Dialogando com Stanley Fish – Epistemologia, religião e o valor da filosofia

Faz algum tempo traduzi um texto de Stanley Fish chamado “Não existe essa coisa de liberdade de expressão, e é bom que seja assim“, um artigo simultaneamente pós-moderno, didático, rigoroso e politizado que culmina num verdadeiro chamado à ação, numa constatação bastante radical quanto à inescapabilidade de uma “tomada de partido” em nossas vidas quando o assunto é expressão.

Fish é um acadêmico relativamente desconhecido no Brasil, e então fiz uma pesquisa na época para saber mais sobre ele. Como é de praxe, acabei gravitando por um momento para críticas. e já que elas estavam mais à direita que à esquerda, peguei o resumo da ideia e deixei meio que “pra lá”, porque o texto que traduzi é realmente muito bom. Mas, em suma, a bronca é que ele era um academicista cínico e descompromissado com a realidade.

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Photo by j. kunst

Ele tem (ou tinha, já que não aparece lá desde 2013) um blog no New York Times, e lá descobri coisas muito interessantes. Acho que ele de fato fornece bastante material para o tipo de ataque que veio da direita. Vou falar um pouco sobre alguns artigos bacanas que, acredito, vale a pena ler. Não pretendo (mais) traduzi-los, então inglês é um pré-requisito. O New York Times fica chato depois de um tempo, pedindo por pagamento para acesso aos artigos, então se você tiver algum problema use a navegação anônima do Chrome. Os links para os artigos estarão formatados em negrito ao longo do artigo.

Uma posição sobre a visão de mundo liberal

Uma das coisas que me fascinou no texto que traduzi é a forma como ele vai à raiz das coisas e desfaz certas pressuposições, certos binarismos intrínsecos à forma como pensamos, revelando algo mais profundo e muito mais complexo por detrás deles. No caso do artigo sobre liberdade de expressão, a noção de que nossa expressão nunca se encontra num reino de liberdade total que é de vez em quando ameaçado por constrangimentos artificiais; que são os constrangimentos, sempre presentes pela natureza da expressão, que possibilitam qualquer expressão significativa, e que essas restrições à fala estão presentes em qualquer instituição humana com algum propósito, e que isso apontava para a conclusão de que quando alguém “invoca” a liberdade de expressão em sua defesa está usando estrategicamente um julgamento de valor dentro de um jogo de forças político.

No artigo Citing Chapter and Verse: Which Scripture is the Right One?, Fish argumenta (a partir de um lapso linguístico de Richard Dawkins) que muitas vezes trocamos a Bíblia pela literatura científica como “livro de autoridade”. A questão não é ter fé no método, mas ter fé de que os cientistas que estão dizendo que fizeram o experimento do jeito tal e os resultados foram tais e tais realmente fizeram o que dizem. De qualquer forma, podemos gastar trinta minutos discutindo a diferença entre as coisas, mas o que ele quer dizer é que há uma questão de autoridade original: “em qual convicção”, poderíamos perguntar a alguém que nos debate, “sobre onde a verdade e a iluminação devem ser encontradas você se baseia?”. Quando definimos uma resposta para isso (“revelação, educação, conversão”) você não pode testar essa resposta com algum árbitro independente. Essa é uma resposta pós-moderna clássica (lol) no sentido ‘derrideano’ de nada está fora do texto (não existe guardião do significado). Não existe ninguém (ou nenhuma entidade) fora dessa lógica de jogo linguístico e simbólico que possa decidir imparcialmente qual dessas “ortodoxias básicas” é melhor. E uma vez que isso não pode ser feito, “a sua resposta é agora o árbitro (e a medida) de tudo que vem até você. É ela que vai ajudar você a determinar o que serve como boa evidência e o que não serve.

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Photo by refeia

O argumento todo é, portanto, epistemológico. É uma disputa nada nova, mas essa é uma boa demonstração dela: cientificistas podem argumentar que o mundo é simplesmente um conjunto de informações disponíveis. Você só observa, anota, e chega a conclusões (como um observador imparcial). É isso que Fish contesta:

Eu não estou criticando Dawkins, estou o agradecendo por apoiar [meu argumento] de que apesar de invocações de justiça e igualdade e de que devemos dar uma chance a todas as vozes, liberais clássicos, como qualquer ideólogo (e ideólogos todos nós somos), dividem o mundo entre “nós” e “eles”. […] “Nós” subscrevemos aos pilares do inquérito científico materialista e “eles” são aqueles que não o fazem. […] Não estou criticando os liberais por tomar partido por, e com, seus pares, mas por fingirem que eles estão, ou poderiam estar, fazendo outra coisa. Liberais sabem que […] quem nega o holocausto, não importa que tipo de “fatos” ou “estatísticas” sejam trazidas, são simplesmente pessoas ruins […] (incidentalmente, eu concordo com [essa posição liberal]). Mas o desejo dos liberais clássicos de pensar neles próprios como acima dos outros, como alguém que facilita a discussão ao invés de levar ela na sua própria direção favorita, faz com que eles sejam incapazes de se contentarem em dizer “vocês estão errados, nós estamos certos, e nós não vamos ouvir vocês nem dar uma chance para vocês falarem”. Em vez disso, eles fazem malabarismos para basear seus julgamentos em padrões impessoais e procedimentos imparciais (que não existem) apenas para que eles possam pronunciar suas excomunhões com mãos limpas e corações puros (apartidários e não-tribais).

Esse é o tipo de Fish que eu adoro. Ácido, corroendo camadas de hipocrisia e de justificações metafísicas que visam retirar a complexidade política dos embates intelectuais, como se eles fossem coisas puramente lógicas e não humanas; filosofia para máquinas e cálculos (como se os próprios cálculos não precisassem ser escolhidos) em vez de para organismos perspectivados.

Mas essa mesma constatação vai evoluindo de formas diferentes e alcança certas argumentações que não tenho certeza se são tão sólidas, ou tão efetivas.

O lado da religião

Em certo momento cheguei a considerar a tradução de três artigos específicos desse blog dele: “The Three Atheists“, “Atheism and Evidence“, e Is Religion Man-Made?“. Essa é uma “trilogia” que explora os argumentos de três ateus que publicaram livros de sucesso por volta de 2007, data em que os textos foram publicados; Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens. Considerei traduzi-los porque raramente se vê uma boa defesa de religiões em geral que não seja feita por religiosos, e a maioria das que são feitas são, na minha opinião, inadequadas em vários níveis. Mas, ao reler essa trilogia de artigos, algo não me pareceu certo; não é que discordo completamente deles, mas acho que em uma segunda leitura percebi certas lacunas e ausências que me incomodaram mais do que durante a primeira.

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Photo by Steve’s stills

Um campo minado

No primeiro e talvez melhor (dentre os três) artigo, Fish ataca as análises que os três ateus fazem do ponto de vista religioso. Eles o atacam por ser raso, pois substitui a dúvida e a angústia por certeza e obediência cegas; atacam-no por ser simplista, por ignorar possíveis contradições e, com base na fé, criar um mundo de falsa segurança psicológica e (no fundo) falta de fibra moral. Esse, no entanto, não é o caso para Fish, algo que ele mostra com bastante eloquência.

As objeções que Harris, Dawkins e Hitchens fazem ao pensamento religioso são elas mesmas parte do pensamento religioso: ao invés de serem varridas para debaixo do tapete de um discurso perfeito, eles são o motor do discurso, impelindo o questionamento conflituoso de teólogos e poetas (para não mencionar Jesus, que lamentou-se “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” e cada verso do livro de Jó). […] eu rascunhei esses argumentos […] não porque eles são conclusivos (apesar de serem para alguns), mas porque eles estão lá – exatamente nos textos e nas tradições que Harris, Dawkins e Hitchens dispensam como ingênuos, simplistas e ignorantes. Se você é religioso, diz Hitchens, você seria persuadido de que um criador todo-poderoso e benigno supervisiona tudo, e que “se você obedecer às regras e aos comandos que ele amorosamente prescreveu, você vai estar qualificado para uma eternidade de felicidade e repouso”. Eu não conheço nenhum enquadramento religioso que oferece uma visão tão complacente de uma vida de fé, uma vida que é sempre apresentada como um campo minado de dificuldades, obstáculos e tentações que precisam ser negociadas por uma criatura limitada em seus esforços para se alinhar (e se aliar) ao infinito.

Razão e fé

Sam Harris declara que “Vai provavelmente chegar um dia […] em que vamos alcançar um entendimento detalhado da felicidade humana, e dos próprios julgamentos éticos, a nível de cérebro” e que “há toda razão para acreditar que a pesquisa na esfera moral, se sustentada, vai forçar a convergência de todos os nossos sistemas de crença da forma que foi feita em toda outra ciência”. Eu poderia jurar que era o Comte falando (será que o livro foi publicado no gênero espírita?), mas não. É só um positivista dando uma de mãe Diná em pleno 2015.

E isso não passou despercebido por Fish, que envergonha Harris de forma mais deliciosa que maionese Heinz:

Uma assertiva muito forte é feita – nós vamos “sem dúvida descobrir conexões válidas entre nossos estados de consciência e modos de conduta” – mas nenhuma evidência é oferecida para justificá-la; e de fato a ausência de evidência se torna a razão para a confiança em sua eventual emergência. Isso parece bastante com o tipo de fé que Harris e seus colegas detestam – expectativas baseadas apenas numa primeira premissa (ela própria afirmada ao invés de provada) que, se verdadeira, exige-as, e se falsa, faz delas coisas sem sentido.

O principal argumento deste segundo artigo vai ser mostrar como fé e razão são inseparavelmente componentes uma da outra. “As razões que você dá [para acreditar em algo]”, ele argumenta, “não vêm de fora da sua fé, mas se seguem a ela e a desenvolvem”. As razões de Harris (e Dawkins) para acreditar que a moralidade pode ser naturalizada fluem da fé na ciência materialista e “fazem um loop” de volta a essa fé, dando-lhe maior substância. É um raciocínio circular, ele admite, mas não “viciosamente”: “seja lá o que você estiver fazendo – pregando, ensinando, fazendo um experimento, jogando baseball – você precisa sempre dar uma razão (mesmo que só para você mesmo) para sua fé e a razão vai ser sempre uma boa razão só por causa da sua fé”. Por fim, ele não diz que ciência e religião são as mesmas coisas; afirma que “as diferenças entre estruturas de fé [ou estruturas de razão] são reais e significativas, porque ambas vão responder a diferentes necessidades e propósitos”, mas que, dentre as diferenças, uma delas não é “a diferença entre fé e razão”.

E aqui os problemas começam. No outro artigo que comentei, na primeira seção desse post, ele fala sobre a fé liberal na epistemologia materialista como um ponto de partida que precisa ser presumido. Se ele estivesse falando dessa fé como ponto de partida de todo o raciocínio, tudo bem, mas ele se referia à fé de Dawkins no darwinismo (o que é uma comparação muito, muito ruim).

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Photo by Tambako the Jaguar

Tirando essa questão técnica (embora importante, posto que central ao argumento deste artigo), há ainda o fato de que a frase mais importante não foi levada a maiores consequências. Sim, as estruturas de fé vão responder a diferentes necessidades e propósitos – o problema é quando as coisas se entrecruzam. Sabemos hoje, dentro da antropologia, que as sociedades tradicionais não eram acientíficas – elas não tinham a instituição ciência, que é perfeitamente passível de críticas, mas é óbvio que aplicavam uma versão do método científico. Como diz Pritchard em algum lugar que tenho preguiça demais de procurar agora, se você chegasse para um índio e dissesse “mas por que eu devo plantar? Não é só fazer o ritual tal e tal e a planta cresce sozinha?” ele ia rir da sua cara, porque ele sabe que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

O problema é quando a lógica da fé religiosa deixa de responder ao tipo de dimensão psicológica, social e cultural à qual ela geralmente responde e contamina o procedimento que usamos para investigar a realidade, formar opiniões sobre aquilo que vai além da nossa interioridade (“fatos”?) e tomar decisões sobre como melhor alcançar um determinado fim (que, sim, pode vir a ser escolhido com base em valores religiosos!). Uma coisa é você ser moralmente contra o aborto, ou ainda, dentro da sua escala de valores (informada ou não por uma religião específica), valorizar menos conceitos como liberdade pessoal ou a autonomia sobre os corpos a ponto de apoiar instituições sociais que visem coibir a prática de aborto. Outra coisa é, a partir dessa fé, se recusar a ouvir ou entender argumentos contrários ou dados estatísticos que possam pôr em dificuldade coisas relativas a esses valores. É claro que esse julgamento intelectual vai estar sempre contaminado por valores; é impossível que alguém lance um olhar imparcial sobre algum dado ou argumento, mas isso não quer dizer que uma preocupação com a racionalidade e com o método científico (que “responde à necessidade e ao propósito” da investigação sobre as coisas e a formação de opiniões) não possa ajudar a superar essas barreiras axiológicas até certo ponto. É sempre uma disputa, mas a vitória (mesmo que impura) não só é possível como desejável, e isso é algo que possivelmente Fish não contestaria – mas ele tampouco endossa em seu artigo, fazendo proliferar no silêncio a sensação de que as diferenças entre a ciência e a religião, não se resumindo ao monopólio da razão, devem então ter nada a ver com a razão. Mas elas têm.

A imperfeição

No artigo que mais fez ateus se perguntarem “wtf?”, Fish diz que a ideia de que “Deus não escreveu os livros [religiosos] ou estabeleceu as regras de sua adoração, [e sim que] humanos fizeram isso, e que os resultados são […] imperfeitos” é “exatamente o que você deveria esperar”. “É Deus (se existir um) que é perfeito e infinito; humanos são finitos e confinados dentro de perspectivas históricas. Qualquer esforço para apreendê-lo […] vai necessariamente falhar em relação à transparência que se espera obter” em algum momento no futuro, um momento de visão (uma epifania, digamos). A um comentário no blog (a um artigo anterior), em que alguém argumenta que o fato de a religião ter sido criada pelo ser humano é a melhor base para o ateísmo porque ela contradiz a divindade de Deus, Fish responde que não, ela contradiz a divindade do ser humano, que é exatamente a razão de ser da religião. O ser humano não é divino, é mortal; seu criador, por ser maior que ele, não pode ser contido em categorias humanas de percepção e descrição.

 

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Photo by schoschie

Fish vai além (ou, na verdade, só até o fim), concluindo que

Se a divindade, por definição, excede a medida humana, a exigência de que a existência de Deus seja provada não faz sentido porque a maquinaria da prova, seja ela qual for, não poderia ser estendida longe o bastante a ponto de apreendê-lo. […] A crítica feita por ateus de que a existência de Deus não pode ser demonstrada não é sequer uma crítica, porque um Deus cuja existência pudesse ser demonstrada não seria um Deus; seria apenas outro objeto no campo da visão humana.

Mas esse é exatamente o ponto, Fish! Esse artigo é o que mais me irrita, justamente (similar ao que acontece no segundo dessa trilogia) por causa do que não é dito. Embora essa exigência dos ateus em relação a uma prova científica se estenda não apenas a Deus, mas também ao sobrenatural (fantasmas, vampiros, energias cósmicas, astrologia, etc), dá para entender que são coisas diferentes, posto que a questão do sobrenatural é muito mais prática (refere-se sobretudo aos supostos efeitos que certas coisas exercem no mundo físico). Mas a questão dos efeitos é na verdade chave. Como notou um comentador dessa postagem:

O que você parece estar dizendo, professor Fish, é que Deus é inobservável, que não podemos ver Deus (de qualquer forma) e portanto a tentativa de provar sua existência é incoerente. Isso é o mesmo que dizer que Deus não tem nenhum efeito sobre nós. Se ele tivesse um efeito, então poderíamos experimentar esse efeito e portanto observar a Deus, porque experimentar um efeito é exatamente o que a observação é.

SIM, experimentar um efeito é exatamente o que a observação é. Observar é medir um efeito que uma coisa tem sobre outra. Entenda que estou tentando definir uma categoria bem ampla aqui; observar algo visualmente é sentir e analisar o efeito que a luz que essa coisa emite, ou reflete, exerce sobre nossos olhos. Fish está querendo dizer que, ao pedir que se prove a existência de Deus, os ateus forçam os religiosos a jogar com a regra dos ateus, e nessa lógica estrangeira eles não podem ganhar, porque a lógica religiosa determina que Deus não pode ser observado (ou não seria Deus). Só que mesmo fora das regras do jogo ateu, argumento, essa é uma proposta problemática, porque engendra a conclusão de que Deus não faz a menor diferença. E se não faz (a la victim blaming) então toda crença depende unicamente do crente (e essa é uma posição que, como vimos, deve ser assumida dentro do jogo do crente, não só do ateu) e portanto a própria humildade epistemológica inerente à fé religiosa cai por terra, já que não depende do que é, mas da vontade do crente de crer!

Isso, é claro, é um problema imenso para a religião que Fish não aborda. Não aborda porque ele é religioso? Difícil. Ele mesmo diz que não é contra a proposta dos ateus ou a crítica à religião, ele só não acredita que essas três críticas sejam boas – ele está meio que tentando fazer uma oposição construtiva, exigindo mais de seus colegas, como quem diz “hey, esses argumentos não são suficientes! Arranjem uns melhores!”, mas em sua defesa da religião como advogado do diabo (ha) ele acaba perdendo um pouco do rigor que eu esperava – ele me acostumou mal com aquele artigo sobre a liberdade de expressão.

O valor da filosofia

Mas a real discordância, ao invés de simples irritação, veio ao ler “Does philosophy matter?” e sua parte 2, em que as críticas contra ele, vindas de um site conservador, começaram a fazer sentido.

Na coluna, ele basicamente argumenta que a filosofia é muito importante… Para filósofos profissionais, que debatem filosofia dentro da academia. Para todos os outros seres humanos, meros mortais, ela não importa nem um pouco. Nada. Talvez a melhor formulação dessa ideia esteja nas seguintes linhas:

Vamos supor que qualquer um dentre dois atos de persuasão ocorram: alguém que antes era um absolutista moral é agora um relativista de algum tipo, ou quem era antes relativista agora é um crente confirmado em morais absolutas. O que exatamente vai ter mudado quando um conjunto de visões filosóficas foi trocada por outra? Quase nada. Com certeza você vai agora dar respostas diferentes do que daria antes quando perguntado sobre fatos morais, verdades objetivas, evidências irrefutáveis e por aí vai; mas quando você está tentando decidir qual é a coisa certa a fazer em uma determinada situação, nenhuma dessas respostas que você daria para essas perguntas profundas vai ter qualquer impacto na sua decisão. Você não vai dizer, “porque eu acredito em morais absolutos, eu vou assumir esse novo cargo ou vou divorciar meu marido ou vou votar para os democratas”. Você tampouco vai dizer, “porque eu nego uma moral absoluta, eu não tenho mais nenhuma base para tomar decisões uma vez que qualquer decisão que eu faça é tão boa ou ruim quanto qualquer outra”. O que você vai dizer, mesmo que para você mesmo, é “Dado o que está em jogo, e os prováveis resultados de tomar esta ou aquela ação, eu acho que vou fazer isso”. Nem “Eu acredito em uma moral absoluta” nem “eu não acredito” vai ser uma razão ao longo de uma deliberação normal, não-filosófica.

Eu veementemente discordo disso. No início, tive medo de que estava fazendo isso apenas por orgulho – como uma forma de dizer, birrento, que algo não podia ser assim, como a fase de negação do luto. Mas não; com um pouco de tempo comecei a pensar (o pensamento se impôs a mim, na verdade) que aquilo era simplesmente… Falso.

Certamente há algo de verdadeiro no que ele diz, até certo ponto. Ao longo do próprio artigo ele explica que a crença em uma moral absoluta não é tão importante quanto o conteúdo dessa moral, mas ele vai dando a entender que na verdade qualquer tipo de discussão filosófica não tem importância mesmo – e, como a frase ao final da citação acima implica claramente, tudo é uma questão de contexto e cálculo (ele critica certas pressuposições liberais, mas certamente não tem o menor pudor de defender um modelo homo economicus de ser humano, pelo jeito). Também é verdade (e essa é a motivação para essas duas postagens dele) que um relativista moral não será necessariamente um monstro niilista; Fish está querendo principalmente argumentar que alguém escolher entender que a realidade não oferece nenhuma moral absoluta não quer dizer que esse alguém não tenha uma moralidade própria (e pelo fraseamento de Fish, ele não parece acreditar que as pessoas escolham muito bem que moralidade vão seguir) ou que vá sair por aí matando todo mundo.

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Photo by dalbera

Isso é importanteverdadeiro, mas não por causa da irrelevância das posições filosóficas; pessoalmente, acredito que nossos sentimentos, nosso entendimento e nossa imersão em relações sociais (dado o tipo de criaturas sociais e dependentes de simbolismo que somos) são grandemente responsáveis pelos valores e pelos princípios que vamos fortalecendo. Experiências, e formas de interpretá-los, geram nossos objetivos e guias de ação para nos posicionarmos e para escolhermos as pessoas e coisas que defenderemos. Ser um “relativista” realmente não significa muito nesse contexto, porque não implica que abandonemos aquilo em que acreditamos, mas tem um impacto gigantesco na forma como entendemos os outros e as coisas nas quais eles acreditam. E isso, depois, tem um impacto retroativo nas coisas que atacamos e na forma como as atacamos, além de impactar nossas relações com os outros, e também, em certas situações, decisões que tomamos.

Isso que ele diz é bastante alinhado com o que diz no texto sobre liberdade de expressão: o princípio geral e constitucional é abrangente demais e as pessoas preferem confiar nele a decisão sobre o que fazer (que tipos de discurso regular) ao invés de estudar a complexidade política da situação. Ele advoga que cada decisão sobre quais discursos coibir ou estimular é sempre local, e é pragmático – ele vê que toda disputa engendra uma decisão que amplamente independe das convicções das pessoas (convicções sobre a “primeira emenda”, que protege a liberdade de expressão, são apenas instrumentos retóricos adotados ou abandonados conforme a ocasião). O cinismo que o faz ter uma análise tão bem feita e tão instigante lá o torna francamente cego aqui – é embasbacante a paixão com a qual ele defende que a filosofia não importa em nada nas decisões que as pessoas tomam.

Mas o fato é que as pessoas têm princípios, e embora ele pense que eles são somente justificações post facto para decisões necessariamente pragmáticas (e isso em geral dá boa literatura, o que pode ter retroalimentado essa fantasia na cabeça dele), nós muitas e muitas vezes nos orientamos por eles, independente do que consideramos mais prático ou do que gostaríamos de fazer. E nesse sentido debates filosóficos importam, posições pensadas importam.

Em um momento ele faz uma diferenciação entre religião e filosofia: as pessoas são guiadas por princípios religiosos em suas decisões, então por que não seriam guiadas por princípios filosóficos? Porque, para ele, “filosofia é algo que você pode fazer ocasionalmente, religião não é” – a religião exige do crente comprometimento dele, com ela, em todas as suas atividades. Mas seu argumento, em primeiro lugar, depende de um confinamento potente da filosofia: ela pode ser apenas o tipo de masturbação exercício mental cuidadosamente montada nos corredores e salas das universidades, e nada mais. Longe de mim querer banalizar a filosofia, mas mesmo que as pessoas não sejam versadas nas melhores ferramentas do pensamento, elas pensam naquilo que acreditam e em como isso se relaciona com o que elas querem fazer (uma coisa que dá excelente literatura). Se as pessoas não pensam “direito” agora, isso é um problema cultural e pedagógico, não cognitivo (e seriamente me pergunto se Fish só pensa assim porque vive na Murica…).

Em segundo lugar, o argumento completamente desconsidera que, num mundo cada vez mais secular, a filosofia de fato substitui o comprometimento religioso posto que todo mundo precisa (não “precisa” do tipo “seria bom que tivesse”, e sim necessariamente tem) de um esquema teórico que organiza certas ideias sobre o mundo.

Noutro momento ele diz:

Mas e os conservadores (republicanos)? […] (1) A controvérsia do teto orçamentário teria sido melhor resolvida se os participantes tivessem lido e estudado os tratados filosóficos corretos, e (2) o problema com o Partido Republicano é que ele é guiado por uma má filosofia, que dita o comportamento de seus membros. O primeiro argumento é claramente bobo; segue a mesma lógica de que se apenas alguns terroristas, tiranos, e jihadistas lessem nossa constituição, as cartas federalistas, e algumas páginas de John Rawls, eles iam cair na real e se tornarem seguidores da nossa democracia.

Não, Fish, não significa isso. Embora, de fato, a lógica não possa ser “A leva a B” (porque não leva mesmo, está certo), o contato com uma ideia filosófica diferente poderia convencê-los a mudar de ideia, a depender de uma série de circunstâncias – poderia ser um fator. O problema, é claro, é que essas ideias filosóficas não estariam agindo sobre um vácuo que seria a cabeça de terroristas e tiranos, e sim sobre uma cabeça que já tem suas próprias filosofias, filosofias que já estão os influenciando a agir de tal ou tal forma. Mas tanto faz, porque mesmo assim Fish diria – mais ou menos foi o que respondeu em relação ao número (2), e algo que já citei – que a filosofia aparece apenas como justificação posterior a um ato que nada tem a ver com princípios e pensamentos.

Em suma, só se pode concluir… O que a crítica conservadora conclui a respeito dele. Ele é, de fato, alguém descompromissado, pelo menos em relação à própria profissão. Ele defende (até mesmo em seu blog) uma série de posições, mas nega que pensar nelas de forma filosófica vai fazer as pessoas agir de forma diferente. Descrente, não vê as pessoas como agindo pelo menos em algumas ocasiões de acordo com princípios ou coisas que tenham pensado; não, são 100% contextuais e dirigidas por cálculos racionais (certamente ninguém nunca evitou uma traição em um relacionamento por convicção; não, claro que não. Só acharam que não valia à pena ou que seriam pegos na mentira, só pode).

Isso não me deixa triste nem faz com que goste menos dele como teórico; ele é o que ele é. Espero ter contribuído, inclusive, um pouco para a disseminação dele no Brasil ao comentar parte de suas ideias. Mas assim como não acho que ele tenha sido perceptivo o bastante ao lidar com sua defesa às religiões, não acho que conclua bem quando conclui que o pensamento filosófico não tem nada a oferecer para o comportamento não-filosófico. As pessoas são contextuais e vários fatores incidem sobre suas escolhas; as ideias não determinam as coisas, mas tampouco o faz coisas como instintos ou vantagem pessoal. É um fator considerável que o cínico não enxerga e, como numa espécie de fé, é difícil de falsificar – sua fé lhe faz ver as coisas de um certo modo, e suas observações só reforçam sua fé.

Oremos…

O ângulo maldito do Audible.com

Eu devia estar dormindo já há duas horas, mas enfim, aqui estou… Acabei vendo alguns vídeos antes de dormir e precisei vir escrever este texto, de tão agoniado que me senti em relação a esse tema.

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Photo by Macrophy (Grant Beedie)

Um agonia tipo essa, assim.

Se você assiste alguns canais estrangeiros no Youtube, como CinemaSins, Couch Tomato e Wisecrack (todos super recomendados), você vai perceber que muitas vezes eles são patrocinados pelo site Audible.com, uma loja de audio-livros (audiobooks) subsidiária da Amazon. O patrocínio significa que, logo depois que o conteúdo principal do vídeo termina começa uma propaganda feita pelo apresentador do conteúdo. A propaganda é feita de um jeito criativo; ela não parece ser feita unicamente por grana (o produto parece algo que as pessoas nesses canais realmente usam e gostam; o dia que o Jeremy do Cinema Sins fizer a propaganda de, sei lá, uma clínica de bronzeamento artificial, aí isso vai parecer falso), não é invasiva ou chata, é honesta (isto é uma propaganda) e é bastante útil, na verdade, especialmente porque depois de recomendar o site eles dizem algo como “e se você está procurando por uma recomendação de leitura, recomendamos <insira livro bacana e relacionado com o conteúdo aqui>”.

Só que tem uma coisa que me incomoda profundamente em algumas dessas propagandas: o ângulo, o rationale usado para incentivar o uso dos audiobooks. A ideia principal é: ninguém tem mais tempo, ou saco, pra ler hoje em dia. Então simplesmente ouça o livro.

Problema #1: há um problema

Mas o Audible está fazendo uma coisa boa, não está? Está reconhecendo que tem gente que não tem tempo ou paciência para ler, e muitas dessas pessoas tem algum tempo que, embora não possa ser aproveitado pra ler (estão dirigindo, ou se exercitando), pode ser aproveitado para ouvir coisas.

O Audible, sendo subsidiário da Amazon, não pode ter interesse em não incentivar vendas de livros. Talvez ele esteja sendo simplesmente simpático com quem não gosta de ler, aproximando-se dessas pessoas estrategicamente, como um “good cop”, e fisgando-as à literatura. Começam com audiobooks e, depois, acabam indo pros livros. Boom! É assim que você cria leitores. Com uma estratégia sorrateira, praticamente tirada das páginas de um Sun Tzu (ou de um audiolivro dele, narrado pelo… Pedro Bial ou coisa parecida).

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Photo by nickgraywfu

Muy amigo.

O problema é que eu tenho minhas dúvidas de que essa taxa de conversão seja necessariamente alta. Os audiobooks visam se adaptar à rotina das pessoas, e não o contrário; quem não tem tempo pra ler, mas quer ler, poderia encontrar a motivação pra abrir um espaço em suas vidas para um livro. Mas, com os audiobooks, elas não precisam mais disso: encontraram algo que se encaixa perfeitamente na rotina que elas já têm. Daqui em diante, é mais provável que elas continuem comprando audiobooks, se acostumem a eles, invistam nesse sistema de consumo de informação. A Audible pode não querer diminuir as vendas de livros de sua empresa-mãe – mas ela reconhece que algumas pessoas não vão comprar livros tão cedo, então constituem um nicho que ela pode conquistar sem medo de canibalização ou autossabotagem.

Problema #2: Conteúdo e formato

Ao tratar os livros como veículos de mensagens valiosas, você separa o conteúdo da forma de um modo absolutamente destrutivo para a arte. A mensagem é: você quer ler, mas não tem tempo. Mas existem coisas nos livros que você quer saber, então… Obtenha a informação sem a experiência. Porque ouvir as palavras de um livro vai certamente fazer com que você consiga reter algumas das coisas que entram pelos ouvidos, mas isso não tem nada a ver com o tipo de habilidade e virtude que a leitura simultaneamente exige e desenvolve: paciência, compromisso, investimento; a atitude de “stop and smell the roses” tão peculiar à análise calma, ao consumo apropriado de algo que quer ser uma experiência estética. O formato interessa. Não, só porque você conhece a história de um livro não quer dizer que o leu; só porque ouviu o conteúdo do livro, não quer dizer que o leu. Se um amigo lê o roteiro de um filme para você, ou o assiste numa sala separada e vai contando para você o que se passa na tela, não quer dizer que você viu o filme.

Isso vale mais para ficção, claro, embora a não-ficção não seja “neutra” a tal ponto que não exista uma voz, um estilo do autor. Mas é que com a não-ficção, a informação realmente vale mais: é na maioria das vezes a motivação da leitura. Eu tenho aqui um audiobook do John Keegan que estou louco pra ouvir, mas é porque quero a informação. Mas o Audible não se vende como plataforma para estudantes. Os audiobooks são vendidos, nessas propagandas, como perfeitos e convenientes substitutos de livros, inclusive os de ficção.

Problema #3: Ler é ativo; ouvir é passivo

Não só a experiência estética de ler um livro diretamente é diferente de ouvi-lo, a audição de um livro implica que alguém fez por nós as escolhas que são feitas no “processamento” que nosso cérebro faz de um texto ao lê-lo. O tom do que os personagens dizem, o ritmo; ler mexe muito mais com a nossa imaginação, porque nós temos que criar as vozes que dão vida e corpo à leitura; num audiobook, a voz é a do narrador, que faz por nós o tipo de escolha que vai nos ajudando a moldar essas vozes. Esse tipo de processo criativo faz da escuta de um audiobook uma experiência passiva, muito mais próxima da televisão que de um livro. A constituição da narrativa em nossa imaginação a partir dos sinais gráficos da escrita, muitas vezes abertos a interpretação, é uma experiência muito mais ativa. Um bom contador de histórias pode nos fazer visualizar a história, claro; mas se a ideia é “ler” audiobooks enquanto você dirige, não é nem para você ficar imaginando muita coisa.

Problema #4: Ler não vale a pena

Uma das coisas que mais me incomoda nessa propagação de que “ninguém tem tempo pra ler hoje em dia” é que isso contradiz pelo menos alguns dos cenários que o Audible defende. Você pode ler, por exemplo, enquanto faz esteira. Mas será que essas pessoas não podem fazer um pouco menos de esteira, ou fazer menos vezes a esteira por semana, para se dedicar a ler? Vamos supor que não: realmente não existe nenhum outro tempo na vida dessa pessoa que ela possa usar para ler, um pouco que seja?

É essa questão de prioridades que me deixa irritado. Pode ser que a vida de algumas pessoas seja tão louca que não sobre nenhum tempo pra ler. Mas muitos de nós temos a tendência a exagerar nossas obrigações e nossas rotinas, supervalorizando o quão “cheio de coisas para fazer” realmente estamos. Para essas pessoas, a mensagem construtiva é: Repense. Reestruture. Priorize. Encontre formas de fazer coisas que vão te fazer bem, ou que você vai curtir, e sua vida vai continuar legal – ela vai ser corrida de qualquer jeito, então inclua um pouco mais de leitura.

Mas não. O que o Audible diz é: se você pode não ler, e ainda assim se divertir, pra que ler? A mensagem ressoa porque é exatamente o que não-leitores já fazem (se você pode se divertir sem ler… Pra que ler?). O engodo é que isso dá a impressão de que a pessoa está interagindo com “livros”, quando não creio que seja bem o caso.

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Photo by Muffet

Joguem os livros na fogueira!!!1! Chegaram os audiobooks!!1!

Problema #5: Propaganda enganosa?

Pra fechar a discussão com chave de bosta, me pergunto: e audiolivros de fato poupam tempo? Um narrador não pode ler o livro correndo, porque se não muitos podem não entender e isso equivale a ler um livro escrito à mão com letra de médico. Tem que fazer uma leitura pausada, e eu, como leitor dinâmico, sei que progrido muito mais rápido que a fala de um narrador. Como leitor, eu posso pular partes – seja isso bom ou ruim, é uma decisão minha, e é especialmente relevante em livros de não-ficção – como espectador de um mp3, tenho que esperar ele terminar, ou ficar tentando adivinhar quanto tempo ele vai precisar pra ler aquela parte e pular especificamente aquela quantidade de segundos ou minutos (e essas adivinhações raramente dão certo de primeira).

Pior ainda, quantas vezes queremos voltar e reler aquele pedacinho que acabamos de ler? Isso deve ser um inferno de fazer com arquivos de áudio, ainda mais pra alguns dos cenários que o Audible afirma abranger (enquanto você faz uma bicicleta na academia? Enquanto dirige?). Isso me leva a pensar que talvez as pessoas não tem é tempo, nem saco, pra ficar ouvindo audiobooks – essa deveria ser a propaganda da Amazon pra vender livros, aliás…

Disclaimers

Não estou falando aqui da qualidade dos audiolivros, nem da importância desse segmento de mercado, por exemplo, para pessoas com deficiência visual; até porque não é esse o ângulo do Audible. Estou incomodado com a mensagem de que os audiolivros são bons porque dispensam a leitura; de que ninguém tem tempo, paciência ou força de vontade pra leitura.

Por outro lado, isso parece estranho vindo de quem reclamou que a leitura não deve ser incentivada com esse tipo de argumento racional voltado para seus efeitos práticos. E no entanto aqui estou eu, dizendo que os audiobooks não trazem tantos benefícios para a imaginação, a criatividade, o pensamento crítico, etc quando livros de papel… Mas acho que minha incomodação vai além disso. Com essas observações só quis marcar minha posição, reforçando o que acredito ser uma verdade incontornável: audiobooks não substituem a leitura. Ainda acho que a leitura deve ser incentivada e propagada, principalmente em relação às crianças e (pré-)adolescentes, como uma questão de prazer, de hábito, de hobby, de lazer. E esse é um dos aspectos da leitura que essa ação publicitária do Audible menospreza e diminui. Não curti.

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Photo by NatalieMaynor

“Com um fone de ouvido ficaria bem melhor” -n

E você, o que acha? Você consome audiolivros? Já usou o serviço do Audible.com? O que acha dessa forma de vender o serviço?

Amigos e amores

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Photo by Moyan_Brenn

Dizem que os nossos próximos, nós escolhemos; e há quem valorize a seletividade. Isso é mentira, ou ilusão. Escolhemos contatos, aliados, antidepressivos. Amigos e amores surgem de repente: vêm da destruição, não da criação — começam com a derrubada inequívoca de qualquer relação trivial que justificava nossa ligação a eles antes, antes dessa catástrofe que solidifica nosso laço.

Relações como essas, porém – admito – mantêm-se através da comunicação, da colaboração e do incentivo, nem que seja pela inveja e pela crítica. As pessoas que passam pela nossa vida, mas quase nada significam, ensinam a conveniência, o abandono, o interesse. Eles drenam forças. Os que estão no coração ensinam a sensibilidade, a confiança e a liberdade. Estar entre eles é estar em casa. É precisar de nada para se tornar igual.

Como incentivar e como não incentivar a leitura no Brasil

O tempo todo vemos dados alarmantes sobre o estado da leitura no Brasil. Precisamos urgentemente discutir estratégias para transformar essa realidade.

Afinal, a leitura é importante: ela nos deixa mais “inteligentes”, sem dúvida, e todos queremos um país mais inteligente, agora e no futuro. Só que, quando colocamos isso em evidência no contexto de incentivo ao hábito de leitura, confundimos algumas consequências da leitura com o que nos faz ler. Fazendo isso, erramos o alvo.

Ler faz bem à saúde

Leia mais ficção e você vai se sair melhor em provas e concursos – sua habilidade de interpretação textual vai melhorar; as palavras serão mais familiares, e textos de não-ficção, mais facilmente compreendidos. Logo você será capaz de solucionar problemas com mais eficiência. Desenvolver seu cérebro é o tipo de coisa que não tem efeitos colaterais negativos: sua lógica fica melhor, mas também sua memória, sua paciência, sensibilidade artística, perspectiva histórica, empatia, inteligência emocional, resistência a Alzheimer… Ler é como a melhor combinação de remédios e complementos vitamínicos, só que ministrada principalmente para suas habilidades intelectuais e profissionais.

Só que investir nessa visão (“ler é bom para você, então leia!”) pode ser um mau investimento, posto que apenas marginalmente efetivo, quando muito (mesmo que não conte como prejuízo, seria um desperdício de oportunidade). Se simplesmente saber que algo é ruim, danoso ou errado fosse o suficiente para que as pessoas não fizessem tais coisas – em suma, se Aristóteles estivesse certo quanto à origem do comportamento mau – o mundo seria substancialmente diferente do que é. Por mais que haja valor na conscientização (que  origem a atitudes; só não o faz exclusivamente), as coisas não são tão simples.

Do ponto de vista administrativo, a leitura é uma questão de “habilidade acadêmica”. Como dito acima, queremos um país de leitores. Se é a falta de leitura que ameaça nos “emburrecer”, então temos que fazer as pessoas entenderem que a leitura é boa para elas até elas lerem mais.

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Photo by CarbonNYC [in SF!] CC

O que escapa a essa lógica é que a leitura não é algo utilitário. A leitura é um prazer que, coincidentemente, traz benefícios a quem lê (e, trickle-down style, a todo mundo em volta desse bendito leitor). A matemática sofre do mesmo problema: ela é a manipulação da lógica; é arte com formas e abstrações. Mas, ensinada como uma ferramenta, e extraído dela todo o prazer da descoberta, tudo que os alunos veem é uma coisa que 50% das pessoas nunca vão usar no futuro (“e, de qualquer forma, existem calculadoras para quê, diabos?”). Você pode até convencer algumas pessoas a começar a ler por causa dessa questão “utilitária”, mas 1) não serão muitos; e 2) os resultados não serão duradouros, porque ao se aproximar da leitura com esse viés (“busca-se” alguma coisa, racionalmente; algum resultado, algum lucro, essa “inteligência” que é prometida) as pessoas logo vão se frustrar e… Bem, vão abandoná-la com o tempo, dando prioridade a outras coisas.

Um livro, mesmo um livro bom, não é a causa absoluta de seus efeitos; se fosse assim, todo mundo teria a mesma opinião sobre um livro. A forma como a pessoa encara a leitura vai influenciar enormemente suas impressões sobre ela. Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, os livros de Augusto Cury, de Dan Brown, de Nicholas Sparks, os 50 malditos tons… É possível que eles possam sensibilizar alguém que entre na literatura “por obrigação”, essa conveniência interessada. Mas também é possível que, lendo “por obrigação”, a pessoa não consiga entrar num mindset que permita que o prazer aflore através desses livros, ou de quaisquer outros.

Ficar enchendo o saco de alunos que não leem, fazendo um, digamos, non-reader shaming (como já vi professor fazer) só vai associar a leitura a sensações de vergonha, inferioridade, humilhação – a coisa de “escolhidos”. “Como eu não gosto muito de ler e até hoje nunca gostei, e eu não sou mesmo a pessoa mais brilhante do mundo, esse negócio de ler simplesmente não deve ser para mim…”

Tudo começa pelo hábito

Ler é uma questão de prazer – mas isso tampouco ajuda nossa causa. A leitura exige mais. Prazer por prazer, existem muitos; se posso ver um filme, beber e dançar, ou ouvir música no Youtube, por que eu deveria ler? Filmes e músicas também desenvolvem o cérebro e podem fazer pensar. A dança é também uma arte muito importante, e a corporalidade não pode ser desprezada. Tentar começar uma briga em relação a qual arte é mais prazerosa, ou (de volta ao argumento anterior) qual traz mais benefícios técnicos, não é interessante.

A chave está no hábito. Crianças aprendem coisas por causa da mais básica e fundamental dinâmica cultural da humanidade: elas querem fazer o que os adultos fazem. Mais tarde, com mais personalidade e experiência, querem fazer o que alguns adultos fazem (seus modelos e ídolos). Se estamos falando de nossas crianças e adolescentes (o “futuro da nação”), temos que mostrar aos atuais adultos que eles são seus modelos e ídolos. Claro, há outros (como as celebridades), mas estamos falando de coisas que estão ao nosso alcance, não é mesmo?

Não peça a seu filho para ler mais, explicando para ele que isso é importante, se você não lê. Não diga aos seus alunos que ler é importante para passar no vestibular, ou mesmo porque é legal – apareça com uma desgraça de livro debaixo do braço na sala de aula! Comente o que está lendo, compartilhe a experiência. Porque se essa experiência não “veio de casa” na forma de rotina, esse aluno vai precisar ser convencido de que essa é uma experiência em que vale a pena investir considerável tempo, energia, eventualmente dinheiro. Fale da trama, sem spoilers; do que você sentiu durante a leitura, do que achou mais interessante. Compare. Fisgue. Fale até de coisas que já leu, e como aquilo impactou você, pessoalmente. Pessoalmente, sim – a leitura é uma jornada pessoal.

E embora um livro não seja a causa absoluta de seus próprios efeitos, é preciso não tornar a leitura um campo minado. Jovens leitores podem ler coisas complexas; nós tiramos das obras de arte o que estamos preparados para absorver. Se não pudermos entender tudo, tudo bem. O problema não está tanto em ler a versão original ou a adaptada de Dom Casmurro; é achar que é preciso decidir qual é a leitura certa para cada idade ou grupo, ou mesmo eleger esses livros que “todo mundo deve ler”. Cada indivíduo é único em sua relação com a leitura, e deveria seguir a bússola de seus interesses. Obviamente que nem todo leitor pode começar a ler a Odisseia assim que for alfabetizado – mas volto a isso depois.

Fácil acesso

O acesso aos livros é uma pré-condição para o trabalho de incentivo à leitura. Obviamente que em escolas e localidades em que não se achem muitos livros em bibliotecas – ou mesmo sebos – é imprescindível abastecer o local com literatura; mas não se pode pensar que esse era o único problema antes, e que basta investimento em termos de compra de exemplares para que de repente haja uma proliferação miraculosa de leitores. A oferta não gera, automática e magicamente, demanda.

Sem considerar os locais com difícil acesso a livros físicos (onde a internet provavelmente também não é lá essas coisas), o acesso das pessoas em grandes centros urbanos também vem aumentando. Há centenas de escritores independentes publicando suas obras na internet (ahem…) e mesmo os ebooks tornam o caminho da decisão de leitura até a leitura em si uma coisa de 2 minutos; não é preciso nem sair de casa, nem esperar o livro chegar via correios. E só ler.

O problema é que as mesmas mídias que tornam significativamente mais confortável ler em aparelhos eletrônicos (celulares, tablets) também são aquelas que facilitam o acesso a tudo o mais – vídeos, facebook, jogos. Se antes a leitura já entrava em desvantagem na competição com outras forças de prazer e atividade de lazer, essa competição não ficou mais fácil. Ficou pior.

Uma questão humana

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Photo by kevin dooley CC

Isso aponta para uma única conclusão: o acesso mais fácil ajuda, é claro; e ajuda em especial aqueles que tinham um acesso nulo ou quase nulo em relação aos livros. Só que é só pré-condição; o que vai fazer diferença mesmo é o fator humano. Pais, professores e mediadores de leitura.

Sobre os pais e professores já falamos: adultos em geral que, se realmente querem ter uma influência direta sobre os pequenos a que têm acesso, devem começar a ler imediatamente e integrá-los a essa vida de leitor. Integrá-los, sim: já falamos sobre como a jornada do livro é pessoal, e isso às vezes é um problema. A criança só quer brincar, e aí vê o adulto fascinado, fechado em seu próprio mundo do livro. Parece um negócio tão solitário, esse de ler – é preciso mostrar pra essa criança por que alguém escolheria essa atitude solitária de vez em quando; como é legal, e como ela nem precisa ser solitária, na verdade. Boom – contar uma história antes de dormir, compartilhar o que você está lendo, trazer livrinhos infantis pra ir incentivando… Isso tudo conta muito mais que ficar explicando que a leitura é importante para ela tirar 10 na prova. Senhor, infinitamente mais.

Você viu o que estou fazendo aqui, não é, caro leitor [dessa postagem]? Dando uma razão racional, que não tem a ver com o prazer de ler, para que adultos comecem a ler. Bom, estou partindo do pressuposto de que adultos são muito mais propensos a agir com base nas consequências de suas ações, visando fins de mais longo prazo e valorizando coisas para além do calor do momento. Então eu realmente não estou ligando se esses adultos vão gostar de ler tanto assim; eles precisam, pra gerar leitores que, no futuro, vão ter uma relação de amor verdadeiro em relação à experiência de ler. Encare como um pequeno sacrifício que, não sei, vá que os faça abrir o coração e descobrir que também gostam de ler, afinal de contas. E que (esse é um desafio maior ainda), sempre tiveram mais tempo pra investir nisso do que achavam que tinham.

E quanto aos mediadores de leitura? Esses são profissionais importantíssimos também. Sabemos que introduzir alguém à leitura não se trata de jogar qualquer livro para eles lerem. Trata-se de alcançar os interesses deles (com sugestões e convites) quando eles podem ser muito jovens ainda para saber exatamente o que querem ler. E é importante ajudá-los nas primeiras leituras, até que eles se sintam confortáveis para começarem a ler sozinhos. Não é preciso uma formação universitária para fazer isso, claro, mas estudos, e um certo conhecimento pedagógico, ajudam a tornar esse processo mais eficiente.

Capacitação é a palavra-chave: se queremos mais leitores, temos que investir na formação do tipo de profissional que vai ser capaz de tornar a leitura interessante. Ouvi dizer que vai ser gasto bastante dinheiro numa campanha midiática, por parte do governo, em favor da leitura. Pra quê isso, gente? Que impacto real vocês acham que vai ter algum ator global falando algo como “ler é legal para caramba, melhora seu desempenho escolar e é o que o Brasil precisa, um país é feito de homens e livros blá blá blá blá blá blá leia mais!”? Seria melhor se o ator em questão se deixasse fotografar por um paparazzi lendo um livro. É um fenômeno conhecido, especialmente quando envolvem celebridades do mundo infanto-juvenil, como, sei lá, Justin Bieber. Se ele for pego lendo um livro, muitas e muitas fãs que às vezes nem gostavam de ler antes vão ver do que se trata. O fanatismo pop tem um lado bom, também.

Mas, voltando à crítica da tal campanha, e de todo o dinheiro que vai ser jogado nela: o que é preciso é investir na rede grassroots de profissionais que estará no chão da escola, trabalhando com os alunos como indivíduos merecedores de respeito que são – jornada pessoal, sim? Não dá pra transformar o incentivo à leitura em questão de massa, porque a literatura é a experiência artística que mais desafia essa massificação. A relação é pessoal, e o incentivo também deve ser; nisso deve consistir o trabalho do mediador de leitura no dia a dia da escola.

Em tempo, capacitação envolve a valorização dos professores também. Não dá para pedir que eles estejam sempre lendo mais e mais coisas enquanto trabalham de forma intensa para ganhar salários péssimos. É preciso que eles tenham tempo, também, para ler, para poder indicar esses livros que leem, poder relacionar o que estão lendo com as lições em sala de aula (que, aliás, terão mais tempo para planejar…). No fundo, advogo por um modelo educacional radicalmente diferente desse. Mas, se for para trabalhar com o que temos no futuro próximo, acho que esse é o básico do básico.

Conclusão: não é uma questão de preço

E o preço? Sabemos que os livros, no Brasil, não são baratos. Se investigarmos a questão, vamos descobrir que a grande vilã dos altos preços dos livros no Brasil é a tiragem: como temos poucos leitores, vendemos poucos livros e os imprimimos em poucas unidades para que não encalhem e gerem prejuízo.

Nesse sentido, percebam, o preço baixo não é causa de maior leitura; só será possível enquanto consequência. Além do que, comprar um livro nem sempre é a única maneira de ler livros: as bibliotecas estão aí para isso, e a discussão sobre o fácil acesso volta a ser relevante – mas, atendo-me ao preço, é importante notar que enquanto continuarmos reforçando a ideia de que a leitura só vai decolar no Brasil quando os preços baixarem, o que estamos realmente dizendo? Que vale a pena pagar 30 reais por um jantar (40, 50, enfim; depende de quão chique é o restaurante e quão caro é o livro, e o triste é que nós pagamos sim essa quantia por comida quando podemos), mas não por um livro. E veja, há muitas comparações como essas, mas a do jantar é realmente emblemática; uma coisa que dura uma noite, contra uma experiência absolutamente repetível condensada num objeto (físico ou digital) duradouro.

Não se engane: quem está aprendendo as regras do jogo de viver está bem atento a essas hierarquias de valor, e a elas se adaptará. Não diga que os livros são caros – lamente o fato de não ter dinheiro o suficiente para comprar duzentos por mês. Ainda antes disso, separe efetivamente um dinheiro para comprar um capa dura, um livro de bolso, um conto digital por 1,99 na Amazon, qualquer coisa; qualquer coisa que valorize a literatura, para nós que a produzimos e para crianças e adolescentes para os quais você vai mostrar, não com palavras, e sim com gestos e atitudes, que ler é importante. Que é bacana. Que é gostoso. Que é bom.

O que fazer com Miró

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Photo by See-ming Lee 李思明 SML

No sábado, dia 19, fui com um amigo conferir a exposição “Miró – A força da matéria” no MASC (saiba mais aqui; entrada gratuita, mas preste atenção à questão dos horários), e da mesma forma que podemos nos perguntar o que fazer com a arte (visual / esculturas) moderna e contemporânea, pergunto-me de forma mais circunscrita: o que fazer com esse Miró?

A exposição em si é bacana e gostaria de parabenizar todos os envolvidos; o museu, que é bem organizado e bonito, e o governo do Estado por bancar esse apoio à arte (é bacana que seja de graça). O que não gostei tanto assim foram das obras; não achei nada supremamente espetacular.

Mas a conversa que isso suscita é bacana. Veja, eu entendo a força daquilo que não é verbal; que é abstrato, ou visceral – que é etéreo e parece suprasensível, ou que é justamente muito sensível e tem tudo a ver com nossos humores e calores. Entender não é bem a palavra; a natureza dessas coisas requer que não se entenda-as por completo porque, quando se faz isso, o que se está a fazer é traduzir essas forças em conceitos, e quando elas entram no mundo das palavras e do inteligível já não são o que eram. Então digamos que eu admirerespeite a existência dessas forças. Ainda assim, na prática, da mesma forma que me dou melhor com as crianças à medida que elas começam a “falar palavras de verdade” (e quanto melhor falam, melhor), me dou melhor com arte que trata de mensagens, representações, coisas que passam pelo filtro da consciência e ficam. Sendo assim, eu tenho problemas pra realmente admirar um monte de pingos, riscos, círculos e asteriscos em cima de uma prancha de madeira como se fosse uma coisa muito maravilhosa.

Perguntar o que deveríamos tirar disso, ou o que Miró queria dizer com o que pintava, não me parece proveitoso. Acho que isso sempre significa voltar a tentar delimitar e conceituar a arte em geral, e hierarquizar seus diferentes tipos, objetivos e métodos. Acho que há (e é óbvio que independente do que eu pense é claro que há) espaço para essa arte no mundo; a arte da experiência pura, ou que tenta evocá-la (embora… Será que ela consegue? Um risco qualquer num blank canvas consegue?), ou que talvez dependa precisamente de uma certa confusão do espectador (sente-se a frustração de nunca conseguir ultrapassar a barreira que a obra representa, e assim nunca vamos de fato sentir o que o pintor sentia, por mais que ele tenha querido expressar isso através da obra) ou ainda da tendência humana a procurar por sentido e padrões (como numa brincadeira com nossa húbris cognitiva).

Mais do mesmo, isso que estou dizendo? Talvez. Mas acho que é uma interrogação que não vai acabar tão cedo, e que continuará a ser relevante para quem, como eu (pessoas não tão ligadas às artes visuais, com a exceção do cinema), vê meio que como se pela primeira vez esse tipo de arte. Até porque é um tipo de arte que nos faz questionar: se até uma criança de 5 anos faz isso, por que isso é tão especial e reverenciado? Mas será que uma criança de 5 anos faria isso? Será que há alguma característica na forma como esses artistas “loucos” dispõem suas obras que, sem que saibamos conscientemente, as tornem mais impactantes e interessantes que as coisas que uma criança de 5 anos regular faria – ainda que, na superfície, os elementos visuais acusem grande semelhança?

De minha parte, agradeço o que esse tipo de movimento artístico dos séculos XIX e XX fizeram, inclusive pela escrita: desvincular o julgamento de valor julgamento estético de preocupações morais e da retratação mais angulada da “realidade” foi um grito de liberdade que nos permite explorar muito mais a conexão entre sentimentos, perspectivas, expressões, comportamentos e filosofias. Esse intercruzamento (trevo sempre engarrafado) é pra mim o principal lócus de construção da obra ficcional contemporânea. Ou, pelo menos, quando a obra se posiciona nesse lócus é que eu costumo achar incrível e interessante.

5 estratégias usadas pelos poderosos para fazer você odiar protestos

Esta é uma tradução do excelente artigo “5 Ways Powerful People Trick You Into Hating Protesters”, de David Wong, originalmente publicado em junho de 2015 no Cracked.

Digamos que amanhã você se torne o Ditador Secreto dos Estados Unidos, obtendo assim total poder sobre o governo, a economia e a cultura em geral – tudo que os hippies chamam de “sistema”. Sua primeira tarefa é não ter sua cabeça guilhotinada por pobretões enraivecidos, o que significa que sua primeira tarefa é na verdade a manutenção da “estabilidade” (ou seja, “manter as coisas mais ou menos do jeito como estão agora”).

Imediatamente você vai perceber que está enfrentando um número interminável de protestos por parte de grupos desconjuntados, que dizem estar sendo tratados injustamente ou estão de alguma forma sendo deixados “de fora” – esse aqui está incomodado porque alguém foi atacado pela polícia; aquele outro exige maiores salários ou coisa parecida. Como lidar com isso? Claro, você poderia esmagar esses movimentos com um punho de ferro, matando, intimidando ou prendendo seus membros mais importantes. Mas isso pode se voltar contra você, transformando-os em mártires e provando, ao mesmo tempo, que eles estavam certos – você viu Star Wars; alguém sempre acha a porta de exaustão.

Não, o que você precisa fazer é ter a maioria do seu lado, contra esses reclamões. Para a sua sorte, o “sistema” vem com uma série de sutis e refinados processos criados para fazer com que as reclamações dos poucos sejam certamente ignoradas pelos muitos. Primeiro, tudo que você tem que fazer é…

Esperar que um deles desrespeite a lei, e então só falar disso

Esse pode ser literalmente o truque mais velho de todos. Eu acho que os poderosos têm feito isso com protestantes e ativistas desde os dias em que ser dilacerado por um mamute era a maior causa de acidentes fatais. Funciona assim:

A) Um certo grupo tem uma reclamação – eles sofrem discriminação, tiveram seus direitos cerceados, tanto faz – mas são uma minoria.

B) Como a maioria não é afetada, eles ignoram em grande medida a situação e não se interessam pelo que está acontecendo com os afetados. A mídia de massa não fala do assunto, porque não dá audiência.

C) Pra chamar a atenção da maioria, o grupo vai se juntar para fazer barulho, bloquear avenidas, etc. Isso força a mídia a cobrir o protesto (já que multidões barulhentas dão bons fotos e vídeos) e cobrir o assunto (já que parte da cobertura jornalística do protesto envolve a explicação sobre o quê está sendo reivindicado). Nos Estados Unidos vemos essa tática ser usada por todo mundo, desde veteranos de guerra empobrecidos e mulheres em busca do direito de voto até os protestos quanto à violência policial de 2014.

D) Para conter isso, tudo que você precisa fazer é simplesmente esperar um membro do grupo ativista – qualquer membro – cometer um crime. Aí a mídia vai focar o crime, porque tumultos e vidros quebrados dão fotos e vídeos ainda melhores que protestos. A maioria da população – que teme, acima de tudo, o crime e a instabilidade – vai provavelmente associar o movimento com a violência a partir dali.

E) Você, em sua missão para evitar que o sistema mude, pode agora reenquadrar o problema não como uma questão de opressores contra oprimidos, mas de cidadãos contra bandidos – apoiar a causa deles significa apoiar a violência. A TV vai estar cheia de imagens de lojas de conveniências em chamas e vitrines furtadas, e nesse ponto a maioria vai dizer, com um sorriso esnobe, eu nunca protestaria contra a opressão governamental destruindo a propriedade privada de alguém!”.

“Quer dizer, por que eles não podem protestar de acordo com a lei? Sabe, tipo o Martin Luther King. É por isso que todo mundo o respeitava naquela época!”.

“E, vamos encarar a realidade, o fato de que eles estão apelando para a violência e para a destruição mesquinha de propriedade prova que eles não passam de criminosos procurando por uma desculpa para fazer arruaça!“.

Agora, perceba que nem as pessoas repetindo essas coisas vão acreditar nelas de verdade – a cultura pop dos Estados Unidos e a história da humanidade estão ambas cheias de heróis que desrespeitaram as leis e destruíram um monte de coisas quando o sistema não funcionava para eles (você sabe que o Batman não tem uma licença para pilotar aquele avião). Até hoje nós aplaudimos quando povos oprimidos de outros países fazem isso. Então quando alguém diz que devemos ignorar um movimento porque eles são uma “gangue” e um amigo comenta que o mesmo poderia ser dito dos fundadores da República dos Estados Unidos, vai haver uma troca imediata de marcha. “É sério que você está comparando os manifestantes de Ferguson com aqueles corajosos heróis que foram para a cadeia, como o Thomas Paine? Eles estavam lutando por liberdade!”.

Em outras palavras, eles vão rapidamente admitir que a legalidade das táticas na verdade não tem qualquer relação com o fato de uma causa ser justa ou não – tanto veteranos de guerra, que tiveram seus membros dilacerados, quanto neonazistas, foram jogados na cadeia por protestos que acabaram mal. Membros indomáveis de um grupo não tornam a causa automaticamente errada; tampouco a tornam automaticamente certa. Todos vão concordar que isso é verdadeiro e lógico, mas aí, cinco minutos depois, vão deixar de lado toda essa lógica se um único carro de polícia estiver pegando fogo. O índice de sucesso desta técnica é muito alto – hoje, a única coisa que a maioria das pessoas na China lembra do massacre de Tiananmen Square é que ele restaurou a estabilidade e a ordem.

“Mas já que os Estados Unidos foram construídos a partir de uma revolução, não seria provável que a maioria das pessoas automaticamente ficasse do lado dos menos favorecidos, mesmo que eles pisem um pouco fora da linha?” – Isso é certamente um perigo, e por isso o próximo passo é…

Convencer a maioria privilegiada de que eles são os oprimidos

Ano passado um investidor bilionário disse que a crítica aos ricos hoje é equivalente à perseguição aos judeus durante o holocausto. Não, ele não está tendo um infarto; ele está sob a influência de uma das mais poderosas técnicas de que o sistema dispõe. Para fazer com que a maioria ignore as reclamações de qualquer grupo em desvantagem, simplesmente insista que o grupo em desvantagem é quem realmente tem o poder, e que a maioria poderosa é, assim, o grupo em real desvantagem. Isso geralmente envolve os seguintes passos:

A) Encontre um exemplo de um membro poderoso do grupo em desvantagem e exagere seu poder.

B) Diga ou faça coisas incrivelmente ofensivas até que a vítima perca a postura, e então a acuse de censura / opressão.

C) Acuse a vítima de gostar de sua vitimização e / ou de fazer o que ela faz só pela publicidade. Diga que ela estava pedindo por aquilo, e que ela foi a causa de seu próprio problema desde o início.

Vou dar alguns exemplos da vida real, e acredite: uma vez que você entender essa lógica, vai começar a vê-la em todo lugar.

Digamos que seu país tenha um problema de pobreza que está se agravando rapidamente, e os empobrecidos estão começando a fazer barulho. O passo A requer que você insista que aqueles que estão mais no fundo do poço – aqueles que dependem da assistência do governo para comprar comida – são na verdade ricos. Isso pode parecer uma tarefa impossível, se não ridícula, mas tudo que você precisa é uma nota fiscal alterada no Photoshop mostrando uma enorme quantia de subsídio governamental para alimentação sendo gasta com bebida alcoólica, e a maioria vai compartilhar isso no Facebook centenas de milhares de vezes. Ou então, encontre um vídeo de um mendigo que foi pego dirigindo um carro de luxo, e isso vai sair nas manchetes como o exemplo típico de uma pessoa pobre. Depois vem o passo B: no momento em que alguém pegar você na mentira, vá para o argumento da censura ao dizer que você é um mártir atacado pelos “politicamente corretos”. E aí vá para o passo C, no qual você diz que os ativistas que estão apoiando as vítimas de seu ataque só estão fazendo isso por dinheiro ou atenção.

É só isso, na verdade. Três passos simples – exagere o poder da vítima para levar o público para o seu lado, faça com que a vítima se irrite para que você possa se declarar como vítima, insista que todas as reclamações das vítimas contêm segundas intenções. Pronto. Acabou.

E só para deixar claro, a narrativa acima – de que todos que dizem ser pobres são secretamente ricos – é novamente algo em que ninguém acredita. Ofereça a qualquer um que diga isso a chance de viver nos projetos de moradia pública, ou nos parques de trailers onde se intocam estas secretamente ricas rainhas do seguro-desemprego, e tudo que você vai ver é uma nuvem de poeira e uma minúscula silhueta escapulindo em direção ao horizonte. Mas você não precisa que a maioria das pessoas acredite mesmo nisso, apenas que a maioria “acredite” nisso.

E é por isso que isso funciona com qualquer grupo, não importa o quão ridiculamente a dinâmica do poder os favoreça. A indústria do petróleo tem um lucro anual de 200 bilhões de dólares. Se você quer que eles sejam retratados como os oprimidos, apenas A) fale sobre como esses pobres rapazes são constantemente atacados pelo poderosíssimo lobby ambiental…

… e, sério, não tenha medo de usar palavras como “bullying”, mesmo ao falar de quem literalmente constitui um dos grupos mais poderosos e ricos da história da humanidade. Uma citação de verdade: “Se alguém estava sofrendo bullying aqui, era a Chevron. Era quase impossível para uma empresa de petróleo ser ouvida de forma justa num mundo que sofreu uma lavagem cerebral ambientalista”. É claro que a parte sobre ser ouvido de forma justa já cobre o passo B, que é a acusação de censura e o lamento relativo à vitimização. Então, no passo C, você fala sobre como os ambientalistas só pensam o que pensam pelo dinheiro (nesse caso, Al Gore) e pronto – logo você terá várias pessoas olhando para a subida nos preços da gasolina e dizendo “Valeu, Greenpeace”.

E mesmo que só de mencionar isso eu já me canse, todo o negócio do GamerGate no ano passado é um exemplo perfeito. Um homem queria atiçar uma maioria esmagadoramente masculina contra uma desconhecida desenvolvedora amadora de jogos, então ele A) literalmente disse que ela estava sendo adorada como um “falso ídolo” que precisava ser derrubado, e então só para fechar com chave de ouro os abusadores começaram a dizer que ela era na verdade uma poderosa agente secreta numa missão de propaganda cultural em favor do governo dos EUA. Aí, B) quando a situação ficou tão ruim que ela teve que pedir por uma porra de uma medida cautelar, eles chamaram isso de censura. E, é claro, C) quando ela recebeu doações de pessoas que sentiram pena dela, eles declararam que isso era prova cabal de que tudo que ela queria o tempo todo era dinheiro.

Dez anos antes, eles fizeram isso com outra desenvolvedora chamada Kathy Sierra, seguindo exatamente o mesmo padrão. Essa jogada nunca muda porque nunca para de funcionar – com esses três simples passos você pode fazer com que multidões façam bullying com quem quer que seja em seu nome, e ao mesmo tempo se proclamem heróis. Afinal de contas, qual tática seria radical demais quando você está lutando contra um gigante invencível que está tentando te intimidar e silenciar todas as críticas em troca de fama e grana?

Concentre-se em suas reclamações mais triviais (e seus membros menos simpáticos)

Uma vantagem do seu papel como Ditador Secreto é que seus cidadãos estão cheios de informação até o pescoço. Notícias voam na direção deles por todos os lados, com muitas e muitas vozes exigindo atenção ou atitudes diariamente. Cada uma dessas pessoas bem intencionadas têm muitos problemas em suas próprias vidas, então elas têm que escolher cuidadosamente com quais “problemas” vão se preocupar e quais vão ignorar. Muitas delas vão tomar essa decisão bem rapidamente, com base na informação que estiver mais à mão. O seu trabalho, então, é garantir que elas sejam expostas apenas aos exemplos mais ridículos ou esquisitos do assunto ou grupo que você quer que desapareça.

O que quer dizer que você provavelmente vai querer se basear nos canais de notícias de TV a cabo.

Só para ser equilibrado (já que eu mencionei o GamerGate acima), deixe-me pegar um exemplo recente em que isso foi utilizado contra ativistas dos direitos dos homens. Houve um pequeno furor na internet quando o filme Mad Max: Estrada da Fúria foi lançado, resultando em manchetes como “Mad Max: Estrada da Fúria atrai a ira de ativistas dos direitos dos homens”, com artigos falando sobre como “a comunidade” dos tipos que defendem os direitos dos homens estavam praticamente pegando em armas contra o filme, organizando um boicote por causa do fato de que ele continha uma mensagem supostamente feminista junto à torrente de pessoas deformadas sendo aniquiladas em batidas de carros (dica: o Mad Max não é o personagem principal).

Eu ri quando eu vi essas manchetes e retuitei os artigos. Haha, esses merdinhas dos direitos dos homens ficam loucos por qualquer coisa! Mas alguns dias depois, um pouquinho de pesquisa revelou que, apesar do fato de que essas manchetes deixavam implícito um grande movimento nacional, o “boicote” foi na verdade um único maluco reclamando sobre o filme num site de direitos dos homens nada representativo. O homem em questão não é proeminente no movimento sob qualquer perspectiva – ele gasta seu tempo postando vídeos no Youtube que raramente passam das 2000 visualizações. Então por que a blogosfera disseminou suas baboseiras como se ele fosse um porta-voz importante do movimento? Porque isso fazia o movimento parecer ridículo.

Veja, ao ressaltar a reclamação mais boba de um grupo, você imuniza o público contra qualquer reclamação real que possa vir mais tarde, criando uma reação rápida de descarte a qualquer hora que, digamos, um homem reclama de forma razoável sobre como até os homens podem ser prejudicados por papeis de gênero ou quando outro tem uma história legitimamente terrível para contar. “Ha”, as pessoas vão dizer, “esses são os mesmos caras que ficaram chorando porque o último Mad Max teve uma mulher no papel principal!”. Não, não são os mesmos caras, a não ser que estejamos literalmente falando de Aaron Clarey. “Quem?”. Pois é.

Da mesma forma, há muitos grupos por aí cuidando do bem-estar dos animais, mas eu aposto que o único que você lembra é o PETA, porque são eles que fazem todo tipo de idiotice como insistir que as pessoas chamem os peixes de “gatinhos do mar” e protestar pelados, o que não ajuda ninguém. Dessa forma, quando alguém falar sobre coisas realmente horríveis que indústrias bilionárias fazem (como confinamento intenso ou pet shops vendendo animais criados em confinamentos cruéis), você vai rolar seus olhos e dizer “são provavelmente aqueles malucos do PETA de novo!”.

Como eles são ridículos, são eles que recebem toda a cobertura midiática e se tornam o rosto do movimento. E, como resultado, nenhuma mudança significativa vai acontecer.

Mais uma vez eu não preciso ficar falando sobre como isso é ilógico – a existência de uma reclamação frívola não automaticamente significa que não há outras, mais sérias, a serem encontradas na mesma direção. Uma pessoa que sofre de câncer ainda pode reclamar que seu programa preferido de TV foi cancelado; isso não significa que o câncer dela não deve ser grande coisa e por isso não tem problema nenhum não ser tratado.

Além disso, perceba que estamos sempre tornando a questão pessoal – como visto acima, você não fala sobre aquecimento global, você fala sobre Al Gore. Você não fala sobre racismo sistêmico, fala sobre a sonegação fiscal de Al Sharpton. Você não fala sobre desigualdade social, fala sobre como todos no Occupy Wall Street tinham iPhones.

Agora, parte do problema é que esses ativistas vão apelar para a simpatia da maioria do público, e isso é uma coisa poderosa considerando que a maioria de nós gosta de ver em si uma pessoa legal e bacana. Para contra-atacar isso, você simplesmente…

Joga um grupo em desvantagem contra outro (e somente um pode “ganhar”)

Como já falamos acima, a pessoa mediana tem pouco espaço no cérebro, e tempo no dia, para dedicar a “problemas” com os quais eles precisam se preocupar. Empatia requer energia, e temos uma quantidade finita para gastar. Bem, há uma maneira sutil de usar isso em sua vantagem: deixar implícito que de fato existe pouca empatia no mundo e que prestar atenção a uma reclamação vai de alguma forma diminuir a atenção de outra. Isso faz com que você possa jogar um grupo de vítimas contra outro, fazendo com que eles se matem por quinhões de atenção.

A beleza dessa estratégia é que até mesmo pessoas bem intencionadas caem nela – é por isso que o infame artigo sobre falsas acusações de estupro na Rolling Stone se tornou um assunto explosivo para ambos os “lados”. Qualquer fala sobre homens se ferrando por causa de acusações falsas de estupro (como esse cara que passou cinco anos na cadeia antes de tudo ser corrigido) deve significar que você está negligenciando vítimas ou está fazendo uma “apologia ao estupro“. Por que não é possível mostrar-se simpático a vítimas de estupro e homens que foram falsamente acusados? Porque não há tanta empatia assim no mundo para distribuir, droga!

Veja, isso significa que devemos nos focar apenas no problema mais sério entre dois, e coletivamente as vítimas de estupro são mais numerosas e ficam com consequências muito piores que pessoas falsamente acusadas de estupro. Expressar preocupação com estes últimos deve certamente indicar segundas intenções! A ideia de que na realidade as duas coisas têm um inimigo em comum – isso é, uma cultura que não faz ideia de como lidar com ataques sexuais – é deixada de lado. Sabe, mais ou menos como o racista pobre no parque de trailers e o negro pobre da cidade nunca poderiam considerar que ambos estão sendo desprivilegiados pelo mesmo sistema econômico, apenas de formas diferentes. “O quê?”, cada um deles vai dizer, “você está comparando o meu sofrimento com o dele?

Se você conseguir convencê-los de que eles estão competindo, eles vão gastar todas as energias odiando uns aos outros, e não tentando consertar o sistema. O cara no parque de trailers não culpa os banqueiros por sua economia, ele culpa minorias e imigrantes. Apenas um de nós pode ser a verdadeira vítima aqui, caramba!

O que isso também faz é incentivar a maioria a deixar de lado a reclamação de um grupo ao insistir que só fazem isso porque estão muito mais preocupados com outro problema. Se os pobres dos Estados Unidos reclamam sobre as altas taxas de desemprego ou os salários desvalorizados, é só falar sobre quão pior é a situação dos pobres na Europa e quanto menos os trabalhadores ganham na China. Se as feministas ocidentais reclamam agora sobre diferenças de salário ou direito ao aborto, você fala sobre como as mulheres de outros países sofrem muito mais (citação de exemplo: “Visite a página da Organização Nacional das Mulheres, o maior grupo feminista dos Estados Unidos, e veja que o principal assunto é o aborto. […] Enquanto isso, no Oriente Médio, as mulheres estão lutando pelo direito de ir à escola, votar, não serem forçadas a casar, e até a simplesmente poder dirigir um carro“). Você percebe o truque? “Não devemos fazer nada sobre o seu problema enquanto essas pessoas estiverem piores. Mas, por outro lado, também não vamos fazer nada sobre o problema delas”. Resultado: nada muda.

Ou, ainda mais estranho, você pode fazer com que as pessoas se recusem a simpatizar com a causa ao dar-lhes, em vez disso, uma que na verdade não existe – geralmente reativando uma versão que existia no passado. Diga que o feminismo “de verdade” era o das mulheres nos tempos antigos, lutando pelo sufrágio, mas que o “novo” feminismo é só sobre bobagem (veja, porque isso quer dizer que você totalmente estaria do lado das feministas no passado). Ou, ao mesmo tempo em que desacredita toda e qualquer causa dos negros, reitere que você estaria marchando bem ao lado de Martin Luther King se você estivesse lá nos anos 60. Sabe, quando o movimento ainda era respeitável. “Afinal, como é que essa gente faz tanto barulho por causa de índices de aprisionamento e educação sem qualidade quando linchamentos eram comuns antigamente? Então olha, eu vou ficar de fora dessa, mas se você achar uma máquina do tempo pode contar comigo que eu vou estar bem lá do seu lado, amigão!”.

É claro que você poderia usar essa mesma lógica para diminuir literalmente qualquer reclamação feita por qualquer pessoa no Planeta Terra, para sempre, desde que ela não seja a pessoa que mais está sofrendo no mundo (“Bem, eu conheço um cara que ficou com o pau preso num moedor de café duas vezes, e ele não faltou ao trabalho por causa disso!”). Mas isso funciona porque o seu público quer uma desculpa para não ter que ouvir sobre esses problemas, e essa é uma forma de eles fazerem isso e ainda sentirem que são boas pessoas. “Não é que eu não tenha empatia por nada! É só que eu reservo os meus sentimentos para coisas que eu não posso resolver”.

Diga que qualquer mudança é o fim do mundo

Essa é a falácia do “ame-o ou deixe-o”, e nossa, como ela funciona. Como Ditador Secreto com a tarefa de se certificar de que nenhuma mudança significativa ocorra, essa é a sua carta na manga.

Lembre-se, seres humanos são naturalmente avessos ao risco – as pessoas permanecem em trabalhos e relacionamentos ruins e mantém hábitos destrutivos por medo de que tentativas de consertar as coisas vão acabar pondo tudo a perder. É por isso que muitas pessoas têm medo de tomar anti-depressivos (“Claro, vai fazer com que a depressão suma, mas e se eu também perder as partes legais e diferentes da minha personalidade?”). Então, para poder usar esse medo a seu favor, tudo que você tem a fazer é retratar qualquer crítica ao sistema atual como um ataque a tudo que mais amamos na vida:

“Você está criticando a polícia pelo uso excessivo da força? Bem, então vamos ver o que acontece se os policiais não forem trabalhar!“.

“Você acha que deveríamos diminuir o tamanho do governo? Então por que você não vai viver na Somália, onde eles não têm governo?“.

“Você tem problemas com nosso sistema econômico atual? Vai para Cuba, seu comuna!“.

“Oh, você se preocupa com a poluição? Então você deve querer um mundo sem eletricidade!

É um truque bem simples – só ignore qualquer possibilidade que envolva a simples melhoria do sistema atual e afirme que para que nos beneficiemos dele precisamos aceitar todos os aspectos do status quo, incluindo as partes que destroem vidas. Não tem problema se você não conseguir apontar por que as melhorias são impossíveis, uma vez que as partes que processam medo no cérebro são inerentemente irracionais. “Apoiadores do casamento gay querem secretamente destruir a instituição do casamento? Claro, faz todo sentido para mim!”.

E agora você consegue entender como isso pode ser combinado com as técnicas acima. A violência durante os protestos apenas prova que o que essas pessoas realmente querem é a destruição de toda sociedade civilizada! E você, a maioria poderosa, é na verdade parte da corajosa última linha de defesa de tudo que é bom contra essas hordas de malucos irracionais! E por aí vai.

Lembre-se, é isso que as pessoas querem acreditar (ou “acreditar”). É por isso que, no mundo real, não é necessário um Ditador Secreto para fazer tudo isso acontecer. Com um empurrãozinho, as pessoas – mesmo as pessoas boas – vão fazer tudo isso sozinhas. É só olhar à sua volta.

Ser nerd é abraçar (certas) complexidades

“Reality is inherently complex; the simple never leaves the realm of the ideal, never arrives at the concrete.”
– Pierre-Joseph Proudhon

Eu estou numa cruzada. Às vezes isso me proporciona boas conversas, e às vezes me transforma num chato que se apega aos detalhes. Mas a verdade é que o que eu faço é parte decisão, parte reflexão e parte personalidade: sinto que é importante dizer, que é honesto dizer, e que é tipicamente nerd dizer, que o mundo simplesmente não é simples.

Isso pode parecer ponto pacífico, daqueles que faz o senhor que beberica bebida no bar em plena tarde de segunda-feira balançar a cabeça em silenciosa concordância. Mas a verdade é que na forma como experimentamos o mundo, adoramos a simplicidade. Ela é quase uma predisposição evolutiva: quanto mais pudermos “processar” sobre o mundo com o menor gasto de atenção, melhor – e assim “teorias de tudo” são tão atraentes. A partir de um único princípio universal, deriva-se e compreende-se tudo.

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Photo by NASA Goddard Photo and Video

Desconfio de (teorias de) tudo. Qualquer coisa que se apresente simples demais, de categorias a acontecimentos, merece minha repulsa instintiva, uma coisa do pâncreas mesmo, que sobe a garganta quase como uma vergonha alheia, ou um orgulho arrogante. Desconfio, exijo provas, desafio: a quem me diz que o mundo é preto e branco, tenho uma vontade louca de mostrar a imensidão colorida que nos rodeia e nos afoga. Acompanhar discussões de facebook é como navegar pelo arco íris, torcendo para que quem tenha dado a última palavra não seja a voz da monocromática e inconsequente simplificação do que quer que esteja sendo debatido.

Há óbvias vantagens para a simplificação. Ela é didática; é bela. Constrói pontes, é uma base poderosa, quiçá imprescindível, para amplos acordos, e enquanto ferramenta muitas vezes é o começo de um caminho que possa ampliar ainda mais nosso entendimento sobre a complexidade intrínseca a um tema. Porque sim, tudo é complexo: temos um certo asco ao difícil num mundo tão cansativo, e ao chato num mundo tão burocrático, mas difícil não é necessariamente complexo e complexo não é obrigatoriamente chato.

Mas pode se tornar, a depender de quem fala do quê; simplicidade pode ser feia também. É a estratégia universal para reduzir e escrachar; desumaniza uma ideia e rebaixa um humano. Subestima. Revela valores, porque não dá pra ver a complexidade de tudo – precisaríamos de vida (e disposição) eterna para tal tarefa – de modo que para ser capaz de entender, usar, curtir, distinguir, desfrutar e finalmente abraçar a complexidade, é preciso a paixão que nos dá foco e decisão; o sentimento que anima o nerd. O nerd é aquele cuja paixão por um tema o impulsiona para além da simplicidade. Enquanto muitos vêem Star Wars como aquela ficção em que acontece A e B, o nerd conhece detalhes, backstage e universo estendido. Enquanto muitos vêem arquitetura de uma forma abstrata e intuitiva, o nerd conhece a história da construção do Empire State Building. Enquanto uns lembram de Newton, outros percorrem as estrelas em busca de respostas. Enquanto uns sabem que “o homem veio do macaco”, outros ficam a vontade com as lacunas do conhecimento sobre a história da evolução das espécies.

Eu gosto da complexidade e sou seu tiete. Sou um nerd quanto à ficção e ciências sociais – e também filosofia, talvez a razão pela qual mesmo sem profundidade, procuro pelo menos me aproximar de qualquer assunto esperando encontrar complexidade e tentando, assim, aproveitar o calor suave e inodoramente humano de sua manifestação gloriosa.

É muito ruim advogar que o mundo seria melhor se mais pessoas fizessem o mesmo?

Mundos

surreal painting photo
Photo by Rookuzz.

Das obras de arte escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando amores. Dos nossos olhos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando preconceitos. É de preconceito e amor que são feitas as garras que nos arrancam os olhos, desnudam o ser, provocam conflitos. Dos conflitos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando um ser transformado, embebido em heroísmo, que se junta às milhões de faces que carregam nossos olhos.

O eterno retorno

“No pensamento do eterno retorno somos ensinados que o momento não pode ser separado do devir, ou seja, de tudo que foi e tudo que tornou o momento o que ele é. Portanto, ao desejar o momento também desejamos tudo o que levou até ele. Isso não significa que alguém simplesmente aceita, através de algum tipo de confiante, porém cego, fatalismo, qualquer coisa que exista porque já existiu, porque tem um passado. Afirmação não significa aceitação desprovida de crítica. O grande desafio que Nietzsche enfrenta é como ensinar a redenção através do ensinamento de que o desejo precisa aprender a desejar o impossível – tudo o que “já foi”. A redenção do desejo é obtida quando o desejo aprende que desejar o passado só é possível quando se deseja o futuro, ou seja, que a redenção do passado encontra-se no desejo criativo do futuro. Desejar o passado torna-se, assim, um ato constituído pelo ato de um novo desejo criativo. Tal desejo deve existir não como um sacrifício do presente em nome do futuro – esse seria o supremo ato de ressentimento e vingança – mas dentro do inocente momento que sempre fica à frente no futuro, garantindo a chegada do novo e do único. Redenção é apenas possível nos termos da vinda do futuro, onde o novo é criado daquilo que é velho; daquilo que já foi.”

Keith Ansell-Pearson

Existe ainda algo de novo para dizer sobre O Pequeno Príncipe?

Se tem uma coisa que adoro (e não sabia) é ser surpreendido por um livro clássico: digo, todo mundo já ouviu falar do Pequeno Príncipe. E quando a gente ouve falar demais em alguma coisa temos a impressão de saber muito sobre aquilo e, mesmo que eu não fosse capaz de fazer pra ninguém um resumo da obra, achava que já tinha uma noção do que me esperava. Mas não! A narrativa surpreendeu, e o que eu achava que era um prefácio acabou tornando-se silenciosa introdução. Well played, Exupéry, well played.

Safadinho.

Que livro mais encantador! É muito, muito legal – achei que fosse cheio de “lições de moral” (e, de certa forma, é), mas não é de forma alguma enfadonho ou bobo, mesmo nas partes mais melosas. No meio de sua fantasia descompromissada, de traços fofos – das aquarelas às letras – dá para se emocionar sem deixar de rir. Nem de pensar.

O primeiro detalhe que me surpreendeu foi a hostilidade (leve, claro) com os baobás. É que na pesquisa para o livro conheci as árvores e, devo dizer, são impressionantes! Tadinhas, seu Exupéry, por que tanta raiva em relação a elas? Saiba que no deserto (tudo bem, não cresce no deserto do Saara, mas mesmo assim) teriam sido fonte fácil de água para você. Teria sido uma ÓTIMA inserção na história – mas não se pode ter tudo, não é?

“Sou foda” – Baobá

Negócio legal do livro clássico também é que você fica procurando o tempo todo pelo “momento” famoso; é como saber que alguém vai tentar te assustar e você fica imaginando a cada esquina quando vai acontecer. Ou como ver Matrix e ficar esperando pela hora que Neo para as balas com a mão, ou ver Titanic e esperar pela hora… E agora, qual é a cena mais icônica? De qualquer forma, o que foi legal de refletir foi justamente a relação entre o famoso momento do “cativar” (que foi mais longo do que eu imaginava) e a forma como vivemos em sociedade (em oposição, talvez, a ‘em comunidade’?).

Porque cativar é criar laços – e outra coisa que a leitura de verdade desse livro me proporcionou é clareamento quanto a isso. Eu sempre fui um pouco ranzinza quanto a essa frase feita (tu és responsável por quem cativas, etc) – ora, pensava eu, cativar é criar um afeto, mas eu também não sou culpado se alguém se afeiçoa a mim. Tira essa responsabilidade de mim! Tira!

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Photo by elbfoto “Não demores assim, que é exasperante. Tu decidiste partir. Então vai!” – Adorei essa linha.

Mas a verdade é que esse é um posicionamento ético consistente com um ser-no-mundo que vivencia a empatia; que percebe que vive necessariamente em conjunto com outros seres humanos tão merecedores de carinho e atenção quanto qualquer outro. Veja, a responsabilidade é algo grande – ainda mais se for por alguém. Podemos não sentir dessa forma o tempo todo, mas às vezes podemos perceber isso (especialmente, e isso é triste, quando falhamos nessa responsabilidade). Então dá para ver o caminho que nós, avessos ao apego comunitário, trilhamos: eu não quero ser responsável por ninguém. Portanto, não posso concordar que essa criação de laços me faça responsável. Em último caso até evitamos a construção de laços; é mais fácil assim, que nem nos justificarmos teoricamente precisamos.

Temos sim responsabilidade. E isso dá medo. De certa forma podemos até ter pena dos personagens tão julgados pelo Pequeno Príncipe: todos à volta ou com a impossibilidade de criar laços ou com mecanismos para lidar com essa responsabilidade: o homem de negócios, o bêbado (e achei meio cruel zombar de um dependente químico dessa forma; não lhe ocorreu perguntar por que bebia? Foi a única parte que achei verdadeiramente triste, tanto na superfície do papel como por detrás dele), o rei, o vaidoso…

E aí chegamos à política, afinal de contas: a criação dos laços nos dota de responsabilidades sim, mas deveríamos mesmo querer criar laços (ou nos sentir enlaçados) com mais de 200 milhões de pessoas? Não é essa – se esses laços são a condição para uma virada cultural que nos faça sentir essa responsabilidade pelo rumo do país – uma expectativa nada razoável? Derrida reclama que Rousseau prioriza a fala à escrita quando repete a hierarquia metafísica básica da nossa cosmologia ocidental, mas Rousseau tinha sim um pouco de razão ao dizer que de fato as comunidades menores é que são boas, rapaz – quer dizer, não só ele: de Montesquieu a qualquer teórico anarquista vemos isso. Ademais, de que serve (para além da utilidade militar mesmo, coisa de “gente grande”, pra usar o linguajar do livro) nossa preocupação com a responsabilidade nacional se o máximo que isso acarreta é a influência que pessoas do Rio Grande do Sul exercem sobre outras, do Rio Grande do Norte, e vice-versa, sem nunca terem se falado, sem nunca terem se cativado? Não quer dizer que Derrida esteja errado em querer reabilitar a escritura, e o trabalho dele é essencial, mas… Nesse ponto Rousseau não estava idealizando nada não. Estava era bem lúcido.

Falei.

Por outro lado, essa pode ser só mais uma vontade de tirar de nós a responsabilidade – já vemos isso ser feito tantas e tantas vezes, não é mesmo? Todas as vezes que nossos flagelos sociais são relegados à delegacia isso é posto em marcha: temos que prender, matar, execrar, etc. Somos um pouquinho esse Príncipe, essa figura da nobreza que, mesmo que tenha se arrependido depois (acontecerá isso frequentemente entre nós?) abandonou a Rosa por causa de seus defeitos; que julgou aqueles que não estavam prontos para os laços, sem querer se envolver muito com eles, e foi embora. Só se quer ter responsabilidade com quem não precisa de cuidado: deseja-se que sobre só gente que mereça ser cativado, sem se importar (de novo, tira essa responsabilidade de mim!) com toda a conjuntura estrutural que leva a desigualdades, injustiças, etc. Mas, por outro lado, qual é o limite? Temos que nos deixar cativar só pelos brasileiros, ou pelo mundo todo? Ou só mesmo por aqueles próximos de nós (que é o que dá pra fazer), e o resto que se exploda, de modo que se todo mundo se tornasse esse Príncipe da noite para o dia mesmo assim não alcançaríamos a paz na Terra? A atitude adulta, ao invés de própria de um infante de classes privilegiadas, não seria assumir a responsabilidade de combater a injustiça e o sofrimento, especialmente o estrutural, onde quer que ele se encontre, ao invés de tornar-se responsável apenas por aquilo que se cativa?

Ou não?

E perdoar, diria Derrida, não seria somente perdoar o imperdoável? Pense nisso.

Outras coisinhas:

  • Me preocupa um pouco uma certa preocupação com o “ser único”. O autor-narrador vai ser o único que terá “estrelas que sabem rir”. Mas se ele não fosse o único, isso mudaria de alguma maneira o que ele sentiria? Digo, se houvesse outro sentindo essa conexão também, com outras estrelas? Cada um tem que ter a sua relação única com algo especial, pelo que entendi; mas compartilhar essa fonte de felicidade não é possível, ou ela só existe enquanto há exclusividade?
  • Aquele rei pode ser visto sob a ótica da antropologia anarquista de Graeber / ou dos trabalhos de Pierre Clastres e, ao mesmo tempo, de um aforismo muito bom de Nietzsche, o número 124 do livro Aurora. O cara manda, manda, manda, mas não pode ser obedecido – porque não tem, é claro, um aparelho coercitivo para fazer valer suas decisões. Aliás, é bom mesmo que o Príncipe não tenha dado muita bola para ele, porque toda essa conversinha de que o Rei tem direito de mandar porque manda com sabedoria, porque não exige de ninguém mais do que a pessoa pode dar, etc, é uma bela de uma bosta. Ah, e quanto a Nietzsche, aqui vai o que ele tinha a dizer:

O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?

Em suma, é um livro super recomendado. Não deixe de ler achando que é uma história manjada ou infantil. É mais complexa do que parece – ainda que seja, talvez, por sua simplicidade que ela tanto nos cative.