A comunicação só existe entre iguais, e por isso mesmo é rara entre nós. No momento em que conhecemos alguém nos enredamos em pontes de poder. O desequilíbrio é a regra, não a exceção. O ‘ser igual’ a alguém é um constante processo de ‘tornar-se igual’, processo que colabora de forma considerável com a formação de nossa personalidade, de nosso ser social, ao praticarmos a elevação ou o rebaixamento, ao abdicarmos ou reivindicarmos, ao pegarmos ou largamos, pelo bem de verdadeiramente ouvir e ser ouvido.
Como colocar palavras nas bocas dos personagens? Eis uma decisão complicada. Não falo aqui de estilo (literalmente quais palavras escrever), mas da direção da conversa, para onde ela vai a partir do que os personagens resolvem dizer.
A primeira coisa que costuma aparecer na cabeça do autor num diálogo comum, parte qualquer no meio da história, é: o que é preciso para levar a história adiante? Ao rascunhar o “esqueleto” da narrativa, você já sabe o fio geral que transforma o começo no fim. O que os personagens dizem é em grande parte determinado por esse fio. Ao falar e fazer coisas, os personagens põem em marcha os acontecimentos planejados.
Vamos a um exemplo. Você precisa que a personagem Maria descubra que seu namorado João comete adultério com Joana. Por alguma razão você quer que ela descubra isso por uma conversa com outra personagem, não num flagrante. Por isso, nessa parte, você pode criar um rascunho que simplesmente diz “Mário conta para Maria que João tem um caso com Joana”. Na hora de escrever de fato essa parte, pode rolar algo como “Maria, tenho que contar uma coisa… O João tem um caso com a Joana”, e a Joana responde “Não! Não é possível! Não acredito!”, e Mário responde “Mas é verdade, você tem que acreditar”.
Repare que o diálogo se encaminha para a prova de que Mário está dizendo a verdade, porque a história precisa ir adiante; a próxima coisa que você já decidiu que vai acontecer é que Maria vai até a casa de João pra conversar sobre o assunto, e para isso a Maria tem que minimamente acreditar na revelação. Pense em qualquer mundo fantástico invadido por pessoas do “nosso” mundo: elas têm que ter um tempo para se surpreender, mas eventualmente devem parar de achar que estão loucas e aceitar a realidade, ou então nada acontece na trama. Isso é uma coisa potencialmente difícil (por conta da tensão entre realismo e eficiência narrativa) que Perdida, por exemplo, executa bem.
O diálogo acima (super tosco, eu sei) é eficiente: ele pode ser tão pequeno quanto necessário para que o ritmo continue sendo rápido, ou mais longo se você precisa dar uma parada no fluxo – até para focar, de repente, a subjetividade da Maria, que sofre com a descoberta. Tudo depende. Mas há vários outros critérios que podem ser usados em diálogos para moldar o que os personagens vão dizer – e, em geral, o processo constante de revisão ao qual o autor submete seu próprio trabalho acaba lidando com eles.
Contexto e motivação
Uma das piores coisas que se pode acontecer com um diálogo “eficiente” é que, na ânsia de fazer ele executar a função para a qual foi planejado, coisas mais elementares são esquecidas: o que os personagens querem. Por que Mário contou isso pra Maria?
Contexto também é fundamental. Por que eles se encontraram naquele momento e naquele lugar? Isso importa, porque a suspensão de descrença não fraqueja só em filmes de super heróis; se você precisa tanto que Mário conte isso pra Maria que você está disposto a fazer eles se encontrarem aleatoriamente no centro da cidade, muitos leitores serão estapeados por essa conveniência absurda: vai ficar claro que o autor precisava dar um jeito de Mário falar com a Maria e, como não conseguiu nada de bom, fez os dois se encontrarem por acaso. Mas em ficções, [um] Deus existe. As pessoas esperam responsabilidade, causalidade e lógica das histórias que os humanos escrevem – ou poesia.
Se o encontro (entre Mário e Maria) for surpreendente, isso ainda será abordado no diálogo – afinal, quando nos encontramos com alguém por acaso e temos tempo para conversar sobre relacionamentos e traições, certamente iniciaremos a conversa com “O que você está fazendo aqui? Que coincidência!”. Isso confere mais naturalidade e fluidez ao diálogo.
Small talk
Isso depende muito do estilo do livro e do fluxo da história, mas o exemplo anterior é duplo: não só é sempre interessante providenciar, no diálogo, um pouco do contexto da conversa e das motivações de seus participantes, o fato é que raramente vamos ao ponto do que queremos falar – especialmente no começo de uma conversa, no princípio de encontro com outra pessoa. “O que você está fazendo aqui? Que coincidência” é ótimo para começar, mas Mário não cortaria Maria imediatamente para “Precisamos conversar sobre o João” (ou talvez sim, depende do contexto, mas ignoremos isso por um momento). É muito mais possível, se são duas pessoas normais e não espiões soviéticos, que Mário responda a pergunta e faça mais “conversinha”.
Talvez é a partir dessa conversinha que Mário chegue ao pensamento de que talvez seja bom falar sobre o que sabe sobre o João (“Cadê o João?”, “Ah, tá trabalhando hoje”. “Hm. Pois é… Então, desculpa te falar, mas… Acho que não”).
Assimetrias
A comunicação é cortada e perpassada por relações múltiplas de poder. Só há comunicação entre iguais, mas a maioria entre nós, em relação a outros, somos desiguais.
Digo isso porque o planejamento de um diálogo geralmente passa, como dito acima, pela listagem das coisas que se precisa que os personagens digam – ou melhor, o que o leitor precisa tirar daquela conversa – e então a organização temporal dessas coisas. Mário diz isso, Maria diz aquilo, aí Mário diz isso, e Maria diz aquilo. Se não há cuidado, os personagens acabam sendo receptáculos vazios de informações – sendo raquetes de um ping pong de palavras.
Isso parece bastante óbvio e às vezes já está embutido no planejamento do autor. Se Mário tem interesse romântico em Maria e é um homem confiante, vai provavelmente falar de uma forma bastante incisiva e proselitista sobre o que João está fazendo. Se é mais inseguro, vai provavelmente se desculpar milhões de vezes por falar daquilo, com medo de magoá-la, de perder suas chances com ela… E já vai ter sido muita a coragem de falar em primeiro lugar. Se Maria tem um interesse romântico em Mário, como vai reagir a ele falando isso para ela? É mais do que a forma como o narrador vai mostrar que ela se sente; como isso impacta o que ela vai dizer pra ele nesse diálogo? Ou ela não vai aguentar o que vai encarar como uma humilhação e vai sair correndo, evitando o diálogo completamente?
Isso pode estar entranhado na premissa da história de tal forma que não abandone a mente do autor, mas há outros cenários, e isso faz diferença também com personagens menos tridimensionais, como “coadjuvantes” e “quase-figurantes”. Se Mário é o chefe da Maria, ele vai abordar uma discussão assim pessoal (por mais que ele entenda que é para o bem dela ou coisa parecida), de uma forma muito diferente – e também muito diferente, em outro sentido, se for um chefe escroto. Em ambos os casos, a forma como Maria responde deve levar em consideração esse diferencial de poder. Se Maria é chefe de Mário, aí a coisa também muda. Se eles são colegas de trabalho, também é outra coisa. Todo tipo de interesse e de relação de poder que incide entre eles pode ter consequências palpáveis sobre as palavras que escolhem para dizer o que dizem – e principalmente sobre o que não dizem.
Esse processo psicológico pode ser revelado por um narrador em primeira ou terceira pessoa… Ou permanecer escondido – o que é formidável também, porque incita o leitor a formar suas próprias conclusões sobre o que exatamente está por detrás das escolhas de palavras (e informações) dos personagens. É só lembrar, por exemplo, a confrontação entre Bentinho e Capitu sobre a paternidade de Ezequiel.
Ineficiências
Os personagens dialogam dentro de um contexto específico e o que eles querem dizer e fazer deve moldar o diálogo mais do que aquilo que a história exige deles no momento. Os diálogos, quando isso se acomoda bem ao estilo e ao ambiente da obra, deveriam incluir mais do que somente as “informações essenciais”, mas também coisas menores e corriqueiras que nos ajudam a ter uma noção dos personagens e da interação entre eles. E falando em interação, é preciso sempre se perguntar como as diferenças entre os personagens, de interesses e de “posição”, formulam e reformulam aquilo que eles escolhem dizer e como escolhem dizê-lo.
Só que falta uma coisa ainda. O parágrafo acima, que resume a postagem até então, pretende aperfeiçoar o diálogo no que interessa a primeira característica que discutimos: sua eficiência. Ele ainda traz ao leitor o que ele precisa saber, mas o faz de forma mais natural e robusta. Só que, especialmente se você quer uma certa “naturalidade” em sua obra e uma relação mais humana entre os personagens, você deve abandonar, em parte, até a eficiência.
Pense em todas as discussões acaloradas que você teve com alguém: é muito provável que em grande parte delas, quando você ainda está de cabeça quente horas depois, você “descubra” alguma coisa perfeita que poderia ter dito pra outra pessoa. Mas, infelizmente, o tempo passou – a oportunidade foi perdida e você se morde por só pensar agora nessa frase perfeita para contra-atacar seu adversário.
O escritor não deveria se aproveitar do fato de que pode “voltar no tempo” – revisar uma discussão de novo e de novo e de novo, quantas vezes achar necessário – para aperfeiçoar uma discussão. A ideia de que você pode colocar num papel o que Mário tem que dizer / quer dizer, o que Maria tem que dizer / quer dizer, e aí “dar um jeito” de encaixar tudo numa conversa, é problemático – porque na vida real isso nunca acontece. Sempre ficam coisas por serem ditas, coisas mal ditas, coisas ditas a mais a partir de uma derivação do assunto original da conversa – e isso não se trata apenas de brigas, mas do dia a dia. Mesmo coisas bem expostas pelo emissor podem ser mal interpretadas pelo receptor.
No entanto, o escritor precisa encontrar um equilíbrio: um jeito de fazer cada conversa passar mais ou menos ideias que se quer que o leitor “pesque” (sem esfregar na cara dele, por favor) a, ao mesmo tempo, dar autenticidade à conversa. Uma forma boa de fazer isso é ter em mente uma ideia vaga sobre o que cada personagem quer daquela conversa, ou como está reagindo a novas informações, e escrever uma primeira versão instintivamente – pondo no papel a primeira resposta que vem à cabeça. Obviamente aquilo pode ser imperfeito demais para servir aos propósitos da trama – e consertos terão que ser feitos. Mas consertos a partir de um bom molde inicial têm mais chance de resultarem em algo “natural” e eficiente na medida certa do que um molde planejado meticulosamente demais.
De coisas que buscam aprimorar o diálogo até aquelas que, com o mesmo objetivo, retiram-lhe atributos (mas não de maneira forçada), essas são boas dicas para criar um diálogo dinâmico e informativo.
“Viver nos Estados Unidos no século XXI é como estar em uma Revolução Francesa ao contrário. Os ignorantes querem colocar uma aristocracia antiética no governo; ocorre o inverso da Queda da Bastilha, já que se enfiam mais e mais pessoas em prisões cheias, para o lucro dos aristocratas, e os pobres estão morrendo não de fome, mas de obesidade epidêmica, por LITERALMENTE COMEREM BOLO.”
Há várias formas de organizar diálogos / conversas em textos. O mais comum deles, por ser padrão editorial no Brasil, é o diálogo com travessão.
— E aí, como vai? — disse Pedro.
— Vou bem, e você? — disse Marta.
— Muito bem.
— Eu também estou bem! — intrometeu-se Carlos.
Uma coisa que eu considero particularmente importante nesse tipo de conversa é a separação entre o que realmente foi dito e o que se trata de “explicação” do narrador, ou de outras coisas que o narrador possa dizer. Assim, ler O Triste Fim de Policarpo Quaresma é um tantinho irritante, pois muitas vezes as conversas são escritas dessa forma:
— Estou aqui por alguns dias apenas, disse Marta.
— Pois deveria ficar mais, Pedro suspirou.
Isso pode provocar uma confusão momentânea – algo que sempre subtrai da experiência de leitura (não se trata de uma confusão narrativa, que pode tornar a história intrigante, mas sim do próprio fluxo do texto — aí é ruim).
Outro tipo de diálogo é um mais “anglo-saxão” – usando justamente as aspas como modelo.
“E aí, como vai?”, disse Pedro.
“Vou bem, e você?”, disse Marta.
“Muito bem”.
“Eu também estou bem!”, intrometeu-se Carlos.
Isso faz alguma diferença? Tudo faz diferença. Em se tratando de escrever, não só as palavras são o nosso material, mas também o meio — a tipografia, o espaçamento, tudo faz diferença porque o fluxo de leitura é importante pra experiência geral. A questão é saber qual diferença faz, e aí entramos em um território de ambiguidade.
Pra mim, o fato de que as aspas marcam menos graficamente o diálogo faz com que ele esteja mais integrado à narração. Os travessões não tornam o texto uma peça de teatro ou um roteiro de cinema – com o nome de quem fala aparecendo em letras maiúsculas antes mesmo do que é dito, ou com cada trecho da conversa destacada, flutuando acima do resto – mas ainda o organizam de forma a lhe dar alguma especificidade, alguma proeminência no encaminhar do que acontece.
Um aspecto interessante das conversas organizadas por travessões é algo que um editor uma vez me sugeriu: partes descritivas da narração devem estar separadas das conversas. Por exemplo, isto aqui estaria, em tese, errado:
— Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto. Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Isto é o que deveria ser escrito:
– Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto.
Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Além disso, o travessão também exige que você separe as conversas a partir de quem fala. O exemplo a seguir quebraria convenções de forma que, para a grande maioria dos leitores, seria extremamente confuso e frustrante:
– Não, nós vamos sim – insistiu Alberto. – Mas como é que vai ficar seu pai, filho? – questionou Maria.
As duas falas deveriam vir em linhas separadas. É justamente por essa sequência alternada que os travessões criam – Alberto Maria Alberto Maria Alberto Maria – que é imprescindível marcar o falante após uma pausa imposta pelo narrador se o falante ainda é o mesmo. No exemplo a seguir:
– Ele não precisa ficar sabendo…
Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto.
– Vai ser só por um dia.
Considero muito importante adicionar um “— disse Alberto” à última linha, pois a dinâmica dos travessões faz crer que o próximo é uma fala de outra pessoa. Até porque, sendo da mesma, o exemplo anterior poderia ser organizado da seguinte forma:
– Ele não precisa ficar sabendo… – Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto. – Vai ser só por um dia.
A diferença, é claro, é que o primeiro formato faz crer (mesmo que de uma maneira bastante sutil) um pouco mais de tempo entre as duas falas de Alberto.
A organização por aspas permite que o diálogo se “integre” mais à narração. Isso é ótimo quando se trata de primeira pessoa, mas não só nesse caso. A integração favorece aspectos poéticos da prosa, e mesmo quando isso não é prioridade a história fica mais “compacta”, e o que está acontecendo ganha mais destaque do que está sendo dito.
Peguei meu chapéu e fui me encaminhando pra porta. “Você pode ligar, pelo menos?”, ela perguntou, e eu não sabia mais como aguentar aquilo. Raspei o restinho de paciência que tinha ficado ainda no fundo de mim mesmo e o mordi com força para dizer que sim. “Se eu tiver crédito”, adicionei, já me virando. “Eu ponho pra você…”, sugeriu ela, esperando que eu fosse me demorar mais. Foi difícil acelerar o passo com a mão fechada na mala de rodinhas, mas era o que eu tinha que fazer.
Nada impede que as aspas sejam usadas de forma muito semelhante aos travessões. Todo esse parágrafo, por exemplo, poderia ser separado em vários, com aspas iniciando cada um. Mas o que foi feito aqui não poderia ser feito em um só parágrafo apenas com travessões, por se tratar de duas pessoas falando. É preciso notar que as mesmas distinções valem para conversas com mais de uma pessoa, e vale ressaltar o que parece óbvio: a vantagem de poder comprimir conversas e costurá-las à narração é um ganho, no mínimo, de espaço / número de páginas.
É possível misturar as duas organizações? Com certeza, mas é preciso cuidado. Ficaria estranho e confuso usá-las alternadamente e para o mesmo propósito — por isso, na maioria das vezes em que os dois estilos são empregados, trata-se de uma divisão de tarefas: os travessões ficam com o que é dito, e as aspas com o que se pensa.
– O ônibus já chegou? – Ele perguntou.
– Não. – “Tá vendo ele, imbecil?”
Outra forma de usar os dois estilos ao mesmo tempo é usar um como primeira fala, e o outro como réplica (e isso ao longo das falas e réplicas). Isso tem dois efeitos extremamente interessantes: em primeiro lugar, novamente, comprime o texto (deixa a leitura mais rápida, o que influencia a percepção de tempo e dinamismo do leitor, e faz o escritor ganhar espaço), mas também estabelece um falante como ativo, e o outro como mais passivo. Considere:
— Eu não quero mais voltar — “Tem certeza?”, ele perguntou. — Eu não vou mais voltar, Gregório — respondi, virando o rosto pra janela. Eu não queria que ele me visse chorando. — Eu cansei, já. Não dá mais. Me recuso — “E se eles acharem a gente?” — Eu já disse que posso proteger nós dois.
Ouvi um movimento do meu lado, mas não adivinhei a postura dele. — Você duvida? — perguntei de soslaio. Ouvi um tímido “não” e não quis insistir; não agora.
Por outro lado, se o objetivo é interconectar a narração à conversa não há nada melhor (e mais experimental, e mais único, e mais maluco, e mais divisivo), do que o “diálogo de Saramago”. Se você nunca leu Saramago e não sabe do que estou falando, trata-se de uma conversa, mesmo entre múltiplos personagens, sem nenhuma demarcação entre fala e narração. Tudo, da cadência do narrador às pausas dos personagens, é separado por vírgula, no máximo um ponto e vírgula. Esse é um diálogo “ame-o ou deixe-o” que você pode tentar usar, e os efeitos, considero, são um pouco imprevisíveis. É confusão que se quer passar? Ou uma ideia de complementaridade tão grande entre o casal que as falas dos apaixonados já são indissociáveis? Ou ainda é emoção, rapidez, o quão afoito alguém está? Recentemente li este conto de Natália Nami (Procure por “Briga de casal” na página), que foi selecionado pelo prêmio Machado de Assis 2014 do SESC/DF. Ele mistura vários desses elementos (aspas, a vírgula de Saramago e a narração em primeira pessoa) e o resultado final é muito, muito bom.
Bem, estas são as formas mais conhecidas de organizar conversas na literatura. Elas têm diferentes efeitos, propósitos e tradições. E vocês, escritores e leitores – qual é o seu estilo preferido?
Sérgio Buarque tem esse trecho do “Raízes do Brasil” em que ele fala sobre o amor bizantino aos livros: tratamos os libros como sagrados objetos de adoração, e não posso desmenti-lo; acontece com quem gosta de livros e também com quem não gosta (pois eles continuam sendo símbolo de intelectualidade de qualquer forma). Se por um lado isso parece bom, será mesmo que isso não tem a ver com o nosso baixo índice de leitura país afora?
Será que não deveríamos banalizar mais os livros? Afinal, popularizá-los só pode significar que estamos dispostos a sujeitar os coitados a todo tipo de coisa. Popularização sempre significou trazer o sagrado ao mundano, não o contrário. O que ganhamos ao idolatrar o livro? Ao ver rasuras, anotações e “orelhas” como sacrilégios, não estamos afastando-os, por exemplo, do contato verdadeiramente lúdico que as crianças tem com um objeto?
As pessoas são como plantas. Plantas que crescem no meio do vento que é o resto do mundo.
O vento das oportunidades, o vento das restrições, o vento da cultura, o vento dos fracassos e dos fracassados.
É um vendaval que nunca para. E a planta cresce. Ela resiste. Cresce também de acordo com sua informação genética, é claro, mas tem que se conformar com o vento e planejar sua adaptação a ele.
Ela pensa em um dia ser frondosa árvore.
Mas o vento é o vento. O vento pode quebrar uma planta. Tamanha força pode afastar polinizadores. No mínimo, a árvore acaba torta depois de tanto contato com essa força implacável. E torta ela cresce. Pra um lado ou pro outro, torta.
É ridículo dizer que a planta cresce sem o vento. Que, não, imagina, o vento não a afeta. Pode o vento transformar pitangueiras em jabuticabeiras? Mas como apontar para uma planta e dizer que ela é torta porque quer?
Mas… Talvez…
Talvez as pessoas não sejam plantas. Talvez não sejam como plantas. Talvez sejam simplesmente humanos. Humanos ao vento, tentando resistir. Às vezes colocando a mão à frente do rosto; às vezes desistindo e resolvendo sentir de vez o vento ao invés de brigar com ele. Por vezes caindo e ficando lá no chão, estatelados.
Às vezes conseguem dar um passo à frente. Elas se desequilibram, é complicado, mas elas seguem. Têm determinação pra tanto.
Eventualmente podem descobrir que não gostam do caminho para onde estão indo. Às vezes é contra o vento, às vezes não. O importante é que tentem; que não sejam plantas, mas humanos. A explicação acaba aí; humanos possuem consciência – de alguma forma somos quem somos e, mesmo que por alguma mínima e ridícula diferença, não somos plantas.
Nós podemos tomar o controle da nossa vida? “Fazer valer à pena” tem como requisito assumir certas responsabilidades para com liberdades que queremos ter e com liberdades que vamos, querendo ou não, ter. Jogar-se ao vento de cabeça – não com galhos e folhagem e contando com uma incerta raiz, esperando o destino atuar.
Tem uma coisa na ficção que pode ser explorada de forma a produzir resultados muito interessantes: o “eu sei que você não pensa assim”. Digo ficção porque isso pode ser feito de forma visual em filmes e peças, ou mais literal (descritivamente, aproveitando uma imersão psicológica) em literatura.
Essa “técnica” (Trope? Esquema? Dispositivo?) consiste no seguinte: o personagem A conhece a opinião do personagem B sobre algo. Quando o personagem C levanta o tema, A observa atentamente o que B tem a dizer, percebendo que B está sendo inconsistente.
Bem atentamente
Essa situação é legal porque pode revelar muito sobre todos os personagens. Sobre o que o personagem C pensa, ou quis fazer, ao levantar o tema. Sobre o que preocupa o personagem A, já que ele prestou particular atenção a isso. E, principalmente, o que o personagem B pensa ou quer com sua fala.
É importante aprofundar aqui a questão do personagem B, porque o fato de que alguém ali sabe o que ele pensa é importante (estou pressupondo que o leitor entenda ou possa inferir que A conhece a opinião de B e também qual ela é, ou pelo menos que A conhece a opinião de B). Isto é: com esta nova situação, o leitor pode entender que B está mentindo para C? Ou que B mentiu, antes, para A? Qual é a verdadeira opinião de B? Há uma verdadeira opinião ou ele é puro oportunismo? Por que ele mentiu para quem ele mentiu? Ou ele mudou de opinião?
Além disso, a situação é relatable, isto é, você se identifica com ela porque ela acontece com frequência na vida real. Pode ser que você não se lembre assim de cabeça, mas não é raro ouvirmos algo de alguém e, mais tarde, ouvirmos algo diferente vindo da mesma pessoa quando o contexto é outro (e, é claro, podemos também ser nós mesmos os inconsistentes). Isso sempre levanta questões – o que significa, também, conflitos posteriores sobre isso entre A, B, e talvez até C. De qualquer forma, isso acontece e sempre problematiza um relacionamento, trazendo confrontos, obstáculos, e mesmo suspense para uma narrativa (no caso de suspense, pense numa pessoa que disse para o detetive que na hora do crime estava em casa, e na frente de outras pessoas disse que estava no supermercado).
Há ainda uma última possibilidade bacana: se bem escrito, um trecho como esse pode passar ao leitor alguma informação de forma sutil – fazer com que ele saiba de algo que talvez nem seja contraditório (para o personagem A, por exemplo) no momento, mas que depois adquira uma significância maior. Isso é sempre, sempre legal.
Não importa o quanto as pessoas passem a acreditar que gosto é igual a cu: inevitavelmente, ao que tudo indica, cairão ainda em disputas sobre o mérito das coisas que fazemos com base na disputa sobre o que a arte é. E isso importa porque não é só uma questão de conceito filosófico: arte é uma categoria cuja inclusão ou exclusão significa uma avaliação de qualidade.
O problema não está nos critérios utilizados pra definir o que é ou não é arte. O problema é que arte é um conceito grande demais para que qualquer critério satisfaça. É monolítico, genérico e, portanto, estéril. Falar de arte é falar sobre tudo. Portanto, é falar sobre nada.
Veja bem, não estou dizendo nada de ruim sobre “arte em geral”; é só que a coisa é mais complexa que isso. Enquanto quisermos enfiar num conceito só coisas muito diferentes, é óbvio que pessoas diferentes – com objetivos e valores diferentes – verão uns aos outros como proponentes de ideias absurdas.
Isso porque arte é, basicamente… Artifício. É o emprego de engenhosidade e habilidade humana para a resolução de problemas. Mas que problemas são esses? São muitos. A arte pode servir para resolver problemas pessoais; para resolver uma coisa tão pequena quanto a necessidade que um ser humano tem de contar uma história. E talvez ele queira contar essa história porque queira influenciar as pessoas para essa ou aquela direção, e talvez isso seja outro problema que se queira resolver, ou talvez o escritor deixe o escrito numa gaveta e mesmo assim se dê por satisfeito – sinal de que algo dentro dele que pedia por resolução foi resolvido – pra ele.
E não há problema nenhum com isso, por que a arte não existe para ser uma empreitada altruísta em direção à salvação da humanidade (a não ser, é claro, que se espose a visão de que podemos salvar uma pessoa de cada vez se formos apenas mais criativos e artísticos em nossas vidas. Isso não é tão ruim…). Mas também, por outro lado, sim, a arte pode ser usada para resolver problemas políticos porque ela impacta as pessoas. E ela também pode ser usada para o benefício de um grupo de pessoas, mas em termos menos controversos: precisamos de um ritmo para que possamos dançar e nos divertir. Eis um problema que a arte – sim, até as músicas de baixaria – resolve!
Mas veja, a engenharia e a medicina são ambos conjuntos de técnicas e conhecimentos que visam resolver problemas. Então eles são arte? Sim! Mas isso quer dizer alguma coisa? Não! É por isso que arte é esse conceito estéril – porque se você realmente quiser entendê-la, tem que ser abrangente e antropológico – ao invés de se satisfazer com a ideia de que você, ser iluminado, possa descobrir “a verdade” sobre a arte e então ditar ao mundo o que ela é ou deixa de ser, deve procurar olhar para quem interage com ela e aceitar que sim, outras pessoas vão considerar que certas coisas são arte. Portanto a questão sobre o que a arte é não deve ser normativa, e sim exploratória: qual problema essa coisa que estas pessoas estão chamando de arte está tentando resolver?
Talvez visto por esse prisma, e se considerarmos arte apenas como algo que engloba o que já não está em outras categorias (assim preservamos a independência da engenharia e da medicina, por exemplo… Ou de basicamente qualquer outra coisa), a arte possa ser salva como um conceito e ao mesmo tempo ser “pacificada”. O grande problema é que mesmo aí a luta continua: alguns grupos de pessoas vão desconsiderar, vão achar que não é importante, algum problema que alguma arte esteja tentando resolver – e aí isso de repente “não é arte”.
Talvez o resultado de deixar pra lá qualquer preocupação sobre esse conceito megalomaníaco de “arte” seja devolver as coisas a seus lugares: quando discutimos valores, “importâncias”, problemas a serem resolvidos, já não estamos mais falando de arte. Estamos falando de filosofia – mas, principalmente, de política.
O livro “A Nietzschean Defense of Democracy: An Experiment in Postmodern Politics” foi escrito por Lawrence Hatab, professor da Old Dominion University. Tive o prazer de conhecê-lo em um colóquio ano passado na UFSC, junto com a professora Christa Acampora. Ambos foram incrivelmente gentis e me providenciaram uma cópia de seus livros (Acampora mandou dois, um deles o excelente Contesting Nietzsche), e agora pude enfim ler o de Hatab.
Aqui a premissa é a seguinte: Nietzsche estava errado. Não pela perspectiva de seus críticos, mas por sua própria – ele detestava a democracia, e no entanto Hatab procura demonstrar “por eliminação” que esse é o único sistema político que Nietzsche conseguiria aprovar.
Hatab escreve incrivelmente bem; é claro, conciso, engraçado – seu estilo e voz pulam das páginas. E ele é principalmente honesto – a mais importante característica de qualquer investigação científica. Ele não varre para debaixo do tapete aspectos problemáticos de sua pesquisa. Nietzsche não é realmente pós-moderno? Ele faz uma bela exposição sobre o pós-modernismo e explica por que Nietzsche pode ser considerado um. Nietzsche na verdade era, basicamente, um nazista? Bem, ele cita as partes problemáticas do filósofo e explica por que ele considera que ainda assim pode argumentar da forma como argumenta.
Para ser sincero, nada ali me pareceu muito polêmico ou absurdo. Hatab simplesmente prefere que a defesa da democracia não se dê através de ideias essencialistas como “igualdade” ou “direitos humanos”. Antes, o procedimento institucional competitivo, aberto a todos e justo, seria justificável porque nenhuma narrativa pode se arrogar o título de ser “a” Verdade com V maiúsculo (entre outras coisas). Não pretendo aqui fazer um resumo do livro, até porque não fiz anotações que lhe fariam justiça; digo só que as ideias se encadeiam com naturalidade, e se você gosta de pós-modernismo e Nietzsche é difícil não acabá-lo concordando com tudo que foi escrito.
O problema é que sou anarquista.
A insustentável leveza de ser pós-moderno
Um dos aspectos mais importantes do sistema que Hatab idealiza é o “agonismo” – ele chega até a usar o termo “agonarquia” em alguns momentos – que é basicamente o ideal da competição esportiva, uma competição em que você não quer aniquilar seu adversário; quer, antes, que ele seja capaz, já que isso dá significado à própria vitória (que glória há no Flamengo vencendo, no futebol, um time de ensino fundamental?).
Ele (e Nietzsche) pretende que essa forma de competitividade seja usada também na arena cultural, filosófica, política. Eu concordo em grande parte com isso, mas o que me incomoda é que pode haver uma razão pela qual esse tipo de competição é e sempre foi o padrão nos esportes e nos jogos – uma razão pela qual ela faz todo sentido nessa arena, mesmo que em outras ela nem sempre foi tão bem considerada ou posta em prática. O esporte é precisamente aquiloque não significa nada. Exceto pelo simbolismo, pela diversão e quem sabe pela possibilidade de treinar certas habilidades físicas… Nada. É como a arte, só que incluindo de forma mais direta comparações de performances. A atividade esportiva é esportiva justamente porque não importa. É virtualmente inconsequente. Se não o fosse, seria outra coisa. Caça, guerra, assembleia. Tarefas de casa… Sexo. Você pode “gameificar” algo ou transformar algo numa competição, mas o “esporte” enquanto categoria inclui coisas como futebol americano e esqui – em si mesmas, nenhuma aplicabilidade prática.
Mas quanto ao resto – especialmente a política – não seria melhor não tratar tudo com essa leveza inconsequente? Aliás… Não seria prerrogativa de quem não tem muito a ganhar, ou perder, adotar essa perspectiva enquanto política – enquanto sistema recomendável a todo um grupo ao invés de mera filosofia pessoal? O anarquismo que defendo não é o clássico, que pode ter enamorado a ideia de domesticar e eventualmente eliminar certos instintos, certas vontades humanas, e sim aquele que os reconhece como parte da experiência humana mas busca redirecioná-los culturalmente. A competição jamais acabará, mas isso não significa que ela precise ser o elemento fundante da dinâmica social, econômica e política. De forma semelhante, você pode ser “agonista”, viver sua vida dessa forma, e ainda reconhecer que na política talvez alguns limites e dispositivos sejam necessários pra salvaguardar certas coisas.
Desenvolvo: é perigoso associar o pós-modernismo a mero “privilégio”, pois isso é quase um ad hominem – mas o fato empírico é que, ao redor do mundo, as pessoas não estão exatamente numa corrida para abandonar suas origens e tradições e se tornarem sopas de legumes existenciais. Como diz Raewyn Connell, “somos informados de que vivemos […] na pós-modernidade[, mas] a maioria da população do mundo não vive”. Nesse sentido, para quem o pós-modernismo foi feito? Eu me empolgo com o pós-modernismo, mas por outro lado sou um exemplo de privilégio e caretice tirado direto de um livro didático. Só que o que me interessa no pós-modernismo é uma desconfiança epistemológica – não há como ter qualquer certeza quanto a nada. Não me interessa nada nele uma certa paralisia (que Nietzsche inclusive critica) que alguns tomam como corolário necessário: se você não tem certeza de nada e nada tem uma base metafísica, como pode presumir certas coisas como verdadeiras para ser funcional no mundo, ou como pode defender um valor político, ou como pode cultivar uma identidade específica?
Ora, posso porque posso, bolas. O pós-modernismo, para mim, tem um valor instrumental que se impõe da mesma forma que a evolução se impõe ao biólogo que se dê ao respeito e veja a porra das evidências; eu gosto da forma como ele afia a mente e impulsiona à criatividade e perceptividade (ou seja, creio que eu seria menos criativo e perceptivo se tomasse o mundo como um dado concreto e absoluto). Será possível que uma sociedade inteira seja pós-moderna e agonista e mesmo assim escolha princípios, valores específicos, para nortear seu sistema político? É claro que é. A diferença é que enquanto povos não-pós-modernos poderiam tratar esses valores como religiosos, tabu, questão de natureza humana, etc, os pós-modernos que tratassem tais valores como uma escolha não deveriam ser obrigados necessariamente a permitir que outros valores venham a concorrer por preponderância sistêmica. Um sistema político que se queira aberto e plural (como o anarquismo deve ser) ainda pode ser pensado com base em valores dos quais não pode abrir mão.
A desingênua neutralidade
O anarquismo é “humanista cívico” no sentido de considerar a participação uma coisa essencial. E uma comunidade anarquista elege certos princípios como a base da organização política. Hatab busca em seu arranjo institucional, ao contrário, uma espécie de mecanismo frio desprovido de tais princípios; um esquema neutro, “regras do jogo” que não transformam nenhuma (mera) narrativa em metanarrativa (geral), e assim é o mínimo essencial para que as narrativas possam competir pela vitória temporária na arena política.
Pois me parece que Hatab não foi tão fundo no próprio pós-modernismo. Fish (um pouquinho aqui, mas principalmente aqui) demonstra que não há como chegar ao lado de fora. Uma lei que proteja a liberdade de expressão é útil mesmo que a liberdade de expressão “não exista” porque qualquer iniciativa que vise limitar a expressão terá que passar por um grande escrutínio. Mas esse escrutínio não é neutro – uma arena hipoteticamente feita sob medida para a discussão política mais abstrata do mundo jamais conseguiria ser neutra. Pombas, Sandel falou exatamente a mesma coisa em relação ao liberalismo deontológico e ele nem é pós-moderno (eu acho).
Mesmo um esquema governamental que se proponha “sem uma concepção de bem” definida ainda falha em ser realmente isento nesse sentido; ainda pressupõe necessariamente algumas coisas. A esquemática de Hatab não é diferente; pressupõe um povo pós-moderno, que valoriza o agonismo, o pluralismo absoluto – o tipo de moral bacana (sem ironia aqui) que Nietzsche expõe para o mundo.
Hatab provavelmente diria que não – não, a agonarquia não precisa pressupor nenhuma identidade fixa, nenhum tipo de pessoa ou grupo em termos de metanarrativa; a sociedade pode ser inteiramente composta por uma pluralidade de pessoas, sendo que nem uma única delas seria pós-moderna / agonista, e mesmo assim esse sistema funcionaria – já que, como dita o sonho liberal que ele não completamente rechaça, a diversidade absoluta pode conviver perfeitamente (se apenas tivermos os instrumentos corretos, puxa vida…).
Duvido. Mesmo que esse sistema seja mesmo adotado “por eliminação” – “como não há outra alternativa e não queremos uma mutually assured destruction, adotemos regras que não favorecem ninguém a priori” – isso significa adotar, em alguma medida, o agonismo e o pós-modernismo como metanarrativa. É esse tipo de coisa que meio que dá base (contradizendo agora o que citei antes da Connell) para que pensadores contemporâneos declarem que o pós-modernismo ganhou / está ganhando. Se ninguém em alguma medidavaloriza esse agonismo como metanarrativa, então não vai haver ninguém para defendê-lo – ou mesmo para legitimá-lo como é preciso que seja para que, no mínimo dos mínimos, instituições repressivas funcionem (se nem a polícia defender essas “regras do jogo” que ninguém, aparentemente, precisa realmente adotar como filosofia de vida… Danou-se). Hatab faz crer que grupos e indivíduos podem adotar a narrativa filosófico-política que quiserem (inclusive narrativas que advoguem contra essas regras neutras do jogo) e tudo vai dar certo. Mas se não houver uma defesa desse agonismo fundamental enquanto princípio, ou vai haver o tipo de dominação silenciadora e tirânica que ele teme, ou vai haver guerra. É lindo que Hatab queira que a democracia possa ser defendida por aqueles que não suportam o racionalismo limitado de um Rawls. Mas se as sociedades acabam estruturadas da mesma forma, acarretando os mesmos problemas, que diferença faz?
É certo que ao final do livro ele admite uma perspectiva trágica, segundo a qual não é bom salvaguardar essas regras do jogo contra certas subversões (por exemplo, não seria bom proibir qualquer discurso, inclusive o racismo, fascismo, etc). Eu posso respeitar essa decisão, e concordar com ela, mas não entendo porque isso seja pós-moderno, mas não uma sociedade adotar o pós-modernismo como metanarrativa mesmoescolhendo preservar certos valores como essenciais à organização política. Um de seus argumentos mais fortes é “deixe o fascismo e o racismo existirem para que o combate a essas ideologias fortaleça perspectivas justas (e, em certo sentido, algo parecido sempre existirá, então falar em “deixar que exista” me parece irrelevante). As coisas se constroem em oposição, diria Nietzsche, pois a vida é vontade de poder, e vontade de poder é vontade de superação. O sonho último iluminista / positivista / cristão de varrer o sofrimento e os problemas é contrário a esse impulso essencial da vida. No entanto, seria o caso de estimular o sofrimento por toda a parte para que haja superação? Obviamente que não. Portanto, deve-se alcançar um equilíbrio da agência humana que visa a superação – para que ela não se torne destrutiva ao desejar a superação daquilo que proporciona a superação em primeiro lugar. Eu só não estou convencido de que o arranjo institucional de Hatab é melhor nesse equilíbrio do que um arranjo parecido, anarquista, que escolha alguns valores como imprescindíveis. Isso nem precisa significar censura e prisão perpétua a fascistas (de novo, o argumento pragmático é bom), mas pode significar um discurso público, uma pedagogia, uma estrutura orientada para a manutenção de certos valores como anteriores à discussão política mais minuciosa.
O importante é que esses valores balizem as discussões políticas. O fato de a competição, de o procedimento ser justo, é o que torna o resultado justo, e portanto binding, diz Hatab. Novamente lembro de Sandel e sua discussão demolidora quanto ao óbvio ululante (depois que você lê): não, o fato de que um contrato é um contrato não necessariamente o torna justo. A competição precisa de um critério de avaliação que, dentro de uma comunidade, não está perenemente em disputa (obviamente que tudo está, na prática, em perene disputa cultural – o que não significa que o sistema político precise ser esquematizado a partir disso, assim como seria escroto estimular o sofrimento no mundo para que as pessoas possam superá-lo e assim como eu não preciso sofrer de paralisia intelectual porque sou pós-moderno).
O que mais me fascina é: quem se beneficia desse mundo político em que não há esse critério e simplesmente a maior facção ganha? Quem ganha com o rechaço a certos valores pré-definidos que balizem a discussão? Eu não vejo essa discussão no livro de Hatab – embora certamente ela esteja acontecendo em outro lugar, e não o culpo por não inclui-la – mas sinto como se a democracia agonística satisfizesse um senso de coerência intelectual de quem gosta de Nietzsche e de democracia… E esse seja seu único mérito (voltarei a isso logo). Será que é absolutamente impossível ter um ambiente cultural de não-conformidade, de inovação, uma política tolerante e vivaz como a que ele descreve, sem a necessidade de manter um sistema político absolutamente aberto, destacado de quaisquer valores?
Faltou uma coisa aí
Tem uma hora que Hatab discute se é preciso algum tipo de “positive regard” pelos concidadãos na arena política. Ele diz que não – obviamente, considerando seu objetivo de purgar valores essenciais do esqueleto político agonárquico. Basicamente, só precisamos do respeito pelas outras pessoas – algo um tanto quanto kantiano, ele diz, sobre tratar os outros como fins em si mesmos – e, de qualquer modo, uma pessoa geralmente machuca as outras porque não é “alegre” o bastante.
O que ele sugere não só é absurdo, é sintomático do que foi dito anteriormente sobre o desejo de ser consistente quanto à Nietzsche. Ele precisa evitar essencialismos e assim está disposto a ignorar que muitas pessoas tiram alegria do sofrimentodos outros com bastante frequência.
Adivinha onde a gente vai parar de novo…
Mas há um aspecto aí (mais uma vez, vindo dos pós-modernos) que eu fiquei chocado que ele não analisou. Sendo fiel a Nietzsche, ele introduziu o conceito da multiplicidade do “eu” (que está mais esmiuçado em Contesting Nietzsche, diga-se de passagem) e como o “indivíduo”, o “sujeito” iluminista significa pouco. Mas mesmo explodindo o conceito de eu, as “partes” que compõem essa noção não vão além do indivíduo físico – ou seja, é o corpo que ainda limita os ingredientes que farão parte desse novo “eu” contingente e contextual. Em A ilusão ocidental da natureza humana, Marshall Sahlins diz:
As pessoas são partes umas das outras; elas existem não apenas dentro de si mesmas ou por si mesmas, mas em relações mútuas do ser — pode-se ler Marilyn Strathern e seu trabalho na Nova Guiné, em que uma pessoa se realiza dentro dessas e através dessas mutualidades do ser, a forma como “mãe” e “filho” ou “pai” e “filho” assim tornam-se pela atuação mútua da ligação que assim os identifica. E enquanto a mãe e o pai trabalham em prol do filho, ou os cônjuges em consideração um do outro, o “outro” parental está internamente presente enquanto causa da intencionalidade de alguém. Nessa condição de mutualidade do ser — que parece ser uma boa definição de parentesco — os interesses não são mais confinados às satisfações do corpo individual do que os “eu”s são confinados aos seus limites. Antropólogos de sociedades do Pacífico falam, ao invés disso, do “eu transpessoal”, o “eu” enquanto um “complexo terreno de relacionamentos” ou um “locus de relações sociais compartilhadas ou biografias compartilhadas”. Muitas são as sociedades ao redor do mundo em que parentes devem ser recompensados pela morte de alguém, pelas ofensas que alguém recebe, ou até mesmo por terem cortado o cabelo de alguém.
Ou seja – será pedir demais que ele seja um pouco mais pós-moderno e menos fiel a Nietzsche (afinal, era o que Nietzsche queria, não é mesmo?) e considere também na concepção “múltipla” de sujeito… Outras pessoas? Outros corpos? É esse pressuposto epistemológico quanto ao que define uma pessoa que torna a consistência dele meio tosca, ainda que rigorosa: ele não pode admitir que as pessoas propaguem, como parte de um projeto político, como valor político, que as pessoas cuidem mais umas das outras. Não; só o auto-interesse é inteligível, e se você quer que as pessoas não machuquem as outras, deixam-nas satisfeitas o bastante para que elas não queiram fazer isso (você já viu os efeitos que essa espécie de self-absorption tem em tantos filhos únicos? Multiplique por 100 sob esse discurso…). Bem, que tal, para ser consistente e não tapar o sol com a peneira, considerar que quando agimos em consideração de outra pessoa, fazemos isso porque essa pessoa é também parte de nós, e é assim que relações de afeto funcionam? Isso evita a fantasia de um altruísmo angelical como motivador, ao mesmo tempo que acomoda uma parte enorme da experiência humana.
Por que não?
Olha, eu realmente gostei do livro, tanto na forma como no conteúdo. As críticas que faço vêm do meu anarquismo. Ele mesmo avisa, logo no início do livro, que ele pressupõe um Estado – e no entanto, à medida que lia, pensava: grande parte do que ele diz para defender, a partir de uma perspectiva Nietzscheana e pós-moderna, a democracia, poderia ser dito também para defender o anarquismo contemporâneo.
Mas será que ele realmente entende o anarquismo? Na página 64 ele diz que ele não o considera viável para análise porque se trata de um “desarranjo” em que “nenhuma perspectiva domina” (tradução livre). Sim, ele não vê nenhum problema com a dominação de uma perspectiva na arena política: ele só deseja divisar mecanismos que tornem a dominação fruto de uma vitória obtida numa competição justa e aberta. No entanto, é absolutamente equivocado dizer que no anarquismo não há uma perspectiva dominante – seria o mesmo que dizer que não há sociedade numa sociedade anarquista; que se trata de um bando de indivíduos desagregados (e se a única coisa que ele leu foi Stirner, não o culpo por pensar assim). Se há comunidade, se há política, há um entendimento básico quanto a uma série de coisas – esse entendimento é o que permite e funda a comunidade; Bourdieu discute isso, em parte, em seu texto sobre a violência simbólica. A linguagem, os valores, uma certa visão de mundo – é preciso que uma comunidade compartilhe isso para ser minimamente funcional. É claro que uma perspectiva domina. A questão é: como domina?
Ela certamente não domina à base de força, repressão ou violência simbólica; e certamente não domina como resultado de uma “vitória” endógena. Graeber argumenta que a democracia majoritária só existe quando há a ideia de que todos devem ter uma “voz” nas decisões políticas e, ao mesmo tempo, quando há um dispositivo de poder capaz de forçar a minoria a obedecer a maioria. Para Hatab a glória da política é o agonismo do combate constante entre narrativas, propostas, ideias – ele não é capaz de imaginar o anarquismo porque ele precisa poder forçar a mão dos perdedores.
Na página 65, ele se pergunta “que tipo de política teríamos se, por exemplo, esperássemos por unanimidade ou algum tipo de super-maioria”. Algo próximo ao processo decisório por consenso, e é de fato uma política bastante diferente. Não porque não pode ser agonista; ela é diferente porque é balizada por alguns princípios específicos. O mesmo convite ao debate amplo é feito, e o debate ocorre, mas a resolução dele se encaminha por outros meios. A vontade de superação – vontade de poder – não vai sumir nesse tipo de organização sociopolítica. Vai ser redirecionada para outros alvos, outras relações.
“No fim das contas”, ele escreve, no fim do livro, “devemos deixar as pessoas viverem as vidas que elas quiserem viver”. Realmente, bastante pós-moderno – e digno de aplauso. Mas a questão é: como isso realmente se traduz em organização política e na própria concepção de “pessoa”? Quem são essas pessoas – indivíduos ou povos? Que interesses regulam essa concepção? Hatab diz que é precisamente porque devemos deixar as pessoas viverem como quiserem que esse sistema democrático Nietzscheano é tão bom. Mas seu processo decisório envolve, a cada decisão (sendo generoso o bastante para imaginar que a minoria não seja composta sempre pelos mesmos), um grupo de pessoas que não vai “viver a vida que elas quiserem”. O processo decisório por consenso (que, é preciso lembrar, não serve para submeter cada passo de todo mundo a constante análise; para isso, bem, existem Estados…) arranja através da cooperação e do entendimento mútuo formas de superar problemas e desafios da vida social. Uma democracia pós-moderna Nietzscheana tem como base para a aceitação geral das pessoas no sistema político o fato de que não se pode pré-estabelecer quem está certo e errado, quem tem ou não tem direito a ser ouvido – mas se o resultado é uma menor possibilidade de que “vivam a vida que quiserem” em vários “setores” da vida, o que é que as impede de se separarem do “grande grupo”, ou mesmo que continuem “juntas” (geográfica ou ideologicamente), ajam à revelia das decisões majoritárias? Ah, é mesmo – o tipo de força que as obriga a se dobrar para a vontade de uma maioria que pode ser tão pequena quanto 51% (e uma defesa Nietzscheana da democracia não pode pressupor algum tipo de “consciência” que as faça voluntariamente querer se submeter, já que exclui essencialismos…).
Se esse for o caso, qual é o sentido dessa democracia? Possibilitar que mais pessoas vivam as vidas que quiserem viver? Ou satisfazer um valor abstrato quanto ao cumprimento de processos e procedimentos? Ou ainda gerenciar as massas de recursos humanos aparentemente necessárias para criar e manter o conforto material? Em qual dessas alternativas as pessoas mais são tratadas como fins em si mesmas?
Na fórmula “viver a vida que se quer”, ajustar uma sociedade para que seus indivíduos sejam livres e ainda concordem implica defender valores como essenciais à vida em comunidade, porque isso influi no sentido do termo “quer” – o debate de valores é o que permite que as pessoas queiram chegar a um comprometimento em que todos saem ganhando, ou no mínimo ninguém sai perdendo. Sem um querer culturalmente balizado, resta a coerção como princípio – e que Hatab não é tímido em aprovar. Não se deve ter moralismos em relação ao poder, diz; condições de liberdade são tão importantes para a criatividade quanto as de restrição, e toda sociedade tem que ser um equilíbrio entre ordem e liberdade. Sim, é verdade; mas isso não significa que não possamos repensar o que dá origem e legitimidade à ordem, além dos mecanismos através dos quais ela se mantém.
O livro é fantástico e vale a pena ler. Apenas acho que, como diz Graeber, o ataque à imaginação fez aqui uma vítima: de que mais formas essa ideia poderia ter florescido se o anarquismo não fosse preterido, enquanto possibilidade, já de antemão?
Outro dia, numa confraternização de final de ano com professores e colegas de um núcleo de pesquisa, falei sobre como eu considerava o separatismo da antropologia uma coisa ridícula – e que a economia, por exemplo, deveria ser reintegrada às ciências sociais. Aí brinquei que todos os cursos de ciências humanas, na verdade, deveriam virar um só “cursão” de dez anos. Entender seres humanos não é fácil não, gente.
Aí alguém comentou que eu sou um pensador como os de antigamente, que queriam saber um pouquinho de cada coisa. E é exatamente isso.
Eu quero me aperfeiçoar em umas três ou quatro coisas na vida, e em tudo mais ser medíocre.
A que me refiro quando falo de mediocridade? Obviamente essa palavra é mais frequentemente usada em seu sentido pejorativo; quando dizemos de algo que não é ruim, mas também não é tão bom quanto desejaríamos. Mas se quisermos, vemos nela um sentido neutro: nem muito bom, nem ruim. Razoável; mediano, passável, OK.
Meu profundamente humano desejo de melhorar, crescer e desenvolver foi tomado por uma perspectiva quantitativa. É o mundo em que vivemos? Pode ser. Ele nunca foi tão grande e tão cheio de coisas para ver. De assuntos para conhecer. De lugares para visitar, de pessoas com quem trocar ideias, de coisas para fazer.
Filmes são coisas relativamente rápidas que dá para rever – mas eu não consigo me convencer a reler livros! Eu os mantenho como referência, e vez ou outra ou quero citá-los ou recuperar alguma passagem específica, mas quando olho pra minha pilha de livros na “fila” não consigo perder tempo com o que já foi. Quero novidade!
“Mas isso não tem nada a ver com a mediocridade”, você pode dizer. Sim; eu quero ser o melhor escritor que eu puder ser, o melhor cientista social que eu puder ser, e realmente me esforcei para desenvolver a fluência no inglês anos atrás, mas… Perceba: lutar com espadas, escudos e lanças da forma com o SCAM proporciona no treino básico é ótimo, e não quero avançar para ter que lidar com as armaduras e tudo que se associa a elas. Mesmo que eu voltasse para as aulas de dança e não conseguisse ser tão fucking poético no West Coast quanto o Ben Morris, tudo bem; é só para me divertir um pouco. Eu gosto de cozinhar e fazer coisas gostosinhas, mas não quero fazer faculdade de gastronomia – aliás, perceba: hoje em dia tenho um bom apreço pela matemática, adoro a física mesmo não tendo visto The Big Bang Theory (Interestellar já serve?), Breaking Bad me fez gostar mais de química e How I Met Your Mother me fez olhar com um pouco mais de curiosidade para a arquitetura… Mas eu ainda tenho muita dificuldades com os três primeiros, e não sei se gostaria de aprender a desenhar prédios e entender todas as ideias de harmonia e espaço que eles provavelmente têm. E, ainda assim, ideias de espaço, de movimento, de força e tudo o mais vêm como pequenos insights ao longo do costume que o corpo ganha ao lutar (ou dançar…). Sei tocar violão e nisso também sou orgulhosamente medíocre; para tudo que preciso a habilidade que tenho me dá cobertura, mas há muito já deixei pra trás qualquer pretensão de formar uma banda ou coisa parecida. E mesmo para aprender uma terceira língua, não sei se teria motivação para ir “até o final” (que não existe, mas imaginemos que seja a “fluência”) ou se pararia no “meio”, resolvendo que “já tá bom” saber “o básico”. Afinal, quem precisa falar alemão bem quando se fala português e inglês, não é mesmo?
“Jack of all trades, master of none” – ser como o pato, que anda, nada e voa, mas não faz nada bem. Quer dizer, nada não – precisamos contribuir uns com os outros nessa humanidade que precisa, talvez hoje mais do que nunca (outro superlativo quanto ao mundo em que vivemos) de pessoas fazendo bem em prol dos outros as coisas que têm paixão de fazer. E a gente precisa de algo do que se orgulhar também. Um legado.
Ser uma pessoa melhor para quem amamos – isso todos nós queremos até certo ponto, e nessa jornada também estou inscrito. Mas tirando isso, e algumas poucas coisas, abraço a boa mediocridade de um Leonardo da Vinci, ou a sólida amplitude de um Bauman. É como uma versão mais diluída da bela tirinha do SMBC sobre as muitas vidas em potencial que todos nós temos; não pretendo mudar radicalmente a minha a cada sete anos, mas não seria nada mal saber mais sobre a vida, o universo e tudo o mais, uma coisa de cada vez (mas só um pouquinho de cada).
O que significaria pensar de forma estereotípica? Eliminar a diversidade do mundo, ou ter o otimismo de fazê-lo pensando o múltiplo como único. É a chama do preconceito: o que sobra do que é consumido pela preguiça de pensar e conhecer. Não sei o que é tal coisa – mas só de olhar, assim, de lado, meio transverso, vejo aqui que pode talvez com certeza ser aquilo mesmo que eu já estava pensando antes de me pedirem a opinião.
O arquétipo, por outro lado… não consigo deixar de vê-lo como uma bobagem, especialmente se estivermos falando do que é associado à linguagem universalista e quase “biologizante” (porque me parece tão mais esotérica que isso) de Jung. – Certa vez ouvi de um filósofo contemporâneo (do qual não lembro) que “não existem arquétipos”, pois “nós é que pensamos de forma arquetípica”. Isso faz toda a diferença. Vai além de ver nossos túneis-realidade como resultados das sombras dos arquétipos, que se projetariam do nosso DNA ou coisa parecida. Nossa forma arquetípica de adaptar nossa visão ao mundo gera esse tipo de percepção conhecida como arquétipo.
Mas como o arquétipo se diferencia do estereótipo? Etimologicamente temos o princípio (no arquétipo) e a impressão (no estereótipo). Me parece um bom guia: se o estereótipo nega a experiência para impor uma impressão que desconsidera a diversidade, o arquétipo usa de toda sorte de experiência e diversidade para construir um ponto comum que, influenciado por toda uma gama de fatores simultâneos, torna-se princípio, marca que não se sobrepõe à imagem, mas fornece antes um quadro de referências no qual a imagem passa a ser classificada e lida.
Os memes são um grande exemplo de como essa questão de arquétipos universais é baboseira: primeiro porque se os arquétipos são muito parecidos há milênios é porque
As sociedades são, também há milênios, muito parecidas;
Muitas vezes diferenças são desconsideradas rápido demais para que se possa dizer que “no fundo é tudo a mesma coisa”;
Há uma série de eventos vitais que se repetem e que não há muitas formas de as coisas acontecerem diferentemente. Crianças nascem em um mundo de adultos e outras crianças tão ignorantes quanto elas; é óbvio que ao conviverem classificam os adultos como aqueles que são mais bem versados em uma arte ou ofício, e naturalmente a partir dessa convivência aprendem a exercer tal arte ou ofício – a ideia do mentor mais velho é uma obviedade.
Um meme que virou símbolo de “bons conselhos para a vida” é o pato – Mallard Duck – e com ele vemos como o pensamento arquetípico gera arquétipos diferentes – a partir da disseminação contemporânea de informação o pato assume a voz de qualquer pessoa, não necessariamente do sábio mais velho. Na máscara-espelho do animal, o que vemos? Quem sabe o fato de que na era do Google a face do conhecimento não pode ser humana? Ou quem sabe uma perspectiva desiludida da “sociedade humana” enquanto fonte de sabedoria – talvez animais possam, afinal, ser fonte de conhecimento, e esse tipo de arquétipo podemos encontrar em sociedades antigas cuja conexão com os animais era maior que a nossa.
O Forever Alone ou o Bad Luck Brian também são grandes exemplos de arquétipos contemporâneos. Representam parte de uma cultura específica, é verdade, mas não são estereótipos: são princípios de situações, sentimentos e status que tornaram-se mais relevantes para nós nos últimos tempos e, como tendemos a ver as coisas de maneira arquetípica, conceptualizamos esses símbolos para classificar esses princípios.