra transformar o incentivo à leitura em questão de massa, porque a literatura é a experiência artística que mais desafia essa massificação. A relação é pessoal, e o incentivo também deve ser; nisso deve consistir o trabalho do mediador de leitura no dia a dia da escola.

Em tempo, capacitação envolve a valorização dos professores também. Não dá para pedir que eles estejam sempre lendo mais e mais coisas enquanto trabalham de forma intensa para ganhar salários péssimos. É preciso que eles tenham tempo, também, para ler, para poder indicar esses livros que leem, poder relacionar o que estão lendo com as lições em sala de aula (que, aliás, terão mais tempo para planejar…). No fundo, advogo por um modelo educacional radicalmente diferente desse. Mas, se for para trabalhar com o que temos no futuro próximo, acho que esse é o básico do básico.

Conclusão: não é uma questão de preço

E o preço? Sabemos que os livros, no Brasil, não são baratos. Se investigarmos a questão, vamos descobrir que a grande vilã dos altos preços dos livros no Brasil é a tiragem: como temos poucos leitores, vendemos poucos livros e os imprimimos em poucas unidades para que não encalhem e gerem prejuízo.

Nesse sentido, percebam, o preço baixo não é causa de maior leitura; só será possível enquanto consequência. Além do que, comprar um livro nem sempre é a única maneira de ler livros: as bibliotecas estão aí para isso, e a discussão sobre o fácil acesso volta a ser relevante – mas, atendo-me ao preço, é importante notar que enquanto continuarmos reforçando a ideia de que a leitura só vai decolar no Brasil quando os preços baixarem, o que estamos realmente dizendo? Que vale a pena pagar 30 reais por um jantar (40, 50, enfim; depende de quão chique é o restaurante e quão caro é o livro, e o triste é que nós pagamos sim essa quantia por comida quando podemos), mas não por um livro. E veja, há muitas comparações como essas, mas a do jantar é realmente emblemática; uma coisa que dura uma noite, contra uma experiência absolutamente repetível condensada num objeto (físico ou digital) duradouro.

Não se engane: quem está aprendendo as regras do jogo de viver está bem atento a essas hierarquias de valor, e a elas se adaptará. Não diga que os livros são caros – lamente o fato de não ter dinheiro o suficiente para comprar duzentos por mês. Ainda antes disso, separe efetivamente um dinheiro para comprar um capa dura, um livro de bolso, um conto digital por 1,99 na Amazon, qualquer coisa; qualquer coisa que valorize a literatura, para nós que a produzimos e para crianças e adolescentes para os quais você vai mostrar, não com palavras, e sim com gestos e atitudes, que ler é importante. Que é bacana. Que é gostoso. Que é bom.

Como fazer com que os leitores se importem com os personagens de uma obra ficcional

Bom, como vocês sabem, eu sou meio que bastante contrário a fórmulas simplistas. Em se tratando de arte e literatura, a complexidade que almejo tem a ver com um “gut feeling”, uma sensação de que esse troço está certo. Você lê, relê, pensa, repensa, lê, relê – e a coisa flui, tudo se encaixa, a sensação é arrebatadora na medida planejada (ou, surpresa, melhor que a planejada) e aí pronto: você não precisa do blá blá blá técnico chato, e evita pensar demais. Você só faz. Nada de jargão, nada dos caminhos já percorridos por outros. Se parece certo, está certo. Certo?

Não. Embora eu continue achando que essa intuição, esse “GPS artístico” é fundamental e ele tem que ter liberdade para voar enquanto você escreve e analisa o que escreveu, existem três problemas fundamentais com um approach absolutamente intuitivo:

  1. Esse seu GPS artístico tem que ser bom, e estar “calibrado”. A maioria de nós vai ter problemas em admitir que nossa intuição pode nos enganar; que ela pode não ser tão genial quanto às vezes pensamos, e pode nos levar a escrever merda. Embora seja poético pensar que o trabalho do escritor é um labor solitário, a verdade é que pontos de vista diferentes sobre a obra ainda em produção nunca pioram a arte final; tornam-na mais rica, de um jeito ou de outro, sempre. Isso sem nem falar no papel do editor… O que estou dizendo é: você precisa ler muito (e ler coisas com qualidade literária) e escrever muito para desenvolver uma sensibilidade artística boa. Isso tem a ver com confiança, orgulho, humildade, talento, habitus, capital cultural. E é uma coisa que cada autor tem que resolver consigo mesmo. (Observação: há também, obviamente, grande valor em conhecer as histórias que existem no mundo para não, ham, fazer nenhum plágio involuntário.)
  2. Talvez você esteja se atrapalhando. Veja, mesmo que você tenha um senso artístico incrivelmente arrojado; um senso super perspicaz do quê e de como escrever para alcançar aquele efeito no leitor, pode ser que você esteja escrevendo sobre algo, ou sobre algo de um jeito específico, por causa de algum momento na sua vida, de algum interesse passageiro, de algum demônio da mente que você precisa exorcizar. Isso tudo é muito bacana, e na verdade essas são boas motivações para escrever. Só que, talvez, influenciado por essas coisas, você ache super legal falar dessa ideia, e não percebe que… Na verdade ela não é muito boa. É preciso separar o que o público vai achar de uma ideia do que você, sabendo de todo o contexto de produção da obra, vai achar. (Observação: muitas vezes, contudo, você pode deixar o leitor saber do contexto de produção. Isso muda tudo; desde um “baseado em fatos reais” até “escrevi isso aqui através do whatsapp“).
  3. E se você não gostar do lugar para onde a sua intuição o levou? O que vai fazer? (Observação: temos ideias ruins o tempo todo. É parte do “brainstorming”.)

Para mim, o papel de teorias literárias, de estudos sobre a criação literária, é o de ferramentas que vão aparecer para consertar esses problemas. Se eles são aplicados desde o início, viram fórmulas; se as fórmulas ficam muito aparentes, são clichês. Mas, fórmulas ou clichês, histórias que têm como inspiração “modelos” de escrita são problemáticos não só por causa do que elas são, mas por causa do que elas poderiam ter sido. Forçadas desde o início a obedecer uma série de regras e ideias preconcebidas sobre o que um “bom enredo” deve ter, que tipo de genialidades elas poderiam ter sido, se esse lado diferente, ousado e (por que não?) “patinho feio” delas não tivesse sido silenciado na sua imaginação?

Primeiro a ideia, a inspiração, o planejamento completamente baseado no seu coração; depois, se você não estiver satisfeito (ou até mesmo se estiver), é hora de começar a pôr a ideia à prova; de questioná-la, analisá-la, dilapidá-la. É nessas horas que a teoria serve bem, e, novamente, o faz sempre sob o comando da sensibilidade artística. Não adianta nada mudar a sua ideia para encaixá-la numa “jornada do herói” se no final você não achar que ela ficou mais tão interessante – a saída deve ser outra, e pode estar em outras ideias teóricas sobre criação literária – ou, ainda, no meio do caminho, precisando de algum elemento até então desconhecido para surgir.

E os personagens?

Dito isso, seus personagens têm que ser esses monstrinhos vivos na sua cabeça. Demora até que se inflem e não tem problema se começam finos como papel. Eles precisam maturar. Pode demorar.

De todo modo, mesmo depois que eles parecem bem vivos e formados, ainda pode haver problemas, e você não consegue verbalizar exatamente quais são eles. Bem, eu tive esses problemas várias vezes, tenho ainda hoje, e uma grande pesquisa na internet me dotou de algumas ideias que resumo aqui para futura referência e para ajudar também quem esteja de repente procurando por isso e precise de um recurso assim. Vamos lá: como escrever bem um personagem – mas o que define um bom personagem? – como fazer com que o público se interesse, se importe com o seu personagem.

Motivação

Os personagens precisam precisar de alguma coisa. Ou querer alguma coisa, mas a linha que divide esses dois verbos é tênue.

Mais do que isso, precisamos entender o que está em jogo – ou seja, não adianta nada percebermos que um personagem quer alguma coisa se não conseguirmos

  • Entender (emocional e/ou racionalmente) o porquê daquela vontade / necessidade;
  • Entender o que vai acontecer se o personagem não conseguir o que quer / precisa;
  • Torcer para que ele consiga o que quer / precisa (o que tem tudo a ver com os outros dois pontos).

E, é claro, isso tudo não significa nada se o objeto de desejo do personagem for trivial ou fácil de conseguir. É preciso que seja difícil, e que ele precise se superar para conseguir o que quer.

Você percebeu que parei de falar de uma característica do personagem para falar sobre o arco do personagem? Seu arco é seu desenvolvimento durante a história: o quanto ele muda do começo ao fim de uma obra, a forma como ele passa de seu estado inicial A para algum outro estado, B. Estou chamando atenção para isso porque mencionei o arco de “superação” como se fosse o único que existisse, mas na verdade ele é a fundação básica de uma história com final feliz; gostamos dos personagens mais por causa do esforço do que por causa do sucesso, e numa história trágica o arco os leva à decepção, à falha, à lama de seus defeitos, etc. Mas a característica da superação, embora possa não ser o resultado final das ações dos personagens, continua sendo componente de sua motivação para agir: ninguém tem por objetivo ser cada vez pior. E se tiver, ela basicamente quer se superar no quão ruim é.

Superação

Uma das possíveis características de um personagem que se supera é ele ser um underdog – ou seja, o menos favorecido. Nós gostamos de torcer para o Davi contra o Golias. Por isso, aquela questão da dificuldade que acabamos de falar continua valendo: é preciso que sintamos o tamanho de sua desvantagem. E se o personagem em si é muito bom, é preciso dar-lhe uma desvantagem. Se a injustiça dessa “doação” nos faz odiar o vilão ainda mais, melhor ainda. Quem lembra da “batalha final” de Gladiador?

Mas há uma outra questão também: o personagem – underdog ou competidor de mesmo nível – para o qual torcemos vai brilhar à medida que se contrastar com o seu adversário. Quanto melhor for o inimigo (e melhor também enquanto personagem), mais o personagem vai precisar se esforçar para vencê-lo. O Coringa torna o personagem Batman mais interessante, e como o Coringa é extremamente inteligente e efetivo, as vitórias do Batman são muito mais valorizadas por nós. Isso pode parecer tolo, mas muitas vezes o que não funciona numa história e nem percebemos, é que o herói é super bacana, tem um objetivo bem legal e ele tem uma trajetória interessante até conquistá-lo… Mas o inimigo dele não é interessante, ou particularmente poderoso. Talvez o vilão seja só “as circunstâncias” (o que já foi dito, por exemplo, sobre os filmes da série Missão Impossível), e isso não é necessariamente ruim: muitas vezes temos vilões acessórios, secundários, que apenas marcam o ritmo numa história em que o verdadeiro enredo é o personagem principal lidando com uma situação péssima, que o desafia, que exige que ele dê o melhor de si. O antagonismo (ou mesmo agonismo) é de fato a chave.

A dimensão moral e um certo compromisso ético

Uma coisa interessante e que é muito citada em dicas para escrever bons personagens é uma certa dimensão moral: mesmo se o personagem for um babaca, dê-lhe um limite que ele não vá atravessar (o que lhe confere não apenas honra, convertida em respeito por parte do público, como também a impressão de que ele tem um coração, afinal). É importante também que ele tenha opiniões – podem não ser liberais e progressistas, mas que ele as tenha. Mesmo que nós sejamos apáticos e indiferentes em nossas vidas sobre uma série de assuntos, ou que encontremos pessoas assim, você tem que saber que a apatia completa pode cansar grande parte do público; irritá-lo, tornar a narrativa toda mais desinteressante. Isso porque a apatia se relaciona também ao problema da motivação – se alguém não se importa com muita coisa, o que ele na verdade quer? E se seus desejos são apenas egoístas ou fisiológicos, por que eu me importaria com isso? É possível que a superação sobre a qual você queira escrever seja alguém apático aprendendo a se importar com as coisas. Isso é interessante, e há um post muito bacana no Fuck Yeah Character Development falando sobre esse arco específico [inglês]. É importante dizer: não demore muito para tornar o personagem interessante… Ou demore, mas saiba os perigos que isso engendra em termos práticos (leitores abandonando a obra e dando uma estrela de nota no Skoob ou algo assim).

O problema que tenho com a dica da dimensão moral é o seguinte: sim, dê opiniões para os seus personagens. Faça o anti-herói assumidamente fora da lei se pôr em perigo para salvar algumas crianças de algum perigo. Faça um personagem bater o pé no chão em defesa de um princípio e não ceder sua posição. Isso tudo é ótimo. Mas tem que ser orgânico.  Tem que vir a partir da caracterização de um personagem como um todo; todo o resto do que ele é e toda sua história tem que contribuir para que ele tenha essas opiniões e atitudes. Mais do que isso, não adicione esses elementos aleatórios de natureza moral para que o público “se identifique com eles”. O público não vai se identificar com nada que parecer forçado anyway, mas a questão é que se preocupar com que o público se identifique com o personagem é um negócio supervalorizado.

Digo isso porque escrever um personagem com a deliberada intenção de que o público mais amplo se identifique com eles acaba em… Bella e Edward. Não são pessoas ou personagens, são cascas: eles têm apenas características muito básicas, apenas o suficiente para que uma porção estatisticamente significativa do público-alvo possa se pôr no lugar deles – e de maneira convincente, já que não há muitos traços de personalidade neles que atrapalhem esse processo de cosplay mental. Bella é a adolescente desajeitada e sem atrativos pela qual um homem perfeito se apaixona, e nada mais. Isso já foi analisado ad nauseum (e de forma muito melhor) por aí na internet, então não insistirei no exemplo.

Mas a identificação é importante. O meu argumento é que o livro, na forma como é [bem] escrito, garante essa identificação não por causa do que há de semelhante e de não-diferente, mas apesar do que há de diferente. De novo: a boa literatura (pombas, a boa arte) nos faz conhecer personagens diferentes de nós com os quais, por causa da literatura, conseguimos nos identificar de alguma forma. E essa é parte da magia e do poder da arte, afinal: expandir nossas mentes. Ao invés de nos prender ao que já conhecemos e ao que já somos, conecta-nos a essa alteridade, a essas formas outras de existência, de pensamento, de ser-no-mundo. A preocupação, a paranoia de fazer com que os leitores se identifiquem, se identifiquem, se identifiquem nos leva aos personagens-casca. O foco no “escrever bem, que a identificação vem” (escrever bem o estilo, a história, e também os personagens), nos dá identificação sem precisar mudar nada nos personagens com esse objetivo em mente.

Em suma, o primeiro método de identificação (personagem-casca) é eficaz, mas eu acho que usá-lo é meio… Triste. Entendo isso como um compromisso ético: se você realmente acha que “mais identificação” do leitor é igual a um personagem melhor… Vá em frente. Faça ele gastar tempo e energia defendendo alguma posição política ou fazendo um ato de incrível moralidade, mesmo que isso pareça meio forçado.

Mas se essas atitudes, contudo, forem bem desenvolvidas, de forma holística, aí temos algo mais legal de se ler.

Desvelando complexidades

Dar motivação, superação e um posicionamento contextual para o seu personagem são as dicas gerais em termos de técnica e teoria literária para que entendamos o que constitui um personagem forte.

Mas isso, obviamente, não é tudo.

O leitor entende a motivação do personagem? Essa é uma motivação boa? O leitor sabe nesse momento que se o personagem não vencer, as consequências serão essas? O personagem está enfrentando (e superando) dificuldades para conseguir o que quer? Está fazendo isso a partir de uma boa razão? Essas e outras perguntas norteadoras podem ser extremamente úteis para refinarmos nosso texto. Mas a criatividade, a sensibilidade de ler e dizer “isto está legal” ou “isto é uma bosta”, são essenciais para escrever personagens bacanas e histórias centradas em seus arcos narrativos.

Como um exemplo final do que quero dizer quando digo que não bastam as fórmulas e as preocupações técnicas, deixo uma tradução rápida de alguns parágrafos do texto “What if your characters don’t want anything?“. Ele mostra só algumas das ramificações de todo esse papo sobre motivação e sobre o que torna um personagem interessante e forte:

Vontades não têm que ser simples ou fáceis de identificar.

Muitos de nós têm desejos complicados e emaranhados ao invés de impulsos simples. Na verdade, quanto mais reais seus personagens forem, menos monomaníacas suas vontades provavelmente serão na maior parte do tempo. Sentimentos múltiplos, desejos conflitantes, e às vezes motivações neuróticas são todas partes da experiência de ser humano.

Seu personagem principal pode desejar uma abstração, como “redenção”. Ou “vingança”. Ou “a aprovação do meu pai”. Pode ser algo impossível, como a aprovação de um pai que na verdade já faleceu. Ou talvez sua personagem queira algo que ela não consegue admitir – até para ela mesma – que quer. Às vezes um desejo é como uma coceira num lugar que o personagem não consegue coçar, ou uma dor irritante com a qual eles não conseguem lidar.

Além disso, as pessoas nem sempre sabem o que querem – até não poderem ter o que querem. E quanto mais difícil for de obter o que não se tem, será mais provável que as pessoas se deem conta de que precisam disso.

E mais, as vontades das pessoas podem evoluir ao longo de uma história. Ou os desejos dos seus personagens podem mudar, ou eles podem se desenvolver e ficar mais claros, ou mais confusos.

E, finalmente, ver as pessoas não conseguirem o que querem é em geral mais interessante. Mesmo no final de uma história. As pessoas que conseguem o que querem são uns babacas, e não conseguimos nos identificar com eles porque na vida raramente conseguimos o que queremos. Então se você tiver que fazer uma escolha entre deixar seu personagem alcançar seu mais querido desejo e arrancar esse desejo dele – é sempre melhor deixar o personagem querendo mais.

O que fazer com Miró

Miró photo
Photo by See-ming Lee 李思明 SML

No sábado, dia 19, fui com um amigo conferir a exposição “Miró – A força da matéria” no MASC (saiba mais aqui; entrada gratuita, mas preste atenção à questão dos horários), e da mesma forma que podemos nos perguntar o que fazer com a arte (visual / esculturas) moderna e contemporânea, pergunto-me de forma mais circunscrita: o que fazer com esse Miró?

A exposição em si é bacana e gostaria de parabenizar todos os envolvidos; o museu, que é bem organizado e bonito, e o governo do Estado por bancar esse apoio à arte (é bacana que seja de graça). O que não gostei tanto assim foram das obras; não achei nada supremamente espetacular.

Mas a conversa que isso suscita é bacana. Veja, eu entendo a força daquilo que não é verbal; que é abstrato, ou visceral – que é etéreo e parece suprasensível, ou que é justamente muito sensível e tem tudo a ver com nossos humores e calores. Entender não é bem a palavra; a natureza dessas coisas requer que não se entenda-as por completo porque, quando se faz isso, o que se está a fazer é traduzir essas forças em conceitos, e quando elas entram no mundo das palavras e do inteligível já não são o que eram. Então digamos que eu admirerespeite a existência dessas forças. Ainda assim, na prática, da mesma forma que me dou melhor com as crianças à medida que elas começam a “falar palavras de verdade” (e quanto melhor falam, melhor), me dou melhor com arte que trata de mensagens, representações, coisas que passam pelo filtro da consciência e ficam. Sendo assim, eu tenho problemas pra realmente admirar um monte de pingos, riscos, círculos e asteriscos em cima de uma prancha de madeira como se fosse uma coisa muito maravilhosa.

Perguntar o que deveríamos tirar disso, ou o que Miró queria dizer com o que pintava, não me parece proveitoso. Acho que isso sempre significa voltar a tentar delimitar e conceituar a arte em geral, e hierarquizar seus diferentes tipos, objetivos e métodos. Acho que há (e é óbvio que independente do que eu pense é claro que há) espaço para essa arte no mundo; a arte da experiência pura, ou que tenta evocá-la (embora… Será que ela consegue? Um risco qualquer num blank canvas consegue?), ou que talvez dependa precisamente de uma certa confusão do espectador (sente-se a frustração de nunca conseguir ultrapassar a barreira que a obra representa, e assim nunca vamos de fato sentir o que o pintor sentia, por mais que ele tenha querido expressar isso através da obra) ou ainda da tendência humana a procurar por sentido e padrões (como numa brincadeira com nossa húbris cognitiva).

Mais do mesmo, isso que estou dizendo? Talvez. Mas acho que é uma interrogação que não vai acabar tão cedo, e que continuará a ser relevante para quem, como eu (pessoas não tão ligadas às artes visuais, com a exceção do cinema), vê meio que como se pela primeira vez esse tipo de arte. Até porque é um tipo de arte que nos faz questionar: se até uma criança de 5 anos faz isso, por que isso é tão especial e reverenciado? Mas será que uma criança de 5 anos faria isso? Será que há alguma característica na forma como esses artistas “loucos” dispõem suas obras que, sem que saibamos conscientemente, as tornem mais impactantes e interessantes que as coisas que uma criança de 5 anos regular faria – ainda que, na superfície, os elementos visuais acusem grande semelhança?

De minha parte, agradeço o que esse tipo de movimento artístico dos séculos XIX e XX fizeram, inclusive pela escrita: desvincular o julgamento de valor julgamento estético de preocupações morais e da retratação mais angulada da “realidade” foi um grito de liberdade que nos permite explorar muito mais a conexão entre sentimentos, perspectivas, expressões, comportamentos e filosofias. Esse intercruzamento (trevo sempre engarrafado) é pra mim o principal lócus de construção da obra ficcional contemporânea. Ou, pelo menos, quando a obra se posiciona nesse lócus é que eu costumo achar incrível e interessante.

Ser cínico com os “efeitos” da escrita ajuda ou atrapalha o escritor?

Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.

E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.

Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?

A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.

Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.

Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:

“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”

Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:

“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “

Vai tentar a poética:

“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”

Vai tentar a perspectiva:

“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”

É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.

Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.

Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.

Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?

Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.

5 estratégias usadas pelos poderosos para fazer você odiar protestos

Esta é uma tradução do excelente artigo “5 Ways Powerful People Trick You Into Hating Protesters”, de David Wong, originalmente publicado em junho de 2015 no Cracked.

Digamos que amanhã você se torne o Ditador Secreto dos Estados Unidos, obtendo assim total poder sobre o governo, a economia e a cultura em geral – tudo que os hippies chamam de “sistema”. Sua primeira tarefa é não ter sua cabeça guilhotinada por pobretões enraivecidos, o que significa que sua primeira tarefa é na verdade a manutenção da “estabilidade” (ou seja, “manter as coisas mais ou menos do jeito como estão agora”).

Imediatamente você vai perceber que está enfrentando um número interminável de protestos por parte de grupos desconjuntados, que dizem estar sendo tratados injustamente ou estão de alguma forma sendo deixados “de fora” – esse aqui está incomodado porque alguém foi atacado pela polícia; aquele outro exige maiores salários ou coisa parecida. Como lidar com isso? Claro, você poderia esmagar esses movimentos com um punho de ferro, matando, intimidando ou prendendo seus membros mais importantes. Mas isso pode se voltar contra você, transformando-os em mártires e provando, ao mesmo tempo, que eles estavam certos – você viu Star Wars; alguém sempre acha a porta de exaustão.

Não, o que você precisa fazer é ter a maioria do seu lado, contra esses reclamões. Para a sua sorte, o “sistema” vem com uma série de sutis e refinados processos criados para fazer com que as reclamações dos poucos sejam certamente ignoradas pelos muitos. Primeiro, tudo que você tem que fazer é…

Esperar que um deles desrespeite a lei, e então só falar disso

Esse pode ser literalmente o truque mais velho de todos. Eu acho que os poderosos têm feito isso com protestantes e ativistas desde os dias em que ser dilacerado por um mamute era a maior causa de acidentes fatais. Funciona assim:

A) Um certo grupo tem uma reclamação – eles sofrem discriminação, tiveram seus direitos cerceados, tanto faz – mas são uma minoria.

B) Como a maioria não é afetada, eles ignoram em grande medida a situação e não se interessam pelo que está acontecendo com os afetados. A mídia de massa não fala do assunto, porque não dá audiência.

C) Pra chamar a atenção da maioria, o grupo vai se juntar para fazer barulho, bloquear avenidas, etc. Isso força a mídia a cobrir o protesto (já que multidões barulhentas dão bons fotos e vídeos) e cobrir o assunto (já que parte da cobertura jornalística do protesto envolve a explicação sobre o quê está sendo reivindicado). Nos Estados Unidos vemos essa tática ser usada por todo mundo, desde veteranos de guerra empobrecidos e mulheres em busca do direito de voto até os protestos quanto à violência policial de 2014.

D) Para conter isso, tudo que você precisa fazer é simplesmente esperar um membro do grupo ativista – qualquer membro – cometer um crime. Aí a mídia vai focar o crime, porque tumultos e vidros quebrados dão fotos e vídeos ainda melhores que protestos. A maioria da população – que teme, acima de tudo, o crime e a instabilidade – vai provavelmente associar o movimento com a violência a partir dali.

E) Você, em sua missão para evitar que o sistema mude, pode agora reenquadrar o problema não como uma questão de opressores contra oprimidos, mas de cidadãos contra bandidos – apoiar a causa deles significa apoiar a violência. A TV vai estar cheia de imagens de lojas de conveniências em chamas e vitrines furtadas, e nesse ponto a maioria vai dizer, com um sorriso esnobe, eu nunca protestaria contra a opressão governamental destruindo a propriedade privada de alguém!”.

“Quer dizer, por que eles não podem protestar de acordo com a lei? Sabe, tipo o Martin Luther King. É por isso que todo mundo o respeitava naquela época!”.

“E, vamos encarar a realidade, o fato de que eles estão apelando para a violência e para a destruição mesquinha de propriedade prova que eles não passam de criminosos procurando por uma desculpa para fazer arruaça!“.

Agora, perceba que nem as pessoas repetindo essas coisas vão acreditar nelas de verdade – a cultura pop dos Estados Unidos e a história da humanidade estão ambas cheias de heróis que desrespeitaram as leis e destruíram um monte de coisas quando o sistema não funcionava para eles (você sabe que o Batman não tem uma licença para pilotar aquele avião). Até hoje nós aplaudimos quando povos oprimidos de outros países fazem isso. Então quando alguém diz que devemos ignorar um movimento porque eles são uma “gangue” e um amigo comenta que o mesmo poderia ser dito dos fundadores da República dos Estados Unidos, vai haver uma troca imediata de marcha. “É sério que você está comparando os manifestantes de Ferguson com aqueles corajosos heróis que foram para a cadeia, como o Thomas Paine? Eles estavam lutando por liberdade!”.

Em outras palavras, eles vão rapidamente admitir que a legalidade das táticas na verdade não tem qualquer relação com o fato de uma causa ser justa ou não – tanto veteranos de guerra, que tiveram seus membros dilacerados, quanto neonazistas, foram jogados na cadeia por protestos que acabaram mal. Membros indomáveis de um grupo não tornam a causa automaticamente errada; tampouco a tornam automaticamente certa. Todos vão concordar que isso é verdadeiro e lógico, mas aí, cinco minutos depois, vão deixar de lado toda essa lógica se um único carro de polícia estiver pegando fogo. O índice de sucesso desta técnica é muito alto – hoje, a única coisa que a maioria das pessoas na China lembra do massacre de Tiananmen Square é que ele restaurou a estabilidade e a ordem.

“Mas já que os Estados Unidos foram construídos a partir de uma revolução, não seria provável que a maioria das pessoas automaticamente ficasse do lado dos menos favorecidos, mesmo que eles pisem um pouco fora da linha?” – Isso é certamente um perigo, e por isso o próximo passo é…

Convencer a maioria privilegiada de que eles são os oprimidos

Ano passado um investidor bilionário disse que a crítica aos ricos hoje é equivalente à perseguição aos judeus durante o holocausto. Não, ele não está tendo um infarto; ele está sob a influência de uma das mais poderosas técnicas de que o sistema dispõe. Para fazer com que a maioria ignore as reclamações de qualquer grupo em desvantagem, simplesmente insista que o grupo em desvantagem é quem realmente tem o poder, e que a maioria poderosa é, assim, o grupo em real desvantagem. Isso geralmente envolve os seguintes passos:

A) Encontre um exemplo de um membro poderoso do grupo em desvantagem e exagere seu poder.

B) Diga ou faça coisas incrivelmente ofensivas até que a vítima perca a postura, e então a acuse de censura / opressão.

C) Acuse a vítima de gostar de sua vitimização e / ou de fazer o que ela faz só pela publicidade. Diga que ela estava pedindo por aquilo, e que ela foi a causa de seu próprio problema desde o início.

Vou dar alguns exemplos da vida real, e acredite: uma vez que você entender essa lógica, vai começar a vê-la em todo lugar.

Digamos que seu país tenha um problema de pobreza que está se agravando rapidamente, e os empobrecidos estão começando a fazer barulho. O passo A requer que você insista que aqueles que estão mais no fundo do poço – aqueles que dependem da assistência do governo para comprar comida – são na verdade ricos. Isso pode parecer uma tarefa impossível, se não ridícula, mas tudo que você precisa é uma nota fiscal alterada no Photoshop mostrando uma enorme quantia de subsídio governamental para alimentação sendo gasta com bebida alcoólica, e a maioria vai compartilhar isso no Facebook centenas de milhares de vezes. Ou então, encontre um vídeo de um mendigo que foi pego dirigindo um carro de luxo, e isso vai sair nas manchetes como o exemplo típico de uma pessoa pobre. Depois vem o passo B: no momento em que alguém pegar você na mentira, vá para o argumento da censura ao dizer que você é um mártir atacado pelos “politicamente corretos”. E aí vá para o passo C, no qual você diz que os ativistas que estão apoiando as vítimas de seu ataque só estão fazendo isso por dinheiro ou atenção.

É só isso, na verdade. Três passos simples – exagere o poder da vítima para levar o público para o seu lado, faça com que a vítima se irrite para que você possa se declarar como vítima, insista que todas as reclamações das vítimas contêm segundas intenções. Pronto. Acabou.

E só para deixar claro, a narrativa acima – de que todos que dizem ser pobres são secretamente ricos – é novamente algo em que ninguém acredita. Ofereça a qualquer um que diga isso a chance de viver nos projetos de moradia pública, ou nos parques de trailers onde se intocam estas secretamente ricas rainhas do seguro-desemprego, e tudo que você vai ver é uma nuvem de poeira e uma minúscula silhueta escapulindo em direção ao horizonte. Mas você não precisa que a maioria das pessoas acredite mesmo nisso, apenas que a maioria “acredite” nisso.

E é por isso que isso funciona com qualquer grupo, não importa o quão ridiculamente a dinâmica do poder os favoreça. A indústria do petróleo tem um lucro anual de 200 bilhões de dólares. Se você quer que eles sejam retratados como os oprimidos, apenas A) fale sobre como esses pobres rapazes são constantemente atacados pelo poderosíssimo lobby ambiental…

… e, sério, não tenha medo de usar palavras como “bullying”, mesmo ao falar de quem literalmente constitui um dos grupos mais poderosos e ricos da história da humanidade. Uma citação de verdade: “Se alguém estava sofrendo bullying aqui, era a Chevron. Era quase impossível para uma empresa de petróleo ser ouvida de forma justa num mundo que sofreu uma lavagem cerebral ambientalista”. É claro que a parte sobre ser ouvido de forma justa já cobre o passo B, que é a acusação de censura e o lamento relativo à vitimização. Então, no passo C, você fala sobre como os ambientalistas só pensam o que pensam pelo dinheiro (nesse caso, Al Gore) e pronto – logo você terá várias pessoas olhando para a subida nos preços da gasolina e dizendo “Valeu, Greenpeace”.

E mesmo que só de mencionar isso eu já me canse, todo o negócio do GamerGate no ano passado é um exemplo perfeito. Um homem queria atiçar uma maioria esmagadoramente masculina contra uma desconhecida desenvolvedora amadora de jogos, então ele A) literalmente disse que ela estava sendo adorada como um “falso ídolo” que precisava ser derrubado, e então só para fechar com chave de ouro os abusadores começaram a dizer que ela era na verdade uma poderosa agente secreta numa missão de propaganda cultural em favor do governo dos EUA. Aí, B) quando a situação ficou tão ruim que ela teve que pedir por uma porra de uma medida cautelar, eles chamaram isso de censura. E, é claro, C) quando ela recebeu doações de pessoas que sentiram pena dela, eles declararam que isso era prova cabal de que tudo que ela queria o tempo todo era dinheiro.

Dez anos antes, eles fizeram isso com outra desenvolvedora chamada Kathy Sierra, seguindo exatamente o mesmo padrão. Essa jogada nunca muda porque nunca para de funcionar – com esses três simples passos você pode fazer com que multidões façam bullying com quem quer que seja em seu nome, e ao mesmo tempo se proclamem heróis. Afinal de contas, qual tática seria radical demais quando você está lutando contra um gigante invencível que está tentando te intimidar e silenciar todas as críticas em troca de fama e grana?

Concentre-se em suas reclamações mais triviais (e seus membros menos simpáticos)

Uma vantagem do seu papel como Ditador Secreto é que seus cidadãos estão cheios de informação até o pescoço. Notícias voam na direção deles por todos os lados, com muitas e muitas vozes exigindo atenção ou atitudes diariamente. Cada uma dessas pessoas bem intencionadas têm muitos problemas em suas próprias vidas, então elas têm que escolher cuidadosamente com quais “problemas” vão se preocupar e quais vão ignorar. Muitas delas vão tomar essa decisão bem rapidamente, com base na informação que estiver mais à mão. O seu trabalho, então, é garantir que elas sejam expostas apenas aos exemplos mais ridículos ou esquisitos do assunto ou grupo que você quer que desapareça.

O que quer dizer que você provavelmente vai querer se basear nos canais de notícias de TV a cabo.

Só para ser equilibrado (já que eu mencionei o GamerGate acima), deixe-me pegar um exemplo recente em que isso foi utilizado contra ativistas dos direitos dos homens. Houve um pequeno furor na internet quando o filme Mad Max: Estrada da Fúria foi lançado, resultando em manchetes como “Mad Max: Estrada da Fúria atrai a ira de ativistas dos direitos dos homens”, com artigos falando sobre como “a comunidade” dos tipos que defendem os direitos dos homens estavam praticamente pegando em armas contra o filme, organizando um boicote por causa do fato de que ele continha uma mensagem supostamente feminista junto à torrente de pessoas deformadas sendo aniquiladas em batidas de carros (dica: o Mad Max não é o personagem principal).

Eu ri quando eu vi essas manchetes e retuitei os artigos. Haha, esses merdinhas dos direitos dos homens ficam loucos por qualquer coisa! Mas alguns dias depois, um pouquinho de pesquisa revelou que, apesar do fato de que essas manchetes deixavam implícito um grande movimento nacional, o “boicote” foi na verdade um único maluco reclamando sobre o filme num site de direitos dos homens nada representativo. O homem em questão não é proeminente no movimento sob qualquer perspectiva – ele gasta seu tempo postando vídeos no Youtube que raramente passam das 2000 visualizações. Então por que a blogosfera disseminou suas baboseiras como se ele fosse um porta-voz importante do movimento? Porque isso fazia o movimento parecer ridículo.

Veja, ao ressaltar a reclamação mais boba de um grupo, você imuniza o público contra qualquer reclamação real que possa vir mais tarde, criando uma reação rápida de descarte a qualquer hora que, digamos, um homem reclama de forma razoável sobre como até os homens podem ser prejudicados por papeis de gênero ou quando outro tem uma história legitimamente terrível para contar. “Ha”, as pessoas vão dizer, “esses são os mesmos caras que ficaram chorando porque o último Mad Max teve uma mulher no papel principal!”. Não, não são os mesmos caras, a não ser que estejamos literalmente falando de Aaron Clarey. “Quem?”. Pois é.

Da mesma forma, há muitos grupos por aí cuidando do bem-estar dos animais, mas eu aposto que o único que você lembra é o PETA, porque são eles que fazem todo tipo de idiotice como insistir que as pessoas chamem os peixes de “gatinhos do mar” e protestar pelados, o que não ajuda ninguém. Dessa forma, quando alguém falar sobre coisas realmente horríveis que indústrias bilionárias fazem (como confinamento intenso ou pet shops vendendo animais criados em confinamentos cruéis), você vai rolar seus olhos e dizer “são provavelmente aqueles malucos do PETA de novo!”.

Como eles são ridículos, são eles que recebem toda a cobertura midiática e se tornam o rosto do movimento. E, como resultado, nenhuma mudança significativa vai acontecer.

Mais uma vez eu não preciso ficar falando sobre como isso é ilógico – a existência de uma reclamação frívola não automaticamente significa que não há outras, mais sérias, a serem encontradas na mesma direção. Uma pessoa que sofre de câncer ainda pode reclamar que seu programa preferido de TV foi cancelado; isso não significa que o câncer dela não deve ser grande coisa e por isso não tem problema nenhum não ser tratado.

Além disso, perceba que estamos sempre tornando a questão pessoal – como visto acima, você não fala sobre aquecimento global, você fala sobre Al Gore. Você não fala sobre racismo sistêmico, fala sobre a sonegação fiscal de Al Sharpton. Você não fala sobre desigualdade social, fala sobre como todos no Occupy Wall Street tinham iPhones.

Agora, parte do problema é que esses ativistas vão apelar para a simpatia da maioria do público, e isso é uma coisa poderosa considerando que a maioria de nós gosta de ver em si uma pessoa legal e bacana. Para contra-atacar isso, você simplesmente…

Joga um grupo em desvantagem contra outro (e somente um pode “ganhar”)

Como já falamos acima, a pessoa mediana tem pouco espaço no cérebro, e tempo no dia, para dedicar a “problemas” com os quais eles precisam se preocupar. Empatia requer energia, e temos uma quantidade finita para gastar. Bem, há uma maneira sutil de usar isso em sua vantagem: deixar implícito que de fato existe pouca empatia no mundo e que prestar atenção a uma reclamação vai de alguma forma diminuir a atenção de outra. Isso faz com que você possa jogar um grupo de vítimas contra outro, fazendo com que eles se matem por quinhões de atenção.

A beleza dessa estratégia é que até mesmo pessoas bem intencionadas caem nela – é por isso que o infame artigo sobre falsas acusações de estupro na Rolling Stone se tornou um assunto explosivo para ambos os “lados”. Qualquer fala sobre homens se ferrando por causa de acusações falsas de estupro (como esse cara que passou cinco anos na cadeia antes de tudo ser corrigido) deve significar que você está negligenciando vítimas ou está fazendo uma “apologia ao estupro“. Por que não é possível mostrar-se simpático a vítimas de estupro e homens que foram falsamente acusados? Porque não há tanta empatia assim no mundo para distribuir, droga!

Veja, isso significa que devemos nos focar apenas no problema mais sério entre dois, e coletivamente as vítimas de estupro são mais numerosas e ficam com consequências muito piores que pessoas falsamente acusadas de estupro. Expressar preocupação com estes últimos deve certamente indicar segundas intenções! A ideia de que na realidade as duas coisas têm um inimigo em comum – isso é, uma cultura que não faz ideia de como lidar com ataques sexuais – é deixada de lado. Sabe, mais ou menos como o racista pobre no parque de trailers e o negro pobre da cidade nunca poderiam considerar que ambos estão sendo desprivilegiados pelo mesmo sistema econômico, apenas de formas diferentes. “O quê?”, cada um deles vai dizer, “você está comparando o meu sofrimento com o dele?

Se você conseguir convencê-los de que eles estão competindo, eles vão gastar todas as energias odiando uns aos outros, e não tentando consertar o sistema. O cara no parque de trailers não culpa os banqueiros por sua economia, ele culpa minorias e imigrantes. Apenas um de nós pode ser a verdadeira vítima aqui, caramba!

O que isso também faz é incentivar a maioria a deixar de lado a reclamação de um grupo ao insistir que só fazem isso porque estão muito mais preocupados com outro problema. Se os pobres dos Estados Unidos reclamam sobre as altas taxas de desemprego ou os salários desvalorizados, é só falar sobre quão pior é a situação dos pobres na Europa e quanto menos os trabalhadores ganham na China. Se as feministas ocidentais reclamam agora sobre diferenças de salário ou direito ao aborto, você fala sobre como as mulheres de outros países sofrem muito mais (citação de exemplo: “Visite a página da Organização Nacional das Mulheres, o maior grupo feminista dos Estados Unidos, e veja que o principal assunto é o aborto. […] Enquanto isso, no Oriente Médio, as mulheres estão lutando pelo direito de ir à escola, votar, não serem forçadas a casar, e até a simplesmente poder dirigir um carro“). Você percebe o truque? “Não devemos fazer nada sobre o seu problema enquanto essas pessoas estiverem piores. Mas, por outro lado, também não vamos fazer nada sobre o problema delas”. Resultado: nada muda.

Ou, ainda mais estranho, você pode fazer com que as pessoas se recusem a simpatizar com a causa ao dar-lhes, em vez disso, uma que na verdade não existe – geralmente reativando uma versão que existia no passado. Diga que o feminismo “de verdade” era o das mulheres nos tempos antigos, lutando pelo sufrágio, mas que o “novo” feminismo é só sobre bobagem (veja, porque isso quer dizer que você totalmente estaria do lado das feministas no passado). Ou, ao mesmo tempo em que desacredita toda e qualquer causa dos negros, reitere que você estaria marchando bem ao lado de Martin Luther King se você estivesse lá nos anos 60. Sabe, quando o movimento ainda era respeitável. “Afinal, como é que essa gente faz tanto barulho por causa de índices de aprisionamento e educação sem qualidade quando linchamentos eram comuns antigamente? Então olha, eu vou ficar de fora dessa, mas se você achar uma máquina do tempo pode contar comigo que eu vou estar bem lá do seu lado, amigão!”.

É claro que você poderia usar essa mesma lógica para diminuir literalmente qualquer reclamação feita por qualquer pessoa no Planeta Terra, para sempre, desde que ela não seja a pessoa que mais está sofrendo no mundo (“Bem, eu conheço um cara que ficou com o pau preso num moedor de café duas vezes, e ele não faltou ao trabalho por causa disso!”). Mas isso funciona porque o seu público quer uma desculpa para não ter que ouvir sobre esses problemas, e essa é uma forma de eles fazerem isso e ainda sentirem que são boas pessoas. “Não é que eu não tenha empatia por nada! É só que eu reservo os meus sentimentos para coisas que eu não posso resolver”.

Diga que qualquer mudança é o fim do mundo

Essa é a falácia do “ame-o ou deixe-o”, e nossa, como ela funciona. Como Ditador Secreto com a tarefa de se certificar de que nenhuma mudança significativa ocorra, essa é a sua carta na manga.

Lembre-se, seres humanos são naturalmente avessos ao risco – as pessoas permanecem em trabalhos e relacionamentos ruins e mantém hábitos destrutivos por medo de que tentativas de consertar as coisas vão acabar pondo tudo a perder. É por isso que muitas pessoas têm medo de tomar anti-depressivos (“Claro, vai fazer com que a depressão suma, mas e se eu também perder as partes legais e diferentes da minha personalidade?”). Então, para poder usar esse medo a seu favor, tudo que você tem a fazer é retratar qualquer crítica ao sistema atual como um ataque a tudo que mais amamos na vida:

“Você está criticando a polícia pelo uso excessivo da força? Bem, então vamos ver o que acontece se os policiais não forem trabalhar!“.

“Você acha que deveríamos diminuir o tamanho do governo? Então por que você não vai viver na Somália, onde eles não têm governo?“.

“Você tem problemas com nosso sistema econômico atual? Vai para Cuba, seu comuna!“.

“Oh, você se preocupa com a poluição? Então você deve querer um mundo sem eletricidade!

É um truque bem simples – só ignore qualquer possibilidade que envolva a simples melhoria do sistema atual e afirme que para que nos beneficiemos dele precisamos aceitar todos os aspectos do status quo, incluindo as partes que destroem vidas. Não tem problema se você não conseguir apontar por que as melhorias são impossíveis, uma vez que as partes que processam medo no cérebro são inerentemente irracionais. “Apoiadores do casamento gay querem secretamente destruir a instituição do casamento? Claro, faz todo sentido para mim!”.

E agora você consegue entender como isso pode ser combinado com as técnicas acima. A violência durante os protestos apenas prova que o que essas pessoas realmente querem é a destruição de toda sociedade civilizada! E você, a maioria poderosa, é na verdade parte da corajosa última linha de defesa de tudo que é bom contra essas hordas de malucos irracionais! E por aí vai.

Lembre-se, é isso que as pessoas querem acreditar (ou “acreditar”). É por isso que, no mundo real, não é necessário um Ditador Secreto para fazer tudo isso acontecer. Com um empurrãozinho, as pessoas – mesmo as pessoas boas – vão fazer tudo isso sozinhas. É só olhar à sua volta.

“Liberdade”

Esse livro me arrebatou por completo. Me deixou em tal estado de ânimo que, despedaçado, não consegui escrever uma resenha coerente depois dele – apenas uma assim, aos pedaços, observando de bocado em bocado essa obra prima contemporânea.

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Ele é um livro tão incrível que seus defeitos lhe parecem apenas relatividades: coisas que, por razões pessoais apenas, preferências, um ou outro leitor não gostaria. Em nenhuma obra de arte pode-se aspirar à perfeição, quanto mais universal; o máximo que se pode esperar é fazer algo que mesmo os detratores vão admitir que, para um número significativo de pessoas, os defeitos identificados tornar-se-iam até qualidades.

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É que acontece, por exemplo, com seu gigantismo. É verdade que depois da página 450 você começa a se perguntar se era realmente necessário conhecer mais sobre a linhagem paterna de Walter? É. Verdade que não tem mais muita certeza se vai compensar, mais à frente, prestar atenção em todos os detalhes e todos os desvios que o narrador, seja ele quem for no momento, faz? É. Mas compensa, viu?

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O estilo dele, ou pelo menos o quanto disso pôde ser ainda transferido para sua tradução ao português, é muito bom. É muito, muito bom.

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O romance de Patty e Walter, no fim das contas, é o mais lindo de todos os tempos. Eis o poder de uma narrativa biográfica, de personagens atormentados, e de um tipo de amor que raramente se vê hoje em dia: um trapo velho que se faz à mão com muita dificuldade e imperícia, não roupa bonita que se escolhe num baile da corte; fonte insuspeita de nossas decisões mais estranhas.

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O que achei esquisito – e o único ponto que me põe numa posição estranha em relação ao livro – é 1) o grau de autoconsciência que os personagens exibem; e 2) o quanto isso pode realmente ser atribuído a eles e o quanto vem simplesmente do narrador, sem passar por suas cabeças.

É que como temos um narrador em terceira pessoa que “mergulha” nas mentes dos personagens mais frontais, às vezes é difícil saber (impossível) quando o personagem realmente está pensando algo ou não. No caso das autobiografias de Patty, fica claro – o que corrobora o motivo da estranheza. 

O motivo, é preciso explicar melhor, é o seguinte: em geral um personagem tem uma característica, mesmo que oculta, aí ele age de acordo com ela, e então ele percebe que tem a característica (ou alguém percebe isso por ele, e lhe diz). O livro é muito mais aberto do que isso, dizendo para o leitor que Patty é competitiva muito antes de ter qualquer chance de mostrar que ela o seja. E ela fica pensando nisso tudo muito antes que isso seja de alguma forma explícito ou verbalizado, e sou um pouco cético quanto a essa presença de espírito autorreflexiva que todos ali retratados possuem.

De outro modo, talvez isso seja apenas um recurso literário para que várias coisas funcionem dentro da narrativa, e nesse sentido tudo vai bem, mesmo a partir daí. Ou quase: mesmo depois de duas ou três exposições, ainda não consegui entender exatamente qual é o problema de Joey com Patty. O problema, é claro, é que eu consegui entender o problema se todas as formas desnecessárias (a intelectual – ela mimou ele demais – e a poética – ele tem uma ‘parede’ sentimental posta contra ela ou algo assim), mas não na única que importa: essa lógica, no fim das contas, nunca entrou no meu coração e se naturalizou como algo perfeitamente compreensível. Os sentimentos de Patty, de Katz, de Walter, de Connie, todos bastante familiares no momento em que vão sendo lindamente tecidos na trama do livro. Até os de Joey em relação ao pai – perfeitamente compreensíveis. Mas os de Joey para com Patty vão me fazer coçar a cabeça sempre que me lembrar deles.

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Algo definitivamente cativou imaginação quando você se vê conectando músicas conhecidas à nova experiência literária. No meu caso, o cover de Parachute por parte de Kawehi me lembrou muito Connie e Joey; e a música Damn Regret, do Red Jumpsuit Apparatus, me faz lembrar do livro todo.

Fantástico.

Ser nerd é abraçar (certas) complexidades

“Reality is inherently complex; the simple never leaves the realm of the ideal, never arrives at the concrete.”
– Pierre-Joseph Proudhon

Eu estou numa cruzada. Às vezes isso me proporciona boas conversas, e às vezes me transforma num chato que se apega aos detalhes. Mas a verdade é que o que eu faço é parte decisão, parte reflexão e parte personalidade: sinto que é importante dizer, que é honesto dizer, e que é tipicamente nerd dizer, que o mundo simplesmente não é simples.

Isso pode parecer ponto pacífico, daqueles que faz o senhor que beberica bebida no bar em plena tarde de segunda-feira balançar a cabeça em silenciosa concordância. Mas a verdade é que na forma como experimentamos o mundo, adoramos a simplicidade. Ela é quase uma predisposição evolutiva: quanto mais pudermos “processar” sobre o mundo com o menor gasto de atenção, melhor – e assim “teorias de tudo” são tão atraentes. A partir de um único princípio universal, deriva-se e compreende-se tudo.

universe photo
Photo by NASA Goddard Photo and Video

Desconfio de (teorias de) tudo. Qualquer coisa que se apresente simples demais, de categorias a acontecimentos, merece minha repulsa instintiva, uma coisa do pâncreas mesmo, que sobe a garganta quase como uma vergonha alheia, ou um orgulho arrogante. Desconfio, exijo provas, desafio: a quem me diz que o mundo é preto e branco, tenho uma vontade louca de mostrar a imensidão colorida que nos rodeia e nos afoga. Acompanhar discussões de facebook é como navegar pelo arco íris, torcendo para que quem tenha dado a última palavra não seja a voz da monocromática e inconsequente simplificação do que quer que esteja sendo debatido.

Há óbvias vantagens para a simplificação. Ela é didática; é bela. Constrói pontes, é uma base poderosa, quiçá imprescindível, para amplos acordos, e enquanto ferramenta muitas vezes é o começo de um caminho que possa ampliar ainda mais nosso entendimento sobre a complexidade intrínseca a um tema. Porque sim, tudo é complexo: temos um certo asco ao difícil num mundo tão cansativo, e ao chato num mundo tão burocrático, mas difícil não é necessariamente complexo e complexo não é obrigatoriamente chato.

Mas pode se tornar, a depender de quem fala do quê; simplicidade pode ser feia também. É a estratégia universal para reduzir e escrachar; desumaniza uma ideia e rebaixa um humano. Subestima. Revela valores, porque não dá pra ver a complexidade de tudo – precisaríamos de vida (e disposição) eterna para tal tarefa – de modo que para ser capaz de entender, usar, curtir, distinguir, desfrutar e finalmente abraçar a complexidade, é preciso a paixão que nos dá foco e decisão; o sentimento que anima o nerd. O nerd é aquele cuja paixão por um tema o impulsiona para além da simplicidade. Enquanto muitos vêem Star Wars como aquela ficção em que acontece A e B, o nerd conhece detalhes, backstage e universo estendido. Enquanto muitos vêem arquitetura de uma forma abstrata e intuitiva, o nerd conhece a história da construção do Empire State Building. Enquanto uns lembram de Newton, outros percorrem as estrelas em busca de respostas. Enquanto uns sabem que “o homem veio do macaco”, outros ficam a vontade com as lacunas do conhecimento sobre a história da evolução das espécies.

Eu gosto da complexidade e sou seu tiete. Sou um nerd quanto à ficção e ciências sociais – e também filosofia, talvez a razão pela qual mesmo sem profundidade, procuro pelo menos me aproximar de qualquer assunto esperando encontrar complexidade e tentando, assim, aproveitar o calor suave e inodoramente humano de sua manifestação gloriosa.

É muito ruim advogar que o mundo seria melhor se mais pessoas fizessem o mesmo?

Mundos

surreal painting photo
Photo by Rookuzz.

Das obras de arte escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando amores. Dos nossos olhos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando preconceitos. É de preconceito e amor que são feitas as garras que nos arrancam os olhos, desnudam o ser, provocam conflitos. Dos conflitos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando um ser transformado, embebido em heroísmo, que se junta às milhões de faces que carregam nossos olhos.