Uma das coisas mais divertidas de acompanhar à distância o que está havendo é ver o número de ocupações crescer nas últimas duas semanas de maneira espetacular. Eles postam levantamentos atualizados quase diariamente, oferecendo dados muito interessantes – com os quais resolvi brincar um pouco.
A seguir vai uma tabela contendo a data e a hora de cada atualização do movimento, junto ao número de escolas ocupadas anunciado. A seguir vão os recortes analíticos: quantas horas / dias de uma atualização a outra, com uma média de quantas escolas ocupadas por hora e por dia ao longo do tempo (clique aqui para acessar a tabela no Google Sheets).
Os dados que mais chamam a atenção: nas 319 horas e meia corridas desde a primeira postagem (que contabilizava, em 6 de outubro, 27 escolas ocupadas), tivemos em média mais de duas escolas ocupadas por hora. As horas mais agitadas foram no começo da tarde do dia 17 de outubro, com 25 escolas ocupadas por hora (gente, vocês têm noção do que é isso?)! Outros momentos quentes são o resto da tarde do mesmo dia (14,3 escolas/hora) e a tarde do dia 14/10 (15,1).
Em termos de dias a coisa também é interessante. O dia com mais ocupações foi ontem mesmo, dia 19/10, com 112. Mas nos dias 14 e 13 também houve um crescimento enorme, com 105 escolas por dia. Ao todo e em média, foram mais de 59 escolas ocupadas por dia nas quase duas semanas do movimento (59,46).
O gráfico de ocupações por hora permite visualizar melhor os picos de ocupação – embora, por incluir horários ociosos e ser mais dependente de dinâmicas locais, não nos diz muito em termos de tendências. O gráfico dos dias, por outro lado, indica talvez a existência de certos “ciclos”; é como se um crescimento significativo do número de ocupações causasse uma impressão positiva no alunado, que demora um tempo pra se organizar até que isso resulte num novo aumento, que então reverbera de novo – ou talvez eu esteja superinterpretando 13 dias de dados agregados (além disso, não é como se ocupações deixassem de acontecer entre dias de agitação; todo dia alguma coisa parece ter acontecido).
Agora, uma coisa que eu acho que dá pra ler com certa confiança é o aumento do ritmo: a ação coletiva tem um elemento de expectativas, como num sistema de apostas. Se dentro de um grupo não há certeza do sucesso de uma atitude, todo mundo fica com medo de começar. Mas se a coisa começa a dar certo, a experiência se espalha, encorajando e motivando o pessoal que podia gostar da ideia mas está em cima do muro. Seria interessante cruzar os dados com notícias específicas (decisões judiciais, por exemplo, contra a reintegração de posse; ou as declarações desastradas do Richa). A tendência linear está em ascendência; o ritmo não parece ter diminuído e não vejo motivos, a essa altura, para que diminua – a não ser por um: o fato de que, após algum tempo, a não-ocupação de algumas escolas pode significar que seus alunos já deliberaram sobre o assunto e não desejam realizar, em sua maioria, a ocupação. Isso implica ver as escolas não-ocupadas não como território inexplorado, mas como resistente à tática (haha, me lembra uma versão reacionária da “revolução copernicana” de Clastres: as sociedades tradicionais da América do Sul não como sem Estado, mas contra o Estado). Não tenho dados, no entanto, para avaliar se é agora que se chegou a esse ponto (e espero que não). Além disso, é claro, alunos contrários sempre podem mudar de opinião (… e vice-versa, causando desocupações).
Segundo reportagem, o Paraná possui 2100 escolas estaduais, embora 1525 delas ofereçam Ensino Médio (que números mais certinhos… Suspeito um arredondamento, mas a reportagem não indica isso). Considerando que alunos do ensino fundamental não ocuparão escolas (hehehe), o teto do movimento (sem contar as universidades e os núcleos de educação, outros alvos recentes) é 1525.
Sabe o que isso significa, né? Mais da metade das escolas estaduais com ensino médio no Paraná já estão ocupadas. A tendência linear, não é preciso dizer, é crescente.
E que tal brincar um pouquinho? Mantendo esse ritmo de ocupações (e eu ainda considerei todo o período, então o começo mais lento puxou para baixo o ritmo mais acelerado da última semana) sabe quando que podemos esperar ver o Paraná inteirinho ocupado? Dia Primeiro de Novembro. Se a primeira das 27 primeiras escolas foi ocupada depois do final de setembro, isso daria um mês.
Há alguns problemas metodológicos. Primeiro que não considerei as escolas desocupadas, que poderiam bagunçar um pouco os números até mesmo de um ponto de vista teórico (se uma escola é desocupada e logo depois volta a ser ocupada, devo contá-la, para medir o ritmo, como uma nova ocupação?). Segundo que eu não sei que tipo de projeção deveria usar, se a linear, exponencial (… Suspeito que não) ou a polinomial. Terceiro que, em termos de qualidade dos dados, eu fiz uma presunção operacional de que o pessoal do Ocupa PR incluiu as escolas nas atualizações assim que foram ocupadas – e pelo que eles comentam sobre o trabalhão que dá organizar essas informações, pode ser que os dias e horários não reflitam isso com precisão (por exemplo, uma escola que demorou três dias para ser incluída na lista vai prejudicar os dados). Ainda assim, olha, creio que é uma exploração preliminar interessante.
A planilha que usei como base para essa análise está disponível nesse link. (Update: vou continuar atualizando-a publicamente!) (Update 2 21/10: a página do Ocupa PR no Facebook foi tirada do ar e ainda não está claro qual tomará seu lugar, ou se ela voltará. A UBES aparentemente está contando ocupações do Brasil inteiro, mas o Ocupa PR fazia uma verificação por fotos e tudo o mais – o processo parecia confiável. O canal de notícias no Telegram também está quieto. Voltarei a atualizar a tabela se informações fidedignas voltarem a aparecer) (Update 3 24/10: … E eles foram hackeados de novo, depois de terem voltado à ativa) (Update 4 30/10: A página já está de volta há dias mas não há novas atualizações. O que intuo é que há menos ocupações e eles não querem dar sinais de fraqueza aos adversários, por isso evitam propagar um número que lhes seria negativo – o que é compreensível. Como coloquei ali em cima, foi só uma brincadeira projetar quando todas as escolas estariam ocupadas: nem todas as escolas concordaram com as ocupações.)
Você pode baixar e brincar com os dados você mesmo, ou inclusive ver se não cometi nenhum erro analítico / tipográfico. Encorajo, especialmente os ocupantes, a usá-la como ferramenta didática – dá pra aprender um bocado sobre “Excel”, funções, gráficos / interpretação de gráficos, etc.
Aliás! Professores, pais, acadêmicos, comunidade dos bairros e cidades… Não que eu precise mesmo dizer isso, na verdade, mas enfim: na medida do possível apoiem as ocupações ao colaborar com doações, sabedoria, carinho e também conhecimento: doem aulas. Neste link você pode se oferecer para compartilhar conhecimento e ajudar essa galera que não está aí à toa.(Update 30/10: em SC também há escolas ocupadas; na Grande Florianópolis são 4 e você pode doar aulas aqui) As escolas estão abertas, gente; os alunos estão ocupando e chamando junto, não entrincheirando. Esses alunos, posso apostar, jamais estiveram tão predispostos e animados para aprender. Não estou falando só com o pessoal de esquerda ou de humanas, não: ofereça também conversas sobre computação, matemática, física, química, biologia, engenharia, etc!
Essas ocupações valorizam autonomia, respeito e horizontalidade: elas funcionam porque mexem com as vidas desses alunos, mostrando para eles na prática como é possível uma política para (muito) além da lógica mercadológica, da lógica do Estado, das instituições representativas tradicionais (sim, e isso inclui partidos). E funciona também fenomenalmente como tática por ser não-violenta (dialogando bem com a população leiga em geral – adoraria ver pesquisas de opinião, no Paraná e no Brasil, sobre o tema; quem sabe em Novembro…) e por exercer pressão lá onde dói: o que ela significa, e as pessoas sentem, é que a hierarquia é desnecessária.
Construir alternativas que fortaleçam a comunidade no sentido não necessariamente de enfrentar instituições de dominação, como quem diz “odeio você!”, mas sim de construir instituições de contrapoder, como quem olha pro Estado – que agora pode estar vestindo a máscara de Temer, Richa, Mendonça, mas amanhã virão outros – e diz: “… Pra que diabos precisamos de você mesmo?”.
Existe uma certa resistência bem informada ao anarquismo. Não aquela ligada necessariamente a interesses, poderes, riquezas, status; é a resistência da pessoa comum que, mesmo com os valores forjados no medo particular que nos permeia, ainda julga com mais sinceridade a proposta anarquista e articula um medo social quanto a se perder na indeterminação da vida.
Eu não bebo (álcool). É bem verdade que o cheiro da maioria das bebidas alcoólicas já me dá razões gastronômicas para evitá-las, mas mesmo que pudesse (e disso não duvido) me acostumar aos sabores delas há razões mais profundas, ainda que nada filosóficas, pelas quais as rejeito afirmativamente. Digo que não “filosóficas” porque nada têm de morais ou pretensamente universais. São minhas, bem minhas, mesmo que por acaso as tenha em comum com alguém. E essas minhas razões se resumem ao fato de que gosto muito de minha consciência, muito obrigado. Tenho uma relação de amor e ódio com a anestesia, à qual certamente agradeço o fato de não ter sido obrigado a presenciar minha própria cirurgia de apendicite, mas que ainda certamente temo e prefiro não ter que experimentá-la de novo se possível. O fato é que me perder nos meus próprios descaminhos; soltar-me, confiando nos instintos que supostamente tomam as rédeas na ocasião da bebedeira ou intoxicação alucinógena – isso é algo que não gosto, assim como há quem não goste de baratas, de escuro, de altura, de palhaços.
TRIGGERED
Se essa é uma dinâmica particular, privada, individual, há também a forma como ela toma corpo nas relações com outras pessoas. Um motivo literário (um trope) bastante popular é o da pessoa que “tem medo de se apaixonar” ou “medo de se apegar” – ou, ainda, que tem dificuldades em relacionamentos porque é um “control freak” que não consegue lidar com certa indeterminação, com algum acaso, com o fato de que nem tudo pode ser controlado, previsto, checado e regulado. Os relacionamentos nos bagunçam; isso causa aflição. E essa mesma dicotomia entre regular e deixar viver encontra sua última expressão no campo social.
Certamente que não há nenhuma lógica que leve de A a B linearmente para todas as pessoas. Por mais que eu, por exemplo, não queira largar minha consciência, que pode não ser lá grandes coisas mas é minha, sou anarquista – e a filosofia política do anarquismo é aquela que preconiza o “let it go” grupal em que relaxaríamos de amarras e as interações sociais seriam menos mediadas, mais livres, mais soltas, mais ocasionais e mais casuais.
Isso é fonte de agonia e ansiedade para muitos. É disto que falo quando menciono os valores que podem, ao meu ver, legitimamente causar uma grande rejeição em relação ao anarquismo. E, por outro lado, é aqui que vejo uma grande distinção entre o anarquismo clássico e o contemporâneo – uma que começa com um mal entendimento sobre o anarquismo.
Em certo sentido esse mal entendimento é já um clássico. Anarquismo como bagunça, caos, desorganização. A anarquia é a ordem, já dizia Proudhon, mas já entenderemos como ele queria dizer outra coisa, creio. De qualquer forma, a confusão entre anarquia e caos (por muitas vezes nada ingênua, é claro) está na raiz dessa expectativa de que o anarquismo signifique relações desreguladas entre indivíduos, uma matriz de mônadas comunicantes que viria a substituir aquilo que entendemos por sociedade, Estado, família, etc. A “pulsão” anarquista, seu impulso e sua paixão, estariam na desagregação que forçosamente viria à tona com a dissolução violenta das hierarquias, opressões e tradições. O impulso, digamos, “republicano” (estatal, sim, mas ainda com certa preocupação quanto a uma tentativa de equilibrar diversos fatores da vida individual) ou “fascista” (uma pura vontade de ordem rígida, por mais que pareça uma abominação ressignificar essa palavra de forma tão rápida e leviana), esse quer construir, quer reformar, e quer principalmente regular, amarrar, estruturar.
O problema é que o anarquismo também pretende fazer esse tipo de construção.
O anarquismo clássico está mais próximo dessa aparente vontade de desregular (o “let it go” grupal), por mais “social” que possa ter sido, à medida que seu argumento em grande parte está ligado a um certo “naturalismo” otimista. Como Woodcock bem resumiu, havia essa ideia de que, se deixados sozinhos e sem recurso a uma autoridade, os seres humanos simplesmente se organizariam bem, sem violência. Mesmo anarquistas contemporâneos sentem a erupção desse pensamento, que os trai quando menos se espera. É o “procedimentalismo” que às vezes aflora do nada em Graeber, que diz “tanto faz; deixe as pessoas livres para decidirem por si mesmas e tudo vai dar certo!”. No episódio 27 do Solecast o convidado, membro do Ex-workers, comenta que a democracia é boa para concluir disputas, não mas para resolvê-las. Se nos livrarmos da democracia, ele disse, encontraremos melhores formas de resolver os conflitos.
É nesse sentido que o anarquismo clássico se volta para o objeto do medo daqueles que veem com grande desconfiança uma sociedade desamarrada. Por mais que estejam confortáveis com alguma organização social, essa organização não necessariamente precisa vir de um esforço consciente; ele “surge” como consequência natural de uma liberdade conquistada – naturalmente sem as estruturas de poder das “democracias”, encontraremos uma forma (não-violenta, positiva, não-destrutiva) de resolver nossos conflitos. Promover o anarquismo não seria promover um outro artificialismo, alternativa de vida que também deve ser construída paulatinamente – mas sim apenas devolver as pessoas às suas verdadeiras naturezas, que enfim poderiam se desenvolver sem o constrangimento das instituições de poder.
O que argumento é que o anarquismo contemporâneo entende que esse não é o caso. Que, como diz Graeber ou Nietzsche, temos vários instintos (não apenas os bons, naturais), mas isso não diz nada sobre nós por si só. O que importa são as estruturas que conseguimos construir para dirigir esses instintos, fazendo o possível para canalizá-los, redirecioná-los, mesmo hierarquizá-los.
Mas de que forma, então, separa-se o “controlacionismo” estatista daquele do anarquismo que entendo como contemporâneo? Seguindo a divisão de Graeber entre instituições de poder e de instituições de contrapoder.
O ponto de vista estatista é considerar que o grande perigo são os indivíduos, e assim constroem-se instituições de poder (prisões, polícia, exército, etc) para dominá-los. A visão anarquista é que o grande perigo é justamente esse pensamento, essa cultura, essa lógica, que cria um monstro auto-perpetuador, e desde a origem incontrolável – o Estado. O Leviatã.
A visão estatista é aquela segundo a qual deve-se usar de violência com vistas a manter a coesão social. A visão anarquista é aquela que pretende construir uma coesão social, mas não deseja fazê-lo por meio da violência – mas sim por instituições de contrapoder, isto é, sensibilidades, ideias, culturas. Uma forma compartilhada e deliberada de pensar que nos prepare para resistir à erupção de vontade de dominação entre nós. Formas compartilhadas de viver e conviver que, por meio de incentivos e reprimendas sociais, direcionem a ação estratégica dos indivíduos para o combate a atitudes e estruturas de dominação.
O anarquismo jamais se livra do otimismo – é quase um otimismo metodológico; contudo, há formas de aproveitar essa crença (tão justificável quanto a pessimista) em termos analíticos sem idealizar o ser humano ou desvalorizar a importância do artifício, do engenho na construção de sociedades livres.
Isso me leva a uma bifurcação textual que pretendo aproveitar para publicar dois textos aqui no blog. Uma questão que nasce disso é o papel da análise modelar dentro da teoria anarquista – em outras palavras, a possibilidade de uma teoria política anarquista (em contraposição a, digamos, o que o anarquismo historicamente é: uma filosofia política). É possível, mesmo desejável para anarquistas, discutir modelos abstratos de sociedade? Que valor têm essas discussões? Outra comunicação importante, fruto desse pensamento sobre instituições de contrapoder, é a questão dos direitos, das liberdades individuais (clássicos do liberalismo), num contexto como esse. Faz sentido falar em liberdade de expressão numa sociedade anarquista? Ou em direitos humanos? Como ficaria a questão da “tirania da maioria”? É sobre essas questões que pretendo falar em breve.
Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!
O que realmente acontece num encontro acadêmico
Na manhã da sexta fui ao “Participação política em múltiplos espaços: avaliando possibilidades e limites”, mesa debatida pela Vera Schattan Pereira Coelho. Antes de falar sobre o que ouvi ali, um aposto:
Aqueles comentários que fiz na terceira parte dessa série de posts, sobre a apresentação de San Romanelli, eu só as escrevi aqui – não falei diretamente para ela porque eu já tinha feito comentários para o Diogo e para o Renato, e a Raquel (coordenadora) estava implorando para sermos sucintos nas perguntas.
Eu não fiquei particularmente triste com isso – na hora. Eu tremo ao fazer perguntas, não necessariamente por causa da pressão de falar em público ou de falar com uma “personalidade” da área, mas porque fico pensando o tempo todo que os outros estão achando as minhas perguntas um saco e que estão querendo que eu cale logo a boca. Sendo assim, eu realmente não quero monopolizar a discussão e ser mal visto pelos meus pares. Mas depois vai ficando cada vez mais irritante o fato de você se esforçar para fazer a sua reflexão caber em dez segundos, quando o próximo na fila se alonga por três minutos. Você percebe que ele nem está apressado – o mínimo; não, ele vai devagar, diz um monte de “sem falar que também…”, etc.
Quase todo mundo que começa algum falatório com “bem rapidinho, só queria…” – não; todo acadêmico acha que consegue ser super rápido e sintético. E quase nunca é. Eu tive uma experiência desastrosa nos segundo e terceiro semestres da graduação (teve grupo que teve que apresentar seminário em outro dia por causa do meu, etc) e isso me deixou super consciente quanto à questão do tempo; me fez achar simplesmente desrespeitoso com todos não cumpri-lo (sério, minha apresentação demorou mais de duas horas). Dá ou não dá vontade de atropelar com um elefante quem, depois de pedirem por agilidade nas perguntas, pega o microfone pra falar por dois minutos e no fim diz que não tinha pergunta? Que “só queria agradecer a mesa, mesmo”? Nesse caso até levantei e saí da sala.
Depois, refleti: há toda uma dinâmica de poder nesses eventos. Quer dizer, não é bem uma dinâmica de poder – é um viés, e um bem razoável. Ninguém ia interromper ou reclamar da tal mulher que não queria fazer perguntas porque, bem, ou ela era a big deal naquela área de estudos ou era uma coordenadora da mesa, algo assim. O Bernardo, por exemplo, coordenador da área de teoria política, na última mesa de sexta chegou a retomar a palavra pra fazer mais uma ou duas perguntas – coisa que ninguém repreendeu; pelo contrário, riram-se todos. Já quando Diogo respondeu à minha pergunta na sessão de quinta, falei pra ele, da platéia mesmo: “até porque, né, Diogo, em tese amigo a gente escolhe, irmão não!”; 12 palavras em cinco segundos e eu já sentia mãos em volta do meu pescoço. Na sessão de sexta, inclusive, que o Bernardo fez as (ótimas, aliás) perguntas a mais, o Luis Felipe Miguel nem tinha me incluído na lista de questionadores após meu efusivo, pioneiro e hermionesco levantar de mão (hashtag chateado). Foi por maldade? Claro que não. Ele simplesmente não sabia o meu nome; os outros, que faziam perguntas, de certo foram a vinte congressos de ciência política (e bares subsequentes) com ele. Mas o efeito é o mesmo: tive que explicitamente dizer que eu também queria perguntar, ou seria ignorado.
Essa desconfiança toda desaguou numa grande iluminação espiritual que me veio à medida que eu ouvia as perguntas do resto do pessoal (naquela sessão do Miguel e do Bernardo). Enquanto eu ouvia alguém (da platéia) falar sobre um autor tal e tal, pensei: “cara, eu não tô nem aí pra essa pergunta”. E a grande verdade é que o universo das ciências sociais é gigante e nessas apresentações você tem uma diversidade já relativamente alta na própria mesa. Quando vai pra platéia, cada um dos ouvintes faz relações diferentes daquilo que ouviu com as coisas, os temas e os autores que estudam. E os que desejam falar vão tornar isso evidentes. Tirando algumas perguntas compartilhadas (quando perguntei ao Diogo sobre o negócio da fraternidade, ouvi uma mulher à minha frente dizer “isso, isso mesmo!”) e que se referem verdadeiramente ao texto que foi apresentado, a maioria das coisas que a platéia quer dizer são coisas de fora do texto (como todos os meus insistentes comentários sobre o anarquismo), altamente contextuais e que, portanto, pouco vão interessar aos outros.
Isso é estranhamente relaxante, acho. E libertador. E prático, também, porque é muito provável que os autores dos textos tenham pouco a dizer sobre essas perguntas apontadas para o que não está no texto. Assim, várias perguntas bem elaboradas podem atiçar a imaginação de alguns, contribuem para expansões e pesquisas futuras dos autores, e limitam o tempo de resposta dos próprios autores. Isso só é chato quando, no caso do Diogo e da San, por exemplo, adoraríamos ter visto alguma briga intelectual mais desenvolvida entre os que estão na mesa.
Na vanguarda da democracia
Bom, voltando à mesa: Lavalle fez uma apresentação bem técnica quanto à conexão entre instituições participativas (IPs) em várias cidades do Brasil (dele ouvi uma coisa fascinante: em geral, instituições participativas demoram de 9 a 11 anos, dependendo da cidade, para que tomem mais decisões práticas que decisões de autorregulação. Em outras palavras, passam 10 anos combinando como vão funcionar, para só a partir daí começar a funcionar mesmo). Roberto fez uma apresentação pessimista, ressaltando o quanto as tais IPs retrocederam nos últimos anos. Já Ricardo Mendonça, da UFMG (que vi duas vezes na sexta-feira, sempre fazendo boas apresentações) apresentou um estudo sobre as “jornadas” de junho de 2013 (nome que ele disse duas vezes usar de propósito, mas não entendi bem a qual crítica ele estava resistindo). Em geral, as manifestações eram um pano de fundo para ele discutir uma espécie de junção teórica entre agonismo e deliberacionismo – ou, no caso, defendendo um deliberacionismo que não dependesse de alguma noção de “consenso”.
As considerações que eu ia fazer para ele (mas fui embora) eram as seguintes: em primeiro lugar, o que se entende por consenso? Novamente, aqui, essa ideia de consenso como unanimidade pode ser retirada do dicionário, mas considero esse um conceito disputado. De qualquer forma, uma outra pessoa comentou que o problema está na tradução de Habermas, que nunca quis dizer “consenso”, e sim uma “compreensão mútua”, a nível racional, dos indivíduos envolvidos na deliberação.
Como ele afirmou durante a apresentação que houve alguma “responsividade” em relação às jornadas de junho, eu faria uma conexão com o que Ivo Coser apresentou na quinta (sua distinção entre ocupar e vigiar o poder), retomando a adição que fiz em relação a ignorar o poder. Existe uma diferença entre obter responsividade e querer responsividade, e embora em parte algumas coisas fossem de fato desejadas – como a diminuição do preço da passagem de ônibus – outras vieram com muita fraqueza. Ele disse, por exemplo, que as jornadas revitalizaram o debate pela reforma política. Eu só gostaria de perguntar para ele quando é que o Brasil não discutiu reforma política em toda sua história republicana recente.
Mas o principal mesmo é que ele pareceu indicar que houve uma dimensão deliberacionista (mas ao mesmo tempo agonista à medida que havia presença de um conflito que, no fim, mostrou-se saudável) mesmo nos resultados do movimento. Lembrando um pouco da questão “interinstitucional” do Francisquini, me pareceu que o elemento “deliberacional” das jornadas levou os políticos a reagirem, o que foi positivo. Eu queria perguntar para ele se ele não achava que uma “violência potencial” não lhe parecia no mínimo igualmente responsável por qualquer resposta que o sistema político tenha evacuado em relação a junho de 2013. Porque ficou parecendo que os políticos, seres racionais e bondosos, resolveram ter a simpatia de ouvir a população.
À tarde eu queria muito ver duas sessões que ocorriam ao mesmo tempo: a “Protestos, movimentos sociais e democracia”, debatida pela professora da UFSC Lígia Helena Hahn Lüchmann, e a “Violência, poder e institucionalidade: perspectivas teóricas”, debatida pelo Luis Felipe Miguel. O que eu fiz foi fatiá-las; vi três da primeira sessão, que eu realmente queria ver, e saí para pegar as duas últimas da segunda, que considerei as mais interessantes para mim. Vou falar primeiro da primeira sessão.
O Ricardo Mendonça falou sobre a compreensão da democracia entre manifestantes das jornadas de junho. Foram feitas entrevistas em profundidade, em SP e MG, depois de um survey mais amplo executado em dias de particular agitação. Uma coisa que me chamou atenção foi que as preocupações com as regras (o procedimento) diminuiu; elas são, agora mais que nunca, consideradas ineficientes. Ricardo até brincou que os pesquisadores que sempre gostaram da participação e da deliberação agora se veem defendendo as regras da forma de governo democrática – a importância das eleições e da representação, por exemplo.
Márcio Grijó fez uma apresentação semelhante, mas ele falou várias coisas interessantes tão rápido que não consegui anotar nada – só anotei mesmo que precisava baixar o texto dele, se possível, para reler aquilo. Uma coisa que ele mencionou é que as pessoas desejam bons governantes, não creem que eles existirão no futuro próximo, e de qualquer forma não querem os “custos de vigilância” – ou seja, o investimento cognitivo e de tempo em termos de informação sobre política, fiscalização dos eleitos, etc. Só comento que isso não deve (e o autor não o fez, mas mesmo assim) ser usado como alguma espécie de dado que “comprova” uma “natureza humana” em que as pessoas simplesmente não foram feitas para a liberdade política. Esperar de pessoas desiludidas com a política institucional, em meio à vida embrutecedora que o trabalho capitalista lhes impõe, que se envolvam profundamente com a política ou que queiram fazê-lo… Seria esperar demais, é claro!
Mas incrível mesmo foi o trabalho de Francisco Mata Machado Tavares e Ellen Ribeiro Veloso. Tenho que tirar meu chapéu para eles; embora pelo tempo reduzido eles não discutiram muito os resultados, o que eles falaram sobre a base teórica dos movimentos sociais foi interessantíssimo (que, por exemplo, os trabalhos dos cientistas sociais sobre eles é idêntico a relatórios policiais, de inteligência, de espionagem). Além disso, eles são bacharéis em direito e atuaram como advogados dos alunos secundaristas que ocuparam escolas em Goiânia em 2015. Foi uma apresentação realmente enriquecedora.
Alguns colegas republicanos meus (nomeadamente, meu orientador) creem que o republicanismo será a teoria política abrangente do século XXI. Eu não duvido, em se tratando de academia. Mas acho que será a teoria política da elite – porque em todo lugar do mundo em que há movimentos populares, mais e mais eles se aproximam a princípios basilares do anarquismo. Ele pode não surgir com esse nome, mas não tem problema nenhum. O que vale é o conteúdo, não o rótulo.
A violência na política
Como a primeira a falar na sessão de que falei acima não veio, o tempo contribuiu para que eu mudasse de sala e não só visse as duas apresentações que pretendia ver como também visse a da minha colega de UFSC, Karen Elena Costa Dal Castel, doutoranda que falou sobre Maquiavel e Chantal Mouffe.
O engraçado é que eu não achei que essa apresentação ia ser muito relevante pra mim; simplesmente não me interessei o bastante por seu título para achar que eu tinha que estar lá para ouvi-la. No entanto, assim que cheguei, viajei no que a Karen estava falando e comecei a rabiscar várias anotações. A explosão de sinapses me levou a algumas considerações preliminares; coisas a quais certamente voltarei mais tarde.
Para Maquiavel (apud Karen, se bem entendi) a igualdade vem do conflito entre diferenças, conflito este que cria as leis (o que me lembrou imediatamente da necessidade de império dos liberais). A liberdade existe enquanto o povo continuar querendo (apenas) não ser dominado e a elite continuar não dominando-os, apesar das pulsões da elite em fazê-lo (nessa parte confesso que posso ter me confundido ao ouvi-la, mas acho que é isso). A crítica anarquista clássica – e acho que é por isso que eu viajei nessas ideias; eu tinha acabado de ler um pouco do compêndio de Woodcock – é a de que eles sempre vão querer dominar se houver as condições institucionais para tal; os “cargos” que são por definição, por função, para “dominadores”. Para Bakunin, isso se trata de uma questão de perspectiva; o poder corrompe, e portanto os poderosos terão sempre a perspectiva do poder, que causa a dominação. Para mim, tem a ver também com expectativas sobre os poderosos. Se a lei serve para nivelar, para tratar igual, e se o poder existe para mantê-la à base da espada se necessário, então um povo que subscreve a essas ideias cobra do poder que haja alguma dominação, alguma violência, algum uso do poder – o ensaio “Shooting an elephant”, de George Orwell, é magnífico para falar sobre isso.
Na crítica anarquista contemporânea, por outro lado, encontro as instituições de contrapoder de um Graeber ou Negri – este último, inclusive, justamente criticado por Ricardo Silva por ver em Maquiavel uma aprovação disso. Contudo, acho que da perspectiva de que a liberdade viria das instituições de contrapoder, Maquiavel realmente entendeu bem essa dinâmica – o povo não quer ser dominado. A diferença (e aqui concordo com o Ricardo Silva) Maquiavel não acreditava (ao menos textualmente) na possibilidade de não haver uma elite governante, ou instituições de poder. A vontade de não ser dominado era passiva; uma força que irrompia em momentos de dominação para reclamar um estado de não-dominação (ou, o que era péssimo para Maquiavel, se transformava na vontade do povo de dominar – e aí vinha a barbárie). Mas uma vontade ativa de não ser dominado geraria atitudes, instituições, organizações que visariam evitar a consolidação de, digamos, um Estado. Falemos das sociedades estudadas por Clastres, por exemplos. E é claro que aqueles que desejam dominar não deixariam de existir sempre; como disse o antropólogo anarquista, toda sociedade está em guerra consigo mesma.
De qualquer modo, arranjei isso rapidamente nos minutos em que ouvia a Karen falar. Depois foi a vez do Pedro H. V. B. C. Branco (para encurtar seus muitos sobrenomes). Ele falou de forma exploratória sobre o tema da violência – como ela foi relegada ao segundo plano da teoria política contemporânea (cof cof deliberacionistas cof cof); como o fundo violento do homem racional foi escamoteado. Ele falou de Arendt, da banalidade do mal, da violência como técnica; da dimensão simbólica da violência; da distinção entre poder e violência, entre vigor e violência, entre terror e violência (muito brevemente); entre violência e guerra. Falou também sobre o nosso contexto contemporâneo, em que várias circunstâncias tornaram difícil a concepção clara quanto ao difuso e sempre presente “inimigo”.
Acabei fazendo para ele o comentário que queria ter feito ao Ricardo Mendonça sobre a violência potencial como fundo de muito que se passa por política pacífica no mundo contemporâneo. Comentei também algo que ele disse sobre Arendt e a banalidade do mal – que era inovador encontrar o violento que não fosse a encarnação do mal, mas simplesmente alguém que estava cumprindo ordens. Ora, falei, isso não é novidade nenhuma para anarquistas, que haviam entendido o monopólio da violência do Estado como razão para rejeitá-lo. Mas, acima de tudo (especialmente porque peguei seu e-mail e pude fazê-lo adequadamente), sugeri que ele desse uma olhada no texto “Bullying: sobre a estrutura fundamental da dominação“, do Graeber, em que ele basicamente diz que ao invés de sermos uma espécie particularmente belicosa, somos na verdade bastante ruins em reagir à agressão. Quanta diferença em relação ao Freud que apareceu na próxima apresentação, a de Marcelo Gantus Jasmin; o Freud da pulsão violenta irresistível calcada no inconsciente.
Mas o legal mesmo ficou na resposta de Ricardo Silva às questões que lhe foram dirigidas. Eu não peguei sua apresentação, e realmente não era necessária porque foi basicamente um desdobramento de um argumento que eu já o ouvi fazer em mais de quinze minutos numa reunião do NEPP. De qualquer modo, Luis Felipe Miguel perguntou se ele não estava ignorando demais o lado “black block” do Maquiavel. Outra pessoa (talvez o coordenador Bernardo), questionou como, afinal, se mudavam instituições corruptas.
A resposta do Ricardo me foi profundamente insatisfatória. Em primeiro lugar ele citou uma passagem de Maquiavel em que o italiano conta como a plebe pegou um pessoal da elite corrupta, pendurou-o de cabeça para baixo na praça e foi comendo ele (não sexualmente falando) de pedacinho em pedacinho. Eu fui obrigado a corrigi-lo, lembrando que a tática Black Block não tem e nunca teve nada a ver com matar pessoas – ao que outra pessoa na mesa veio com uma de que eles “indiretamente mataram”. How precious! Me pergunto se usaram alguma máquina de Rube Goldberg no assassinato ou coisa parecida.
De qualquer forma, Ricardo foi taxativo: para transformar uma república corrupta, deve-se seguir as leis… A não ser que ela seja muito corrupta, e aí nesse caso a violência torna-se legítima. Bom, mas como é que se decide se o nível de corrupção já está alto o bastante para justificar a violência do povo contra a oligarquia? Não seria o maior esforço de um governo corrupto fazer tudo a seu alcance para criar uma imagem de legitimidade? O próprio Dahl não argumentou que é impossível provar que o jogo democrático é um jogo de cartas marcadas? Em suma, se esse for o parâmetro para avaliar a legitimidade da ação violenta em busca da liberdade, ele se quebra em dois no momento em que passa a vigorar. O que sobra é o fato de que os vencedores escrevem a história, justificam as ações violentas do passado a partir de um certo limiar de alta corrupção que os governantes anteriores teriam cruzado, e a posteridade interpreta esse enquadramento at face value. Acho que tem algo que não fecha aí.
O kebab e o fim da linha
No último dia de minha estadia em BH, comi um “kebab” no shopping, cedi à tentação de levar mais um livro da feira por 4,90, e comecei a escrever esta série de posts que termina por aqui.
Esse encontro foi realmente incrível. Claro, praticamente pausar a vida por uma semana sempre acaba nos fodendo o cotidiano pelos dias vindouros, mas é realmente muito bom conhecer outros nerds da ciência política; novas ideias, novos olhares para velhas ideias… É oxigenante.
Espero que tenham gostado desse meu relato bastante subjetivo – e que ele possa ter servido, quem sabe, para vossas próprias reflexões. Se esse foi o caso, inclusive, considere comentar abaixo, ou nos posts relevantes da série, as suas impressões!
Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde
A ideia de “Broken negotiations”, de Charles Tilly.
O livro “Estado de exceção escolar”, mencionado na apresentação sobre as ocupações dos secundaristas em Goiânia.
Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!
Pôster e Dona Preta
De manhã não tinha nada que me chamou muita atenção, então pude dormir mais (compensando o fato de ter ficado até tarde no lobby do hotel lendo Woodcock e Ranciére). Levantei “cedo” só pro café da manhã mesmo e pra pendurar o meu pôster.
Resolvi que não queria shopping de novo e procurei no Maps lugares em que “os locais comem”. Achei um restaurante aparentemente simpático a 500 metros do hotel; tinha um laguinho com peixe e tudo. Descobri um buffet mais barato que no shopping e uma comida que é uma delícia. Dona Preta, o nome. Com suco natural também, um ótimo laranja com abacaxi.
Apresentei o pôster junto a outras pessoas da mesma área. Trabalhos interessantíssimos, diga-se de passagem; um alô para a Mariani, o Mateus, a Anne e o Leonardo! Parabéns para nós, pessoal! Ah, e também um agradecimento para a Gabriela Tarouco, nossa debatedora, super querida. Os quarenta e cinco minutos passaram voando.
Direitos humanos internacionais
Se a primeira coisa que mais me impressionou na produção acadêmica é a presença de Habermas, a segunda foi o quanto ainda falam de Rawls. Sim, você sabe que Rawls foi relevante em sua época, mas nem desconfia do quanto não deixam esse cara em paz até ir num congresso como esse e ver uma infinidade de coisas sobre teoria da justiça, sempre com referência a ele.
Na minha PIBIC com o Ricardo Silva acabei lendo dois livros que me influenciaram em particular na direção de não gostar muito dele, o Liberalism and the Limits of Justice e o Democracy’s Discontent, ambos do Michael Sandel. Filosoficamente falando, ele destrói o Rawls – ainda que reconheça a engenhosidade do argumento, como ressaltou o Diogo Tourino. A mesa que eu vi, aliás, foi composta por ele, Alvaro de Vita, Renato Francisquini e San Romanelli Assumpção, tendo Rúrion Melo por debatedor.
Alvaro falou sobre justiça global no contexto de direitos humanos. Uma visão minimalista dos direitos humanos é muito fácil de cumprir e impossível de violar, citou ele; isso tem a ver com um tal de Grifin (ou Griffin?), autor que compôs uma noção “minimalista” de direitos humanos internacionais que serviriam como “constraints” (limites) aos Estados quanto a questões-chave. É uma noção minimalista porque, para não entrar em conflito com peculiaridades e especificidades da soberania de cada Estado nacional, procura-se estabelecer padrões mínimos do que são os direitos humanos. O problema, como especificado ali na anotação, é que se os direitos tiverem tão pouca substância, fica difícil você argumentar que eles foram violados em uma dada circunstância, e aí deixam de ter efeito real.
Essa é uma discussão tão interessante! Afinal, a própria interpretação do que significa “ter direito a algo” é super complicada. Ter direito a alimentação saudável significa que ela só precisa existir em algum lugar, e você é que tem que ir buscá-la, não importa quão difícil, caro, complicado? Ou significa algum esforço específico por parte da coletividade (infelizmente em geral entendida como “o Estado”) em direção à ampliação do acesso à comida mais saudável possível? Ter direito à moradia significa que um Estado pode simplesmente dizer “olha, fazemos o possível para que a economia funcione direito e todo mundo possa ter um lugar pra morar” ou significa que, caso verifique-se que alguém no momento não tem onde morar, o Estado tenha obrigação de providenciar um lugar? Para mim as primeiras opções são sempre cínicas, considerando o capitalismo em geral, mas certamente possíveis do ponto de vista operacional-lógico tendo em vista o fraseamento dos direitos humanos.
Não é à toa que o tal Grifin se foca naqueles que são mais óbvios, como “não massacrarás uma etnia inteira“. E tem outra complicação: a mediação que o Estado faz esconde outras alternativas, em outras configurações, porque agora “ter direito a algo” significa sempre um pedido de “por favor” a alguma autoridade; parece-me até que falar de direitos no contexto não-Estatal sequer faz sentido (não porque você não os teria, mas porque não precisaria deles para ter acesso ao conteúdo deles). É uma complicação danada o fato de que os direitos muitas vezes servem para proteger o indivíduo do Estado (como uma concórdia com os anarquistas de que o perigo mesmo é o poder estatal) e no entanto é o próprio Estado que deve “realizá-los”. Hmm…
Anotei isso aqui mais pro final da apresentação do Alvaro: “direitos humanos internacionais não podem ser aqueles do Rawls distributivo, porque o mundo todo não pode se responsabilizar pela execução dos direitos; têm que ser direitos de emergência”. Em outras palavras, já que o mundo está configurado principalmente em termos de Estados, direitos substantivos seriam extremamente complicados de garantir sem interferências perigosas. Mas, anotei em seguida consoante à fala do Alvaro, “o que se perde deixando de exigir algo mais substantivo?”
Comunitarismo, Rawls e o maldito ponto cego
Então veio Diogo Tourino, que no meio de tanto liberal Rawlsiano veio falar a partir de uma perspectiva “comunitarista”, usando Sandel como aríete e puxando Aristóteles como fonte para sua reflexão sobre a amizade. Com um texto chamado “das formas não-contratuais de obrigação política”, ele quis discutir o seguinte: para termos uma república funcional, temos que reviver a capacidade de fazer vínculos de simpatia. Isso se contrapõe ao modelo contratual – que é um método que se utiliza de artifícios racionais, com base no “indivíduo acabado rawlskantiano” e na ideia de pacto para construir a obrigação política. Isso, obviamente, não vem de Rawls; está presente em Hobbes, Locke, Rousseau, etc. Um texto que escrevi como avaliação para uma disciplina no primeiro semestre fala também sobre isso, mas a partir de uma perspectiva anarquista (o que faz, como veremos, toda a diferença). Quem sabe publico-o aqui depois.
Para Diogo, a pior consequência desse contratualismo é que ele fragiliza a obediência ao regular o mundo público pela lógica privada do contrato. Mas, pior do que isso, como brilhantemente argumentou Sandel, ele presume (ou deseja) uma certa neutralidade e um certo modo de ser humano que não é possível ou desejável.
Tomar uma decisão, continuam minhas anotações, não é um ato autônomo livre, mas sim uma (re)interpretação da própria história daquele que decide – uma que não se faz necessariamente no isolamento da individualidade. A amizade, mais do que uma forma de gostar, é uma maneira de conhecer; levar a sério as deliberações dos meus amigos quanto à minha história, quanto àquilo que devo fazer, significa deixá-los afetar a minha identidade. Em outras palavras, a república precisa desse tipo de sentimento para consolidar o espírito público de comunidade, sem o qual ela se enfraquece de várias formas.
Aí veio San Romanelli, que já começou com um chute na boca falando que era “belicosa” e tava ali pra discutir mesmo (adoro). Seu texto, chamado “propósitos inconciliáveis”, pretendia dizer que não tinha como conciliar o liberalismo e comunitarismo, como vinham querendo fazer alguns autores que queriam ter o melhor dos dois mundos (ah, esse pessoal do “deixa disso”…).
Ela faz algumas provocações interessantes – e outras nem tanto, na minha opinião. Ela argumenta, por exemplo, que alguns críticos dos liberais atacam “questões de ontologia” ao falar de “questões de defesa”, ou vice-versa; em suma, eles marretam os elementos errados da teoria, confundindo-os. Para mim, pessoalmente, tanto faz se foi o ombro esquerdo ou o direito o atingido; a bala pegou, e fez estrago. Falta de rigor? Talvez. Parece mais o liberalismo querendo jogar com as regras debaixo do braço. Mas o que mais se poderia esperar de procedimentais, não é mesmo?
Ela veio com um argumento justo sobre o fato de que algumas coisas que os comunitaristas criticam nos liberais podem também ser usadas para criticar o comunitarismo – e isso é absolutamente razoável. Mas isso aqui não é uma equação; o fato de que a crítica se sustenta para o outro não a cancela dos dois lados. Pelo contrário, ela permanece relevante contra o alvo original. Mas, de qualquer maneira, uma vez que você fica confortável como uma certa indeterminação das coisas, a faca de dois gumes que algumas críticas constituem não é realmente um problema. Nenhum sistema é lógico enquanto proposta política porque sempre trata de uma questão de valores.
San pergunta: “que comunidade é essa em que a auto-identificação com uma noção de bem não é excludente ou coercitiva?”. Contextualizo: para os comunitaristas, a discussão política deve envolver valores, isto é, não se pode esperar que uma comunidade discuta apenas o que é “certo” em vez do que é “bom”, deixando para a esfera privada apenas o que cada um quiser entender por bom (para sua própria vida). No fim, inclusive, ela aproveita seus quinze segundos de resposta aos comentários do público para dizer que considera o comunitarismo mais conservador que seu liberalismo.
Mas a resposta, San, é muito simples. Que comunidade é essa que, apesar de confortável com a discussão de valores, não é excludente ou coercitiva? É a ANARQUISTA, porra!
O problema é a droga da obrigação política de que eles tanto falam, seja em termos de contrato ou de “amizade”. Na perspectiva da comunidade obcecada com a unidade, com o processo decisório majoritário e com o reino da lei, é óbvio que é um perigo trazer a discussão dos valores para a arena pública, uma vez que essa arena se confunde com o Estado, o campeão da coerção e da violência (“em toda a parte e sempre”, escreve Tolstói, “as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da liberdade e assassinato”). A conversa é absolutamente outra sob a luz de princípios e objetivos anarquistas.
E aqui está o ponto cego da ciência (e principalmente da teoria) política. O pessoal não conhece o anarquismo, não quer saber do anarquismo, e isso é simultaneamente uma pena, uma burrice, e um problema conceitual. É uma pena porque, oras, é como uma comunidade de pintores que se recusa a usar uma cor de tinta; de músicos que não querem tocar um Fá sustenido; de cineastas que não querem usar fotografia hand-held. É uma burrice e um problema conceitual porque lhes causa um ponto cego que limita perspectivas. Alguns “problemas” e “desafios” da teoria são absolutamente não-triviais quando a perspectiva ácrata entra em cena, e discutirei isso em alguns outros momentos – porque a grande maioria dos comentários que consegui fazer para os autores têm a ver com isso.
O ideal de justiça de Rawls não é (só) o ideal da convivência plural. É o ideal doimpério, que tem que fazer valer a paz do mercado em meio à diversidade; como disse San (se entendi bem), uma certa noção de indivíduo é para Rawls não ontológica, mas normativa. Sim, é o que esse liberalismo deseja produzir; pessoas que retiram voluntariamente discussões de valor da arena pública.
A auto-identificação voluntária dos comunitaristas é despótica, diz San, mas essa é uma descontextualização típica dos liberais (embora, de novo, um pouco justa considerando uma cultura de Estado). Quer-se vender uma análise que pressupõe um tempo congelado, uma artificialidade absurda em que o filósofo pergunta a cada indivíduo “e aí, com que valor você se identifica?”, e determina que a imperatividade dessa pergunta em um dado momento seria repressiva. Mas nós temos uma história de vida de onde essa identificação vem; temos nascimento, pais, família, primeiras impressões do mundo, primeiros imprintings de valores, primeiros amigos, primeiros amores, primeiros medos, primeiras frustrações. Os liberais têm razão ao insistir na observação kantiana de que somos tão objeto quanto sujeito, e todos esses “primeiros” podem virar fraca lembrança diante de mudanças. E é verdade também que os pais podem ter mentes mais abertas e estimular seus filhos a questionar sempre seus valores, suas perspectivas, seus pensamentos (e nisso não poderia haver um pouco de conciliação com certas prerrogativas liberais?). Mas quanto ao viver comunal em si seria perfeitamente aceitável que uma determinada comunidade optasse por certos valores de bem como dirigentes, importantes, estruturantes – valores esposados por anarquistas ou por republicanos. Retornando a Sandel, não fazer isso inclusive é impossível;pais, por mais abertos que sejam, estruturam a vida dos filhos de acordo com certos valores inevitavelmente (se não pudessem fazer isso, não conseguiriam fazer nada). Lembra um pouco a discussão sobre a tal “escola sem partido” – como se a própria existência da escola, sua estrutura típica e seu funcionamento cotidiano, não fossem carregados de ideologia… E lembra, claro, Fish, na resposta ao comentário subsequente dos liberais: “ah, sabemos que é um ideal apenas, mas dá pra tentar…”. Qual é a porra do sentido de “tentar”? Como tentar realizar o que não pode vir a ser orientaria a ação nesta ou naquela direção?
Uma pergunta que fiz ao Diogo é se ele não vê, inclusive, essa escolha comunitária por valores, hoje, num contexto pós-moderno, como necessariamente uma escolha racional. Somos todos cínicos demais, informados demais por livros de história e antropologia, para sinceramente acreditar que alguns valores possam ser naturalmente superiores a outros. Invariavelmente as comunidades que vivem de acordo com certas prioridades têm que se ver às voltas com justificativas racionais, decisões deliberadas sempre renovadas (como num pacto) quanto à escolha de seus valores. O preço da liberdade, talvez? Ou talvez eu que sou pós-moderno demais?
Perguntei-lhe também por que ele escolheu “amizade” e não “fraternidade”. Ele reconheceu que não tinha pensado nisso. E faz uma diferença danada – afinal, em tese nós escolhemos nossos amigos; os irmãos, não. E, já que ele estava falando de obrigação política, fraternidade talvez até fosse mais próximo da proposta dele.
A tal da legitimidade
Renato Francisquini falou sobre “democracia e igualdade” num “argumento pelo diálogo interinstitucional”. O debate começou forte, interessante, com ele dizendo que queria investigar o que leva as pessoas a considerar uma decisão legítima sob a luz das teorias da “última palavra” – quem, afinal, decide o que vai acontecer em última instância, se os representantes ou os juízes.
Por exemplo: uma lei x é aprovada. O Supremo Tribunal Federal determina que a lei é inconstitucional. No caso brasileiro, quem dá a “última palavra” são os juízes do STF – deve ter recursos e tudo o mais, mas se eles decidem, está decidido. Em outras configurações políticas, a saída pode ser outra, e os representantes podem fazer escolhas que contrariem julgamentos mesmo assim. Há quem diga que isso é mais democrático – que a sociedade (por meio de representantes) deve ser livre para decidir sobre coisas como o equilíbrio entre liberdade e controle. O problema todo, é claro, está na injustiça, como por exemplo na proteção a minorias (razão pela qual essa fala está nessa sessão em especial). Dahl, por exemplo, dizia que seria injusto condenar esse processo só porque ele pode gerar resultados injustos.
Francisquini cita uma questão: “se não há equilíbrio entre justiça e democracia, qual é preferível?”. Aquilo começou a me dar uma coceira, rapaz – veja, não é nada contra Fracisquini, que foi ótimo, e sim contra esse conto do vigário. Se a grande preocupação com a democracia ser injusta é a tal “tirania da maioria”, o problema é justamente a definição de democracia enquanto o domínio da maioria, e toda a cultura que isso implica.
Entendem, como escrevi na segunda parte dessa série, a importância da definição de democracia? E também, como acabei de falar, da cegueira em relação ao anarquismo e a ideia, que se encontra hoje muito em Graeber, do processo decisório baseado em consenso? Ou, como em muitos anarquistas que criticam o conceito de democracia de todo, a própria ideia de um processo decisório em primeiro lugar? Ele até mesmo fala numa hora sobre o fato de a legitimidade dos processos depender de decisões que nenhum grupo “razoavelmente rejeite”. Ora, isso tem tudo a ver com o processo decisório baseado em consenso!
E aí vem a parte do cagão do Habermas em que a minha coceira se tornou úlcera. E olha, eu não fui o único – se não me engano o próprio debatedor da mesa comentou que a parte sobre deliberacionismo lhe pareceu completamente desnecessária (e olha que ele leu o artigo; eu só ouvi a apresentação de quinze minutos). Basicamente, o que Francisquini argumentou é que a legitimidade está no diálogo interinstitucional, que é pautado no diálogo público, no sistema deliberativo, incluindo a cultura pública de fundo, etc. Em suma, decisões que, não importando muito quem dê a última palavra, sejam baseadas num amplo diálogo (numa deliberação) com a sociedade “em todos os seus aspectos”.
Na pergunta que fiz pra ele, disse que aquilo era muito bonito e tudo o mais, mas que no contexto das “democracias” atuais existe um negócio chamado polícia, que as faz cumprir mandando um dedo do meio pra deliberação. Aliás, a deliberação já fica mais difícil com uma maravilhosa lei chamada apologia ao crime. E aí existe também outra beleza, que é a lei do desacato à autoridade. E, por fim, existe um aspecto muito importante, que é o da temporalidade. Quando um juiz ordena um mandado coletivo de busca e apreensão e a decisão se faz cumprir a ferro e fogo (pela, veja bem, polícia), não há tempo pra “diálogo interinstitucional” não. Até o STF julgar a merda da escola sem partido como inconstitucional (ha, fingers crossed) a caça às bruxas já começou e faz vítimas.
A resposta dele é que aquele é um sistema ideal, é um sistema teórico. É justo, mas eu respeitosamente discordo. Quando um físico teórico me diz que ele faz testes em simulações computacionais, suas simulações têm a ver com expectativas sobre a realidade do, sei lá, modelo atômico dele. Ele não mexe com o átomo diretamente porque não consegue, mas se pudesse o faria. Da mesma forma, considerações teóricas de um Bourdieu têm a ver com expectativas por parte dele de que elas tenham alguma correspondência com a realidade. Ele não consegue abarcar toda a realidade com dados que demonstrem o que ele quer teorizar porque não consegue, mas se pudesse, certamente o faria. Nesse sentido, pode-se dizer que “isso é só teoria”; tratam-se, nos dois casos, de modelos da realidade que, apesar de se admitir não serem aRealidade, desejam falar sobre algo que se convencionou chamar de realidade, nossa experiência comum nesse mundo. Há razões para ser cético – não seria a empreitada científica um ceticismo organizado? Um duvidar arrumadinho? Um “sei não, hein” de jaleco limpo? – mas também há razões para levar em conta o que é dito na hora de, sei lá, viver.
Mas se o físico me diz que aquelas simulações são só um jogo matemático que ele não espera que tenham qualquer correspondência com a forma com a matéria se comporta, então… Qual é o sentido? Qual o sentido dessa teoria deliberacionista das instituições estatais que parecem quase completamente errar o alvo acerca de como elas operam? Que levam a uma espécie de “no true scotsman” das democracias, em que nenhuma democracia real funciona como a teoria diz, e portanto em vez de servir como material para crítica à democracia enquanto tese, funciona como crítica à realidade – não, não é uma democracia de verdade, porque democracia de verdade teria diálogo interinstitucional. Assim como comunismo “de verdade” não leva ao autoritarismo e o livre mercado “de verdade” leva ao céu na Terra. No Brasil o problema das operadoras de telefonia, por exemplo, é que não há competição o bastante – porra, mas 4, tirando as regionais, não é o bastante? Quantas têm que ser? 10? 20? 50? A mesma quantidade dos Estados Unidos? (Spoiler alert: eles têm essencialmente 4 também. T-mobile, Verizon, Sprint e AT&T. Todas as outras são “virtuais”, usando a infraestrutura dessas quatro).
Quanto mais as instituições têm que “dialogar” pra que uma democracia seja verdadeira ou legítima?
A mesa do republicanismo
Depois veio a mesa sobre o “republicanismo, novo e antigo”, coordenada e debatida pelo Ricardo Silva. Participaram dela Luís Alves Falcão, Ivo Coser, Tiago Losso (meu orientador!) e Sandro Amadeu Cerveira. Marcos Valente, outro amigo nosso do NEPP, infelizmente não veio. Uma pena, porque eu realmente queria ouvir sobre o Amartya Sen.
Conhecia já o que o Tiago ia dizer, então tive nada a acrescentar. O Sandro falou sobre republicanismo e cristianismo, que é uma discussão muito interessante – embora eu senti que foi meio um cop out o fato de que qualquer questão se dissolvia em “há vários republicanismos e vários cristianismos, então fica difícil dizer qualquer coisa”. É verdade, mas também é frustrante pra caramba (deve ser pra ele também, aposto). O Luís Falcão também foi muito bem, e sua provocação sobre a incompatibilidade entre o monarquismo e o republicanismo foi mais interessante do que eu tinha percebido à primeira vista, especialmente porque foi algo que não ficou muito bem resolvido no debate.
A apresentação mais interessante pra mim foi a do Ivo Coser: ele falou sobre polêmicas contemporâneas do conceito de liberdade, e mencionou que existe um fenômeno recente relativo, por exemplo, aos protestos que vêm ocorrendo desde as jornadas de junho 2013: um grupo que vigia o poder sem necessariamente querer ocupá-lo.
Isso foi realmente um bom insight, porque permite ver o que muitos críticos desse movimento não conseguem. Por exemplo, os governistas (agora necrogovernistas, como diz o Henrique Kopittke) reclamavam: “será que vocês não conseguem ver que criticando a Dilma vocês fortalecem os inimigos, que são piores que nós?”. Outros, inconformados com uma suposta “ineficácia” das manifestações, reclamavam: “mas será que vocês não entendem que têm que levar essa indignação das ruas para dentro do sistema político, usando os espaços institucionais de participação e a via eleitoral?”. Ao que o povo da rua respondia, tipo, foda-se.
Essa mesma dinâmica também é visível na corrida presidencial dos EUA. Quando Bernie Sanders atacava Hillary nas primárias, diziam-lhe: “você não vê que Drumpf é pior que a Clinton?”. Agora que ela foi nomeada como candidata dos democratas, dizem ao pessoal que não se conformou com a derrota (e principalmente com o tratamento que lhes foi dispensado, os esforços anti-sufragistas do establishment, etc): “vocês não veem que não votar na Clinton e criticá-la só fortalece Drumpf?”. É a “política do medo”, diz Jill Stein; a do menos pior, essa que dominou também a discussão sobre o “voto crítico” Dilma x Aécio nas últimas eleições presidenciais do Brasil. Ah, e sem esquecer a segunda objeção: aqueles que viram na “revolução do Bernie Sanders” algum futuro agora sentem-se traídos, entendendo (de novo) que o jogo é de cartas marcadas. O próprio Sanders abandonou Tim Canova de um jeito nojento (de dar raiva, mesmo), e finalmente deu motivos para entenderem que ele é, como qualquer outro, um político profissional. Parte do mesmo sistema de uma Clinton, de uma Dilma, de um Aécio, de um Cristóvão, de uma Genro. Se eu acho que a vitória (e, tudo bem, a própria campanha) de Sanders teria um resultado positivo, em geral? Sim, achei. Mas… Ainda é um político.
Minha questão com o Ivo Coser foi, novamente, o que o anarquismo ousa ver: não se trata apenas de vigiar o poder, mas de ignorá-lo. Na Argentina, assim como no Occupy Wall Street, a tônica foi não fazer exigências aos políticos, justamente para pressioná-los a darem o melhor de si para convencer a população de que podem fazer algo de útil. Essa ideia é importante, e fecho essa reflexão com uma conjectura de Graeber sobre o ódio em relação ao anarquismo que, no caso da ciência política, pode explicar por que há essa ignorância quanto a ele, às vezes deliberada: nós, ácratas, achamos o Estado não apenas nocivo, mas desnecessário.
É isso que eles não aguentam. Se você é Marxista, você dá bola pro Estado, que pode ser malvado às vezes mas ainda assim é uma força admirável que você quer usar pros seus propósitos. Os anarquistas não estão nem aí, e é essa ferida no orgulho dos estatistas e dos comentaristas do poder que não se pode tolerar. O esnobismo é o que lhes irrita até o osso.
Ivo, super gente boa, respondeu que achou a provocação interessante – mas que apesar de uma dinâmica em que se pode querer ignorar de todo o poder, ainda assim ele tem efeitos de responsividade e na dinâmica do poder, que é o que ele está pensando em analisar. Justo!
As bolsas, a moção e o Vesúvio
À noite, novamente não quis atravessar o elevado para ir ao shopping. Para minha sorte, o tal do shopping sobre o qual ficava o hotel estava fazendo uma “calçada cultural” em que um pessoal vendia algumas coisinhas – roupa, quadros, itens de decoração; tinha música ao vivo e uns food trucks que, apesar de caro como costumam ser, até que valiam a pena. Um deles, o Vesúvio, vendia uma baguete com costela desfiada bem servida e deliciosa.
“Jantei”, assim, com o Daniel, um professor de Pelotas maluco pelo Inter e super gente fina. Juntaram-se a nós dali a pouco professoras do Rio Grande do Sul e uma do Rio de Janeiro, e a conversa em geral se voltou para a questão das bolsas de mestrado e doutorado. Não tá fácil pra ninguém. Uma das professoras confessou que quando seus alunos perguntam o que vai acontecer com as bolsas, ela diz que não sabe, mas ela confessa que teme muito um apagão geral de recursos. Senti na voz dela aquela preocupação maternal / paternal que muitos professores desenvolvem com seus alunos. Sabe? De dizer que o cachorro virou estrelinha no céu para não assombrar demais os pequenos.
Antes disso, aliás, teve a Assembleia Geral da ABCP. Eu não fui – estava entretido demais na discussão dessa última mesa, do republicanismo, que foi bem além do tempo esperado. Daniel, inclusive, conta que chegou atrasado. Estavam votando a moção de repúdio ao golpeachment e uma amiga sua, deliberacionista (ha), berrou pra ele em meio a certa balbúrdia: “LEVANTA A MÃO!”. “PRA QUÊ?”, ele questionou; “A MOÇÃO!”, respondeu ela. Ele levantou, fez parte da maioria, e o troço foi à frente.
Mais perto da meia noite, quando estava de novo usando o computador no lobby, fiquei ouvindo a conversa de duas professoras, que esperaram o elevador por um tempo estranhamente longo. Uma delas estava indignada que a outra não foi na assembleia, e a outra em questão reclamava que ninguém tinha avisado nada por Whatsapp. A primeira então comentou, a tom de fofoca (depois de dizer que, porra, assembleia é sempre na quinta), quem foram os poucos que votaram contra a moção. Estava indignada com os filhos da puta. E eu pensando comigo que certamente havia outros mais naquele encontro que votariam contra – exceto que justamente estes não devem ter ido à Assembleia em primeiro lugar. Posso estar errado, mas o encontro, segundo me disseram, contou com mais de 1300 acadêmicos; na assembleia, segundo me disseram, estavam uns 100.
Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde
Esse artigo do Diogo Tourino, que não é a tese de doutorado dele mas parece de alguma forma “resumir” algumas coisas importantes sobre ela. O que eu queria mesmo era a tese, mas quem não tem cão…
Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!
Um dia cheio
Quarta-feira foi o dia em que mais coisas simultâneas me chamaram atenção. Depois de um café da manhã na companhia de Tiago Borges, Carlos Sell e Clarissa Dri (em que me acabei de croissant), fui ver a mesa redonda “Caminhos da teoria política: normatividade, institucionalidade, empiria e história em debate”. O que ficou desse painel pra mim foi a ótima apresentação de Alessandro Pinzani, do departamento de filosofia da UFSC, que falou sobre teoria com normatividade sem necessariamente prescritividade. Isso é interessante porque sempre equacionei as duas características, e isso me deixou interessado. Alguns dias depois, a meu pedido (já que essa reflexão me pode ser útil no futuro próximo), ele gentilmente me enviou seu texto, que não compartilharei por ser, como ele disse, apenas uma exploração introdutória do tema.
Fiquei um pouco na sessão “Representação política e organização partidária”, que acabou me desencantando um pouco. Um dos palestrantes estava fazendo uma exposição tão enfadonha, lendo estatística descritiva da porra de um slide, que não deu pra mim não – fui-me embora. E enquanto isso, em Brasília, os senadores votavam o afastamento de Dilma.
Shopping Minas e Luis Felipe Miguel
Chega a hora do almoço e atravesso a avenida pra ir comer. Não sem alguma decepção, vou a um buffet a quilo relativamente barato – eu queria algo que eu não pudesse encontrar em Santa Catarina, e tirando isso (que, de certa forma, eu posso) só tinha as mesmas marcas de sempre. Mas o interessante da comida mineira é isso: sem ser reconhecida necessariamente por uma coisa foda (tem o pão de queijo, mas, né), é o “conjunto da obra” da “comida caseira” que é incrível. O arranjo específico dos temperos que eles usam é muito bom, do feijão à farofa, passando pelo frango grelhado e pelo frango assado. Passei numa loja de sucos pra pegar um maçãmelãomorango e voltei pro evento. Quando cheguei, informaram-me do resultado em Brasília e da surpreendente “segunda votação”.
De qualquer forma, os trabalhos seguiram. A sessão temática sobre “visões de teoria democrática” foi empurrada pra mais tarde e na sala em questão vimos, eu e meu orientador, “temas e debates do pensamento político contemporâneo”. Pinzani coordenou um debate mas não fiquei para suas considerações. Talvez seja eu e minha pouca relação com os temas tratados – multiculturalismo, teoria do reconhecimento, teoria crítica da justiça – mas saí antes do “é o pós-colonialismo latino-americano colonizado?” e de alguma coisa sobre Gramsci. Mas deu pra aprender algo sobre o Honneth… Uma pena que, ao chegar terça à tarde, não pude ir no minicurso sobre teorias do reconhecimento. Eu teria gostado, eu acho.
E então que veio a sessão em que finalmente conheci o Luis Felipe Miguel, aquele que eu abrevio por nenhuma razão específica nas minhas anotações acadêmicas pessoais como LFMiguel. Curioso é que tive que perguntar pra alguém quem ele era, porque por algum motivo imaginei que era o careca sério de terno na ponta da mesa – mas não, era o do centro, que… Eu não sei exatamente como descrevê-lo. Bem, ele é filho do Salim Miguel, manezinho da ilha; imagine um, só que sem o sotaque forte de um Guga. É isso aí.
Ele, esse monstro (no bom sentido) da teoria política brasileira, veio descendo o cacete nos deliberacionistas, puxando a Pateman, falando de uma euforia na redução das exigências para classificar participação, largando uma pra Urbinati, “freixando” com o caráter pedagógico da participação – e eu gosto, que Habermas é um cagão mesmo. Como é que a cena dos cientistas políticos brasileiros se convenceu a ter força de vontade pra ler Habermas desse jeito? Meu senhor, é deliberação pra todo o lado nesse encontro – e veja, o meu problema não é com a deliberação em si, muito pelo contrário, mas sim com o fato de que como teoria democrática ela é em momentos ingênua, e no limite, incompleta (mais sobre isso nas próximas partes). E se fosse só isso, tudo bem; mas a escrita dele é truncada e chata pra caralho. Realmente é uma surpresa enorme que consigam dar um jeito de falar nele com tanta frequência.
Mas foi interessante, sabe. Achei razoável o que ele argumentou. Mauro Soares depois meio que disse que estava apresentando algo oposto a ele, mas não vi muito bem como. Veio falar algo sobre o sistema concorrencial, etc (meh). Já a apresentação do Daniel de Mendonça foi muito interessante, em especial porque me fez entender melhor o que diabos Laclau quis dizer (lembro que o Burgos deu um texto dele numa disciplina da graduação que o autor circulava o conceito de populismo feito mosca de padaria, nunca chegando a lugar algum – acho que devia ser só a introdução do livro. Aí fiquei com essa impressão de que Laclau nunca tinha chego a lugar algum e por acaso nunca mais ele entrou na minha fila de leituras. Que bom que desfiz esse preconceito bobo). Ele puxou um Ranciére também (que só estou começando a conhecer) para complementar a fala sobre populismo – enfim, bem legal. João Feres Júnior fez uma fala meio fora de lugar (naquela mesa) mas bastante divertida sobre a produção acadêmica de teoria política no Brasil. O texto dele, até pelo menos a publicação desse texto, infelizmente não estava disponível nos anais.
Reações ao golpeachment
Voltei ao shopping – comida caseira de novo, em outro buffet a quilo – e passei numa feira de livros baratos pra comprar um de lembrança (gosto de levar um livro de cada cidade nova que visito) e uns de presente. Deixei de ir, no caso, no debate sobre a crise política. Primeiro porque “debate” pra mim tem dois lados – e aquele só tinha um. E segundo que tudo estava muito “quente” ainda. Não iria lá para ouvir chorarem pitangas em prosa.
Quando voltei, encontrei alguns professores numa área do hotel chamada “The Hub” – wifi, tomadas, poltronas confortáveis e um horário em que comprando uma cerveja leva-se outra de graça. Eu estava querendo me organizar, escrever, estudar – mas foi irresistível conversar com eles sobre o chacoalho do dia, e conhecer também outros personagens que foram passando por ali (o hotel de 200 quartos, afinal, acomodava muita gente do evento. Em três dias vários rostos novos se tornaram relativamente reconhecíveis).
Discutiam se era ou não era golpe. Um professor, que eu conheci pela primeira vez nesse momento, disse várias coisas interessantes que foram “objeto de análise” de todos ali por um bom tempo:
É um processo constitucional, por mais que um processo ruim, falho, cheio de atores miseráveis e que provavelmente ia acabar em merda pro Brasil.
Se ele fosse senador, votaria contra o impeachment.
Mesmo assim, ficou aliviado que a Dilma saiu porque ela não teria condições de voltar. Outro professor comentou que a narrativa de vítima lhe caiu com grande conveniência, e que agora pelo menos ela não teria que implementar os cortes aparentemente inevitáveis que Temer tentará implementar.
Há muitas eleições ele só vota em gente que perde; na última foi Genro no primeiro turno e nulo no segundo. Disse que se descobre que o candidato dele está ganhando, muda o voto pra alguém que está perdendo.
Disse que a lei do impeachment poderia ser a seguinte: que se faça toda a palhaçada que se fez nesses meses, da câmara ao senado, e com o resultado em mãos, que se faça um referendo sobre ele. Os outros professores, na minha impressão em grande maioria apoiando o impeachment, concordaram com a proposta.
A ciência política brasileira demoraria anos (se algum dia o fizesse), para reconhecer que não houve golpe. A aposta mesmo é que jamais iam parar de falar que se tratou de um.
O último ponto foi o mais contencioso. Alguns disseram que logo grandes teóricos que acusavam golpe (dentre eles, se não me engano, o próprio LFMiguel) cairiam na real e, temendo por suas reputações na academia, ou parariam de falar no assunto ou reconheceriam logo que não se tratou de um. Eu fui por uma terceira via: afinal, quais são os acadêmicos que gostam de admitir que estão errados? Não… Poucos vão dizer que não foi golpe. O que eles vão (re)fazer é o que nós, por definição profissionais na manipulação de palavras, fazemos de melhor: conceitos. Vão mudar o que se entende por golpe (adjetivando-o ad nauseam; revisando a história se preciso for) até que a teoria descreva, de um jeito que lhes convém, esses pobres fatos podres dos edifícios do poder.
Que fique claro: o que venha no lugar da Dilma não é bom. É péssimo. Mas é em geral um aprofundamento de algo que ela mesma já vinha fazendo, tendo ela padecido em grande medida, nesse agonizante processo, de seus próprios erros (por exemplo, a aliança com o PMDB). Chamar isso de “golpe” é desmerecer o pessoal que realmente se fode quando há uma ruptura violenta da ordem legal, e depende principalmente de qual variante do conceito de democracia se usa. Conceito que é – e nesse encontro da ABCP mais do que nunca se percebe isso – polissêmico e disputado. Ora, até alguns anarquistas estão brigando hoje em dia na arena cultural pelo conceito de democracia.
Ela é uma questão de procedimento? Então talvez o PT tenha razão (é preciso esperar novas eleições; o julgamento político ignorou seu pressuposto jurídico; etc). A democracia é alguma outra coisa além disso? Então talvez outras coisas tenham precedência – inclusive a ideia das eleições gerais, que muitos, principalmente do PSOL, defendem (e agora, passada a ABCP, aparentemente o PT também). Como anarquista, não vejo valor algum em novas eleições – mas como acadêmico fico feliz em ver a prova viva de uma coisa que venho estudando na literatura quanto à representação: o voto, de fato, aparece desde os tempos medievais como um pacto de obediência. Busca-se, com as novas eleições, refazer esse maldito pacto.
De qualquer maneira, tenho certeza apenas de que não vale a pena ‘ressignificar’ a democracia a partir de linhas partidárias e contextuais para defender um mandato que representa toda a desdemocracia de uma Copa do Mundo, das Olimpíadas da Exclusão, das ocupações nas favelas, da lei antiterrorismo, do Belo Monte, do ataque aos indígenas, do agronegócio, do pacto com as elites, do lucro astrofísico dos bancos, do aparelhamento e cooptação dos movimentos sociais… Não, não. Não vale mesmo. E há algo interessante relacionado a essa postura que surgiu em uma das mesas no próximo dia… Mas isso fica para as próximas partes.
Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde
Todos esses são trabalhos que eu gostaria de ter visto mas, por conflito de horários, acabei não vendo. Esse é o caso também da maior parte dos links nas próximas partes dessa série de postagens.
O acesso dos movimentos negro e indígena à política de HIV/Aids: a institucionalização de domínios de agência (eles pediam para por favor não citar ou “circular”… Mas assim, tipo, está lá nos anais).
Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!
A viagem
Foi a primeira vez que viajei de GOL e realmente o espaço para as pernas é melhor que a TAM; para mim, totalmente compensa o biscoitinho com água (que eu achei bem bom, inclusive). Só acho que o pessoal do aeroporto de Florianópolis podia ter avisado sobre a necessidade de despachar o banner. Ele não cabia na minha mala, e eu tive que comprar um daqueles tubos pra levá-lo separadamente. Disseram que eu podia levar como bagagem de mão. De Floripa a Sampa foi o que eu fiz, mas ao embarcar pra BH… Surpresa!
Mas que bom que deu tudo certo (ainda que na hora da esteira o tubo não veio com a mala; alguém ficou abanando ele pela cortina) e prosseguimos até o hotel; estávamos eu, o professor Yan Carreirão (a quem, aliás, agradeço imensamente por tudo!) e colegas que encontramos no mesmo voo. Não tenho como falar quase nada de Belo Horizonte, porque pegamos um ônibus que me deixou na porta do hotel e até o dia em que voltei pro aeroporto não saí de perto dali – do hotel em que fiquei eu fui só pro hotel do evento (do lado), para um shopping (à frente, atravessando a avenida por um elevado) e para um restaurante (atrás). Então… Sei lá. Estava quente.
Abertura
Quase todos os outros personagens me eram estranhos (encontrei Aglaé, uma amiga de graduação que eu não fazia ideia que viria): eu não conhecia o rosto mesmo de gente cujos textos eu já tinha lido. Quem eu conhecia melhor – mais professores da UFSC – só chegariam mais tarde, na hora dos comes e bebes, e quando eu estava de saída.
As palestras de abertura ficaram por conta do australiano John Dryzek e do francês Yves Sintomer. Dryzek tem aquele charme de Gandalf, falando tranquilamente sobre democracia deliberativa, mas ignorando confortavelmente uma forte produção anarquista que expandiria bem sobre o tema dele (esse é um tema que vai aparecer com frequência nesse relato, e reservo algumas conclusões quanto a isso para mais tarde). Consegui encontrá-lo depois, no jantar, parabenizá-lo e agradecê-lo pela fala, e perguntar se ele tinha tido contato com a literatura anarquista em questão – e também se estava acompanhando o que estava acontecendo em Rojava. Ele me disse que leu algo sobre Bookchin (claro) e que basicamente o que sabia sobre Rojava era que eles também tinham lido Bookchin. Disse a ele que lhe enriqueceria muito conhecer o debate contemporâneo sobre a questão democrática / deliberativa no anarquismo e, não querendo ser o chato que toma tempo demais de pessoas que não me conhecem, logo me despedi.
Yves foi um querido. Bem humorado, fez uma apresentação mais prática, falando basicamente das mesmas coisas que Dryzek mas tanto problematizando-as quanto trazendo exemplos mais concretos. Falou em espanhol (“Não posso falar em francês porque a França não é mais o centro do mundo”, ele brincou). Depois disso deveríamos ter um lançamento de livros – mas todo mundo atacou o buffet ostentação e eu nem vi onde exatamente eles estavam. Deve ter sido um pouco frustrante pros autores, mas talvez foi só um problema meu mesmo.
O que mais me impactou na abertura (já que as palestras, apesar de interessantes, foram meio que entradinhas sem muita substância) foi uma luxuosidade que eu, na minha santa inocência, não esperava. Um professor entrou comigo no lobby na manhã seguinte e eu comentei que achava um pouco desnecessário aquela pompa toda – não pela ritualística, mas pelos espaços requintados, os lustres da época do império, enfim, o cenário que explicava tacitamente porque a minha inscrição antecipada custou 200 reais (houve quem pagasse 600, dependendo da circunstância). E ele, o professor, esbofeteou-me de volta com uma agridoce colocação: “É. Combater a desigualdade social.”
O hotel e a programação
O Ramada (ou seria Encore?) ‘Minascasa’ é um hotel simpático. Com uma decoração moderninha, duas águas de graça na entrada, cartões em vez de chaves e um café da manhã que faz jus à fama de Minas, me pareceu bem bom pelo preço e pela conveniência de estar do lado do evento. Dividi o quarto com o professor Tiago Borges, que só chegou mais tarde. Compartilhamos histórias de aviões e congressos pregressos (dele), além de prospectos para os próximos dias. Antes de dormir, inclusive, escolhi o que ia ver, aproveitando suas dicas para dar preferência a alguns eventos e cortar outros (por exemplo, naqueles em que eu só estava interessado mesmo em um trabalho a ser apresentado, fui nos anais do evento e baixei o que já estivesse lá). Nas próximas partes deste relato falarei sobre os dias do encontro em si, das coisas que vi e ouvi por ali, e principalmente das ideias que vi circularem no evento.
Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde
O livro “The Representative Claim”, de Michael Saward.
Toda forma de registro histórico é também forma de produção artística que, usando-se do mesmo meio, é capaz de (embora não necessariamente use essa capacidade) produzir algo semelhante a um registro histórico — uma arte que conte uma história. Os hieróglifos ou qualquer sistema de escrita podem, em teoria, serem usados tanto para narrar acontecimentos quanto para narrar histórias, e não se pode contar com uma divisão estilística natural dos seres humanos que resolva os problemas de ambiguidade quanto à “veracidade” dos fatos.
Mesmo vídeos não adiantam enquanto prova histórica: existem atores, maquiagem, cenografia, efeitos especiais… Nenhum vídeo é confiável por si só.
De fato, só o que resta é a arqueologia, mas quanto àquilo que interessa ela não costuma dizer muito.
Políticos são desonestos por definição. Todos os políticos mentem. Mas muitos observadores da política dos Estados Unidos concordam que, nos últimos anos, tem havido uma espécie de mudança qualitativa na magnitude dessa desonestidade. Em certos subgrupos de partidos, parece haver uma tentativa consciente de mudar as regras para que se permita um tipo de mentira flagrante e exagerada sobre os oponentes políticos que raramente vemos em outros países. Sarah Palin e seus “painéis da morte” foram pioneiros no novo estilo, mas Michele Bachmann rapidamente levou as coisas a patamares ainda mais espetaculares com suas afirmações malucas quanto a uma conspiração do governo para impor a lei islâmica nos Estados Unidos, ou planos secretos para abandonar o dólar pelo yuan chinês. Mitt Romney não superou Palin ou Bachmann na grandiosidade e na magnificência das mentiras, mas tentou compensar na quantidade, tendo baseado sua campanha presidencial inteira em uma sequência sem fim de fabricações. É quase como se os republicanos desafiassem a mídia e os democratas a chamá-los abertamente de mentirosos.
Como analisar isso? Primeiro, não pode ser uma coincidência que os três políticos supracitados são profundamente religiosos. Sarah Palin e Michele Bachmann são evangélicas; Romney foi um bispo mórmon. Nesses círculos religiosos, crenças e mentiras são coisas que se referem ao estado interno de alguém. É por isso que os apoiadores religiosos de tais candidatos não se preocupam quando a mídia revela que o que dizem é falso. Quando muito, esses apoiadores provavelmente vão ficar indignados com qualquer jornalista que sugira que mentir é o resultado de uma desonestidade consciente.
Carismáticos e evangélicos abraçam uma forma de cristianismo em que a fé é quase tudo que existe. Não se pode questionar a pureza das intenções de pessoas de fé, daqueles que se abriram ao espírito divino. E então algum elitista da mídia secular liberal vem e diz que eles são mentirosos?
O que a direita republicana está fazendo é uma versão teológica de um estilo essencialmente mágico de performance política: eles estão fazendo um universo “vir a ser” através de atos conscientes de fé. O limite é que – desde que o outro lado não seja burro o bastante para ecoar Bob Dole com a frase “pare de mentir sobre o meu histórico!” – a mágica só funciona naqueles que já os veem como moralmente superiores.
Para os liberais, é claro, isso tudo significa que os republicanos vivem num mundo de sonhos que eles mesmos produzem. Eles veem a si mesmos como uma comunidade de pessoas baseadas na realidade, o pessoal que insiste em agregar fatos e evidências e examinar o mundo do jeito como ele realmente é.
O origem dessa expressão (comunidade com base na realidade) já diz muito. Ela vem de um ensaio na revista do New York Times escrito pelo correspondente do Wall Street Journal Ron Suskind. Chamado “Fé, certeza e a presidência de George W. Bush”, o ensaio é, em grande parte, uma elaboração do mesmo argumento que acabei de apresentar, que para os fãs de Bush, a pureza de suas convicções interiores é só o que importa. Mas a passagem que fez fama a Suskind é uma em que ele faz menção a uma conversa com um “conselheiro sênior de Bush” anônimo que, diz ele, “vai ao cerne do mandato de Bush”:
O conselheiro disse que pessoas como eu estavam “naquilo que chamamos de uma comunidade com base na realidade”, que ele definiu como pessoas que “acreditam que as soluções surgem de um estudo judicioso da realidade discernível”. Eu fiz que sim e murmurei algo sobre princípios iluministas e empiricismo. Ele me interrompeu. “Não é assim que o mundo funciona mais”, ele continuou. “Nós somos um império agora, e quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto você está estudando a realidade – judiciosamente, como vocês fazem – nós vamos agir de novo, criando outras novas realidades, que você pode estudar também, e assim que as coisas vão ser. Nós somos atores da história… E vocês, todos vocês, vão ficar estudando o que nós fazemos”.
Para os liberais, essa passagem confirmou tudo em que eles sempre quiseram acreditar. Bottons e camisetas anunciando “orgulhoso membro da comunidade com base na realidade” logo apareceram. A frase se tornou um slogan. Mas há razão para acreditar que mesmo aqui as coisas não são exatamente o que parecem. Desde então outros jornalistas apontaram que o trabalho de Suskind geralmente combina uma suspeita frequência em que é muito bom para ser verdade com citações cujas fontes, quando são identificadas, veementemente negam terem dito o que Suskind afirma que disseram. Nenhuma outra pessoa alguma vez disse ter ouvido um conselheiro de Bush dizer algo remotamente parecido com isso. É possível que o próprio Suskind tenha inventado a história toda.
Seria a própria ideia de uma “comunidade baseada na realidade” uma premissa extraordinária? Na verdade, o que é realmente intrigante no debate político nos Estados Unidos hoje é que ambas a direita convencional (leia-se: extrema) e a esquerda convencional (leia-se: centrista) foram tão longe criando suas próprias realidades que uma conversa significativa se tornou impossível. Houve um tempo, por exemplo, em que liberais e conservadores poderiam discutir as raízes da pobreza. Agora eles discutem a existência da pobreza. No passado debatiam sobre como acabar com o racismo. Agora é comum ouvir conservadores insistirem que, justamente como os únicos mentirosos são aqueles que os acusam de mentirosos, os únicos racistas são os que acusam os outros de racismo. Mas o outro lado faz a mesma coisa. Se um conservador cristão quer discutir a dominância de uma “elite secular liberal” na cultura mainstream dos Estados Unidos, ou se um apoiador de Rand Paul quer falar sobre a relação entre a Reserva Federal e o militarismo do país, eles vão encontrar a mesma muralha de incredulidade.
Parece muito estranho que a esquerda convencional se identifique com a tradição do empiricismo iluminista quando seus grandes avatares passaram a última geração destruindo a própria ideia de uma realidade objetiva. A classe liberal tem seu próprio equivalente à igreja, afinal de contas, e ela é a universidade. A universidade tem os equivalentes aos teólogos, que interpretam os trabalhos de Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida com a mesma reverência que pensadores radicais têm diante de Karl Marx. E o que tais autores fazem exceto jogar o projeto inteiro do iluminismo no lixo?
Tanto a esquerda democrática mainstream quanto a direita republicana, em outras palavras, têm trabalhado por muito tempo na tradição americana da mistificação, do hype e da fraude; mas eles o justificaram de formas diferentes. A direita tem dependido de uma lógica de fé e convicção interna; a esquerda já prefere uma retórica científica, e agora uma espécie de anti-ciência pós-estrutural – mas ambos realmente se resumem à mesma coisa.
Ambos são apropriados à base social de seus respectivos partidos – o 1% que os provê com fundos, culturas e sensibilidades. Os republicanos são, notoriamente, o partido dos negócios. É pouco surpreendente que idolatrem a confiança interna do CEO determinado e estejam dispostos a dizer o que for preciso para fechar negócio, e então fazer o que for necessário para gerenciar a empresa. Os democratas são o partido do que Barbara Ehrenreich há muito tempo chamou de “a classe profissional-gerencial” – um partido de professores, administradores de hospitais, advogados, trabalhadores sociais e psicoterapeutas. Pouco surpreende, portanto, que a maior expressão de seu weltanschauung seja os trabalhos de Michel Foucault, por pelo menos vinte anos um deus da academia contemporânea dos Estados Unidos, um homem que argumentou que os discursos profissionais são formas de poder que criam as próprias realidades que eles dizem administrar. Ou que durante os anos noventa e 2000, décadas em que a economia do país se tornou mais e mais explicitamente uma bolha econômica e o dinheiro de Hollywood e Wall Street em especial choveram no partido democrata, falar dessas ideias em círculos intelectuais se tornou algo mais e mais extravagante.
Não estou sugerindo uma conexão simples e direta aqui. Não é como se os acadêmicos americanos inclinados à esquerda fossem diretamente influenciados pelo dinheiro de Wall Street. Mas a beleza do sistema é que eles não precisaram ser. Eles viviam num mundo-bolha tanto quanto qualquer outra pessoa, e suas disposições teóricas existentes, nascidas do senso comum cotidiano de um mundo profissional em que o controle das impressões é tudo, refletiu a lógica de uma bolha econômica.
Eu lembro bem de conferências e seminários exatamente antes da crise de 2008, em que eu ouvia a apresentações complexas e cheias de jargão por parte de estudantes de teoria das culturas ou estudos da ciência, ou mesmo de cientistas políticos radicais. Eles diziam que a lógica emergente de “preemptividade”, “segurança” e “financialização” era um sinal não apenas do nascimento de formas novas e jamais vistas de poder social, mas também uma transformação da própria natureza da realidade. “Nós da esquerda precisamos aprender com os neoliberais”, eu lembro de ouvir um jovem graduando dos estudos culturais dizer (graduandos dos estudos culturais geralmente consideram a si mesmos a crista da onda da esquerda global, mesmo que não tenham nenhum ativismo político), “porque, para ser sincero, eles estão na nossa frente de várias maneiras. Quer dizer, esses caras descobriram como criar valor a partir do nada!”
Eu me lembro de responder “Sabe, o pessoal de Wall Street têm um nome para esse tipo de coisa. Chama-se ‘fraude'”. Mas eu não acho que as pessoas me ouviram. A maioria dos radicais acadêmicos se limitaram a uma linguagem teórica de acordo com a qual a própria ideia de fraude quase não faz sentido. Ao transformar ciência em anticiência, empiricismo iluminista em seu oposto, a esquerda acadêmica ficou com a noção de que a performance realmente é tudo que existe.
As tendências intelectuais foram do surgimento da “teoria da performance” em si no final dos anos 80, à emergência, nos anos 90, da teoria ator-rede, com sua insistência de que mesmo os objetos da pesquisa científica são criados por processos políticos de negociação, persuasão e construção de alianças entre cientistas, instituições, objetos, animais e micróbios. Mas a essência da questão é: durante o período em que a economia dos Estados Unidos (e por extensão a de todo o atlântico norte) se tornou cada vez mais baseada na produção de bolhas financeiras de um tipo ou de outro, seus intelectuais simultaneamente parecem ter decidido que absolutamente tudo é simplesmente o produto da performance política. A economia de bolha foi uma espécie de apoteose da magia política.
Mas como qualquer verdadeiro mágico (ou político bem-sucedido) pode revelar, não é assim tão simples. É verdade que todos aceitamos que um presidente é acima de tudo alguém que sabe como agir como um presidente; nós criticamos os candidatos por qualquer incapacidade aparente de atuar nesse papel. Mas se um candidato abertamente dissesse que ter “jeito” de presidente é a única qualificação necessária para ser presidente, suas chances de ser eleito seriam próximas de zero. No mundo real, todos os jogos de ambiguidade permanecem em ação. Tudo que temos feito é inventar razões para não refletir sobre eles.
Pelo menos o (possivelmente imaginário) conselheiro de Bush do Ron Suskind tinha ciência de que a fé não é suficiente quando se trata de criar novas realidades: você precisa de força militar também. A diferença entre o mágico e o político é exatamente essa: o conhecimento de que este último pode, se isso um dia se tornar necessário, solicitar a ajuda de homens armados – sejam eles do exército ou da polícia. Essa é a carta na manga.
Realidades políticas são sempre uma combinação obscura de medo, desejo e pensamento ambíguo. Você deve se perguntar se o cidadão médio acredita que a ordem política vigente é justa, ou se ele acredita que todos os outros cidadãos acreditam que ela é justa. Você deve se perguntar se ele acredita que há uma forma de realizar suas melhores ambições de outra forma que não em um mundo que ele já acredita ser uma fraude; você também deve se perguntar se ele acredita que tentar mudar as coisas, ou mesmo dizer em voz alta que o mundo todo é uma fraude, pode deixá-lo em maus lençóis (como revelou o recente destino do Occupy Wall Street, mesmo quando brancos de classe média vão às ruas dizer verdades inconvenientes nos Estados Unidos de hoje a violência é uma possibilidade real). E então você deve se perguntar se todo mundo acredita que vão ser violentados se eles tentarem mudar as coisas – ou apenas se todo mundo acredita que todo mundo acredita que é isso que vai acontecer. O salão de espelhos não tem fim.
II.
Entre as distorções rotineiras, as meias-verdades oportunistas, e as ideologias chiques que agora compõem o discurso político, qualquer interlocutor honesto tem que se debater com a questão sobre como o auto-engano funciona como um sistema de crenças auto-administrado. Estudantes da arte da propaganda têm notado há muito tempo a imitação formal de ciência empírica que ela é, mas o fato de ela ser uma embalagem falsa não trata dos dilemas mais profundos quanto à crença autoconsciente em um método predileto de propaganda. A fórmula clássica do problema questiona como algumas pessoas podem se forçar a acreditar em algo que parece ser ilusório para outras pessoas. Mas essa fórmula presume que as pessoas não podem estar erradas quanto ao que elas acreditam. Será possível pensar que você acredita em algo quando, na verdade, não acredita, ou pensar que você não acredita em algo quando, na verdade, você acredita?
Na verdade, há toda uma corrente de pensamento dedicada a entender como isso pode ser possível. O termo fetichismo aparentemente foi cunhado por comerciantes europeus no oeste da África, para explicar como seus colegas africanos faziam tratos comerciais. Isso foi nos séculos XVI e XVII, quando os europeus estavam atrás de ouro, em geral antes de começarem a comerciar escravos. Parece que em muitas cidades portuárias africanas daquele tempo, era possível improvisar um novo deus em virtude da ocasião comercial; era só trazer algumas miçangas, penas e pedaços de alguma madeira rara, ou então só pegar qualquer objeto peculiar ou de aparência significante que calhou de você encontrar ao longo da praia, e então consagrá-lo com uma promessa mútua. Fetiches mais elaborados que serviam para proteger comunidades inteiras poderiam consistir em esculturas, geralmente deslumbrantes, a qual as partes contratuais poderiam arranhar com as unhas, irritando o deus recém-criado para garantir que ele estivesse no clima certo para punir transgressores. Mas para um mero acordo comercial com um estrangeiro, uma tábua qualquer servia.
O ato de fazer uma promessa transformava o objeto num poder divino capaz de causar uma destruição terrível em qualquer um que violasse seus novos compromissos. O poder do novo deus era o poder do acordo. Tudo isso estava a um passo de significar que um objeto era um deus porque os humanos diziam que ele era, mas todos insistiriam que, não, na verdade, os objetos estavam agora investidos com um poder terrível e invisível. E se alguma catástrofe inesperada realmente acontecesse com uma das partes – o que não era nada incomum, considerando que os europeus quebravam seus navios em tempestades ou morriam de malária o tempo todo – alguém poderia sempre dizer que nada disso teria acontecido se os homens mortos não tivessem de alguma forma quebrado suas promessas.
Os comerciantes africanos realmente acreditavam no poder de seus fetiches? Muitos pareciam pensar que sim, mesmo que se eles com frequência agissem como se os fetiches fossem apenas conveniências comerciais. Mas o mundo dos encantamentos mágicos está cheio desses paradoxos. O que é absolutamente certo é que os europeus, acostumados a pensar em termos teológicos, simplesmente não conseguiam entender essa prática. Como resultado eles tendiam a projetar sua própria confusão nos africanos. Logo a própria existência de fetiches servia como prova de que os africanos eram absolutamente confusos quanto a assuntos espirituais; filósofos europeus começaram a discutir se o fetichismo representava o estado mais baixo possível da religião, um em que o fetichista estava disposto a adorar absolutamente qualquer coisa, uma vez que ele não tivesse teologia sistemática alguma.
Não demorou muito, é claro, para que figuras europeias como Karl Marx e Sigmund Freud se perguntassem: “mas somos realmente tão diferentes?”. Como Marx notou, a história ocidental é a história de nós criando coisas e então nos ajoelhando diante delas, adorando-as como deuses. Na Idade Média o fazíamos com hóstias, cálices e relicários. Agora o fazemos com dinheiro e objetos de consumo. Daí o famoso argumento de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Estamos constantemente manufaturando objetos pra nosso uso e conveniência, e então falando deles como se eles estivessem carregados com algum poder sobrenatural estranho que os torna capazes de agir por sua própria vontade – em grande parte porque, de uma perspectiva imediata e prática, isso bem que pode ser verdade.
Quando um negociante de commodities abre o Wall Street Journal e lê que o ouro está fazendo isso, o petróleo e a carne de porco estão fazendo aquilo, ou que o dinheiro está fugindo desse mercado e migrando para outro lugar, ele acredita no que lê? Certamente ele não acha que o faz. Não haveria nenhum sentido em chamar o negociante à parte e explicar que ouro e petróleo são objetos inanimados que não podem fazer nada por eles mesmos. A resposta seria pura irritação. É claro que é só um modo de dizer! O que você acha que eu sou, algum otário? Mas em todos os sentidos pragmáticos, ele de fato acredita nisso, porque todo dia ele vai até a bolsa de valores e age como se isso fosse verdade.
Fall Out Boy é uma banda muito, muito boa. Quem não imediatamente foge deles por causa do estilo musical ou por eles não terem sido exatamente leais a um determinado estilo acaba encontrando uma mina de ouro em termos artísticos: brincando com melodias, harmonias e sensibilidades pop, as letras são muito bem construídas, por vezes afiadas, e não faltam “fases” da carreira da banda para agradar aos fãs.
Eles estão de novo sob holofotes por conta da trilha sonora do filme Ghostbusters. Eu particularmente não vi o filme, que parece ser melhor do que os trailers indicavam, e a música, com participação da Missy Elliot, também achei meio fraquinha. Por outro lado, nunca espero muito de trilhas sonoras feitas por artistas famosos. Sem expectativas, sem decepções, yay!
Em 2002/2003, eles eram osso duro de ouvir, viu? Bem mais punk que pop, a banda fazia umas coisas sofríveis, com toda sinceridade. Mas Moving Pictures é uma musiquinha bem bacana; com um refrão legal e cheia de juventude, é o melhor que dá pra encontrar no EP Split e nos álbuns Evening Out With Your Girlfriend e Take This to Your Grave (a não ser que você estejaprocurando por som de garagem, e nesse caso vá ouvir esses CDs que eles são bem legais).
My Heart is the Worst Kind of Weapon
Em 2004 eles já ficam mais parecidos com o que conhecemos da banda hoje; a começar pelo ótimo título do álbum daquele ano, My Heart Will Always Be The B-Side To My Tongue, com músicas acústicas, sem muita complexidade instrumental, porém letras mais ambiciosas.
Olha que foi até um pouco complicado escolher o que recomendar nesse álbum; It’s Not A Side Effect Of The Cocaine é interessante, uma versão de Nobody Puts Baby In The Corner (que vai aparecer mais tarde no glorioso From Under The Cork Tree) é bonitinha, um cover de Love Will Tear Us Apart também não é de se jogar fora… Mas sem dúvida My Heart is the Worst Kind of Weapon é a que mais merece ser ouvida; “Take your taste back, peel back your skin / And try to forget how it feels inside / You should try saying no once in a while”.
Champagne for My Real Friends, Real Pain for My Sham Friends
E o que você perdeu? Bem, você provavelmente não ouviu a música mais pauleira do álbum; ela ainda é a cara das outras, com letras voltadas pra relacionamentos e tudo o mais, mas é mais divertida; no mar dos riffs meio Weezer desse álbum, é um destaque.
I’ve Got All This Ringing In My Ears and None of my Fingers
Infinity On High foi um álbum controverso: um passo, se não pra frente, um pouquinho pra fora – as letras ganham corpo, ficam mais ousadas, variadas, e a própria banda, embora com um pé na mesma vibe da última obra, fica a fim de experimentar umas outras sonoridades, como no hit This Ain’t A Scene, It’s An Arms Race.
You’re Crashing But You’re No Wave tem um título engraçadinho e é bem convencional, mas as melhores coisas estilo FOB pré-2007 desse álbum com certeza são The Take Over The Breaks Over e aquele power pop maravilhoso com um clipe foda (você sabe qual é). Eu achava que a primeira, aliás, era pouco conhecida, mas tem até clipe – então é possível que você já a tenha ouvido…
E dessa sonoridade nova que vem surgindo nesse álbum, o que é que vira? Coisas como Golden, sim – mas me passa a impressão de ser tipo Ask Me Anything, dos Strokes, aquela música chata de meio de CD que parece que a gravadora pediu pra eles fazerem para incluir alguma coisa mais fofinha ou lenta, sei lá. Não; a joia oculta desse álbum está mesmo em I’ve Got All This Ringing In My Ears and None of my Fingers. O que mata o coração é o hook de fundo, a atmosfera épica do início e, é claro, o refrão – “The truth hurts worse than anything I could bring myself to do to you”.
A folia de Folie a Deux
Ok, o negócio é o seguinte: por que Folie a Deux é o melhor álbum do Fall Out Boy? E por que ele parece não ser, considerando que praticamente todos os outros depois de 2005 são mais reconhecidos que este? Porque as músicas que foram escolhidas para serem tocadas na rádio – America’s Suitehearts e I Don’t Care, basicamente – são as piores do álbum. Que cagada… Ele não foi bem representado, mas acredite – tem coisas aqui que você não ouviu que são a nata da carreira inteira deles.
Por onde começar? Bem, por onde não começar? Foi impossível escolher uma música só, e considere que acabei descartando West Coast Smoker, Tiffany Blews, 27 (“If home is where the heart is then we’re all just fucked” – LOL – “My mind is a safe / And if I keep it in we all get rich / My body is an orphanage / We take everyone in” – LOOOOOL), What a Catch, Donnie (bem mais sincera e orgânica que Golden), (Coffee’s For Closers)…
Não, veja, essas foram as que eu excluí. As que eu quero te mostrar são as seguintes:
20 Dollar Nose Bleed foi gravada, inclusive, com o vocalista do Panic! at the Disco, Brendon Urie. Ela tem um refrão tão forte (mesmo sendo tão leve), com uma letra tão curiosa: “Give me a pen / Call me Mr. Benzedrine / But don’t let the doctor in I wanna blow off steam / Call me Mr. Benzedrine / But don’t let the doctor in”. A letra, aliás, é um exemplo de como Fall Out Boy cresceu, mesmo que não necessariamente para territórios óbvios: falam de literatura quando mencionam “The Man Who Would Be King“, mas também de política quando na mesma estrofe atordoam: “Goes to the desert / The same war his dad rehearsed / Came back with flags on coffins and said / “We won, oh we won””. E o que é aquilo com “Only one book really matters / The rest of the proof is on the television”?
A próxima é Headfirst Slide Into Coopestown On A Bad Bet. Que música, meus amigos – ela tem pegada, o pré-refrão vêm com uma guitarra danada e, embora o refrão pareça meio anti-climático, ele traz um elemento destoante bem interessante pra música. No lado das letras, nada muito inovador no conteúdo, mas a forma mostra um FOB brincalhão extremamente divertido: você não é um fã até saber cantar por instinto, sem contar, a parte do “wish I din’t I didn’t I didn’t (…) I DON’T!”.
W.a.m.s. é uma música esquisita por várias razões: ela tem uma sonoridade que me lembra muito um samba no começo e no fim (aliás, depois do fim da música tem um minuto de algum blues estranho); a letra é bem pop, quase sem nenhuma idiossincrasia fall-out-boyiana pra comentar, exceto que a música é tão épica, especialmente no refrão, que mesmo que a letra não tenha nenhum grande significado, um pequeno serve: “Hurry, hurry / You put my head in such a flurry, flurry / What makes you so special? / What makes you so special? / I’m gonna leave you / I’m gonna teach you / How we’re all alone” – nada demais, mas Jesus como é bom cantar essa parte a plenos pulmões, e como ela gruda na cabeça!
Por fim, essa é uma música que implora para ser ouvida via fones de ouvido (bons). As minúcias são muitas e transformam essa faixa numa obra-prima: o som meio “sirene” no início; o sutil “tamborilar eletrônico” durante o refrão que dá uma urgência ainda maior à faixa. É realmente incrível.
Miss Missing You
Fall Out Boy nunca mais foi o mesmo depois de Folie – para bem e para mal. Não só eles deram um tempo como, quando voltaram, mudaram significativamente o estilo da banda. Em Save Rock and Roll, é difícil dizer quais músicas ficaram pouco conhecidas; obviamente, você já deve ter ouvido a do Elton John, Phoenix é maravilhosa, a da Courtney Love é uma bela porrada… E não tem como usar clipes como critério, porque todas as músicas desse álbum têm clipes.
Acho que a que mais vale a pena indicar é Miss Missing You: a intrusão eletrônica no power pop deles não fica tão dançante quanto em Where Did the Party Go, e o final do refrão é marcante: “Sometimes before it gets better / The darkness gets bigger / The person that you’d take a bullet for is behind the trigger”. É boa, muito boa.
Novocaine
Será que é porque tantas bandas (Bon Jovi, Alice Cooper, Beck – take your pick) têm músicas com o mesmo nome que eu achei que essa faixa é meio enterrada na discografia deles? Não sei. Mas no mesmo álbum de Centuries, que eu achei meio apelativa, e Irresistible, que é descaradamente apelativa, Novocaine me parece fantástica – dançante sem deixar de ser rock’n’roll, ela lembra um pouco a ambiguidade de Party Poison: uma música de festa com letras anti-festa.
Conhece outras?
Eu particularmente não ouvi ainda o EP PAX AM, nem o álbum de remixes deles (Make America Psycho Again – o Fall Out Boy tem os melhores títulos ever), então esses ficaram de fora. Mas então – tem alguma que eu esqueci? Curtiu esse lado B da banda? Deixe um comentário!