Esse livro é uma delícia. É maravilhoso, e se tornou um dos meus dez preferidos em termos de ficção.
É preciso ter em mente uma dupla escolha que foi feita em termos de marketing, na minha opinião: uma delas foi boa, outra foi “neutra”. A neutra é que a história não tem nada a ver com a perda de identidade no mundo moderno ou coisa parecida – pelo menos nenhum elemento me fez pensar nesse paralelo simbólico, e olha que ao longo do texto fiquei esperando que algum aparecesse. A boa é que não se disse o que a história realmente quase é, isto é, uma tragédia. Está certo que ela não termina tão mal quanto uma, mas o jeito como o autor constrói termos como o destino e o senso comum é fenomenal – na verdade toda a ideia do senso comum como um personagem não só é uma infusão de um humor ranzinza incrível como, ao meu ver, torna essa história algo muito semelhante a uma tragédia: a tragédia se compõe justamente das decisões ruins do herói que o levam a essa ruína. E, como a história faz pensar (e indicar), essas decisões em grande parte são justamente um contrariar o senso comum.
O final é excelente. Todas as coisas que acontecem nele.
A meta-linguagem é muito, muito, muito bem executada.
Eu lembrava que ler Saramago era cansativo, mas não tenho muita noção se esse é pior ou melhor nesse sentido que ‘Cegueira’ ou Intermitências da Morte. Talvez os parágrafos pareçam ainda mais avassaladores porque se trata de uma versão de bolso a minha, mas ainda acho o estilo dele fantástico – ainda que entenda quem possa se afastar dele.
Inclusive, se há uma coisa negativa que posso ter percebido, é como o estilo de diálogo dele favorece que cada diálogo se torne quase um ensaio para uma peça de teatro. Não tem muita fluidez, movimento – sim, na fala sim, e quantas conversas fantásticas ele nos dá; mas parece que elas são entregues enquanto os personagens ficam parados, com caras de tacho, as bocas servindo de alto-falantes passivos. Fica uma coisa meio estática, mas acho que teria dado muito errado se a linguagem, que nesse caso vira a estrela do show, não fosse tão bem talhada e trabalhada. Nenhuma analogia parece forçada, nenhuma poesia, brega; o narrador, nunca identificado, tem uma voz bacana e a história é cheia de insights. Ah, e os diálogos, esses que se fez com coisas boas, também são traçados como bem naturais em suas pausas e desvios, fluxos e refluxos.
É curioso como o palavrão é tratado às vezes, na literatura em geral, como uma questão de estar por todo o lugar ou não estar em lugar nenhum. Isso porque se ele não aparece com frequência, quando aparece pode confundir o leitor e parecer fora de lugar, já que a narrativa nunca indicou que era esse tipo de história. Mas aqui funciona porque, mesmo que por centenas de páginas ele não tenha aparecido (até que o tenha feito), há um certo tom ranzinza no narrador e uma certa névoa de tensão nos personagens que não nos faz desgostar quando eles aparecem. E, por terem sido raros, quando aparecem, tem muito impacto. Demonstram descontrole do personagem, raiva, energia narrativa.
There’s so much stuff out there. Stuff I want to learn. Stuff that could be learnt. I think losing an opportunity to learn is a huge mistake, because most people, in their own pace and with their own goals, end up learning something, somehow, somewhere, with somebody or on their own, with nobody to hold their somewhat confused chins up – and when they do, what usually happens is that you’re left behind, in the dust, unable to keep up with whatever’s going on in their hearts. It’s not about technology, it’s about life’s simple truths that may never get caught by philosophers’ fishnets and chronists’ thick glasses before hazy, desaturated eyes. Truths that might live short-lived lives beneath the lines of what we read on walls that have never been painted, but are there to yell boundaries at our hands and feet. You’re left reminiscing on everything you didn’t learn when you had the chance. You’re left with a feeling, not with the consequences of your acts, and it’s precisely that which could drive one up to a deep, boring, scar-faced despair, with a farced starry body and a sharp sword pointing towards the sky.
No vídeo a seguir do excelente CGP Grey, argumenta-se que os smartphones são hoje basicamente uma extensão do nosso “eu”. Se você precisar escolher, exemplifica Grey, entre dar para alguém o poder de ler a sua mente ou acesso ilimitado ao seu smartphone, o que você escolheria? Bem, a resposta intuitiva parece ser o telefone mas, como ele ressalta, nossa memória é falha; o celular, contudo, sabe muitas coisas sobre nós; dados que nós mesmos esquecemos ou não sabemos que ele possui, e isso é complicado. Veja o vídeo (em inglês):
Pensei nisso porque estava aqui estudando e me ocorreu fazer um comentário sobre um autor: “que idiota!”, digitei. A questão é: se alguém tiver acesso à minha conta do Google, a esse documento no Google Drive, e se eu for notável o bastante para que esse comentário ganhe importância para o público amplo, o que ele diz sobre mim? O fato de eu tê-lo digitado é, creio, a mesma coisa que se eu tivesse tão-somente pensado nele – não é indicativo de nada; é só uma impressão primária que eu quis registrar, mas que eu certamente refinarei antes que qualquer coisa relacionada a esse material venha a público.
Afinal, quantas vezes pensamos coisas desagradáveis para, meio segundo depois, pensarmos melhor e abdicarmos do que atravessou a cabeça? A questão, já disse Graeber e disseram outros, não é o instinto, a vontade, o pensamento solto; esses nós temos quase todos, mas só o fato de existirem não quer dizer nada. A grande questão é como são organizados, hierarquizados, de que forma influenciam nossas ações – em outras palavras, o que escolhemos efetivar em palavras (que outras pessoas vão ouvir ou ler), e principalmente ações. Enquanto o pensamento está dentro da cabeça, tanto faz.
Mas e enquanto ele estiver dentro de um documento que julgo que ninguém lerá? É a mesma coisa que se estivesse dentro da minha cabeça, não é? Ele não foi feito pra ser lido por outras pessoas, nem tem qualquer efeito sobre o resto do mundo. Sem nem entrar no mérito dos diários – embora a temporalidade implica uma reflexão contínua, e portanto uma certa seleção da variedade de pensamentos que nos recorta – isso basicamente faz de nossos dispositivos e recursos pessoais da internet parte de nós mesmos de uma forma bastante interessante.
Único método de manter o foco, a clareza, a paciência e a sanidade mental ao ler filosofia ou sociologia contemporânea: ignorar os apostos na(s) primeira(s) leitura(s).
A comunicação só existe entre iguais, e por isso mesmo é rara entre nós. No momento em que conhecemos alguém nos enredamos em pontes de poder. O desequilíbrio é a regra, não a exceção. O ‘ser igual’ a alguém é um constante processo de ‘tornar-se igual’, processo que colabora de forma considerável com a formação de nossa personalidade, de nosso ser social, ao praticarmos a elevação ou o rebaixamento, ao abdicarmos ou reivindicarmos, ao pegarmos ou largamos, pelo bem de verdadeiramente ouvir e ser ouvido.
Como colocar palavras nas bocas dos personagens? Eis uma decisão complicada. Não falo aqui de estilo (literalmente quais palavras escrever), mas da direção da conversa, para onde ela vai a partir do que os personagens resolvem dizer.
A primeira coisa que costuma aparecer na cabeça do autor num diálogo comum, parte qualquer no meio da história, é: o que é preciso para levar a história adiante? Ao rascunhar o “esqueleto” da narrativa, você já sabe o fio geral que transforma o começo no fim. O que os personagens dizem é em grande parte determinado por esse fio. Ao falar e fazer coisas, os personagens põem em marcha os acontecimentos planejados.
Vamos a um exemplo. Você precisa que a personagem Maria descubra que seu namorado João comete adultério com Joana. Por alguma razão você quer que ela descubra isso por uma conversa com outra personagem, não num flagrante. Por isso, nessa parte, você pode criar um rascunho que simplesmente diz “Mário conta para Maria que João tem um caso com Joana”. Na hora de escrever de fato essa parte, pode rolar algo como “Maria, tenho que contar uma coisa… O João tem um caso com a Joana”, e a Joana responde “Não! Não é possível! Não acredito!”, e Mário responde “Mas é verdade, você tem que acreditar”.
Repare que o diálogo se encaminha para a prova de que Mário está dizendo a verdade, porque a história precisa ir adiante; a próxima coisa que você já decidiu que vai acontecer é que Maria vai até a casa de João pra conversar sobre o assunto, e para isso a Maria tem que minimamente acreditar na revelação. Pense em qualquer mundo fantástico invadido por pessoas do “nosso” mundo: elas têm que ter um tempo para se surpreender, mas eventualmente devem parar de achar que estão loucas e aceitar a realidade, ou então nada acontece na trama. Isso é uma coisa potencialmente difícil (por conta da tensão entre realismo e eficiência narrativa) que Perdida, por exemplo, executa bem.
O diálogo acima (super tosco, eu sei) é eficiente: ele pode ser tão pequeno quanto necessário para que o ritmo continue sendo rápido, ou mais longo se você precisa dar uma parada no fluxo – até para focar, de repente, a subjetividade da Maria, que sofre com a descoberta. Tudo depende. Mas há vários outros critérios que podem ser usados em diálogos para moldar o que os personagens vão dizer – e, em geral, o processo constante de revisão ao qual o autor submete seu próprio trabalho acaba lidando com eles.
Contexto e motivação
Uma das piores coisas que se pode acontecer com um diálogo “eficiente” é que, na ânsia de fazer ele executar a função para a qual foi planejado, coisas mais elementares são esquecidas: o que os personagens querem. Por que Mário contou isso pra Maria?
Contexto também é fundamental. Por que eles se encontraram naquele momento e naquele lugar? Isso importa, porque a suspensão de descrença não fraqueja só em filmes de super heróis; se você precisa tanto que Mário conte isso pra Maria que você está disposto a fazer eles se encontrarem aleatoriamente no centro da cidade, muitos leitores serão estapeados por essa conveniência absurda: vai ficar claro que o autor precisava dar um jeito de Mário falar com a Maria e, como não conseguiu nada de bom, fez os dois se encontrarem por acaso. Mas em ficções, [um] Deus existe. As pessoas esperam responsabilidade, causalidade e lógica das histórias que os humanos escrevem – ou poesia.
Se o encontro (entre Mário e Maria) for surpreendente, isso ainda será abordado no diálogo – afinal, quando nos encontramos com alguém por acaso e temos tempo para conversar sobre relacionamentos e traições, certamente iniciaremos a conversa com “O que você está fazendo aqui? Que coincidência!”. Isso confere mais naturalidade e fluidez ao diálogo.
Small talk
Isso depende muito do estilo do livro e do fluxo da história, mas o exemplo anterior é duplo: não só é sempre interessante providenciar, no diálogo, um pouco do contexto da conversa e das motivações de seus participantes, o fato é que raramente vamos ao ponto do que queremos falar – especialmente no começo de uma conversa, no princípio de encontro com outra pessoa. “O que você está fazendo aqui? Que coincidência” é ótimo para começar, mas Mário não cortaria Maria imediatamente para “Precisamos conversar sobre o João” (ou talvez sim, depende do contexto, mas ignoremos isso por um momento). É muito mais possível, se são duas pessoas normais e não espiões soviéticos, que Mário responda a pergunta e faça mais “conversinha”.
Talvez é a partir dessa conversinha que Mário chegue ao pensamento de que talvez seja bom falar sobre o que sabe sobre o João (“Cadê o João?”, “Ah, tá trabalhando hoje”. “Hm. Pois é… Então, desculpa te falar, mas… Acho que não”).
Assimetrias
A comunicação é cortada e perpassada por relações múltiplas de poder. Só há comunicação entre iguais, mas a maioria entre nós, em relação a outros, somos desiguais.
Digo isso porque o planejamento de um diálogo geralmente passa, como dito acima, pela listagem das coisas que se precisa que os personagens digam – ou melhor, o que o leitor precisa tirar daquela conversa – e então a organização temporal dessas coisas. Mário diz isso, Maria diz aquilo, aí Mário diz isso, e Maria diz aquilo. Se não há cuidado, os personagens acabam sendo receptáculos vazios de informações – sendo raquetes de um ping pong de palavras.
Isso parece bastante óbvio e às vezes já está embutido no planejamento do autor. Se Mário tem interesse romântico em Maria e é um homem confiante, vai provavelmente falar de uma forma bastante incisiva e proselitista sobre o que João está fazendo. Se é mais inseguro, vai provavelmente se desculpar milhões de vezes por falar daquilo, com medo de magoá-la, de perder suas chances com ela… E já vai ter sido muita a coragem de falar em primeiro lugar. Se Maria tem um interesse romântico em Mário, como vai reagir a ele falando isso para ela? É mais do que a forma como o narrador vai mostrar que ela se sente; como isso impacta o que ela vai dizer pra ele nesse diálogo? Ou ela não vai aguentar o que vai encarar como uma humilhação e vai sair correndo, evitando o diálogo completamente?
Isso pode estar entranhado na premissa da história de tal forma que não abandone a mente do autor, mas há outros cenários, e isso faz diferença também com personagens menos tridimensionais, como “coadjuvantes” e “quase-figurantes”. Se Mário é o chefe da Maria, ele vai abordar uma discussão assim pessoal (por mais que ele entenda que é para o bem dela ou coisa parecida), de uma forma muito diferente – e também muito diferente, em outro sentido, se for um chefe escroto. Em ambos os casos, a forma como Maria responde deve levar em consideração esse diferencial de poder. Se Maria é chefe de Mário, aí a coisa também muda. Se eles são colegas de trabalho, também é outra coisa. Todo tipo de interesse e de relação de poder que incide entre eles pode ter consequências palpáveis sobre as palavras que escolhem para dizer o que dizem – e principalmente sobre o que não dizem.
Esse processo psicológico pode ser revelado por um narrador em primeira ou terceira pessoa… Ou permanecer escondido – o que é formidável também, porque incita o leitor a formar suas próprias conclusões sobre o que exatamente está por detrás das escolhas de palavras (e informações) dos personagens. É só lembrar, por exemplo, a confrontação entre Bentinho e Capitu sobre a paternidade de Ezequiel.
Ineficiências
Os personagens dialogam dentro de um contexto específico e o que eles querem dizer e fazer deve moldar o diálogo mais do que aquilo que a história exige deles no momento. Os diálogos, quando isso se acomoda bem ao estilo e ao ambiente da obra, deveriam incluir mais do que somente as “informações essenciais”, mas também coisas menores e corriqueiras que nos ajudam a ter uma noção dos personagens e da interação entre eles. E falando em interação, é preciso sempre se perguntar como as diferenças entre os personagens, de interesses e de “posição”, formulam e reformulam aquilo que eles escolhem dizer e como escolhem dizê-lo.
Só que falta uma coisa ainda. O parágrafo acima, que resume a postagem até então, pretende aperfeiçoar o diálogo no que interessa a primeira característica que discutimos: sua eficiência. Ele ainda traz ao leitor o que ele precisa saber, mas o faz de forma mais natural e robusta. Só que, especialmente se você quer uma certa “naturalidade” em sua obra e uma relação mais humana entre os personagens, você deve abandonar, em parte, até a eficiência.
Pense em todas as discussões acaloradas que você teve com alguém: é muito provável que em grande parte delas, quando você ainda está de cabeça quente horas depois, você “descubra” alguma coisa perfeita que poderia ter dito pra outra pessoa. Mas, infelizmente, o tempo passou – a oportunidade foi perdida e você se morde por só pensar agora nessa frase perfeita para contra-atacar seu adversário.
O escritor não deveria se aproveitar do fato de que pode “voltar no tempo” – revisar uma discussão de novo e de novo e de novo, quantas vezes achar necessário – para aperfeiçoar uma discussão. A ideia de que você pode colocar num papel o que Mário tem que dizer / quer dizer, o que Maria tem que dizer / quer dizer, e aí “dar um jeito” de encaixar tudo numa conversa, é problemático – porque na vida real isso nunca acontece. Sempre ficam coisas por serem ditas, coisas mal ditas, coisas ditas a mais a partir de uma derivação do assunto original da conversa – e isso não se trata apenas de brigas, mas do dia a dia. Mesmo coisas bem expostas pelo emissor podem ser mal interpretadas pelo receptor.
No entanto, o escritor precisa encontrar um equilíbrio: um jeito de fazer cada conversa passar mais ou menos ideias que se quer que o leitor “pesque” (sem esfregar na cara dele, por favor) a, ao mesmo tempo, dar autenticidade à conversa. Uma forma boa de fazer isso é ter em mente uma ideia vaga sobre o que cada personagem quer daquela conversa, ou como está reagindo a novas informações, e escrever uma primeira versão instintivamente – pondo no papel a primeira resposta que vem à cabeça. Obviamente aquilo pode ser imperfeito demais para servir aos propósitos da trama – e consertos terão que ser feitos. Mas consertos a partir de um bom molde inicial têm mais chance de resultarem em algo “natural” e eficiente na medida certa do que um molde planejado meticulosamente demais.
De coisas que buscam aprimorar o diálogo até aquelas que, com o mesmo objetivo, retiram-lhe atributos (mas não de maneira forçada), essas são boas dicas para criar um diálogo dinâmico e informativo.
“Viver nos Estados Unidos no século XXI é como estar em uma Revolução Francesa ao contrário. Os ignorantes querem colocar uma aristocracia antiética no governo; ocorre o inverso da Queda da Bastilha, já que se enfiam mais e mais pessoas em prisões cheias, para o lucro dos aristocratas, e os pobres estão morrendo não de fome, mas de obesidade epidêmica, por LITERALMENTE COMEREM BOLO.”
Há várias formas de organizar diálogos / conversas em textos. O mais comum deles, por ser padrão editorial no Brasil, é o diálogo com travessão.
— E aí, como vai? — disse Pedro.
— Vou bem, e você? — disse Marta.
— Muito bem.
— Eu também estou bem! — intrometeu-se Carlos.
Uma coisa que eu considero particularmente importante nesse tipo de conversa é a separação entre o que realmente foi dito e o que se trata de “explicação” do narrador, ou de outras coisas que o narrador possa dizer. Assim, ler O Triste Fim de Policarpo Quaresma é um tantinho irritante, pois muitas vezes as conversas são escritas dessa forma:
— Estou aqui por alguns dias apenas, disse Marta.
— Pois deveria ficar mais, Pedro suspirou.
Isso pode provocar uma confusão momentânea – algo que sempre subtrai da experiência de leitura (não se trata de uma confusão narrativa, que pode tornar a história intrigante, mas sim do próprio fluxo do texto — aí é ruim).
Outro tipo de diálogo é um mais “anglo-saxão” – usando justamente as aspas como modelo.
“E aí, como vai?”, disse Pedro.
“Vou bem, e você?”, disse Marta.
“Muito bem”.
“Eu também estou bem!”, intrometeu-se Carlos.
Isso faz alguma diferença? Tudo faz diferença. Em se tratando de escrever, não só as palavras são o nosso material, mas também o meio — a tipografia, o espaçamento, tudo faz diferença porque o fluxo de leitura é importante pra experiência geral. A questão é saber qual diferença faz, e aí entramos em um território de ambiguidade.
Pra mim, o fato de que as aspas marcam menos graficamente o diálogo faz com que ele esteja mais integrado à narração. Os travessões não tornam o texto uma peça de teatro ou um roteiro de cinema – com o nome de quem fala aparecendo em letras maiúsculas antes mesmo do que é dito, ou com cada trecho da conversa destacada, flutuando acima do resto – mas ainda o organizam de forma a lhe dar alguma especificidade, alguma proeminência no encaminhar do que acontece.
Um aspecto interessante das conversas organizadas por travessões é algo que um editor uma vez me sugeriu: partes descritivas da narração devem estar separadas das conversas. Por exemplo, isto aqui estaria, em tese, errado:
— Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto. Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Isto é o que deveria ser escrito:
– Vamos para o Paraná no fim de semana — disse Alberto.
Maria levantou os olhos para ele e o filho já não lia nenhuma raiva neles; apenas medo.
Além disso, o travessão também exige que você separe as conversas a partir de quem fala. O exemplo a seguir quebraria convenções de forma que, para a grande maioria dos leitores, seria extremamente confuso e frustrante:
– Não, nós vamos sim – insistiu Alberto. – Mas como é que vai ficar seu pai, filho? – questionou Maria.
As duas falas deveriam vir em linhas separadas. É justamente por essa sequência alternada que os travessões criam – Alberto Maria Alberto Maria Alberto Maria – que é imprescindível marcar o falante após uma pausa imposta pelo narrador se o falante ainda é o mesmo. No exemplo a seguir:
– Ele não precisa ficar sabendo…
Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto.
– Vai ser só por um dia.
Considero muito importante adicionar um “— disse Alberto” à última linha, pois a dinâmica dos travessões faz crer que o próximo é uma fala de outra pessoa. Até porque, sendo da mesma, o exemplo anterior poderia ser organizado da seguinte forma:
– Ele não precisa ficar sabendo… – Paraná agora parecia ainda mais longe do que ontem para Alberto. – Vai ser só por um dia.
A diferença, é claro, é que o primeiro formato faz crer (mesmo que de uma maneira bastante sutil) um pouco mais de tempo entre as duas falas de Alberto.
A organização por aspas permite que o diálogo se “integre” mais à narração. Isso é ótimo quando se trata de primeira pessoa, mas não só nesse caso. A integração favorece aspectos poéticos da prosa, e mesmo quando isso não é prioridade a história fica mais “compacta”, e o que está acontecendo ganha mais destaque do que está sendo dito.
Peguei meu chapéu e fui me encaminhando pra porta. “Você pode ligar, pelo menos?”, ela perguntou, e eu não sabia mais como aguentar aquilo. Raspei o restinho de paciência que tinha ficado ainda no fundo de mim mesmo e o mordi com força para dizer que sim. “Se eu tiver crédito”, adicionei, já me virando. “Eu ponho pra você…”, sugeriu ela, esperando que eu fosse me demorar mais. Foi difícil acelerar o passo com a mão fechada na mala de rodinhas, mas era o que eu tinha que fazer.
Nada impede que as aspas sejam usadas de forma muito semelhante aos travessões. Todo esse parágrafo, por exemplo, poderia ser separado em vários, com aspas iniciando cada um. Mas o que foi feito aqui não poderia ser feito em um só parágrafo apenas com travessões, por se tratar de duas pessoas falando. É preciso notar que as mesmas distinções valem para conversas com mais de uma pessoa, e vale ressaltar o que parece óbvio: a vantagem de poder comprimir conversas e costurá-las à narração é um ganho, no mínimo, de espaço / número de páginas.
É possível misturar as duas organizações? Com certeza, mas é preciso cuidado. Ficaria estranho e confuso usá-las alternadamente e para o mesmo propósito — por isso, na maioria das vezes em que os dois estilos são empregados, trata-se de uma divisão de tarefas: os travessões ficam com o que é dito, e as aspas com o que se pensa.
– O ônibus já chegou? – Ele perguntou.
– Não. – “Tá vendo ele, imbecil?”
Outra forma de usar os dois estilos ao mesmo tempo é usar um como primeira fala, e o outro como réplica (e isso ao longo das falas e réplicas). Isso tem dois efeitos extremamente interessantes: em primeiro lugar, novamente, comprime o texto (deixa a leitura mais rápida, o que influencia a percepção de tempo e dinamismo do leitor, e faz o escritor ganhar espaço), mas também estabelece um falante como ativo, e o outro como mais passivo. Considere:
— Eu não quero mais voltar — “Tem certeza?”, ele perguntou. — Eu não vou mais voltar, Gregório — respondi, virando o rosto pra janela. Eu não queria que ele me visse chorando. — Eu cansei, já. Não dá mais. Me recuso — “E se eles acharem a gente?” — Eu já disse que posso proteger nós dois.
Ouvi um movimento do meu lado, mas não adivinhei a postura dele. — Você duvida? — perguntei de soslaio. Ouvi um tímido “não” e não quis insistir; não agora.
Por outro lado, se o objetivo é interconectar a narração à conversa não há nada melhor (e mais experimental, e mais único, e mais maluco, e mais divisivo), do que o “diálogo de Saramago”. Se você nunca leu Saramago e não sabe do que estou falando, trata-se de uma conversa, mesmo entre múltiplos personagens, sem nenhuma demarcação entre fala e narração. Tudo, da cadência do narrador às pausas dos personagens, é separado por vírgula, no máximo um ponto e vírgula. Esse é um diálogo “ame-o ou deixe-o” que você pode tentar usar, e os efeitos, considero, são um pouco imprevisíveis. É confusão que se quer passar? Ou uma ideia de complementaridade tão grande entre o casal que as falas dos apaixonados já são indissociáveis? Ou ainda é emoção, rapidez, o quão afoito alguém está? Recentemente li este conto de Natália Nami (Procure por “Briga de casal” na página), que foi selecionado pelo prêmio Machado de Assis 2014 do SESC/DF. Ele mistura vários desses elementos (aspas, a vírgula de Saramago e a narração em primeira pessoa) e o resultado final é muito, muito bom.
Bem, estas são as formas mais conhecidas de organizar conversas na literatura. Elas têm diferentes efeitos, propósitos e tradições. E vocês, escritores e leitores – qual é o seu estilo preferido?
Sérgio Buarque tem esse trecho do “Raízes do Brasil” em que ele fala sobre o amor bizantino aos livros: tratamos os libros como sagrados objetos de adoração, e não posso desmenti-lo; acontece com quem gosta de livros e também com quem não gosta (pois eles continuam sendo símbolo de intelectualidade de qualquer forma). Se por um lado isso parece bom, será mesmo que isso não tem a ver com o nosso baixo índice de leitura país afora?
Será que não deveríamos banalizar mais os livros? Afinal, popularizá-los só pode significar que estamos dispostos a sujeitar os coitados a todo tipo de coisa. Popularização sempre significou trazer o sagrado ao mundano, não o contrário. O que ganhamos ao idolatrar o livro? Ao ver rasuras, anotações e “orelhas” como sacrilégios, não estamos afastando-os, por exemplo, do contato verdadeiramente lúdico que as crianças tem com um objeto?
As pessoas são como plantas. Plantas que crescem no meio do vento que é o resto do mundo.
O vento das oportunidades, o vento das restrições, o vento da cultura, o vento dos fracassos e dos fracassados.
É um vendaval que nunca para. E a planta cresce. Ela resiste. Cresce também de acordo com sua informação genética, é claro, mas tem que se conformar com o vento e planejar sua adaptação a ele.
Ela pensa em um dia ser frondosa árvore.
Mas o vento é o vento. O vento pode quebrar uma planta. Tamanha força pode afastar polinizadores. No mínimo, a árvore acaba torta depois de tanto contato com essa força implacável. E torta ela cresce. Pra um lado ou pro outro, torta.
É ridículo dizer que a planta cresce sem o vento. Que, não, imagina, o vento não a afeta. Pode o vento transformar pitangueiras em jabuticabeiras? Mas como apontar para uma planta e dizer que ela é torta porque quer?
Mas… Talvez…
Talvez as pessoas não sejam plantas. Talvez não sejam como plantas. Talvez sejam simplesmente humanos. Humanos ao vento, tentando resistir. Às vezes colocando a mão à frente do rosto; às vezes desistindo e resolvendo sentir de vez o vento ao invés de brigar com ele. Por vezes caindo e ficando lá no chão, estatelados.
Às vezes conseguem dar um passo à frente. Elas se desequilibram, é complicado, mas elas seguem. Têm determinação pra tanto.
Eventualmente podem descobrir que não gostam do caminho para onde estão indo. Às vezes é contra o vento, às vezes não. O importante é que tentem; que não sejam plantas, mas humanos. A explicação acaba aí; humanos possuem consciência – de alguma forma somos quem somos e, mesmo que por alguma mínima e ridícula diferença, não somos plantas.
Nós podemos tomar o controle da nossa vida? “Fazer valer à pena” tem como requisito assumir certas responsabilidades para com liberdades que queremos ter e com liberdades que vamos, querendo ou não, ter. Jogar-se ao vento de cabeça – não com galhos e folhagem e contando com uma incerta raiz, esperando o destino atuar.
Tem uma coisa na ficção que pode ser explorada de forma a produzir resultados muito interessantes: o “eu sei que você não pensa assim”. Digo ficção porque isso pode ser feito de forma visual em filmes e peças, ou mais literal (descritivamente, aproveitando uma imersão psicológica) em literatura.
Essa “técnica” (Trope? Esquema? Dispositivo?) consiste no seguinte: o personagem A conhece a opinião do personagem B sobre algo. Quando o personagem C levanta o tema, A observa atentamente o que B tem a dizer, percebendo que B está sendo inconsistente.
Essa situação é legal porque pode revelar muito sobre todos os personagens. Sobre o que o personagem C pensa, ou quis fazer, ao levantar o tema. Sobre o que preocupa o personagem A, já que ele prestou particular atenção a isso. E, principalmente, o que o personagem B pensa ou quer com sua fala.
É importante aprofundar aqui a questão do personagem B, porque o fato de que alguém ali sabe o que ele pensa é importante (estou pressupondo que o leitor entenda ou possa inferir que A conhece a opinião de B e também qual ela é, ou pelo menos que A conhece a opinião de B). Isto é: com esta nova situação, o leitor pode entender que B está mentindo para C? Ou que B mentiu, antes, para A? Qual é a verdadeira opinião de B? Há uma verdadeira opinião ou ele é puro oportunismo? Por que ele mentiu para quem ele mentiu? Ou ele mudou de opinião?
Além disso, a situação é relatable, isto é, você se identifica com ela porque ela acontece com frequência na vida real. Pode ser que você não se lembre assim de cabeça, mas não é raro ouvirmos algo de alguém e, mais tarde, ouvirmos algo diferente vindo da mesma pessoa quando o contexto é outro (e, é claro, podemos também ser nós mesmos os inconsistentes). Isso sempre levanta questões – o que significa, também, conflitos posteriores sobre isso entre A, B, e talvez até C. De qualquer forma, isso acontece e sempre problematiza um relacionamento, trazendo confrontos, obstáculos, e mesmo suspense para uma narrativa (no caso de suspense, pense numa pessoa que disse para o detetive que na hora do crime estava em casa, e na frente de outras pessoas disse que estava no supermercado).
Há ainda uma última possibilidade bacana: se bem escrito, um trecho como esse pode passar ao leitor alguma informação de forma sutil – fazer com que ele saiba de algo que talvez nem seja contraditório (para o personagem A, por exemplo) no momento, mas que depois adquira uma significância maior. Isso é sempre, sempre legal.