Um conselho popular, corporativismo de escritor independente, a descrição do olhar

“Se você não tem nada de bom pra dizer, não diga nada” – que conselho popular mais interessante pra se sentar na sombra debaixo de uma árvore, colocar a mão no queixo, balançar a cabeça pra cima e pra baixo, e pensar. Não pretendo fazer uma análise profunda dele; não sei nem ao certo como me posiciono em relação a ele. Acho que (como tudo nessa vida) depende muito do contexto; entendo que há lugares e situações em que não há benefício para absolutamente ninguém manter um pacto com a honestidade irrestrita e falar tudo o que vem à cabeça. Em outras situações, a sinceridade e a ação de expor uma coisa que se considera ruim é imprescindível.

Mas, independente do julgamento que eu possa vir a formar sobre essa frase, eu admito que a ponho em prática algumas vezes.

Enquanto escritor independente, sei o trabalho que dá. Sei o esforço que é. Por isso, ao ler literatura brasileira independente – coisa que tenho feito um pouquinho mais e mais de cada vez – às vezes me irrito com certas coisas. Seja um completo descumprimento de um pilar básico da boa literatura; sejam os diálogos feitos na verdade de monólogos alternados; seja a linguagem completamente inapropriada para o personagem (jovem paulista contemporânea falando como narrador de trailer de Sessão da Tarde? Ugh). Há muitos motivos pra se irritar, mas… Mas e daí?

Escolho ou não continuar o livro a partir da minha visão; não vou mentir pra mim mesmo no Skoob para ser simpático, deixando a página do livro um pouco mais “bem na foto” (tenho um TOC ENORME com o meu Skoob e jamais marcaria lido um livro que abandonei). Mas por que ir mais longe? Porque fazer uma resenha explicitamente negativa de uma ficção? Uma acusação frontal?

O autor, que já está passando por dificuldades como passa quase todo o autor independente, não precisa lidar com isso – não por parte dos próprios autores, que deveriam estar muito mais juntos do que são na prática (reconheço também a culpa). Os autores aprendem sempre, vivem a aprender – eu sem dúvida alguma também. Parte das críticas (racionalizo eu) tem até a ver com uma certa questão de gosto, de preferência. Abraço, assim, sem muita vergonha, o corporativismo mais baseado na autopiedade canalizada pela “regra de ouro” do que em qualquer outra coisa. Veja bem: blogueiros têm mais é que fazer um bom trabalho lendo e criticando mesmo. Recebi uma resenha muito boa do blog Fantasia BR, que exalta os pontos fortes, mas dá uma opinião sincera sobre o que eles consideraram algo negativo. Achei maravilhoso – mas isso fica pros blogs, que não devem mesmo mentir pra puxar saco, pra evitar falar mal, etc; já eu, como fellow escritor, vou preferir ficar quieto se não tiver nada de bom pra dizer.

Três adendos. Primeiro: com autores grandes, as chances de leitura se multiplicam. Para um autor independente uma crítica negativa pode ser a diferença entre um leitor em potencial (que poderia no fim ter uma visão bem positiva sobre a obra) “se arriscar” e começar a ler ou deixar para lá.

Segundo: Stephen King escreveu um livro, parece, sobre sua jornada para ser escritor (mais um livro dele cujo personagem principal, é, pasmem, um escritor – LOL) e ele dá uma dica muito interessante, razão pela qual ler literatura independente muitas vezes traz esse risco de se ler algo que se parece mais com uma fanfic sem nem uma revisão preliminar: seja pago para escrever. King mandava seus textos para revistas de literatura. Como elas têm que escolher onde investir, a escolha significa algo a mais para o escritor – e o feedback costuma ser brutal, honesto. A diferença, amigos, é que nos EUA a cena de revistas do tipo era efervescente. No Brasil a procura tem de ser com lupa.

Por último: já falei mal de escritor independente e nacional. Mas sabem por quê? Porque os livros são foda. Porque recomendo que você vá lê-los imediatamente. Ainda argumento que o cara escreve mal, mas a história em si, a parte “macro” da coisa, é muito boa e me prendeu o bastante pra me fazer ler 500 páginas A4 em tela de computador em pouquíssimo tempo. E no volume 2 li o digital de novo, as mesmas mais ou menos 500 páginas A4, numa tela de um Galaxy 5. Não, não é S5. É 5 mesmo.

A descrição do olhar

Quando olhamos para os olhos de alguém, especialmente para os olhos de alguém que conhecemos bem, podemos ler muitas coisas. Mas essa leitura, embora só possa ser cognoscida na forma de palavras, só têm sentido em toda a experiência, que às vezes dura milésimos de segundo, de leitura – leitura que é, na verdade, uma experiência visual.

A melhor coisa que escritor tem pra fazer com o olhar é o mecânico, o básico: se está lacrimejado, se está vermelho; se foi pra lá, se foi pra cá. Se está vazio, duro, fixo, piscante, apertado, fechado, fechado por um longo tempo, torto, vesgo, agitado, indeciso (esse já é meio borderline), arregalado, perdido (esse também), aguado, abaixado. A segunda melhor coisa é o reino do poético, do metafórico; o drible da narrativa, o tempero da escrita, mas que tem que ser encaixado num contexto ou pode não ser nem um pouco efetivo – ser, pelo contrário, até brega.

O que não gosto é querer pegar o atalho que já vi por aí (e do qual *gasp* posso até ter sido culpado. Pelo que vi quase fiz isso uma vez) de dizer, por exemplo, “personagem tal olhou com olhos tristes para…”. Isso aí é uma preguiça. É o autor querendo dizer que o personagem estava triste ao invés de fazer o leitor sentir isso através da situação – só que, pra não pegar muito mal, faz o “olhar” ficar triste, não o personagem.

Isso me lembra um personagem de um livro de Zafón (um dos Semperes) que trabalhava num jornal quando era jovem e o editor sempre dizia para ele: corta os adjetivos, nada de adjetivos! Um exagero, é claro – um estilo peculiar, que particularmente não é o meu favorito, mesmo que eu adore a desértica trilogia Millennium; não é coincidência que a Millennium seja uma história que gire em torno de jornalistas, nem que o autor da Millennium tenha sido um jornalista, nem que seja um editor de jornal que dê esse conselho. Mas enfim, o princípio fica: adjetivar um “olhar” é complicado, por mais que na vida olhemos para alguém e pensemos “taí, esse é um olhar triste”. Ler um livro, por mais que a atividade precise dos olhos, não funciona do mesmo jeito. Precisamos de mais pra sentir essa força do olhar. Ou, nesse caso, de menos.

Resenha de Fragments of an Anarchist Anthropology

Conheci David Graeber já há bastante tempo através de um amigo, e agora finalmente chegou a vez de lê-lo. Só com as sinopses dos livros já o achei fantástico. Resolvi começar leve (ao invés de por “Debt” ou “The Lost People”, com mais de 400 páginas cada um), de modo que escolhi este livro. E que obra! Graeber reacendeu em mim uma paixão pela teoria anarquista que eu já havia transformado em algo que tomo por garantido, mas que eu não tinha mais tanto entusiasmo por não ser para mim algo novo. Mas Graeber pegou o anarquismo e o apresentou de forma tão nova e maravilhosa, tão inteligente e audaciosa, misturando-o a uma antropologia tão honesta e poderosa, que é impossível não sentir o sangue negro da teoria política mais revolucionária do mundo contemporâneo correr de novo pelas veias.

O livro começa discutindo a pouca quantidade de anarquistas no meio acadêmico, fazendo no processo um apunhado maravilhoso da relação entre anarquismo, marxismo, o processo revolucionário proposto por esses galhos teóricos, a universidade e os intelectuais em geral. A exposição passa por muitos “micropontos” discursivos e “micromanifestos”, uma conclusão notável sendo a de que o marxismo tende a ser uma teoria ou discurso analítico quanto à estratégia revolucionária, enquanto o anarquismo tende a ser um discurso ético sobre a prática revolucionária. Logo depois há uma exposição entre as conexões históricas entre a antropologia até o fim da primeira metade do século XX e o anarquismo.

Depois disso vem a ideia de um sistema econômico não baseado num endeusamento dos valores do mercado (Mauss) e a ideia de um sistema político não baseado na coerção (Clastres), ambas encontradas bem vivas e funcionais em sociedades “não ocidentais” estudadas pela antropologia. Elas encorpam uma “teoria antropológica anarquista que quase existe” (uma vez que o argumento é que uma tal teoria ainda não existe). A coisa fica ainda mais pujante quando passa a uma das principais asserções do livro: a ideia do contrapoder imaginário, em que as sociedades igualitárias, baseadas na ideia de comunidade, arranjam as instituições sociais de tal forma a combater o aparecimento de sentimentos e ações que podem despertar tensões destrutivas. O adjetivo “imaginário” vem da observação de que, como todas as sociedades têm tensões internas em que os as pessoas lutam pelo domínio em termos de valores (puxando os membros da sociedade em várias direções diferentes), as sociedades mais pacíficas e que têm mais impulso na direção da manutenção da igualdade são aquelas cujas visões de mundo são as mais sombrias, populosas de monstros e bruxos e magia negra que quer o mal deles. Mas, para além disso, trata-se do campo das ideias, dos mitos do cotidiano, da forma como as grandes instituições e aglomerações humanas (que, afinal, não “existem” num sentido estrito para além do status de abstrações) são entendidas.

Essa ideia é importante, argumenta Graeber, e isso ele demonstra ao mobilizar o exemplo de um povo de Madagascar, que aparentemente “do nada”, de uma hora para outra, gerou formas de auto-organização igualitária e não-hierárquica para gerenciar a si mesmo — uma revolução anarquista que não veio do nada: veio, na verdade, a partir da percepção de que coisas como o sistema de trabalho assalariado, a hierarquia política e militar, etc, eram negativas, e então as pessoas se mobilizaram para criar novas formas de organização. Foi uma revolução pacífica e, talvez por isso, não virou notícia em lugar nenhum. Não foi preciso pegar em armas para confrontar violentamente o governo estabelecido; o governo foi ignorado, e é precisamente esse tipo de estratégia que vai ser exaltada mais tarde no livro (a estratégia do êxodo). Em suma, a ideia do contrapoder imaginário é que é preciso brigar culturalmente pela percepção sobre a sociedade; uma vez que esse contrapoder torna-se importante, é possível reorganizar a sociedade sob princípios anarquistas a despeito do poder do Estado, que pode ser “esvaziado”. Essa questão estratégica é menos desenvolvida no livro, mas é importante — e talvez seja menos desenvolvida precisamente porque estes são “fragmentos” de antropologia anarquista; ele mesmo deixa explícito que é preciso desenvolver uma série de coisas, inclusive uma teoria anarco-antropológica da alienação, do Estado, do contrapoder.

Graeber passa considerável tempo argumentando pela destruição da diferenciação entre os povos tidos como “não-modernos”, “não-ocidentais”, e os modernos, ocidentais. Não vou focar muito nisso, embora a exposição seja brilhante e uma razão pela qual a antropologia é uma área do conhecimento fundamental para basear tal asserção. Junto a isso ele faz uma reflexão valiosa sobre a ideia de revolução, em que ela aparece como um instrumento do pensamento que a lógica humana, tal como é geralmente constituída, não consegue prescindir — mas que não existe estritamente, e tomar sua existência como algo factual acaba levando a uma série de problemas.

Graeber enfim fala sobre o que ele considera serem os elementos essenciais que ainda faltam serem desenvolvidos para que possa haver uma antropologia anarquista: uma teoria do Estado (brilhante exposição esta em que o Estado aparece com sua natureza dual, simultaneamente utopia de poder e mecanismos (menos idealistas) de controle social); uma teoria de entidades políticas que não são Estados; “mais uma teoria do capitalismo” (porque a antiga não é suficiente); uma simetria entre poder e estupidez, ou poder e ignorância (em oposição a poder e conhecimento, como aparece em Foucault. Aliás, a “patada” que ele dá em Foucault é maravilhosa); uma ecologia de associações políticas; uma teoria de felicidade política; uma teoria da hierarquia (sobre como estruturas hierárquicas, por sua própria lógica, necessariamente criam sua contra-imagem ou negação. “They do, you know”, diz ele, com um estilo maroto); uma teoria sobre a individualização do desejo, do sofrimento e do prazer; e, finalmente, uma ou muitas teorias sobre a alienação.

Finalmente, o livro (quase) termina com algumas ações anarquistas do presente. A primeira, do movimento da anti-globalização (muito interessante, por propor que ocorra uma globalização de verdade, em que não existam mais fronteiras nacionais); a segunda, do movimento contra o trabalho assalariado (que se traduz num movimento atual pela diminuição radical do horário padrão de trabalho); e, em letras garrafais, DEMOCRACIA. É interessante notar que, no segundo caso, o argumento todo me lembra muito o Bob Black, e é fantástico em sua simplicidade. No terceiro caso, enfim, várias páginas são dedicadas a uma análise importantíssima, a de que a “democracia” não começou com a Grécia (pois democracia de verdade é o sistema que tenta mediar o consenso, e não a democracia majoritária), e que na verdade a democracia majoritária é um problema porque é a junção de duas coisas que raramente andaram juntas na história da humanidade: a ideia de que todos deveriam ter o direito de se manifestar sobre as decisões da sociedade, e um aparato de força para impôr uma decisão a todos os membros de tal sociedade. Indo ainda mais profundamente, como não poderia deixar de ser, a própria palavra democracia é questionada, por se tratar justamente não da autonomia do povo, mas de sua violência; democracia, palavra criada por elitistas que queriam se resguardar da violência gerada quando o povo não é escutado, não é ouvido, não é considerado.

O livro termina (de verdade) com uma crítica feroz das razões pelas quais os antropólogos, os mais capacitados afinal de contas para fazer uma propaganda das formas de vivência anarquista, mas que não o fazem. Não vou entrar em detalhes aqui tampouco.

Devo dizer, por fim, que o livro é magnífico do início ao fim; instigante, prolífico sem ser prolixo, estimulante, e cheio de jóias que uma resenha, por grande que seja como esta foi, não tem como representar direito. Uma leitura, de fato, de fragmentos: pequenos retalhos que, costurados, podem parecer repetidos vez ou outra mas são coerentes e criam uma colcha intelectual de peso. O argumento anarquista ganha força, e é imprescindível que seja ouvido porque é consistente e está mais bem nutrido do que nunca. Estou mais ansioso ainda pelos próximos livros de Graeber que tenho pra ler.

Citações maravilhosas (embora existam muitas e muitas; têm que ser poucas aqui ou a resenha acaba virando só citações):

“[…] Most real, tangible violence is [created by inequality]. […] But this hardly means that if all inequalities vanished, then everything, even the imagination, would become placid and untroubled. To some degree, I suspect all this turbulence stems from the very nature of the human condition. There would appear to be no society which does not see human life as fundamentally a problem. However much they might differ on what they deem the problem to be, at the very least, the existence of work, sex, and reproduction are seen as fraught with all sorts of quandaries; human desires are always fickle; and then there’s the fact that we’re all going to die. So there’s a lot to be troubled by. None of these dilemmas are going to vanish if we eliminate structural inequalities (much though I think this would radically improve things in just about every other way). Indeed, the fantasy that it might, that the human condition, desire, mortality, can all be somehow resolved seems to be an especially dangerous one, an image of utopia which always seems to lurk somewhere behind the pretentions of Power and the state.”

“Counterpower is first and foremost rooted in the imagination; it emerges from the fact that all social systems are a tangle of contradictions, always to some degree at war with themselves. Or, more precisely, it is rooted in the relation between the practical imagination required to maintain a society based on consensus (as any society not based on violence must, ultimately, be) – the constant work of imaginative identification with others that makes understanding possible – and the spectral violence which appears to be its constant, perhaps inevitable corollary. […] In egalitarian societies, counterpower might be said to be the predominant form of social power[… It stands] guard over what are seen as certain frightening possibilities within the society itself: notably against the emergence of systematic forms of political or economic dominance. […] Institutionally, counterpower takes the form of what we would call institutions of direct democracy, consensus and mediation; […] ways of publicly negotiating and controlling that inevitable internal tumult and transforming it into those social states (or if you like, forms of value) that society sees as the most desirable: conviviality, unanimity, fertility, prosperity, beauty, however it may be framed. […] In highly unequal societies, imaginative counterpower often defines itself against certain aspects of dominance that are seen as particularly obnoxious and can become an attempt to eliminate them from social relations completely. When it does, it becomes revolutionary.”

“Academics love Michel Foucault’s argument that identifies knowledge and power, and insists that brute force is no longer a major factor in social control. They love it because it flatters them: the perfect formula for people who like to think of themselves as political radicals even though all they do is write essays likely to be read by a few dozen other people in an institutional environment. Of course, if any of these academics were to walk into their university library to consult some volume of Foucault without having remembered to bring a valid ID, and decided to enter the stacks anyway, they would soon discover that brute force is really not so far away as they like to imagine – a man with a big stick, trained in exactly how hard to hit people with it, would rapidly appear to eject them. In fact the threat of that man with the stick permeates our world at every moment; most of us have given up even thinking of crossing the innumerable lines and barriers he creates, just so we don’t have to remind ourselves of his existence.”

“violence, particularly structural violence, where all the power is on one side, creates ignorance. If you have the power to hit people over the head whenever you want, you don’t have to trouble yourself too much figuring out what they think is going on, and therefore, generally speaking, you don’t. Hence the sure-fire way to simplify social arrangements, to ignore the incredibly complex play of perspectives, passions, insights, desires, and mutual understandings that human life is really made of, is to make a rule and threaten to attack anyone who breaks it. This is why violence has always been the favored recourse of the stupid: it is the one form of stupidity to which it is almost impossible to come up with an intelligent response. It is also of course the basis of the state.”

“Ultimately this should lead to a theory of the relation of violence and the imagination. Why is it that the folks on the bottom (the victims of structural violence) are always imagining what it must be like for the folks on top (the beneficiaries of structural violence), but it almost never occurs to the folks on top to wonder what it might be like to be on the bottom? Human beings being the sympathetic creatures that they are this tends to become one of the main bastions of any system of inequality – the downtrodden actually care about their oppressors, at least, far more than their oppressors care about them – but this seems itself to be an effect of structural violence.”

“The history of capitalism moves from attacks on collective, festive consumption to the promulgation of highly personal, private, even furtive forms (after all, once they had all those people dedicating all their time to producing stuff instead of partying, they did have to figure out a way to sell it all); a process of the privitization of desire.”

“[I]t is much easier, in a face-to-face community, to figure out what most members of that community want to do, than to figure out how to convince those who do not to go along with it. Consensus decision-making is typical of societies where there would be no way to compel a minority to agree with a majority decision […]. If there is no way to compel those who find a majority decision distasteful to go along with it, then the last thing one would want to do is to hold a vote: a public contest which someone will be seen to lose. Voting would be the most likely means to guarantee humiliations, resentments, hatreds, in the end, the destruction of communities. What is seen as an elaborate and difficult process of finding consensus is, in fact, a long process of making sure no one walks away feeling that their views have been totally ignored.”

Explicando críticas: por que é preciso ter um mínimo de educação formal para o funcionalismo público e não para cargos políticos eletivos

Aproxima-se a eleição e aumenta-se a quantidade de postagens de teor político compartilhadas na rede. Alguma delas, no entanto, são recicladas de quando em quando; embora já declare antecipadamente de que modo algum isso signifique algum apoio meu ao PT, Lula, Dilma ou o que seja, é interessante responder essa velha tirada dos compartilhamentos em mídias sociais:

Por que para ser funcionário público é preciso segundo grau completo e para ser político, não?

A força retórica dessa pergunta é profunda. A pessoa que a lê tem a impressão de que, ao não levantar a barreira da educação formal, nosso país permite que incompetentes tomem conta do poder – e ao fazer a comparação com o funcionalismo público, sente-se uma espécie de dissonância cognitiva, uma falha, um bug no sistema que buga o nosso cérebro. Na verdade, a força da pergunta é tão grande que as pessoas sequer copiam e colam a pergunta no google. Afinal, ela ainda é uma pergunta, não é?

Ah, as coisas que se acham na internet (mas eu ri, na real).

As respostas que o Google dá  não parecem tão relacionadas a todos os termos-chave simultaneamente – mas um dos resultados (pelo menos para mim) é interessante: uma pergunta no Yahoo! Respostas há 8 anos em que alguém faz uma pergunta com basicamente a mesma estrutura, mas troca o “funcionário público” por “gari”. A maioria das respostas são reações apaixonadas e irrefletidas, mas algumas chegam, na verdade, perto do ponto nevrálgico do assunto.

A educação formal

Se você perguntasse aos políticos atualmente eleitos no Brasil o que é que o conteúdo da educação formal lhes ensinou de relevante e essencial para a profissão pública que eles exercem, a resposta provavelmente seria um envergonhado nada. Se conseguissem lembrar de algo de história, geografia, sociologia ou filosofia (se eles tiveram essas duas últimas à época, e mesmo assim elas não costumam abordar a política de forma tão incisiva enquanto matérias escolares) que lhes fora marginalmente útil, como o momento em que o professor explica a diferença entre capitalismo e socialismo ou o fato de que no Brasil temos uma população idosa crescente, essas são coisas que eles certamente tiveram a chance de aprender muito bem (e melhor) durante a militância e o envolvimento que levam à eleição ou, hoje em dia mais do que nunca, através de uma breve pesquisa no Google.

“E-e-eu não faço ideia do que estou dizendo mas deixa eu só dar uma procurada no Google que preciso lembrar de uma coisa aqui.”

O fato é que, por qualquer ângulo que se veja a função do político eleito, ela muito pouco tem a ver com coisas que se aprendem na escola – não estou falando de professores politizados, ou de eleições para o grêmio estudantil; estou falando do conteúdo programático da escola. Alguém aprende a ser político na prática política. É preciso que fique claro: nenhum nível de educação formal vai transformar, sozinha, alguém em um governante hábil, assim como nenhuma falta de educação formal vai garantir, por si só, a incompetência de um governante.

As três tarefas

A simples afirmação anterior ainda precisa ser sustentada de forma mais convincente. Afinal, como disse um comediante no 9gag que eu realmente não lembro quem é, “não existe isso de ‘uma coisa levou à outra’, isso é pura preguiça! O seu trabalho como escritor é me mostrar como uma coisa levou à outra, não só colocar ‘uma coisa levou à outra’ no meio da história”. Ou mais ou menos isso.

A questão é que podemos resumir da seguinte forma as coisas que um político deve atualmente fazer:

  • Representar uma faixa da população; idealmente, sua base eleitoral (que corroborou, portanto, seu programa de governo);
  • Conduzir o governo de forma que o Estado aja respeitando a constituição;

Isso nos leva aos motivos pelos quais alguém costuma ser eleito, isto é, um esquema básico das coisas que as pessoas avaliam na hora de decidir o voto:

  • Seu futuro: o que o candidato pretende fazer quando eleito (isto é, tem boas propostas);
  • Seu passado: o que o candidato fez garante que ele cumprirá suas promessas ao menos em parte; e seus mandatos garantem que ele é capaz de lidar com crises, decisões emergenciais ou problemas que não faziam parte do horizonte de problemas com os quais ele acharia que teria que lidar uma vez que eleito (isto é, é um administrador bom o suficiente para levar a cabo as propostas);

Quando as pessoas clamam pela necessidade de um governante formalmente educado, isso soa lógico porque tem-se a impressão de que a educação formal prepara alguém para ser um bom administrador. O problema está em esquecer de um detalhe importante: ninguém governa sozinho. Não estou falando apenas do fato de que os parlamentares compõem câmaras, ou de que o prefeito de uma cidade tem que estar em sintonia com os prefeitos de outras cidades, com o governador, o presidente, etc; digo isso porque existem assessores.

“Alguém me dá uma help pra entender essa PEC!”

Pode-se argumentar, é claro, que os assessores, ao invés de indicados pelo político, deveriam ter educação formal, até serem concursados. Schumpeter, um elitista com o qual tenho lá minhas rixas (acho que quase todo cientista político hoje em dia tem), já clamava pela necessidade de um funcionalismo público vigoroso, independente e bem formado que auxiliasse os políticos – e com isto concordo parcialmente, mas não desviemos o foco. Todo e qualquer trabalho técnico para o qual um político não esteja preparado pode ser pesquisado e processado por seus ajudantes de tal forma que ele, ao se informar do problema, consiga basear uma opinião para formular uma política pública, um voto, uma decisão.

A questão vai mais além e mais fundo: os assessores ainda podem formar raízes da árvore que seria, nessa analogia, o político, para buscar um diálogo mais amplo com a sociedade.

Isso nos leva a uma classificação que fiz escapar do resumo anterior das atribuições dos políticos. Eles devem representar a população, respeitando a constituição. Mas isso não é tudo. Em uma sociedade democrática (por mais múltiplos sentidos que essa palavra tenha conquistado), os parlamentares devem debaternegociar, persuadir e lutar por um programa de governo, especialmente aqueles pelos quais foram eleitos. Essa é a função dos políticos que se aprende na vida política e na consciência que é, devido ao nossos sistema educacional, dificilmente introduzida e estimulada pela escola em si. Repito: essa é uma função essencial da vida política, e uma que não se aprende no conteúdo curricular da nossa escola (e nem poderia, pela natureza própria de nosso sistema escolar). Temos, portanto, três funções dos políticos: uma que prescinde da escola enquanto instituição provedora de educação formal (posto que não educa para a função), e outras duas que, muito mais técnicas, podem ser desempenhadas por ajudantes do político.

Consequências

Isaiah Berlin, em seu ensaio clássico sobre os dois tipos de liberdade, disse que quando os “fins” da política estão decididos de antemão, só o que sobra pra ser discutido são os meios.

Quando as pessoas falam da necessidade de ter educação formal para ser político, é claro que muitos apenas acham que isso seria benéfico – e de fato pode ser, e isso não disputo. É preferível, realmente, que o nível de erudição de um político seja alto, e quanto mais alto, melhor. Mas o contato com a realidade de sua base eleitoral é importante também: o não “descolar-se da vida prática” de um Platão (aquele babaca) ou dos pensadores que vieram antes da Revolução Francesa, como julgava Tocqueville. O saber conduzir o debate, entendendo na pele o jogo de forças que compõe a sociedade e as possibilidades reais de melhoria do nível de vida, é essencial — mas a erudição e o conhecimento, que, repito, não necessariamente vêm da educação formal, ajudam na conceitualização dessas ideias, na formação de um político com menos preconceito e mais consciência, com uma visão de mundo mais ampla e um sentido de justiça mais aprimorado.

O que argumento é que alçar a educação formal a nível de exigência demonstra, especialmente quando vamos fundo na argumentação de quem o faz, a disposição de colocar o político no pedestal do administrador, do bom burocrata, de mero tecnocrata. Se isso não estava claro quando a comparação era com os garis, fica explícito quando, na versão ressuscitada da crítica velada a Lula, a comparação é com os funcionários públicos.

Políticos são funcionários públicos, mas não “funcionam” da mesma forma. Eles não têm que realizar tarefas definidas, rotineiras, fora de qualquer debate no momento de sua execução, que são de importância sistemática para a “máquina” governamental. Funcionários públicos, e falo isso da maneira mais positiva possível, não me entendam errado, são as engrenagens da máquina: com a educação formal necessária recebem o óleo que precisam para mantê-la girando. Mas se ela deve girar para que o governo seja uma Ferrari e não um Fusca mal cuidado, não devemos esquecer que ainda é preciso pôr a mão no volante e decidir pra onde esse carro metafórico vai.

“‘Não me entendam errado’?! EU ESTUDEI MUITO PRA CONSEGUIR ESSA VAGA NO CONCURSO, Ô SEU BARDERNISTA!”

Entender essa “função” (que é, por que não, essência) da política é entender que reduzir politica a burocracia é perigoso. Não, políticos não devem ser bons burocratas. Devem ser algo a mais: pessoas em busca da implementação de programas que vão melhorar a vida das pessoas. Se tudo o que é preciso para um governante é fazer o carro andar — se nós nos deixamos levar por esse pensamento – então não vamos nos preocupar com a direção que o país toma e vamos esvaziar o debate político. Em tempos de eleições com candidatos grandes já bem esvaziados, isso é perigoso. Além de, sinceramente, entediante.

Se o argumento passa para o lado das propostas e argumenta-se que um candidato deve ter sim educação formal justamente para poder formular boas propostas, deve-se evitar ainda outro perigo: o de que o político não dialoga com a sociedade, nem com outras forças contrárias. A Maria da Padaria pode, a partir de sua convivência com sua comunidade e seu espírito cívico, candidatar-se a vereadora com ideias na cabeça mesmo sem ter segundo grau completo: não só é preciso que os eleitores sofistiquem-se politicamente para saber distinguir as propostas ruins das boas, as impossíveis das possíveis (vendo que as da Maria são das boas), como também acompanhem os debates dentro do mandato dela, que a fiscalizem, e que organizem-se enquanto sociedade civil em grupos de pressão que colaborem com os debates políticos que lhes interessem. Em suma, ao querer uma política pujante, a pessoa que clama pela necessidade da educação formal dos políticos deveria antes interessar-se pelo filtro que não deixaria, caso melhor educado, políticos ruins passarem: a educação política do povo (que inclui também uma revisão da palhaçada que são a educação formal e a mídia de massa brasileira, entre outras propostas de cunho civil que reestruturariam o espaço para uma vida com mais valores democráticos).

Há uma última coisa a se considerar. Num país desigual como o Brasil, é importante notar que esse discurso pode ser, antes de simplesmente tecnocrático, elitista: exigir a educação formal para a vida política significa excluir uma parte da população da vida pública já de antemão. Inserir essa barreira artificial (não é a educação, veja bem, mas a educação formal; não a capacidade constatável no dar-a-cara-ao-tapa do debate, mas o diploma) impediria, a curto e a médio prazo, a participação de uma série de pessoas da política que de outra forma participariam, e participariam bem.

Torçamos para que a melhoria da educação no Brasil se concretize de tal forma que não precisemos discutir esse tipo de coisa — mas caso o ensino fundamental e médio torne-se uma realidade para todos, que não se inicie, por favor, uma discussão sobre a necessidade de ter ensino superior para ser eleito.

Resenha: A doutrina do choque

Terminei de ler há um tempo “A doutrina do choque”, livro da jornalista Naomi Klein. É um livro grande, poderoso, e absolutamente essencial para compreender melhor a história recente (os últimos 50, 60 anos). Eu o recomendo para absolutamente todos.

Capa do livro.
O livro fala sobre as ditaduras militares na América do Sul (embora o Brasil não seja o melhor caso de estudo para os propósitos do livro), sobre a transição da Rússia para o capitalismo, o fim do Apartheid na África do Sul (uma leitura FASCINANTE), a Guerra do Iraque e o furacão Katrina, entre outros.

Resumi-lo seria difícil, dado o seu tamanho e sua complexidade, mas o básico é: existe uma ideologia econômica conhecida por vários nomes (vou chamá-la de neoliberalismo). O neoliberalismo, por vários motivos em potencial, acredita em uma série de medidas econômicas que visam deixar os “mercados” funcionarem sozinhos, por si mesmos, sem intervenção do Estado, o que, segundo eles, levaria a um “equilíbrio”, a uma “harmonia” e ao desenvolvimento econômico, o que seria bom para todos os envolvidos. Os problemas são dois: a consequência historicamente verificada desses tipos de medida é que os (poucos) ricos ficam mais ricos e a maioria da população fica mais pobre. O segundo problema é que, justamente porque esses programas econômicos são impopulares, eles precisam de “choques” para serem facilitados. Guerras, ditaduras, suspensões temporárias de direitos democráticos, imposições não reguladas por debates legislativos que seriam em outras situações procedimento padrão, desastres naturais, entre outros.

Algumas observações:

  • Meu procedimento padrão com tudo que eu goste demais (e rápido demais) é procurar por opiniões negativas; críticas, “refutações” (quanto mais ouço essa palavra do jeito que as pessoas usam hoje em dia, menos eu gosto dela, mas vá lá), e tudo o mais. É quase como um princípio “é bom demais pra ser verdade” aplicado à literatura, especialmente a não-ficção. No caso de Doutrina de Choque, eu encontrei três tipos de crítica: primeiro, uma terminológica, que a acusa de confundir as posições de liberais, neoliberais, conservadores, neoconservadores, apologistas do livre-mercado, e não sei mais o quê. Klein admite já no começo do livro que esses termos dependem muito da região em que são usados e há discordâncias internas entre teóricos, o que significa que esse é um terreno lamacento, mas ela sempre deixa claro exatamente do que está falando – não liguei muito pra isso. Segundo, uma que reclama da forma como ela pinta Milton Friedman, e para mim essa crítica tampouco vai muito longe: apesar de reconhecer que o uso que ela faz de uma citação dele não é exatamente muito apropriada, ela não o responsabiliza por tudo, mas apenas mostra como sua apaixonada defesa dessas ideias tornou-o um símbolo delas, um intelectual que, sendo respeitado, ajudou a legitimá-las apesar de a realidade contrariá-las constantemente. E, em terceiro lugar, que ela comete erros e distorções de ordem histórica em sua reportagem – seu livro, de quase 600 páginas na edição em português, deve ter umas 80 de notas de fim de capítulo, e a pesquisa levou 4 anos. Os argumentos dela são sólidos. Se quiser, veja a entrevista com Johan Norberg sobre um artigo que ele publicou para criticar o livro, e aqui um texto no próprio site da autora respondendo à crítica.
  • Acho válido também recomendar a página do facebook Anarcomiguxos – eles são um pouco sectários e duros nas críticas que fazem, mas quando reclamam dos anarcocapitalistas ou de neoliberais,o fazem justamente por causa do fervor religioso com o qual defendem essa ideia do “livre mercado” de que o livro fala.
  • Há um documentário associado ao livro, para quem tem curiosidade: mas já aviso que ele é MUITO limitado se comparado ao livro (assim como todo filme adaptado, né?) – recomendo demais, demais, o livro.

Miss Representation

Um filme que vi recentemente e recomendo muito é Miss Representation. Embora muitos blogs e espaços feministas na internet já são dedicados a revelar o trabalho mesquinho que a mídia faz ao criar uma certa imagem de mulher e femininidade no nosso consciente coletivo (e fazem um excelente trabalho quanto a isso), ter um filme de referência no assunto, coeso, relativamente pequeno e contundente é uma importante arma na luta de ideias de apoio ao feminismo uma vez que pode servir de referência fácil e rápida a uma série de conceitos cristalizados no movimento.

O filme vai direto ao coração do assunto ao tratar de uma parte importante da questão feminista: a relação entre imagem e poder. A forma como somos “aculturados” a perceber as mulheres causa um ambiente que duvida da potência delas enquanto lideranças políticas. Essa é a mensagem mais forte do filme, e tudo que ele faz é percorrer um caminho variado e bem fundamentado para dar suporte a essa mensagem.

Da maneira como eu o vejo, o movimento feminista cresceu das preocupações no âmbito dos direitos civis para uma questão mais ampla, que é uma batalha cultural que transcende o reino das regulações e leis (que ainda são importantes, tanto quanto a batalha cultural sempre foi o coração do movimento mesmo quando os direitos civis precisavam com urgência serem implementados). As críticas que tolos como Gilberto Moog fazem (conservadores sem noção) ao dizer que o feminismo “verdadeiro” deveria ter acabado quando o sufrágio universal foi conquistado são vazias e destituídas de qualquer contato com a realidade da população feminina que é constantemente alvo da objetificação de que trata o filme.

É um documentário realmente interessante que, embora não traga tantas coisas novas para quem já é do meio e já conhece, pelo menos em tese, o problema, é legal de ver de qualquer forma. Dava pra escrever muito aqui sobre todas as reflexões que ele foi despertando – e também o tipo de coisa que um “masculinista” (ou, mais comum, um popular-igualitarista que nasceu perto de 90 e acha que é imune ao machismo) diria sobre elas e como ele poderia ser respondido, mas não quero alongar essa recomendação com um “rant” longo contra argumentos repetidos ad nauseam pela internet (e talvez, também, não seja meu papel fazer isso de qualquer maneira). E antes que alguém comente algo (no maior estilo 9gag, atualmente o maior antro de apolíticos completamente ignorantes sobre o feminismo professando opiniões misóginas ou voltadas a espantalhos que são “verdade absoluta”), sim, o patriarcado também oprime homens segundo o documentário. E as formas como o faz, embora tenham como principal alvo e pior “receptor” da opressão o público feminino, são discutidas com certa ênfase no filme.

A única coisa negativa, não tanto do filme mas do fato de que é para brasileiros que estou recomendando, é que ele se concentra exclusivamente na situação dos Estados Unidos. É certo que ela nos influencia bastante, mas ainda assim é um pouco frustrante.

Só quero deixar com vocês um trecho que me marcou em particular, e me fez pensar na conexão entre essa luta e a dos negros na questão sobre as cotas raciais nas universidades brasileiras. A frase, que aparece como citação mas logo depois é comentada, é: “você não pode ser o que você não pode ver”. De fato, as mulheres nos Estados Unidos não se veem como líderes, não se veem fazendo política, porque enorme parte das imagens através das quais são aculturadas lidam com estereótipos objetificados, “estupidificados” e ontologicamente submissos do que significa ser uma mulher. Os modelos em quem poderiam estar se inspirando não recebem a mesma publicidade que as garotas fúteis que enchem os reality shows americanos. É uma frase poderosa que, depois de ouvida, pode fazer soar um novo alarme na percepção em relação a “imagens de constatação” como essa:

E você, assistiu o filme? O que achou? O que gostou, com o que concorda, do que discorda? Você conhece documentários semelhantes voltados para a realidade brasileira ou, inversamente, de uma perspectiva mais global? Sente o dedo nos comentários!

Crises

Recentemente li um artigo muito bom chamado “Arendt in Crisis: Political Thought in Between Past and Future”, de Jakob Norberg. O artigo fala sobre a interpretação de Hannah Arendt sobre as crises, e como podemos aprender a lidar com elas. Deixe-me ser mais específico: esse artigo não vai ajudar você a lidar com crises emocionais ou outros dramas pessoais. Estamos falando de coisas maiores, como crises sociais, culturais e políticas. Embora, para ser justo, essas crises maiores são pano de fundo, algumas vezes, de nossos dramas pessoais.

“Só não vá achar que eu tenho alguma fórmula mágica, meu filho.”

A crise e suas duas dimensões

Para Arendt, a política trata das relações entre seres humanos, da natureza desses laços entre eles, os princípios que os unem, e a moldura que são os projetos locais e temporários que eles realizam juntos. A crise é a dissolução e a possível reconstituição dessas comunidades humanas. Daí que a “crise” é central para a “política”: nossas conexões com os outros humanos são questionadas; nós temos diante de nós a oportunidade de reafirmar ou negar nossos lações que antes eram garantidos. Para Arendt, é na crise que a política torna-se inevitável para todos. Vai ver é por isso que temos a impressão que todos têm algo pra dizer sobre ela o tempo todo.

Só que as crises têm dois efeitos, conectados, mas diferentes. Em primeiro lugar, a crise dá nome a um momento em que as reações habituais não dão mais conta de entender o que se passa; o jeito como fazíamos as coisas não adianta mais, não funciona mais.

Para Arendt, isso é ótimo! A crise derruba noções e falsas e expõe “ideias preconcebidas”. Isso é muito importante: ideias preconcebidas são a base do nosso dia a dia. Nós temos várias experiências iguais, repetidas, e aí esperamos que as coisas sempre aconteçam assim, do mesmo jeito. Paramos de pensar, simplesmente agimos: imagina se tivéssemos que pensar se a gravidade vai sempre funcionar ou não? Não, simplesmente agimos assumindo que o mundo vai funcionar de um certo jeito. A crise é como se de repente a gravidade não funcionasse: a gente não sabe o que fazer, e por isso somos obrigados a pensar. A crise significa, portanto, finalmente ter a oportunidade de pensar o que é alguma coisa de fato.

Mas a crise também tem outro lado. Ela é o desaparecimento do “senso comum”, mas para entender isso é preciso pensar exatamente o que, para Arendt, significa esse senso comum (até porque senso comum é o que mais se reproduz quando gente que nunca pensou em política começa a falar sobre política).

“Em toda crise”, escreve Arendt e traduzo livremente eu, “um pedaço do mundo, alguma coisa que é comum a todos nós, é destruído”. A crise destrói nossas “ideias preconcebidas”, sim, e nos força a olhar com atenção para alguma coisa que sobra depois da destruição; algo com o qual sempre interagimos mas sobre o qual nunca pensamos. Mas ela também destrói certas coisas sem deixar nada no lugar; nada sobra. Só ruínas.

E o que seriam essas coisas? Bem, aquilo que nos liga aos outros; um certo “senso comum”. Senso comum seria, portanto, uma sensação de que temos algo em comum com os outros. O que se perde com a crise é a sensação de que os outros veem o mundo de forma semelhante a nós. Fica difícil se orientar num mundo assim, em que não dá para saber se os outros vão sequer entender do que eu estou falando.

Perder ideias preconcebidas faz a gente perceber as coisas de um jeito mais claro: a crise tira de nós categorias de experiência prontas, empacotadas; preconceitos, mesmo. Mas a perda de senso comum nos deixa completamente sozinhos, porque a crise nos faz perder aquela sensação de que compartilhamos o mundo com semelhantes.

Lidando com as crises – através do julgamento

Em “O que é autoridade?”, Arendt descreve justamente a crise do conceito de autoridade. Para a filósofa, a autoridade sempre exige obediência, e essa obediência tira legitimidade de algum valor transcendental, ou seja, que não pertence ao campo da política mas está acima dele. “Obedeçam-me, porque…” e aí vem uma justificativa para essa obediência, obediência que faz com que acabem-se os questionamentos, as discussões, as decisões coletivas. Para Arendt, portanto, a política só é possível quando os humanos se livram da autoridade transcendental (ou seja, a crise da autoridade).

Só que, se essa é a face interessante da crise (Yeah, agora somos seres políticos!), há também uma face negativa como vimos acima. E ela é, como você já deve ter adivinhado, a perda do parâmetro comum para a vida em comunidade – a autoridade transcendental. A questão da política, portanto, não é nem tanto a “vida humana em comum” como colocamos no começo do post, mas algo mais complicado: Como viver em comum sem que todos vejam o mundo de forma semelhante?

A resposta talvez esteja na ideia de “julgamento”; diz-se até que Arendt, na época em que escrevia sobre Kant (escritos que foram publicados postumamente) tinha um ensaio inacabado sobre isso. Com “julgamento” não se quer dizer necessiramente juízes num tribunal, mas a ideia de escolha, de estabelecer uma análise sobre algo, de tomar uma decisão com base num pensamento cuidadoso.

O julgamento trabalha em duas frentes. Na primeira, ele cobre a destruição de nossas ideias preconcebidas. Quando julgamos algum evento isolado, em geral pensamos ele dentro de uma regra geral; isso se transforma em “ideia preconcebida” quando essa operação vira uma rotina, ou seja, nem julgamos mais, simplesmente olhamos para uma situação que achamos mais ou menos parecida e já pensamos sempre a mesma coisa. Quanto mais nos apegamos a essas regras nos tornamos o que Norberg chama, num termo engraçado, de “mão-de-vaca epistemológico”, pois ele se recusa a “gastar” seu cérebro prestando atenção ao mundo de fato, a cada situação – só aplica a mesma lógica sempre, sem pensar direito. O julgamento vem, depois da crise, formar novos padrões, novas ideias – mas depois que nós pensamos bem o caso; não vale apenas trocar seis por meia-dúzia. Se a crise é a oportunidade para repensar as coisas, temos que efetivamente repensar as coisas. Esse é um julgamento que Arendt, copiando Kant, chama de reflexivo. Um julgamento reflexivo acontece quando, ao contrário do julgamento do começo desse parágrafo, olhamos para um caso isolado e moldamos a regra geral de acordo com ele.

Mas e o problema da dissolução do mundo comum? O julgamento também lida com ele, segundo Arendt. A partir de uma ideia que vem de Kant, Arendt mostra também que julgamentos (especialmente o tipo de julgamento que fazemos sobre situações que geram crises), não são julgamentos técnicos, desses que têm que funcionar de acordo com a lógica ou estão simplesmente erradosEsses julgamentos são como opiniões, sendo sempre feitos tendo os outros em mente; são sempre feitos “antecipando a comunicação com os outros”. Um julgamento tem que tentar entender o problema sem ideias preconcebidas, mas também tem que fazê-lo pensando no que os outros vão pensar, e como eles vão agir na situação. É assim que, enquanto todos julgam as coisas, forma-se uma promessa de uma realidade compartilhada.

Mas é importante notar que a comunidade formada por esse processo não volta a ser o que era antes – formando uma “autoridade transcendental”. A comunidade não fica garantida para o futuro: ela está sempre em transformação, sempre em negociação, sempre dependendo dos indivíduos formarem esses julgamentos comuns para lidar com os projetos que desenvolvem juntos. Na crise o que surge é sempre uma “solidariedade sem solidez”. Para Arendt, ou melhor, para o autor do artigo que a analise, a beleza dessa descoberta é que uma comunidade que pratica a política deve entender que será, sempre, uma comunidade em crise.

Outras passagens interessantes…

“Como o historiador Reinhart Koselleck diz […], a crise e a crítica conspiram para acabar com a estabilidade: a crise é a mudança que nos pega despreparados, enquanto a crítica é a forma como planejamos causar a mudança.

“A política é constituída pelo imprevisível jogo polêmico de posições diferentes, e isso não acontece quando ocorre uma submissão a uma verdade indiscutível, cujo meio é o filósofo [da grécia antiga]. Nós podemos até dizer que “a verdade é a mais perfeita forma de acabar com uma conversa” (Fuller 2005, 51)”. Essa frase de Fuller é maravilhosa: há muitas pessoas que discutem coisas absolutamente discutíveis do ponto de vista da “lógica”, sem perceber (ou querendo esconder) os valores diferentes (as posições básicas diferentes) que estão por detrás da discussão. Se alguém cai no erro de reconhecer o viés da “lógica”, acaba-se a política: não há discussão possível quando se está “errado”, afinal.

“Ideias preconcebidas parecem nos juntar uns aos outros apenas à medida que são um fenômeno coletivo, mas na verdade elas tornam a todos menos conscientes da existência dos outros. […] De acordo com Arendt, dependemos dos outros ao nível da cognição: percebemos o mundo juntos, ou não o percebemos nem um pouco.”

E você?

O que acha da visão de Hannah Arendt sobre as crises? Em que tipo de crises vivemos atualmente? Solte o verbo nos comentários!

Da teoria a… Que prática?

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Meu professor de história contemporânea comentou certa vez o quanto um professor é valorizado na Dinamarca e, em contraste, o quanto a profissão tem pouco ou nenhum “glamour” no Brasil. A seguir fez uma comparação: um químico está sempre louco pra sair da teoria da sala de aula e ir para o laboratório; um dentista, sempre feliz com a possibilidade de arrancar um dente com sucesso, colocando à serviço o conhecimento que, de uma maneira um tanto enfadonha, adquire. Se o mercado de trabalho para o cientista social é, com frequência, o magistério, podemos imaginar com facilidade as razões pelas quais o estudante das Ciências Sociais não anseia tanto por ir da teoria à prática.

A aula daquele dia terminou. Saí da UFSC, peguei carona até o centro e de lá fui pegar o ônibus para a casa. Na fila, uma mulher à minha frente e um homem depois de mim. Ambos já de meia idade; eu arriscaria uns cinquenta anos cada um, com larga margem de erro. Olham-se com um sorriso e já começam a falar sobre uma palestra que acabaram de presenciar na faculdade de direito que cursam, ministrada (vejam só) por um membro das altas cortes da justiça nacional – algo como o Supremo Tribunal Federal; minha memória me falha.

Aparentemente o palestrante falou sobre os desafios do Brasil e como o governo estava  enfrentando os mesmos. Um deles era a educação, e a conversa logo se esgueirou para a condenação da forma como os professores eram pouco valorizados no Brasil.

Tudo muito semelhante à aula que eu tinha acabado de ter.

Perguntei a eles algumas coisas, me fiz presente na conversa, mas não falei muito: tal qual um antropólogo (de certo modo), deixei que falassem: não porque fui condescendente, não; não me tomem por arrogante ou pretensioso – o que quis dizer é que queria fazer tantas perguntas! Me interessei muito por aqueles personagens do TICEN, engajados em tão rara conversa aberta, substituindo com louvor a praga dos celulares sem fones de ouvido. Mesmo interessado, não ousei me intrometer. Eles sequer falavam para mim ou comigo; despejavam em tom de indignação e denúncia casos e mais casos de quem já viu muito e sabe analisar o que viu porque muito pensou e continua pensando. Falavam entre si. Eu estava fascinado.

Se falavam, antes, da situação dos professores no país, logo falavam da situação deles mesmos, funcionários públicos: em seis anos a mulher não ganhou um único reajuste salarial. O homem disse que o único reajuste ganho do governo Lula foi dado na gratificação, não no salário. A mulher comenta que com o salário dela, há nove anos, ela pagava escola particular para os filhos e os planos de saúde. Com o salário atual, ela não conseguiria sequer pagar a escola.

Eles prosseguiam: como é que se permitiu que a região da Grande Florianópolis crescesse tanto sem a construção de um novo hospital? No posto de saúde do bairro de um deles, consulta só se marca na quinta-feira. Se há um problema mais urgente, apesar de a pessoa poder ser atendida na hora, é pedido que o paciente volte à noite, no horário de plantão. Por quê? Porque assim fica registrado um maior número de atendimentos no plantão, que foi criado há pouco tempo e provavelmente logo (leia-se: depois que as eleições acabarem) vai se extinguir. O que sobra? As estatísticas, para os políticos.

É conveniente o sucateamento de todo aparato público (seja de educação, seja de saúde), já que as redes de plano de saúde e as fundações privadas de instrução só fazem crescer. O capitalismo, em sua face mais predatória, também foi abordado: na cidade natal de um deles, descobriu-se uma mina de uma substância importante para a indústria farmacêutica. A propaganda foi que aquilo traria o progresso e a geração de empregos para a cidadezinha. O resultado foi que eles vieram, consumiram o que podiam como gafanhotos, e foram embora deixando miséria para trás. Na cidade do outro, a construção de uma hidrelétrica fez dezenas de milhares de pessoas migrarem para uma cidade despreparada, causando um aumento vertiginoso no custo de vida e na taxa de criminalidade do local.

Por que um real planejamento disso não foi feito? Porque o tipo de planejamento que “salvaria” essa cidade implicaria, a grosso modo, o cuidado com as pessoas; a preocupação com o bem estar social que não é prioridade para quem lucra quando a situação se dá como tudo ocorreu.

Isso, aliás, estava prestes a se repetir em Biguaçu com o estaleiro de Eike Batista. Comenta o homem que os responsáveis pela desistência (temporária, afirmou o homem) quanto ao terreno da região são os moradores poderosos de Jurerê Internacional, que teriam sua rica praia poluída se o projeto saísse do papel. Os “pobres” e os ambientalistas? Bem, esses não teriam nenhuma chance de parar nada. A tragédia comunista de George Orwell em que “todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros” se aplica sem muitas modificações, praticamente como uma luva, a essa reflexão.

Na aula que eu acabara de ter meu professor explicava qual era, afinal, o objeto de estudo de sua matéria: as consequências da Revolução Francesa – Dentre outras, o modo como passamos a priorizar o pensamento republicano, antitético ao monárquico. A ideia central da Monarquia é que existe um grupo de pessoas que merece naturalmente mandar, e um outro, que tem que obedecer. A ideia central da República, mesmo que se argumente que ela nunca foi de fato alcançada, é que todos sejam essencialmente iguais.

Saí do ônibus no meu ponto, agradecendo a eles por me deixarem ouvir à conversa e sentindo pesar em ter que partir quando o assunto era a justiça social. Me senti enriquecido pela conversa. É como um arqueólogo que encontra um osso de um novo dinossauro, ou um médico que descobre que diabos um paciente complicado tem, ou mesmo um minerador de séculos passados olhando para estonteantes pepitas de ouro.

Se de certa forma a “prática” para o cientista social é o magistério ou a pesquisa, as duas coisas não estão desconectadas; tampouco o “ensinar” precisa estar ligado às escolas e universidades. O “ensinar” não pode ficar só lá. O trabalho do cientista social, a missão até certo ponto ingrata que tem dentro da sociedade, é se fazer ouvir para agendar e informar as discussões da sociedade para a construção de um mundo melhor – já que este está mergulhado em discordâncias que só fazem gerar miséria, aborrecimento, tempo perdido… Ou, em situações outras, guerras, fome e genocídio.

Eu não ouvi meus dois “informantes urbanos” como profetas; ouvi suas opiniões como parte de algo maior. Ideias que se integram a uma rede de conceitos, ações e militâncias de cada brasileiro. Não é que eles estejam completamente certos, muito menos completamente errados; mas é naquilo que eles acreditam. Há um motivo para eles acreditarem naquilo, e há algo que eles vão fazer com essas crenças. Essas ações terão reflexos no futuro do Brasil. Entender o que pode levar hoje as pessoas a acreditar em algo amanhã, e que resultados podemos esperar disso, é crucial para planejarmos um futuro melhor.

Esse homem e essa mulher estão quase aposentados, mas estão cursando Direito. O motivo? Eles não acham que a aposentadoria conseguirá garantir um futuro estável para eles. Quantos outros brasileiros são iguais a eles? O que essa mudança de atitudes, o que essas práticas estão fazendo com a nossa cultura, com a nossa política, com as nossas expectativas sociais?

Justiça é só uma dentre tantas coisas que tantos grupos de brasileiros querem para o país; como fazer sentido dessa malha de vontades e intenções? Se dispor a entender e traduzir essa malha é importante, bem como levar essa tradução para quem muitas vezes só consegue ler (por uma questão de tempo e espaço) a tradução que uma mídia comprometida com o lucro faz.

Se for possível ajudar a sintonizar, informar, fortalecer e fazer debater a leitura que tantas pessoas fazem do mundo, é possível motivá-las – e até mesmo fazer com que concordem em algo; numa direção, numa decisão, num futuro responsável. Para o que tantas pessoas veem como uma solução para a corrupção, por exemplo, que nenhum político deveria receber salário, trabalhando voluntariamente apenas aqueles que querem o melhor para a nação, um clássico da sociologia vem lembrar que, se não houver salário, apenas os ricos participarão da política. Como resolver isso? Um pouco de filosofia política dá embasamento a essas questões pragmáticas, mas normativas.

O cientista social é aquele que vê longe, vê perto e vê entre as linhas, mas não faz isso sozinho. É para a classe de cientistas sociais que sobra essa tarefa, não para um herói de capa e máscara. Eis o que é capaz de fazer um cientista social inspirado levantar-se das cadeiras e olhar para a rica realidade social buscando colaborar com o mundo em que vive: há muita coisa a ser feita. Feita com planejamento. Com pensamento. Feita coletivamente. E, nesse cenário, o cientista social pode ser útil.

Há tantas coisas que importam…

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Na última coluna falamos sobre como o pragmatismo e uma certa intolerância por aquilo que fica entre o branco e o preto são características de um certo pensamento burguês – e que elas acabam gerando soluções simplistas demais para os problemas sociais que enfrentamos, e que são problemas nossos também. Soluções que fazem a gente pensar que não, esses problemas não são nossos. Mas as coisas não são simples assim.

Se apenas elas fossem…

Por outro lado, tudo na forma como pensamos aponta para isso, não é mesmo? Simplificar. Se nos primórdios da filosofia as coisas eram percebidas já como simples, à medida que a tradição filosófica ocidental segue seu curso vemos que as coisas vão ficando mais complexas – mas nem por isso abandona-se a ideia da simplicidade. Se as coisas são complicadas, tudo bem, não é problema: nossa tarefa, enquanto seres humanos dotados de pensamento racional, é simplificá-las. Entender é reduzir as coisas a um esquema, um modelo que possamos ver por completo, botar para funcionar, e enfim dominar. Entender, ruminava Nietzsche (não com essas palavras), é domesticar a complexidade do que nos é alheio – é domesticar a natureza, botá-la no cabresto do que exige o nosso cérebro. A ciência, esse processo analítico, vai passo a passo separando, isolando, quantificando – deixando mastigável e enfim deglutível uma massa de informação tantas vezes difícil de visualizar em sua totalidade.

Nós, ocidentais, nunca abandonamos o anseio pela simplicidade. Saber que a realidade é complexa parece ter, pelo contrário, nos incitado para o desafio de fazer o projeto simplificador dar certo. E isso não está só nos distantes ícones do pensamento, pessoas que só os “nerds” vão estudar. Se esse fosse o caso, esses ícones não seriam nem ícones em primeiro lugar – não para nós hoje, pelo menos. Isso está na boca do povo. É realmente o nosso jeito de pensar, não apenas uma interpretação bonita de “nosso”, onde “nosso” significa o que uma elite de pensadores raciocina. É só perguntar o que as pessoas em geral acham de arte pós-moderna. O pós-modernismo, aliás, já virou sinônimo de encheção de saco para muitos círculos intelectuais – para a gente comum ao redor do mundo costuma ser algo execrável, completamente incompreensível. E o interessante é que muitas dessas obras não foram feitas para serem compreendidas mesmo.

Mas não precisamos falar de obras de arte. Abram o Facebook, o Twitter, o Youtube. Quais são as grandes joias de sabedoria que vemos compartilhadas? Nem tudo é tão simplista e absolutamente questionável, mas o que dizer de coisas como “ser feliz é o que importa, o resto não interessa”. Será mesmo que o resto não interessa? Podemos ser assim tão simples? O que podemos esperar dessa simplicidade?

O futuro da filosofia, da sociologia, de toda área do pensamento – e, para usar um exemplo já quase rasgado de tanto usado, a própria física e as teorias interessantíssimas da física quântica – é lutar contra as palavras simples. Se podemos fazer do presente um lugar diferente, se podemos não repetir os erros do passado, é preciso começar tendo a coragem de cair de barriga na realidade. Se ela é complexa, que seja: vamos pensá-la, abordá-la, agir sobre ela de maneira complexa, ao invés de procurar encaixá-la numa simplicidade que sabemos não existir. Mudando o método, o jeito de investigar o mundo, mudamos nossa sensibilidade a tudo que ouvimos, vemos, lemos e sentimos. Mudamos muita coisa.

Mas se definimos o projeto do pós-modernismo como este, vemos que na verdade para alcançar essa nova posição de descobrir e investigar a realidade o que os pós-modernos fizeram até agora foi atacar as bases das estruturas que nos impedem de pensar a realidade de uma maneira mais multifacetada. Muitos são os pensadores que, mesmo que não sejam pós-modernistas, nos ajudam com isso que, num sentido bem amplo, podemos chamar de desconstrução da realidade (para os sociólogos, principalmente da realidade social). O que resta para a nossa geração, e para as vindouras, é desenvolver essa ideia. Como basear uma cultura – e, afinal, nossas vidas – contando diretamente com a diversidade e com a complexidade? Eis uma tarefa complexa.

Quem são os burgueses?

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Às vezes aqui e ali ouvimos expressões como “burgueses” ou “a burguesia”. Os “burgos” eram vilas na Idade Média, locais de muito comércio. Os burgueses, que mais lidavam com compras e vendas, acabaram depois constituindo um grupo extremamente influente: quanto mais a Europa desmanchava relações tradicionais para reconstruir as estruturas da sociedade sobre o dinheiro, fica claro que mais dinheiro significa mais poder.

A burguesia não viu a mudança de braços cruzados; foi antes uma força ativa nessa transformação que os deixou no topo da pirâmide social. Mas todo esse cenário histórico nos ajuda em 2013? Quem são e como vivem os burgueses de nosso tempo? Seriam eles os muito ricos? Os donos dos famosos “meios de produção”? Quem dá, afinal, corpo à máscara flutuante que é esse conceito fantasmagórico?

A burguesia, na época em que foi caracterizada por Marx como classe social, exibia uma série de características marcantes. Burgueses são voltados para a eficiência – pragmáticos, quando vão em busca de conhecimento o fazem porque ele é útil. São individualistas, tanto na prática quanto na filosofia. Daí vêm a mitologia, com os espíritos básicos como trabalho, valor, competição e recompensa, que eles ajudaram a popularizar. Em seus mitos também podemos incluir as ideias de progresso e desenvolvimento, grandes divindades burguesas.

Naquele processo de derrubar tradições que a Europa sofria, o burguês foi se tornando o padrão cultural de excelência – substituindo condes, lordes e duques. Todos querem ser ricos, felizes e prósperos como os burgueses, e isso é, ainda mais em nossos tempos de mídia de massa, internet, globalização, um fenômeno fundamentalmente cultural. O pensamento burguês, quando adotado por toda sorte de pessoas, mostra que não importa tanto quem é o burguês, mas sim como pensa o burguês, porque então podemos enxergar como esses valores direcionam nossa visão e entender as consequências desse jeito de pensar.

O que acontece com o pragmatismo burguês quando ele vira grande valor social? A valorização da técnica, mas também do oblívio: ter mais pessoas que saibam fazer coisas, mas que não necessariamente reflitam sobre o que fazem – pra quê, não é mesmo? O individualismo relaciona-se com a competitividade para descortinar uma sociedade que vê o homem como mera máquina buscadora de lucro – aquela que o burguês instituiu como explicação de dicionário para o verbete “humano”. O burguês tem problemas para confiar nas pessoas, e encontra nos outros – que nasceram dentro de um sistema que estimula em nós esse jeito burguês de ser – razão para tanto. Mas o pior é a combinação disso com a vontade da pureza absoluta, adágio do progresso, que pensadores como Nietzsche e Foucault debateram. A principal característica do pensamento burguês contemporâneo é a vontade de tirar da vida os obstáculos – de maneira mais prática e rápida possível – para que possamos todos dar continuidade à rotina normal, cada um em seu papel (o chefe e o trabalhador, cada qual segundo seu mérito). Assaltos, estupros, homicídios? Pena de morte. Jovens perdendo a vida nos meandros do tráfico de drogas e todas as suas ramificações? Entupam as cadeias. Assaltos? Botem o exército nas ruas. Corrupção para tudo quanto é lado? Ditadura militar. O Brasil está ruim? Eu, que tenho dinheiro, vou morar fora. Soluções simplistas – genuínas não-soluções, onde as pessoas se esforçam para se convencer de que os problemas sociais não são problemas nossos – ou que pelo menos podem ser muito facilmente resolvidos, de forma que eles podem se tornar não-nossos, e é por pura incompetência e podridão humana das autoridades que as coisas não magicamente se encaixam no lugar.

Essas opiniões estão na boca de extremistas nos jornais, mas podiam estar na minha e na sua. Não ser burguês não é vender tudo e ser um mendigo filósofo de Augusto Cury, assim como ser um mendigo filósofo não o impede de filosofar como um burguês. Rejeitar o pensamento burguês é cuidar para pensar além, querer além e viver além de um estereótipo muito, muito velho – mas também muito, muito vivo.

Capitalismo e prioridades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Para muitos, o capitalismo é para a sociedade o que a alma é para o corpo: não é uma coisa física, então não pode ser tocada, vista ou medida. Apesar disso, anima os corpos. Parece estar atrelada ao que somos, ao modo como funcionamos: o que seria, afinal, um corpo sem alma?

Essa visão é circunstancial: o capitalismo “move” a nossa (nossa, não todas) sociedade, mas ele não pode ser confundido com essência humana. Essa perspectiva costuma vir da falta de uma definição melhor para o capitalismo, mas para isso um estudo básico não serve muito; há quase tantas definições de capitalismo quanto tipos diferentes de estudos sobre ele.

Junto com essa definição vem uma percepção de que há muitos problemas com o capitalismo – um conjunto de efeitos sociais, como a extrema desigualdade econômica entre os podre de ricos e os podre de pobres (não só dentro de um país, mas a nível global), e um conjunto de efeitos pessoais, como a ideia de que nos tornamos mais mesquinhos, que perdemos certas noções de contato com as pessoas, perdemos a preocupação com o bem comum. Seria o capitalismo o grande inimigo da sociedade?

Há controvérsias. O capitalismo é um fenômeno tão cultural quanto econômico, e também político. A alienação e a mais-valia, lá no processo de produção das coisas que consumimos, passando pelo foco na própria ideia de consumo e como isso afeta nossas vidas e nossa relação com o tempo, com os objetos, com as pessoas (a vida líquida de Bauman), tudo isso faz parte do capitalismo. Mas ele necessariamente piora nossa vida? Estaríamos melhores sem o capitalismo? Não se pode esquecer de seu aspecto técnico, afinal. As conveniências da civilização contemporânea, a divisão social de trabalho, a higienização, a grande engenharia, a globalização e tudo o que ela traz de bom – a internet, os computadores! O que quer que o capitalismo venha a gerar de ruim, de qualquer forma, pode ser controlado e minimizado através da ação política e da educação, asseguram seus defensores.

Talvez esses aspectos ditos “técnicos” do sistema é o que não podemos perder de vista. O que importa, acima de tudo, é a eficiência. Tudo pode ser quantificado e traduzido em valor monetário. Com isso, em especial com a questão da eficiência, já não nos surpreendemos: crescemos sendo ensinados que essas duas coisas são mesmo o jeito como as coisas devem ser. Mas o que significa poder alugar pessoas? Isso é muito diferente do modo como o trabalho era conduzido nos tempos que precedem o capitalismo. E note que não há muita escolha: esse “aluguel” é o que gera lucro para uma minoria, e foi forçado garganta abaixo de gerações passadas para abrir caminho para o capitalismo como ele é hoje. Se tudo pode ser quantificado, o que significa poder comprar liberdade, personalidade, felicidade e até, como diria Nelson Rodrigues, amor verdadeiro? a noção de competição é o messias inescapável dessa jornada; aquilo que se deve abraçar como princípio de vida.

Mas, argumenta-se, não há nada melhor para pôr no lugar do capitalismo de qualquer maneira. A questão não é bem essa: é que ao olhar para as coisas com o desejo de que elas sejam “melhores”, perdemos o foco do que realmente importa: nossa experiência e a autonomia de nossos valores. Esperar uma melhoria absoluta é uma armadilha: melhores de acordo com que critério? Podem ser melhores aqui e piores ali; isso vai depender dos valores, os seus e os sociais também.

As lutas contra o capitalismo têm que reconhecer um aspecto fundamental da vida, afastando-se da esperança progressista que pautou as lutas sociais do século XIX: nada nunca será perfeito. Lutamos com as imperfeições esperando ter que lidar com outros tipos de problemas, não na esperança de que um dia recriaremos o paraíso na terra. Se uma maior e efetiva participação política tirar de todos nós mais tempo, tudo bem: qual é o valor que norteará nossa vida? Passar o tempo cuidando da comunidade, decidindo seu futuro para promover bem-estar com igualdade e justiça, ou terceirizar a cidadania, como na política tradicional, para gastar mais tempo trabalhando como cavalo e consumindo como rebanho?

Podemos nos perguntar, por outro lado, se aqueles que lucram com o capitalismo assistiriam, quietos, à ascenção de um cenário mais igual e mais livre. Historicamente, passividade é o que menos sobra nesse caso.