A prefiguração interseccional divide a esquerda?

Tradução de um trecho (p. 145-150) de RAEKSTAD, P.; GRADIN, S. S. Prefigurative Politics: Building Tomorrow Today. Cambridge: Polity, 2020.

Há uma […] crítica à política prefigurativa que vale a pena discutir, já que aparece bastante por aí: a de que ela foca mais nas diferenças (de raça, gênero, sexualidade, deficiência, etc.) entre as pessoas dentro da esquerda que na unidade da classe trabalhadora, e de que isso dividiria a esquerda. Essa crítica, como a vemos, surge de uma confusão entre certas formas de política prefigurativa, especialmente as que buscam a interseccionalidade, com a proeminente tendência neoliberal conhecida como `política identitária’.

A política identitária liberal é uma abordagem moderada (isto é, não-radical) de transformação social, baseada em compromissos ideológicos liberais em sentido amplo. Ela parte da premissa de que mudanças sociais profundas e sistêmicas não são necessárias para termos uma sociedade livre, igual e democrática, porque a sociedade já está mais ou menos perto desse ideal. Movimentos sociais deveriam portanto se concentrar em fazer pequenos ajustes a leis, políticas públicas e normas sociais em vez de trabalhar por mudanças mais sistemáticas ou radicais. Admitindo que mulheres e minorias encaram obstáculos específicos no caminho pro sucesso capitalista, como discriminação, diferenças salariais e preconceito, a política identitária liberal quer dar a pessoas desses grupos as mesmas oportunidades que homens brancos da classe dominante têm de se dar bem na sociedade tal como ela é. Por exemplo, quando mulheres liberais atuam contra o teto de vidro[1] em empresas, isso é política identitária. Outro exemplo é quando antirracistas liberais dizem que o racismo acabará se houver mais políticos/as e chefes/as negros/as. A ideia é que mulheres e minorias devem ser melhor assimiladas a todas as partes da sociedade tal como a sociedade é agora, e que a discriminação deve acabar para que elas possam competir em igualdade.

Muitas críticas à esquerda argumentam que a política identitária, com seu foco na identidade pessoal e sua negação da unidade de classe, é um cavalo de Troia na esquerda. Um exemplo clássico dessa crítica pode ser encontrado na declaração do congresso internacional da Tendência Marxista Internacional de 2018[2], que descreve abordagens socialistas interseccionais como políticas identitárias que estariam fracionando e enfraquecendo a esquerda. Ao invés de unir-se enquanto trabalhadores, diz esse tipo de argumento, ativistas interseccionais insistem em ressaltar as diferentes maneiras em que as pessoas são afetadas por racismo, patriarcado e capacitismo. Isso seria fazer o jogo da burguesia, já que a esquerda não conseguiria se unir. Alguns comentaristas adicionam a esse tipo de argumento que o racismo, o machismo e o capacitismo vão simplesmente desaparecer depois da revolução, uma vez que o capitalismo que os sustenta (e os exige) seja substituído. É assim tanto desnecessário quanto contraprodutivo, por enquanto, tentar abordar qualquer outra coisa que não seja o capitalismo, de acordo com essa visão.

Essa crítica, em outras palavras, considera a política interseccional, incluindo formas interseccionais de prefiguração, divisiva, e a coloca no mesmo saco que a política identitária liberal. Há muitas coisas erradas com essa crítica: ela presume um ponto de vista branco, masculino e capacitista enquanto silencia grupos marginalizados; e ela se baseia em um grave desentendimento sobre o argumento interseccional […]. Não é a interseccionalidade que é divisiva, e sim o status quo (criticado pela interseccionalidade) que impede o desenvolvimento da solidariedade de classe. Insistir que a opressão de classe vem antes de todas as outras, e que outras formas de opressão podem ser em grande medida ignoradas até depois da revolução, deixa essas outras formas de opressão intactas dentro de movimentos e organizações. Isso, é claro, torna esses locais hostis para pessoas desses grupos marginalizados, dificultando sua participação efetiva neles e fortemente desencorajando que se aproximem deles em primeiro lugar.

A confusão entre prefiguração interseccional e política identitária não é, contudo, completamente acidental. O primeiro uso do termo ‘política identitária’ vem do socialismo negro feminista, não do liberalismo, e estava fortemente conectado a ideias que depois seriam chamadas de interseccionais. Só depois que o conceito de ‘política identitária’ surgiu na esquerda radical que liberais desenvolveram seu próprio significado para ele. Quem primeiro popularizou o termo ‘política identitária’ – ou talvez o tenha cunhado mesmo – foi o coletivo feminista negro estadunidense Combahee River. Este coletivo era abertamente revolucionário e socialista. Suas atividades incluíam trabalho educativo, grupos de conscientização, piquetes contra locais de trabalho racistas, apoio a pessoas negras perseguidas pela polícia, entre muitas outras[3]. Seu maior legado é uma declaração de 1977, que ficou famosa em parte por incluir o primeiro uso amplamente reconhecido do termo ‘política identitária’:

Sempre houve mulheres negras ativistas … compartilhando a consciência de que suas identidades sexuais combinavam-se a suas identidades raciais para tornar únicos os fatos de suas vidas e os focos de suas lutas políticas … Esse foco sobre nossa própria opressão está incorporado no conceito de política identitária. Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente mais radical vem diretamente da nossa própria identidade, ao contrário de trabalhar para acabar com a opressão de outra pessoa. … Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo de quem trabalha e cria os produtos, e não para o lucro de patrões. … Não estamos convencidas, no entanto, de que uma revolução socialista que também não seja feminista e antirracista vai garantir nossa libertação. (ênfase adicionada) [4]

O termo ‘política identitária’ aqui se referia a pelo menos duas ideias […]: de que o pessoal é político […], e de que as diferentes estruturas hierárquicas são interligadas e co-constitutivas (em outras palavras, elas ‘interseccionam’, como Kimberlé Crenshaw viria a dizer mais tarde). A declaração também critica a ideia de que um grupo pode liberar outro em seu nome, o que pode ser lido como uma crítica tanto a vanguardas elitistas em movimentos sociais quanto a autoproclamados poderes coloniais civilizatórios do ocidente orquestrando o ‘desenvolvimento’ internacional.

O uso do termo política identitária por parte do coletivo não tinha nada a ver com a ideologia liberal. Pelo contrário, a mensagem era de que a sociedade precisa ser transformada fundamentalmente para que as estruturas hierárquicas sejam desfeitas. Essa mudança precisaria ser feita por pessoas com variadas e diferentes experiências de opressões interseccionadas, com um reconhecimento de que nossas perspectivas e experiências pessoais são políticas.

Há assim uma forte ligação entre a política identitária e as formas interseccionais de prefiguração, mas não da maneira como a maioria das críticas presume. A política identitária no sentido defendido pelo coletivo Combahee River é uma luta por mudança radical e sistêmica – ao contrário da política identitária liberal, que só quer assimilar grupos marginalizados às relações sociais existentes.

Muitas abordagens interseccionais radicais vão ainda além disso de outra maneira importante. Enquanto a política identitária liberal presume a desejabilidade e a permanência tanto das relações sociais existentes quanto das identidades das pessoas que navegam por elas, muitas abordagens prefigurativas interseccionais estão trabalhando para mudar não só relações sociais mas também identidades. Isso é porque nossas identidades são vistas não como inatas ou fixas, mas como produtos e mecanismos de estruturas sociais. Em outras palavras, enquanto liberais querem ver mais pessoas negras ou mulheres como presidentas e chefiando empresas, radicais querem mudar fundamentalmente não só sistemas políticos ou econômicos, mas também os próprios significados de “negras” e “mulheres”.

Socialistas há muito enxergam a categoria ‘classe trabalhadora’ como uma categoria que pertence ao capitalismo, e cujo fim queremos testemunhar. O sentido do socialismo não é reduzir a opressão capitalista ou melhorar as coisas um pouquinho para a classe trabalhadora, mas abolir todas as classes e o poder de classe como um todo. Raça, gênero, e outras categorias identitárias são vistas por muitas teóricas e ativistas pela mesma lente analítica. Por exemplo, Huey Newton, co-fundador do Partido dos Panteras Negras, argumentava: “Se não temos identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso…”[5]. […] Isso não significa dizer que as categorias e identidades atuais podem ser simplesmente ignoradas, mas fornece uma direção para um futuro além dessas identidades: “lutamos por um futuro em que vamos perceber que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum que diferenças”[5].

Acadêmicas influentes em raça e gênero, como Stuart Hall[6] e Judith Butler[7], argumentam que categorias raciais, de gênero e outras são melhor compreendidas como efeitos, incorporações, e ferramentas de opressão, em vez de como identidades eternas que têm qualquer sentido por si só. É a supremacia branca que cria as identidades ‘branca’ e ‘negra’ atuais, e o patriarcado que cria as identidades ‘mulher’ e ‘homem’ atuais, em vez dessas identidades serem inerentes às pessoas com certos tons de pele, expressões gestuais, ou partes do corpo. (Ou, melhor dizendo, é o patriarcado branco-supremacista capacitista capitalista que cria todas as identidades, mas é o elemento branco-supremacista que enfatiza a raça, o elemento patriarcal que enfatiza o gênero, e daí por diante).

Como evidência disso, pense nas enormes variações históricas e geográficas em termos do que se considera uma raça ou um gênero. As categorias raciais que usamos agora datam apenas do começo da colonização europeia e do tráfico transatlântico de escravos. Nos séculos XIX e XX, eugenistas tentaram justificá-las com a dita ‘biologia racial’, que desde então foi completamente refutada pela ciência contemporânea[8]. Pesquisas contemporâneas também desacreditaram as categorias de gênero modernas como simples e “naturais”[9][10]. Categorias de gênero têm variado enormemente no tempo e do espaço. Por exemplo, muitas sociedades tinham mais que duas categorias de gênero, ou não viam o gênero como necessariamente ligado à biologia, antes de colonizadores europeus imporem categorias binárias e alegadamente científicas[11][12][13]. Mesmo na Europa, o principal entendimento atual sobre gênero surgiu apenas no começo do período moderno, e está profundamente ligado a hierarquias sociais e exploração[14]. Muitos tipos de prefiguração interseccional, assim, propõem a abolição dessas categorias opressivas e exploratórias junto com suas estruturas subjacentes. Esse é um projeto político completamente distinto de buscar assimilar melhor pessoas dessas categorias na economia capitalista, que deixa intactas tanto as categorias atuais quanto as desigualdades econômicas. Um compromisso prefigurativo com a interseccionalidade é portanto muito diferente de uma política identitária liberal.

Notas

  1. N. do T.: Glass ceiling, metáfora usada para representar uma barreira invisível que dificulta o acesso de um certos grupos demográficos aos níveis hierárquicos mais altos de uma organização.
  2. IMT (INTERNATIONAL MARXIST TENDENCY). Marxism vs Identity Politics. In: ___. In Defence of Marxism. Disponível em: https://www.marxist.com/marxist-theory-and-the-struggle-against-alien-class-ideas.htm.
  3. HARRIS, D. From the Kennedy Commission to the Cobahee Collective: Black Feminist Organizing, 1960-80. In: B. Collier-Thomas e V. P. Franklin (Eds.). Sisters in the Struggle: African American Women in the Civil Rights-Black Power Movement. Nova Iorque: NYU Press, 2001. p. 280-305.
  4. COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. 1977. Disponível em: http://circuitous.org/scraps/combahee.html.
  5. NEWTON, H. Intercommunalism. 1974. Disponível em: https://www.viewpointmag.com/2018/06/11/intercommunalism-1974.
  6. HALL, S. Old and New Identities, Old and New Ethnicities. In: A. King (Ed.). Culture, Globalisation and the World System: Contemporary Conditions for the Representation of Identity. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1991.
  7. BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres: Routledge, 1990.
  8. RATTANSI, A. Racism: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2007.
  9. FINE, C. Delusions of Gender: How our Minds, Society and Neurosexism Create Difference. Londres: Icon Books, 2011.
  10. FAUSTO-STERLING, A. Sex/Gender: Biology in a Social World. Londres: Routledge, 2012.
  11. AMADIUME, I. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 1987.
  12. OYEWUMI, O. Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
  13. HINCHY, J. Governing Gender and Sexuality in Colonial India: The Hijra, c.1850-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
  14. FEDERICI, S. Caliban and the Witch. Nova Iorque: Autonomedia, 2004.

Ghosts

The videogame resource I used less as a kid is the most common thing in my adult life: the “ghost” feature for racing games, which means a transparent and immaterial copy of your car races against you doing your best lap. The best version of you versus you: the overcoming of yourself, now empirical and unmistakable.

I’m writing this at 4 am, knowing full well I should wake up at 10 and that if I am lucky I’ll manage to be up by 11. Before I was doing this, I was on Youtube. Before that, I was washing dishes piled up for two days, and taking three hours longer than expected organising stuff, sending email, writing down things I shouldn’t forget about tomorrow. The best of me – my “ghost” – would have been tidier. More efficient. And he wouldn’t merely have done everything I had intended to have already done at this point in my life, he would have done more. He would engage his community. He would be active in social movements. He would be… I don’t know. Healthier. He would take better care of his (mine) hair.

My ghost haunts me. That’s what ghosts do, of course, but he doesn’t really threaten me. I know he can’t hurt me. He won’t break my arm. I live well, smilingly so; I nod to strangers on the street. Still, I feel its shadow over the pacific point over which my spirit’s dust no longer tornadoes, settling for slow disappointed reproach, laying on my shoulders the weight of knowing I am made of a thousand daily failures.

And you can’t consider the ghosts pseudoscience or hallucinations, as they are in the real, material, social world. My ghost isn’t as visible as the games’, but he can be measured by each and every little thing: by how long it takes to realise, after I’ve arrived, that I should have taken care of something where I came from. By the badly done calculation of the time needed for routine tasks, which makes me think it would be better to do this tomorrow, and that next week, and that other thing only next month. I can see myself beaten by the best of me by the greasy snack 1) I should not have bought, as I am trying to both save money and lose weight; 2) was definitely not worth the price I paid for it; and 3) I wasn’t even hungry for to begin with.

I heard it’s all about the nighttime. Sleeping few hours makes us foolish. But it’s a cycle: I rarely catch myself thinking I’ve done all I wanted to do. I feel bad for it and, to flee from my ghost, I run towards a land of fantasies, worries and plans; things that are never going to happen. I sleep badly, I go through the following day just as horribly, and as I get frustrated it’s time I ought to be sleeping awfully again.

The ghosts are out there, not in subjective caves; today they come from the very technology that allows us to find out whether we got worse or better as time went by (if we have the stomach, that is, to look at who we were months or years ago). The evolution of the videogame, that only had us deal with our individual ghost – no; on Facebook, we also face other people’s ghosts.

After all, we only share the best of ourselves. And hence what you see in other people’s profiles is the best they have. Our mundane existence, the here and now of unironed clothes, busted deadlines, bank queues over unpaid bills… That is never going to fill the plastic masks one moulds or buys online. And the curious thing is nobody, deep down, knows anything: other people’s ghosts, with whom we interact, are really only illusions. But when we face them, these versions of human beings that have read the books, have seen the movies, have heard the songs and have opinions on everything, that’s not what we think. Of course they’ve done all that. And so could I have.

Hell isn’t other people, because the devil’s fire is behind our own eyes; it was our gaze that died regretlessly. Each glance at other people’s lives is of a sick and algorithmic naivety – the receiver who respects the emitter these days is a poor bastard. The ghosts of the screens are proof that individualism doesn’t exist. We seek, in others, signs, tips, clues of how to lead a life. To live is to do that – to believe that someone somewhere has a map out of the swamp, or that everyone else’s got a better map than ours. Nowadays the GPS is telling us to ask the ghosts. The results? We realise they can fly and that we can not. And then we look at each other – at each other’s ghosts – hoping they don’t notice that we are never up to anyone’s successes.

We’ll never be our ghosts. Not when we die, nor here, where the gods that judge us are nearly anonymous – their power, an illusion, for they are ghosts just like us. We pray, nonetheless: give me likes; help me nurture my ghost, to lift it up to heaven (maybe I won’t be able to see it – but then what do I become?). Our ghosts do us no good. Reason fools us, making ourselves believe they are like democracy: it doesn’t matter if we can’t be like them now, they are a beautiful ideal, a naturally unreachable horizon. Bullshit: I don’t know in what way I’m growing or getting better every time my ghost defeats me. The best version of myself, I think, wouldn’t fall for that.

With this text I won second place in the 2017 15th Paulo Setúbal Literary Award (Essay category). Read the original (and actually awarded) Brazilian Portuguese version (“Os fantasmas”) here.

Os fantasmas

O recurso menos usado nos videogames da minha infância é o mais presente na minha vida como adulto: a opção “fantasma” dos jogos de corrida, que fazia uma cópia transparente e imaterial do seu carro, refazendo sua volta mais rápida, correr ao mesmo tempo que você. O melhor de você mesmo contra você mesmo: a superação de si, agora empírica e à prova de autoengano.

Escrevo esta crônica às quatro da manhã, sabendo muito bem que deveria acordar às 10 e que, com sorte, acordarei às 11. Antes disso eu estava no Youtube. Antes disso, lavando louça acumulada de dois dias, demorando três horas a mais do que o esperado organizando objetos, mandando e-mails, anotando coisas que eu não deveria esquecer amanhã. O melhor de mim – meu “fantasma” – seria mais organizado. Mais eficiente. E não só daria conta de tudo que me propus, a essa altura da minha vida, a fazer, como também faria mais. Seria engajado na comunidade. Nos movimentos sociais. Seria mais, não sei; saudável. Cuidaria melhor de seu (do meu) cabelo.

O meu fantasma me assombra. É o que fantasmas fazem, é claro, mas ele não me ameaça de verdade. Sei que não pode me atingir. Não vai quebrar meu braço. Vivo bem, e com sorrisos; com a cabeça faço gestos de bom dia para estranhos no caminho. Ainda assim, sinto sua sombra; penumbra pairando no ponto pacífico em que a poeira do meu espírito não rodopia mais com o vento, tomando forma num lento reprovar decepcionado, pondo sobre meus ombros o peso de saber que sou feito de mil pequenos fracassos cotidianos.

E não dá para enxergar os fantasmas como pseudociência ou alucinações, porque eles estão no mundo real, material, social. Meu fantasma não é visível como o do videogame, mas se deixa medir em cada pequena coisa: no tempo que leva para perceber, depois que cheguei, que eu deveria ter feito algo no caminho. No cálculo mel feito do tempo necessário para as tarefas do dia, o que me faz pensar que seria melhor fazer isso amanhã, e aquilo semana que vem, e aquilo só mês que vem. Posso me ver derrotado pelo melhor de mim na figura do empanado de frango e requeijão que 1) eu não deveria ter comprado, porque estou tentando guardar dinheiro e perder peso; 2) definitivamente não vale 4,50; e 3) eu nem estava com fome bastante para comer, quanto mais comê-lo.

Ouvi dizer que é culpa do sono; dormir pouco nos deixa tolos. Mas é um ciclo: raramente me pego pensando que fiz tudo que eu queria fazer. Sinto-me mal e, para escapar ao fantasma, fujo para uma terra de fantasias, preocupações e planos; coisas que nunca vão acontecer. Durmo mal, vivo mal o dia seguinte, mal frustro-me direito e volto a dormir mal.

Os fantasmas estão no mundo, não em cavernas subjetivas; hoje eles vêm da própria tecnologia que nos permite descobrir se pioramos ou melhoramos com o passar do tempo (se tivermos estômago, isto é, para olhar para quem éramos meses ou anos atrás). A evolução do videogame, quando tínhamos que lidar somente com o nosso fantasma individual – não; no Facebook também encaramos, em cada janela, os fantasmas dos outros.

Afinal, só se compartilha o melhor de si. E tudo que se vê nos perfis dos outros é o que eles têm de melhor. Nossa existência mundana, o aqui e o agora da roupa mal passada, dos prazos estourados, da fila de banco por conta de boletos atrasados… Isso nunca vai preencher as máscaras de plástico que se moldam ou se compram na internet. E o curioso é que ninguém, no fundo, sabe de nada: os fantasmas dos outros, com quem interagimos, são mesmo só ilusões. Mas quando os encaramos, essas versões de seres humanos que leram os livros, viram os filmes, ouviram as músicas e têm opiniões sobre tudo, não é isso que passa pela cabeça: é claro que fizeram tudo isso. E eu podia ter feito também.

O inferno não são os outros, porque o fogo do capeta está nos nossos próprios olhos; foi o nosso olhar que morreu sem se arrepender. Cada espiada na vida alheia é de uma ingenuidade doente, algorítmica – o receptor que respeita o emissor, hoje, é um coitado. Os fantasmas das telas provam que o individualismo não existe. Buscamos, nos outros, sinais, dicas, pistas do que fazer para nos orientar na vida. Viver é isso – acreditar que alguém em algum lugar tem um mapa para sair do pântano, ou que todo mundo tem um mapa melhor que o seu. Hoje o GPS nos diz que o melhor é pedir informação para os fantasmas. O resultado? Percebemos que eles podem voar e nós não. E então olhamos uns para os outros – para os fantasmas dos outros – torcendo que eles não percebam como não conseguimos estar à altura de ninguém.

Nunca seremos nossos fantasmas. Nem no além-vida, nem aqui, onde os deuses que nos julgam são quase anônimos – seu poder é ilusório, são fantasmas como nós. Rogamos, mesmo assim: curtam, curtam; ajudem-me a fortalecer o meu fantasma, a erguê-lo aos céus (talvez eu já nem possa vê-lo – mas o que me torno, então?). Nossos fantasmas só nos fazem mal. A razão engana, querendo fazer crer que são como a democracia: tanto faz se não conseguimos ser como eles agora, pois eles são um belo ideal, um horizonte naturalmente inatingível. Besteira: não sei em que sentido estou crescendo ou melhorando a cada dia que meu fantasma me derrota. A melhor versão de mim mesmo, eu acho, não cometeria esse erro.

Com este texto, fui premiado em segundo lugar no 15º Prêmio Literário Paulo Setúbal (Categoria Crônicas), em 2017. Versão em inglês (feita em 2020) aqui.

Covid capital

Para quem vê a questão a partir do comportamento individual, a curva do covid parece representar a licença que as pessoas se dão para fazer o que quiserem. O que isso esconde, especialmente na medida em que estabelece uma falsa dicotomia entre “uma mão forte pra fazer o necessário” (como na China) e “os desejos descontrolados de humanos falhos”, é o quanto o sistema em que vivemos nos oprime não só diretamente, mas também pelos incentivos e desejos que produz indiretamente.

Porque o capitalismo não é a pessoa fazer o que quer, mas se virar como pode.

Jogo Agência é mencionado em live do Centro de Cultura Social (SP)

O criador do jogo Agência, Peterson Silva, fez uma live para o Centro de Cultura Social, em São Paulo, sobre práticas pedagógicas anarquistas no contexto escolar. O jogo Agência foi mencionado como possibilidade de prática para abordar o conteúdo “anarquismo” em sala de aula. Confira a live a seguir:

 

A filosofia política da série Dark: entenda a série e o que ela significa

Atenção: SPOILERS para TODAS as temporadas de Dark abaixo!

Mesmo envolvendo sociedades secretas e tecnologias apocalípticas na Alemanha do século XX, é curioso que Dark, a aclamada série da Netflix, ignore completamente o nazismo. Isso não necessariamente prejudica a narrativa, mas dá uma ideia de quão difícil é analisá-la politicamente. Suas ponderações sobre o livre arbítrio, por exemplo, seguem uma linha mais “psicológica” ou “filosófica”, que muitosexploram bem. Será que existe algo a dizer sobre ela, politicamente?

Continue lendo “A filosofia política da série Dark: entenda a série e o que ela significa”

Faleceu ontem o antropólogo David Graeber

David Graeber lecionando na LSE.

Este ano, estive no Reino Unido em doutorado sanduíche. Minha pesquisa é sobre o conceito de liberdade entre anarquistas. Na minha longa lista de leituras tinha cinco livros dele. Fui até a London School of Economics ver se conseguia conversar com ele. Acabei chegando meio tarde, mas fui mesmo assim, só pra ‘reconhecer o terreno’. Pra minha surpresa, ele saiu do elevador que eu estava esperando pra pegar.

Ele parecia estar de saída, então pra não incomodar muito só perguntei se as aulas dele podiam ser assistidas também por quem não era aluno ali. “Ah, podem sim”, ele disse. “A universidade não quer que ninguém saiba disso, mas podem sim”.

Falei com a secretária do departamento, Renata Todd, pra pegar o calendário do semestre da disciplina dele. No dia que escolhi, cheguei bem cedo, pra não dar erro. Sentei no fundo. A foto é desse dia.

Graeber foi um acadêmico brilhante. Discípulo de Marshall Sahlins, outro gigante da antropologia, ele fez contribuições em tantas áreas da teoria social, que dá até uma tontura: da arqueologia do conceito de dívida até a condenação dos “trabalhos nada a ver” (minha forma preferida de traduzir Bullshit jobs), passando por carros voadores, panpsiquismo, burocracia, magia, ação direta, imaginação, teoria do valor, super-heróis, polícia, violência, poder constituinte, propriedade, diálogo, pós-modernismo, neoliberalismo, desigualdades, bullying, soberania, entre muitas outras coisas, ele sempre tinha algo instigante a dizer. Podia não estar 100% certo – e ele mesmo sempre recuava das simplificações que fazia, apontando-as como tais – mas como diz o Clayton Peron, “conseguia realizar a conciliação quase impossível entre erudição e simplicidade”. Você acha que sabe o que uma coisa é, mas basta ler uma daquelas frases dele com a estrutura “na verdade, isso ali nada mais é que isso aqui” e pronto: sua mente explode com possibilidades.

Mas – e é preciso dizer, porque nem sempre a relação é automática – ele também era um excelente professor. Começou a aula dizendo que não ia usar slides porque eles nos emburrecem, e que teria apenas aquela aula (de uma hora) para explicar teoria social francesa por causa dos (bons) esforços para descolonizar o currículo. A aula foi principalmente sobre Mauss – mas, para chegar aí, ele foi desde o fracasso da Revolução Francesa até outros ‘desdobramentos’ de Durkheim, como Dumont. Foi uma aula extremamente didática, mas também divertida, cheia de referências inusitadas. Ao apresentar Comte como o secretário mentalmente perturbado de Saint-Simon, disse que o positivismo chegou a ter bastante influência em algumas partes do mundo, e perguntou se alguém sabia o que estava escrito na bandeira do Brasil (só vi aquele mar de cabeças à minha frente se virando quando respondi, após uns segundos de silêncio: “order and progress”).

Depois da aula, expliquei pra ele melhor quem eu era e o que eu queria. Graeber disse que adoraria conversar, até porque – pasmem – ele estava escrevendo um novo livro especificamente sobre o conceito de liberdade! Se eu poderia fazer uma entrevista com ele? Claro – só que ele estava cansado de dizer sempre as mesmas coisas; se eu lesse o livro antes, poderia fazer perguntas novas. Fui pra casa muito feliz naquele dia.

Alguns dias depois (e certa insistência, pois ele admitiu que era péssimo em responder emails), ele me mandou uma cópia do livro, que devido à pandemia nem foi publicado ainda (sai em novembro agora, parece). No email, disse: “Não compartilhe com ninguém! Ou vão ficar bravos comigo…”. Marquei um novo encontro com ele – e não posso agradecer Renata Todd o suficiente; já falei que ele era muito ruim com emails? – e… Ele esqueceu. Precisei encontrar com ele num restaurante vietnamita ali por perto, onde ele estava almoçando, às 3 da tarde.

Lá, ele me perguntou o que eu achei do livro. Até me mostrou um capítulo que estava escrevendo para outro, algo sobre o Estado não ter uma “origem” de fato – leu um trecho pra mim e perguntou se eu achava pretensioso demais (achei que não). Disse-me o quanto detestava ser chamado de “o antropólogo anarquista”, especialmente porque quem fazia isso geralmente nem se dava ao trabalho de se engajar direito com suas ideias (lembrei direto da coluna do João Pereira Coutinho na Folha).

Voltamos pro escritório, e gravei a entrevista com ele (vai sair ainda esse mês, na Revista Em Tese). Olhando pra trás, até mesmo algumas horas depois de já ter ido embora, fiquei pensando que deveria ter insistido mais em alguns pontos; feito algumas perguntas de outro modo. Aquela coisa básica de só pensar na coisa certa a se dizer horas depois. Mesmo assim, foi legal demais. No final, perguntou como andava o MST.

Eu saí daquela interação sabendo um pouco melhor o que me separava dele. Várias coisas que ele dizia, o lugar para onde a teoria dele caminhava, me deixavam um pouco agoniado, mas nunca soube explicar por quê. Vários foram os áudios trocados com o Cazé pra colocar as ideias no lugar… E mesmo assim, muitas mais coisas nos unem. Certas, erradas, ou em algum lugar no meio do caminho, as coisas que ele escreveu vão continuar reverberando por muito tempo dentro e fora da academia. Alguns exemplos:

A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

Pra ser sincero, eu ainda penso naquele magistrado romano anônimo. É engraçado: quando falamos das origens clássicas da nossa civilização (e estou me referindo a esse ponto na civilização mundial, da qual todo mundo participa hoje em dia em algum grau), as figuras que naturalmente vêm à cabeça são homens como Péricles ou Eurípides ou Platão, mas nunca esse cara – ele nem tem um nome – embora seja possível argumentar que ele moldou nossas vidas de maneiras muito mais profundas. O homem que imagino é um oficial do senado na república romana tardia ou começo do império, que patrocina jogos, faz julgamentos prudentes quanto a questões como leis de propriedade, e daí vai pra casa ter suas necessidades mais íntimas atendidas por escravos que são em termos legais pessoas conquistadas, sem quaisquer direitos, e com quem ele pode fazer o que quiser, estuprar, torturar, matar, com total impunidade. Ele é um monstro. E no entanto sua perspectiva sobre o mundo, seus julgamentos, estão na base de todas as nossas ideias liberais sobre liberdade, e suspeito que muito mais além disso.

Não há nenhuma área da vida humana, em qualquer lugar, em que não se pode encontrar cálculo auto-interessado. Mas tampouco há qualquer lugar em que não se possa encontrar gentileza ou aderência a princípios idealistas: a questão é por que um, e não a outra, é colocado como a realidade ‘objetiva’

Economias de mercado […] negam ‘o verdadeiro fundamento de suas próprias vidas’, uma vez que elas constantemente obscurecem o fato de que toda atividade ‘econômica’ é em última instância um meio para a criação de certos tipos de pessoas.

Uma divisão aguda entre liberdade e obrigação é, como aquela entre interesse e generosidade, em grande medida uma ilusão causada pelo mercado, cuja anonimidade torna possível ignorar o fato de que dependemos de outras pessoas para praticamente tudo. Em sua ausência, é preciso necessariamente estar ciente de que, a não ser que se deseje viver em solidão, a liberdade basicamente significa a liberdade de escolher que tipo de obrigações alguém quer contrair, e com quem.

Uma razão pela qual passo tanto tempo re-escrevendo o passado é porque estou convencido que ele está atualmente sendo escrito da forma como está para tornar quase impossível que imaginemos um futuro viável.

Por toda a internet hoje li muito que ele cunhou a frase “nós somos os 99%”. Não é verdade, ele me disse (assim como já disse em várias entrevistas): ele fazia parte do grupo que pensou essa frase. Ele era assim: amigo de Rojava, colocava esse aspecto coletivo em primeiro lugar sempre, seja na teoria, seja na prática militante. Foi um grande acadêmico, um grande ativista, uma grande pessoa. Deixará saudades. Fará falta.

“O outro lado da filosofia ocidental”, por David Graeber

Trecho de GRAEBER, D. Toward an Anthropological Theory of Value. Nova Iorque: Palgrave, 2001. p. 50-53.

A filosofia ocidental […] começa de fato com a briga entre Heráclito e Parmênides; uma briga que Parmênides venceu. Como resultado, desde quase o início, a tradição ocidental foi marcada pela imaginação de objetos que existem como que fora do tempo, alheios à ideia de transformação. Tanto que a óbvia realidade que as mudanças são sempre foi meio que um problema.

Pode ser útil revisar essa briga, ainda que rapidamente.

Heráclito basicamente via a fixidez que os objetos comumente pareciam ter como uma ilusão; sua realidade última era uma de constante fluxo e transformação. O que presumimos que sejam objetos são na verdade padrões de mudança. Um rio (seu exemplo mais famoso) não é simplesmente um corpo de água; na verdade, se alguém passa por um rio duas vezes, a água fluindo por ele provavelmente será completamente diferente. O que permanece no tempo é simplesmente o padrão de seu fluxo. Parmênides, por outro lado, pensava exatamente o oposto: para ele, a mudança é que era uma ilusão. Para que objetos sejam compreensíveis, eles precisam existir em alguma medida fora do tempo e da transformação. Há um nível de realidade, talvez um que humanos nunca consigam perceber completamente, em que as formas são fixas e perfeitas. De Parmênides, é claro, você pode traçar uma linha direta até ambos Pitágoras (e assim à matemática e à ciência ocidentais) e Platão (com suas formas ideais), e portanto até praticamente qualquer escola subsequente de filosofia ocidental.

A posição de Parmênides era obviamente absurda; e de fato, a ciência desde então demonstrou que Heráclito estava mais correto do que ele jamais poderia imaginar. Os elementos que constituem objetos sólidos estão, na verdade, em constante movimento. Mas pode-se defender que se a filosofia ocidental não tivesse rejeitado essa posição em favor da ideia errada de Parmênides, nunca teria sido possível descobrir isso. O problema com essa abordagem dinâmica, de Heráclito, é que embora ela seja obviamente verdadeira é impossível desenhar limites precisos entre as coisas e assim medi-las. Se objetos são apenas processos, não sabemos suas reais dimensões – isto é, se eles ainda existem – porque não sabemos quanto irão durar. Se objetos estão em constante fluxo, até mesmo medidas espaciais precisas são impossíveis. É possível medir um objeto em um momento particular e então tomar isso como representativo, mas mesmo isso é uma construção imaginária, porque tais “momentos” (no sentido de pontos no tempo, sem duração, infinitamente pequenos) não existem de fato – eles, também, são construções imaginárias. Foi precisamente tais construções imaginárias (“modelos”) que permitiram a ciência moderna. Como Paul Ricoeur já observou:

É incrível que Platão tenha contribuído com a construção da geometria euclidiana através da denominação de conceitos como linha, superfície, igualdade, semelhança entre figuras, etc., que estritamente proibia todo recurso e toda alusão a manipulações, à transformação física de figuras. Esse ascetismo da linguagem matemática, ao que devemos, em última análise, todas as nossas máquinas desde a origem da era mecânica, teria sido impossível sem o heroísmo lógico de Parmênides negando todo o mundo do devir e da praxis em nome de uma auto-identidade de significações. É a essa negação do movimento e do trabalho que devemos as conquistas de Euclides, Galileu, o mecanicismo moderno, e todos os nossos equipamentos e aparelhos […]

Há obviamente uma grande ironia nisso tudo. O que Ricoeur está sugerindo é que nós conseguimos criar um mundo de tecnologias capazes de nos dar um poder inimaginável de transformar o mundo, em grande medida porque primeiro fomos capazes de imaginar um mundo sem poderes ou transformações. É bem possível que isso seja verdade. A questão crucial, no entanto, é que ao fazê-lo, também perdemos algo. Porque uma vez que alguém se acostuma a um esquema básico de observação do mundo partindo de um mundo externo imaginário e estático, conectar os dois se torna um enorme problema. Poder-se-ia até dizer que os últimos dois mil anos de filosofia e pensamento social ocidentais foram tentativas infindáveis e cada vez mais complicadas de lidar com as consequências disso. Sempre você tem a mesma presunção de formas fixas e o mesmo fracasso de saber onde de fato encontrá-las. Como resultado, o conhecimento em si se torna o grande problema. Roy Bhaskar tem argumento por alguns anos já que desde Parmênides, a filosofia ocidental tem sofrido do que ele chama de uma “falácia epistêmica”: uma tendência a confundir a questão sobre como podemos saber de coisas com a questão sobre se essas coisas existem.

Em sua forma extrema, esta tendência se abre para o positismo: a presunção de que dado tempo suficiente e instrumentos precisos o bastante, deveria ser possível fazer os modelos e a realidade se corresponderem completamente. De acordo com seus avatares mais extremos, não só deveríamos poder produzir uma descrição completa de qualquer objeto no mundo físico, mas – dada a natureza previsível das “leis” físicas – prever precisamente o que aconteceria com ele sob condições conhecidas de forma igualmente precisa. Uma vez que ninguém jamais foi capaz de fazer qualquer coisa do tipo, essa postura tem a tendência de gerar seu oposto: um tipo de niilismo agressivo (hoje em dia mais frequentemente identificado com vários tipos de pós-estruturalismo) que em sua forma mais extrema argumenta que uma vez que não se pode nunca gerar tais descrições perfeitas, é completamente impossível falar sobre “realidade”.

Isso tudo é um belo exemplo de por que a maior parte de nós meros mortais acham debates filosóficos tão sem sentido. Essa lógica está em direta contradição com a experiência da vida comum. A maioria de nós está acostumada a descrever certas coisas como “realidades” precisamente porque não podemos entendê-las completamente, não podemos controlá-las completamente, não sabemos exatamente como elas vão nos afetar, mas mesmo assim não podemos tirar elas do caminho com a força do pensamento. É o que não sabemos sobre elas que nos dá a certeza de que são reais.

Como eu digo, uma veia alternativa, heracliteana de pensamento sempre existiu – uma que vê objetos como processos, definidos por seus potenciais, e a sociedade como construída primariamente por ações. Sua manifestação mais conhecida é sem dúvida a tradição dialética de Hegel e Marx. Mas seja lá qual formato ela tome, sempre foi quase impossível integrá-las com a filosofia mais convencional. Há uma tendência a vê-la como algo que existe meio que de lado, uma coisa esquisita ou meio mística. Certamente, ela parece assim em comparação com o que parece ser um realismo cabeça-dura da parte das abordagens mais positivistas – o que é um pouco irônico, considerando que se você consegue superar a linguagem frequentemente complicada, você geralmente percebe que se tratam de perspectivas bem alinhadas com percepções de senso comum sobre a realidade.

Roy Bhaskar e aqueles que desde então tomaram para si alguma versão de sua abordagem “crítica realista” […] têm tentado por anos agora desenvolver uma ontologia mais razoável. Os argumentos resultantes são notoriamente difíceis, mas pode ser útil descrever algumas de suas conclusões[…]:

  1. Realismo. Bhaskar defende um “realismo transcendental”: isto é, em vez de limitar a realidade ao que pode ser observado pelos sentidos, devemos nos perguntar “o que tem que ser verdade” para que nossas experiências tenham uma explicação. Em particular, ele busca explicar “por que experimentos científicos são possíveis?”, e também, ao mesmo tempo, “por que experimentos científicos são necessários?”.
  2. Potencialidade. Sua conclusão: embora nossas experiências sejam de eventos no mundo real, a realidade não se limita ao que podemos experimentar (“o empírico”), ou sequer à soma total de eventos que se possa dizer que ocorreram […]. Em vez disso, Bhaskar propõe um terceiro nível (“o real”). Para entendê-lo, é preciso entender “poderes” – isto é, definir as coisas parcialmente em termos de seus potenciais ou suas capacidades. A ciência em grande medida procede por meio de hipóteses acerca de quais “mecanismos” precisam existir para explicar tais poderes, e então ela procura por eles. A busca provavelmente não tem fim, porque há sempre níveis mais profundos e fundamentais (por exemplo, de átomos a prótons, de prótons a quarks, e por aí vai), mas o fato de que não há um fim à busca não significa que a realidade não exista; em vez disso, ela simplesmente significa que ninguém conseguirá entendê-la completamente.
  3. Liberdade. A realidade pode ser dividida em estratos emergentes: assim como a química pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à física, a biologia pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à biologia. Diferentes tipos de mecanismos estão operando em cada nível. Além disso, cada um adquire certa autonomia daqueles abaixo; seria impossível sequer falar sobre liberdade humana se esse não fosse o caso, uma vez que nossas ações seriam simplesmente determinadas por processos químicos ou biológicos.
  4. Sistemas abertos. Outro elementos da indeterminação vêm do fato de que eventos do mundo real ocorrem em “sistemas abertos”; isto é, há sempre diferentes tipos de mecanismos, derivados de diferentes estratos emergentes de realidade, atuando em qualquer um deles. Como resultado, nunca se pode prever exatamente como qualquer evento do mundo real vai acontecer. Essa é a razão pela qual experimentos científicos são necessários: experimentos são maneiras de criar “sistemas fechados” temporários em que os efeitos de todos os outros mecanismos são, tanto quanto possível, anulados, para que seja possível examinar de fato um único mecanismo em ação.
  5. Tendências. Como resultado, é melhor não falar de “leis” científicas inquebráveis mas de “tendências”, que interagem de maneiras imprevisíveis. É claro, quanto mais alto os estratos emergentes com os quais se está lidando, menos previsíveis as coisas se tornam, com o envolvimento de seres humanos se tornando o fator mais imprevisível de todos.

[…] A posição heracliteana, que observa as coisas em termos de seus potenciais dinâmicos, não significa abandonar a ciência mas, em vez disso, a única esperança de dar à ciência uma base ontológica sólida. Mas isso também significa que para fazê-lo, quem deseja fazer afirmações científicas terá que abandonar alguns de seus sonhos mais ambiciosos – totalitários, até – sobre conhecimento absoluto ou total, e aceitar um certo grau de humildade em relação ao que é possível saber. A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

O que é verdadeiro acerca da ciência natural é ainda mais verdadeiro acerca da ciência social. Embora Bhaskar tenha adquirido uma reputação como filósofo da ciência, seu interesse em última instância é social; ele está tentando embasar filosoficamente uma teoria de emancipação humana, uma forma de aliar o conhecimento científico com a ideia de liberdade humana. Aqui, também, a mensagem é humildade: realistas críticos alegam ser possível preservar a noção de uma realidade social e, portanto, de uma ciência capaz de fazer afirmações verdadeiras sobre ela – mas apenas se ela abandona o tipo de obsessão estatística positivista que faz as vezes de ciência em meio à maioria dos sociólogos ou economistas atuais, e se ela desiste da ideia de que a ciência social será um dia capaz de estabelecer leis preditivas.