Sobre contratos, e o que há além deles

Na definição de Hobbes do estado de natureza, as pessoas são essencialmente iguais; dessa igual condição de oferecer perigo umas às outras – e de buscar os mesmos recursos limitados, ou seja, do igual direito natural (e vontade) a todas as coisas – surge a desconfiança, e daí, a guerra. Encontrando-se em perene insegurança, o homem deve antecipar-se a seus inimigos e atacá-los; daí a precipitação lógica da guerra.

Existem três principais causas para a luta no estado de natureza hobbesiano: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira faz o humano lutar por conquista; a segunda, por segurança, e a terceira, por reputação. Sem um poder comum para manter a paz entre os homens, haverá sempre guerra – talvez não literalmente um cenário de batalhas, afirma Hobbes, mas uma constante “disposição” para o conflito que torna impossível o usufruto da máxima liberadade natural que o homem possui neste estado de natureza.

A guerra é um estado miserável; “não há lugar para a indústria […] ou para a cultura da terra; […] Não há artes, não há letras, não há sociedade”. As paixões não devem ser culpadas por isso, apesar de serem responsáveis: afinal, as ações que advêm delas não são “pecados” conquanto não haja lei que as proíba – e a lei ainda não existe “até que se tenha concordado sobre a pessoa que deverá fazê-la”; “onde não há poder comum, não há lei: onde não há lei, não há injustiça” (HOBBES, 2009, p. 169-171). Os próprios conceitos de “justo” e “injusto”, não existindo independentemente no mundo, necessitam da emergência da lei para serem criados.

Hobbes postula que esse estado de natureza pode jamais ter existido historicamente – embora ressalte que alguns povos selvagens ainda vivam dessa forma nas Américas, além de notar que a política internacional (tratando, assim, Estados como indivíduos) funciona de forma muito semelhante.

Mas o que impele os homens a sair do estado de natureza? O medo da morte, fundamentalmente, mas também o desejo de obter coisas necessárias à vida cômoda, algo que a paz e a colaboração regulada podem trazer. Após definir as leis naturais às quais os homens racionais convergem (com as quais concordam) e discutir noções importantes no projeto filosófico hobbesiano (como “autor”, “autoridade” e a ideia de que uma multidão pode ser una), o autor inglês passa a definir assim o surgimento do Leviatã, o Estado, o Common-wealth. O Estado surge para proteger a vida individual – ou seja, para conservar a “segurança particular”; essa é a “causa final” da “introdução de [uma] restrição sobre si mesmos” (HOBBES, 2009, p. 252). Mesmo que os homens, através da razão, possam descobrir as leis naturais, ainda é preciso a força – a ameaça, o medo – para garantir o cumprimento dos acordos. A estabilidade, inclusive (tanto “interna” quanto a coesão contra um inimigo “externo”), não simplemente vem da quantidade de pessoas que vivem juntas: é preciso um poder acima da “multidão” para gerar a paz, subjugando e dirigindo os indivíduos. Um poder contínuo; não um episódico, que crie uma paz temporária. Hobbes busca uma solução estável ao longo do tempo.

Assim, conclui o autor, os homens que queiram viver em paz e garantir a própria segurança e prosperidade devem “conferir todos os seus poderes e forças a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade de vozes, em uma vontade” (HOBBES, 2009, p. 259). Existe uma autorização explícita, assim – o contrato – para que o soberano aja em nome dos súditos. Assim forma-se o Leviatã, o “Deus mortal” ao qual se deve a paz e a defesa. A essência do Common-wealth é, assim “uma pessoa cujos atos uma grande multidão, por acordos mútuos uns com os outros, tornaram-se cada um o autor, e ele deve usar a força e os meios de todos, como pensar ser expediente, para a paz e a defesa comum de todos” (HOBBES, 2009, p. 260). A pessoa a incorporar o poder soberano será conhecida como soberana.

Os contratualistas clássicos

Existe uma certa lógica em Hobbes que inaugura a tradição filosófica do contratualismo propriamente dito: imagina-se (ou supõe-se, com alguma base histórica, embora isso seja mais raro) um estado de natureza em que a humanidade se encontra; ao fazer uso da razão, os humanos se organizam politicamente (dão origem ao Estado). Essa passagem é feita através do contrato, e a sociedade resultante é melhor que a anterior.

O estado de natureza é sempre caracterizado como negativo – isso é quase uma necessidade lógica; seria estúpido ter “saído” dele se ele fosse positivo. Em geral ele é belicoso; em Locke, por exemplo, ele está sempre no limiar de se tornar belicoso uma vez que não há mecanismos para garantir os direitos naturais. Mas para Pufendorf e Spinoza, por exemplo, o que leva os homens a constituir uma sociedade civil é a infelicidade de viverem sozinhos; existe uma necessidade espiritual (para não mencionar a material), mas que de qualquer forma adjetiva como negativo o estado natural. A concepção de Rousseau é um pouco mais complexa, posto que “triádica” em vez de “diádica”; o estado de natureza em si é bom, pois o homem selvagem é bom; a “sociedade o corrompe”, isto é, processos sociais (como o estabelecimento da propriedade privada, este mesmo evento originado por outros) dão origem à sociedade civil, um estado de desigualdade e não-liberdade que é negativo. O estabelecimento da república democrática restabeleceria (o quanto possível) a positividade outrora existente.

Para todos os contratualistas, iluministas ou não, o que importa é o uso da racionalidade: é este o principal ingrediente que modela a passagem para um estado social positivo, e é a ausência dele que caracteriza, por diferentes caminhos, o estado natural como impróprio e indesejável. Parte dessa caracterização pode ser vista na forma como a “sociedade civil” (ou aquilo que vem após o contrato) é entendida. A sociedade politicamente organizada não é uma continuação óbvia, uma progressão orgânica, de unidades “naturais” como a família; ela é uma substituição do estado de natureza. Locke é um dos contratualistas mais claros quanto a isso, pois discorre acerca do poder patriarcal (familiar) e senhorial – nenhum dos quais pode servir de base para a sociedade política. A razão, característica do indivíduo racional livre (como em Kant, ou mesmo em Hobbes e também Rousseau) é a base dessa divisão radical que institui a sociedade contratual – divisão que separa os homens dos cidadãos.

Mas o que é este contrato? Como funciona este dispositivo – ou por que ele foi escolhido como a analogia capaz de explicar filosoficamente os fundamentos da sociedade política e racionalmente ordenada no contexto de um Estado? Em geral, como notou Rousseau, os homens encontram-se em toda parte em uma situação de desigualdade que por vezes se institui como escravidão; empiricamente falando, as sociedades humanas do contexto dos autores são essencialmente desiguais. Mesmo assim, em termos racionais, encontramos uma igualdade essencial entre os homens, seja em sua situação potencial (como em Hobbes, segundo quem por meio de algum artifício qualquer homem é capaz de dominar outrem) ou em sua natureza (como em Kant, em cuja concepção de sujeito Rawls se apoiará mais tarde). Entre iguais, receita o bom pensamento, só pode haver acordos consensuais; e assim, especialmente em Locke, o contrato ganha as funções simultâneas de legitimação e explicação – se indivíduos originalmente livres e iguais se submetem a um poder comum isto só pode ter sido feito através de um acordo recíproco.

Assim, o contrato aparece como a figura perfeita para compreender a situação de uma sociedade política racional, voluntária; ele complementa a noção de cada contratualista sobre o estado de natureza porque estabelece a maneira como a razão vence a natureza humana; o artifício e o engenho homologam a conquista do espontâneo e passional como a alma cristã deve dominar seu corpo. O objeto do contrato, para além do formato comum deste, varia e é mais específico, tratando dos direitos específicos que são barganhados, o que modela a sociedade resultante. Em Hobbes, todos os direitos são cedidos para o soberano, exceto o direito à vida, de modo que o súdito pode assim resistir ao Estado caso esse direito seu (que é, afinal, a razão para a constituição do Leviatã em primeiro lugar) não esteja sendo resguardado. Para Locke, os direitos individuais (o direito à propriedade, que vai além da propriedade de bens materiais mas abarca também a possa da própria vida, do próprio corpo) não são cedidos, mas conservados – no estado de natureza o que falta é apenas um juiz imparcial que possa gerenciar e ajudar a conservar os direitos. Rousseau, o mais totalizante dos contratualistas, busca a transferência completa dos direitos – mas é preciso, para entender seu projeto, compreender que o Estado tem para ele não apenas a função de proteger o indivíduo, mas de transformá-lo.

Para Hobbes e Rousseau o poder constituído pelo contrato é “absoluto”, no sentido de que os soberanos, neste caso, não estão presos às mesmas leis civis que os súditos; já para Locke, este não é o caso. Locke também se diferencia dos demais (e pelo mesmo motivo, a saber, de que para ele a tirania é pior do que a desordem e a desagregação) ao pressupor um direito inalienável à revolução caso o governo não cumpra seu papel. Os direitos em Locke não costumam ser cedidos; o direito a fazer os próprios julgamentos é transferido para agentes imparciais justamente para que se conservem e protejam os outros direitos. Caso o governo não cumpra esse papel (proteger os direitos), então ele pode ser resistido, o que não ocorre em Hobbes, Rousseau, Spinoza ou Kant: para Hobbes, apenas o indivíduo pode empregar táticas de resistência caso sua vida esteja em perigo. Para Rousseau, a própria pergunta mal faz sentido, uma vez que na República bem constituída as leis são feitas pelos próprios indivíduos, e a liberdade significa obedecer a uma lei proscrita por si a si mesmo. Já para Spinoza e Kant, a obediência nas ações é imprescindível – a liberdade a qual o Estado não pode alcançar, e assim verdadeira liberdade e potencial de resistência, está no pensamento; embora o direito de agir independentemente tenha sido alienado, o direito de pensar independentemente jamais poderia sê-lo. Quanto à questão da divisibilidade do poder, o dissenso entre os autores é na verdade aparente; nenhum dos contratualistas clássicos vê com bons olhos a divisibilidade do poder, de modo que a separação de tarefas não implica a divisão da soberania, que permanece una (em Hobbes, na figura do Leviatã; em Locke, no poder legislativo; em Rousseau, no povo estruturado para que se possa aferir a vontade geral, e assim por diante).

O contrato de Rawls

A lógica do contrato foi retomada por John Rawls em 1971 com a publicação da densa obra “Uma Teoria da Justiça”, em que se busca usar da analogia contratual não para buscar os fundamentos do Estado, mas sim os princípios da ideia de justiça. Estes princípios são entendidos como aqueles que agentes livres e racionais, preocupados em avançar seus interesses, escolheriam em uma posição inicial de igualdade como definições dos termos fundamentais da associação entre si. Os princípios, conhecidos por um termo cunhado pelo filósofo (justice as fairness, comumente traduzido como “justiça como equidade”), devem regular os contratos posteriores – incluindo, por exemplo, acordos sobre a forma governamental segundo a qual a sociedade deve se organizar. Os princípios da justice as fairness servem para determinar direitos e deveres básicos, além de ajudar a compreender como melhor fazer a divisão dos benefícios sociais, isto é, a riqueza produzida.

Rawls deve muito de sua filosofia a Kant, e para entender seu argumento central é conveniente entender o movimento mais amplo que o autor americano faz em direção ao seu projeto político geral. Sandel classifica Rawls dentro da tradição do “liberalismo deontológico”, segundo o qual o Estado (ou o agrupamento humano – trata-se, aqui, da relação mais elementar entre indivíduo e grupo) não deve impor uma doutrina moral do que é “bom” ou “desejável”, isto é, cada indivíduo deve ser livre para fazer suas próprias escolhas em relação ao que deseja e o que considera positivo. O Estado deve definir apenas o que é justo, e assim organizar a sociedade. Como fundamento dessa ideia está a noção de sujeito, de indivíduo, que é o “eu” racional, livre e possuidor de características – isto é, postula-se uma divisão essencial entre aquilo que se essencialmente é (o “eu” livre racional) e todas as características que se possui (de vontades e ideias a características sociais, corporais, etc).

Pode ser vista, assim, associação entre essa base de seu pensamento e a ideia do “véu de ignorância”, peça-chave da ideia de justice as fairness. A situação em que os indivíduos escolhem o contrato que dá origem aos fundamentos racionais da justiça é chamada de “posição inicial” ou “situação inicial”, circunstância que reúne os atributos necessários, crê Rawls, para que os verdadeiros princípios da justiça possam ser estabelecidos. Na situação inicial, todos os participantes são iguais, tendo os mesmos direitos “políticos” em relação ao procedimento: podem discursar, votar, fazer propostas, etc. O “véu de ignorância”, contudo, é a ideia de que, embora os atores ajam de acordo com seus interesses, eles não saberão quais são esses interesses; ao atuarem na posição inicial, os atores são divorciados das posições que ocuparão na sociedade vindoura, ou a que recursos acidentalmente terão acesso desde o princípio, qual será a situação em termos de prestígio cultural de um ou outro grupo – em geral, são separados de grande parte do conhecimento sobre como será suas vidas particulares. Sendo assim, podem decidir racionalmente sobre os princípios que fundamentarão a ideia geral de justiça.

Os princípios de justiça aos quais tais indivíduos, colocados nessa posição inicial hipotética (a-histórica), chegariam, são aqueles alcunhados como princípios de “justice as fairness“. São dois; segundo o primeiro, cada pessoa deve ter o mesmo direito à maior liberdade básica compatível com uma liberdade semelhante para os outros; no segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas para que sejam razoavelmente entendidas como fonte de vantagens gerais para todos e para que estejam ligadas a posições e cargos disponíveis para todos. Mais adiante no livro o segundo princípio será modificado para acomodar uma noção mais precisa: as desigualdades devem funcionar principalmente para o benefício dos mais desavantajados.

O primeiro princípio é classificado por Rawls como o princípio da igualdade: está relacionado a direitos políticos, como o voto, o direito a assembleia, a consciência, a expressão, etc. O segundo é chamado de princípio da diferença, e se relaciona à hierarquia e à riqueza, sendo regulado em termos de justiça pelo fato de que os cargos e as posições sociais melhores que outras devem estar disponíveis a todos – e que a desigualdade, como visto, deve ser de benefício para os mais desavantajados. É preciso notar que o princípio de igualdade, que define liberdades básicas que se aplicam a todos igualmente, precede o princípio de diferença; a única razão para limitar essas liberdades individuais é a interferência que elas possam exercer sobre as liberdades de outras pessoas. O princípio de igualdade, assim, não pode ser sacrificados em prol do segundo, o princípio de diferença.

As críticas à coerência filosófica de Rawls foram profundas e deixaram marcas; em 1993, o filósofo publica “Political Liberalism”, livro em que aborda uma visão mais “pragmática” de seu projeto ao não tentar embasá-lo em filosofia, mas sim em uma questão prática e organizacional: para Rawls, a melhor forma de promover a sociabilidade em uma sociedade plural é a organização com base em justiça, isto é, com o Estado funcionando como o guardião dos princípios de justiça, não impondo quaisquer valores específicos sobre os indivíduos, fazendo assim com que eles busquem resolver tais assuntos em seus foros privados. Embora a posição inicial tenha sido uma tentativa de estabelecer os princípios de justiça de forma racional, mas ainda mais empiricamente que Kant (pois baseado em uma situação de escolha por parte dos indivíduos), o fato de ela ter sido criticada como inconsistente não impede que o filósofo defenda sua posição política como um projeto meritório – que recupera a noção de contrato uma vez que se funda na razão para estabelecer direitos e deveres em relação ao Estado.

Para além do contrato

Embora Sandel não goste muito de rótulos, é geralmente associado ao “comunitarismo”, uma escola de pensamento social que, no que tange a certas interfaces com o direito, contrapõe-se às ideias de Rawls em ao menos duas formas, uma mais “fundamental” e outra mais “prática”. De forma mais básica, Sandel contende com Rawls a definição de sujeito: somos constituídos essencialmente por uma miríade de características e ideias, de modo que mesmo “fingir” que não somos para praticar a política de uma determinada maneira (no caso, a objeção em termos práticos, programáticos ao corolário das ideias dos liberais deontológicos) não seria benéfico ou justo. A alcunha de “comunitarismo” vem da valorização da participação política na formulação de uma certa identidade coletiva – o que equivaleria, em certo sentido, a atuar sobre a própria identidade também e assim ativamente definir os valores aos quais a comunidade subscreve e pelos quais se organiza.

Essa noção não necessariamente exclui os contratos do horizonte, mas lhes é provocativa por algumas razões. Primeiramente, coloca os valores de volta ao centro da discussão. Os contratos sociais dos contratualistas clássicos são diferentes porque são guiados por valores diferentes. Hobbes se preocupava acima de tudo com segurança e estabilidade; Locke se importava com uma conjunção de valores que o impedia de simpatizar com a ideia de um humano-soberano com poderes ilimitados (o valor do direito à propriedade material aparece, assim, como contra-balanço chave). Em Rawls vemos uma discussão, na definição do ideal de justiça, sobre os valores da igualdade e da liberdade; a liberdade se sobressai e a igualdade (excetuando a forma como o próprio princípio que estabelece as liberdades individuais é em muitos sentidos “igualitário”) pode ser preterida se disso resultarem determinados “benefícios”. Mas em Rawls a questão é outra: os valores estão sendo racionalmente discutidos porque há um critério de avaliação, e este é a justiça (o valor anterior, superior). Os contratualistas argumentam sobre valores e a eles se seguem estruturas contratuais logicamente necessárias. Os comunitaristas questionam a possibilidade do estabelecimento a priori de um determinado valor, um estabelecimento desligado da vida comunitária historicamente situada – com o processo político sendo em parte definido como a participação nas batalhas culturais que envolvem a delineação e adoção de valores por parte dos membros de uma comunidade, isso fragiliza argumentos estruturais mais generalizantes e universais sobre contratos.

Em segundo lugar, colocam a ideia de natureza humana em cheque. Este não é o caso apenas dos comunitaristas – uma crítica contundente à lógica por detrás de Hobbes e que animou também Madison (por exemplo) pode ser encontrada em Sahlins (2014) – mas é importante ressaltar porque essa é uma parte essencial de toda teoria contratualista; uma vez que se pretende falar de “seres humanos em geral”, as pressuposições sobre o estado de natureza são questões que concernem a todos. Toda teoria contratualista é, num primeiro momento, coerente; se os pressupostos são aceitos, podemos confiar que os consagrados autores por séculos estudados na teoria política não cometeram saltos lógicos absurdos ou inválidos na linha traçada entre premissas e consequências. A questão é que, uma vez que os pressupostos sejam questionados, todo o resto da estrutura fica comprometido.

Nesse sentido, o que o uso do dispositivo do “contrato” em geral implica?

Por que um contrato seria necessário em primeiro lugar? Digamos que um grupo de pessoas “se dá bem”; organiza-se e age de maneira benéfica para todos em todos os critérios que considerem relevantes. O que um contrato adicionaria, nesse cenário, que o grupo ainda não alcançou? O contrato seria uma forma de “pôr em escrito” o que se faz, isto é, traduzir em princípios, preâmbulos e principalmente regras aquilo que é feito. Temos assim a aparição da razão como elemento relevante; sai-se da doxa irrefletida e entra-se no campo da racionalidade, e vimos como isso é importante para os contratualistas e para Rawls. O contrato cristaliza a prática social de modo a tornar explícito o que antes se revelava apenas no agir de cada membro do grupo. Nesse sentido, assume um poder que antes se encontrava nos indivíduos; constante, parece atuar como uma garantia de que aquilo que o grupo estava fazendo antes, se respeitado o contrato, continuará a ser feito independente do que os indivíduos do grupo queiram fazer em determinados contextos.

Racionalidade e estabilidade ao longo do tempo: isto é o que o contrato oferece a um grupo que não precisa dele. É mister lembrar que, pelo menos para os contratualistas clássicos, os humanos precisam do contrato, já que, diferentemente do exemplo dos últimos parágrafos, os homens antes do contrato (no estado de natureza – ou, para Rousseau, num estado civil degenerado) estavam em uma situação ruim. A razão não seria etnografia, mas sim ato heroico através do qual a humanidade se liberta de vícios relacionados às paixões e aos instintos (isto é, formas de viver e se relacionar não necessariamente atreladas a uma lógica racional) e consolida práticas consideradas positivas por assegurar a efetivação, na vida social, de determinados valores. É claro que, com os homens tendo acabado de se livrar de uma situação ruim por meio do contrato, não pode-se descartar a possibilidade de que o contrato seja desrespeitado. Sendo assim, justifica-se as medidas de coerção necessárias para garantir um contrato. Afinal, como demonstrou Hobbes, o contrato “requer a espada”.

Mas voltemos à situação hipotética do grupo sobre o qual argumenta-se que não precisaria, em tese, do contrato. O contrato busca garantir que a (boa) situação permanecerá ao longo do tempo. Mas, sem necessidade do contrato, por que pode-se querer tal garantia? O contrato baseia-se numa suspeita fundamental; uma desconfiança elementar. Mais do que isso, uma desconfiança com a qual as paixões – os sentimentos, as emoções – não conseguem lidar; apenas a intervenção racional conseguiria garantir a continuidade de tal situação positiva.

Ao identificar essa especificidade do contrato, pode-se entender que uma sociabilidade para além de sua sombra implica formas de lidar com a desconfiança entre as pessoas que sejam baseadas em estruturas e sensibilidades que não se baseiam primariamente em uma lógica destacada das paixões. Mas até mesmo a desconfiança é problematizada. Em seu estudo seminal sobre a dívida, Graeber conclui que o crédito não surgiu da moeda, que por sua vez teria sido uma evolução do escambo; historicamente falando, o crédito foi a primeira forma humana de economia dentro de uma comunidade. O escambo, elucida o antropólogo, era usado apenas de forma muito circunscrita, entre pessoas ou povos que não se conheciam, que não mantinham nenhuma forma de relação estável ao longo do tempo – em outras palavras, que desconfiavam uns dos outros.

O que ocorreria é uma institucionalização dessa forma de sociabilidade – recuperada, por exemplo, por vários teóricos anarquistas. Kropotkin afirmou que “não é o amor ou mesmo a simpatia sobre o que se sustenta a sociedade na humanidade. É a consciência – seja ela na forma de um instinto – da solidariedade humana”. Ele define melhor: “o reconhecimento inconsciente […] da dependência próxima que a felicidade de cada um tem sobre a felicidade de todos”. Daí não decorre o estado de natureza Rousseauniano segundo o qual as pessoas são “naturalmente boas” – mas sim que há outras formas de lidar com transgressões individuais a práticas tidas como benéficas, o que Graeber denominou “instituições de contrapoder” – e nesse sentido instituições são entendidas de forma bastante ampla, podendo se referir a “hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum” ou ainda, como North diria, “as regras do jogo em uma sociedade ou, mais formalmente,… limitações socialmente projetadas que moldam as interações humanas”. Um comunistarista como Sandel se preocupa com a participação política pois esta (não seguindo um formato autoritário como em Hobbes) é, em certo sentido, uma prática social voltada para a formulação compartilhada de valores – isto é, uma prática social que em certo sentido colabora para uma sociabilidade que desafia a lógica contratual, pois coloca constantemente em questão os próprios valores que fundamentariam quaisquer contratos específicos (inclusive, por exemplo, a “justiça” como valor supremo, ou mesmo a definição de justiça).

Aqui a questão da natureza humana, da natureza do sujeito, volta a ser importante. A visão dos humanos como seres isolados cujas únicas conexões com os outros são mediadas pelo interesse egoísta (como em Hobbes, por exemplo; em reação à ideia de que a sede por poder predomina “nos peitos de todos”, Sahlins pergunta: “o que aconteceu com o leite da bondade humana?”) obviamente parece providenciar justificativa para a lógica do contrato, mas uma vez que ele tenha sido instituído com base em tal visão, ele pode acabar produzindo a realidade que supôs – profecia que cumpre a si mesma, pode institucionalizar atos antissociais.

Estudar a lógica do contrato nos revela que este dispositivo é usado para resolver, a partir da racionalidade, uma desconfiança essencial quanto aos indivíduos; revela que ele depende, seguindo estes mesmos princípios mínimos, a força, e leva assim à fixidez de valores e concepções sobre as pessoas, barganhando autonomia por uma promessa de segurança. Este mesmo esquema não é muito diferente para Rawls – a partir da posição inicial buscam-se princípios de justiça que, embora não ofendam nosso sentido geral e intuitivo do que é justo, buscam definir disputas em questões que não são óbvias (o que ele chama de “equilíbrio reflexivo”), de modo que a justiça não dependerá de circunstâncias parciais mas sim de uma determinação racional geral; ao ser respeitada pelos contratos posteriores, em última instância a sociedade criará mecanismos para garantir a aplicação dos princípios.

Esta resenha não é o contexto para debater a efetividade de tal estratégia, ou mesmo se elas se traduziram mais ou menos fielmente à prática – mas pode-se pensar, a partir desse desenho geral, que lógica social se encontra para além da ideia de contrato; uma dinâmica de institucionalização da confiança, da discussão de valores, do empoderamento de indivíduos e comunidades – o que certamente gera desconfianças e perigos; a ideia de que tais arranjos não são (tão) duradouros (quanto se queira), que não funcionam de todo, que podem acabar provocando exatamente as situações que os contratualistas previram em suas denúncias das guerras precipitadas pelas paixões indomadas. Não se descobre o quanto a lógica do contrato é prevalente no nosso entendimento do mundo social até que se tente pensar o que existe além dela a partir de um ponto de vista contemporâneo em que se busca conservar algumas de suas conquistas (certamente os anarquistas que criticam o contratualismo não desejam uma comunidade que esmague a liberdade individual em nome de um “bem comum maior”). Mas ninguém disse que a vida social poderia ser tornada livre de perigos e problemas; qualquer sociabilidade, qualquer comunidade humana, sempre será problemática. A questão é: como lidar com esses problemas?

Sobre carros voadores e lucro decrescente

Tradução de “Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2012.


Um problema secreto flutua sobre nós, um sentimento de decepção, de uma promessa quebrada que nos foi feita quando éramos crianças, sobre o que o mundo deveria ser. Estou me referindo não às falsidades de sempre que se diz às crianças (sobre como o mundo é justo, ou como aqueles que se esforçam são recompensados), mas a uma promessa em particular a uma geração – feita àqueles que eram crianças nos anos 50, 60, 70 ou 80 – uma que nunca foi bem articulada como promessa mas antes como um conjunto de presunções sobre como o nosso mundo adulto se pareceria. E uma vez que nunca foi bem uma promessa, agora que ela não virou verdade, ficamos confusos: indignados, mas ao mesmo tempo, constrangidos com a nossa própria imaginação, envergonhados que pudemos ser tão bobos de acreditar nos mais velhos para começo de conversa.

Onde, resumidamente, estão os carros voadores? Onde estão os campos de força, os raios tratores, o teletransporte, os trenós anti-gravidade, os tricorders, as pílulas da imortalidade, as colônias em Marte, e todas as outras maravilhas tecnológicas que qualquer criança que cresceu a partir da metade do século XX presumiu que existiriam a essa altura? Até mesmo aquelas invenções que pareciam prontas para surgir – clonagem ou criogenia – acabaram traindo suas ousadas promessas. O que aconteceu com essas coisas?

Somos constantemente informados sobre as maravilhas dos computadores, como se isso fosse algum tipo de compensação imprevista, mas, na verdade, não conseguimos nem que os computadores progredissem tanto quanto esperávamos que progredissem hoje em dia. Não temos computadores com os quais podemos ter uma conversa interessante, ou robôs que possam passear com os nossos cachorros ou que levem nossas roupas à lavanderia.

Como alguém que tinha oito anos de idade na época do pouso na lua, lembro de calcular que eu teria trinta e nove anos no mágico ano 2000 e de me perguntar como o mundo seria. Se eu esperava que estaria vivendo num mundo incrível? É claro. Todo mundo esperava. Se eu me sinto decepcionado agora? Parecia improvável que eu viveria para ver tudo que eu lia nas ficções científicas, mas nunca me ocorreu que eu não veria nenhuma delas. No virar do milênio, eu estava esperando uma leva de reflexões sobre o porquê de termos adivinhado tão erroneamente o futuro da tecnologia. Em vez disso, todas as vozes respeitáveis – tanto à esquerda quanto à direita – tiveram como ponto de partida a premissa de que vivemos em uma nova utopia tecnológica sem precedentes de um tipo ou de outro.

A forma mais comum de lidar com esse desconforto de que as coisas podem não ser assim é deixar isso de lado, insistindo que todo o progresso que pôde acontecer, aconteceu, tratando todo o resto como bobagem. “Oh, você quer dizer as coisas que os Jetsons tinham?”, perguntam-me – como se dissessem, mas isso era pra crianças! Certamente, como adultos, entendemos que os Jetsons eram uma visão tão precisa do futuro quanto os Flintstones eram da idade da pedra.

Mas nos anos 70 e 80, na verdade, fontes sérias como a National Geographic e o Smithsonian estavam dizendo às crianças que estações espaciais visitáveis por todos e expedições à Marte eram iminentes. Criadores de filmes de ficção científica costumavam usar datas concretas para suas fantasias futuristas, geralmente não mais adiante que uma geração à frente. Em 1968, Stanley Kubrick achou que uma audiência de cinema veria como perfeitamente natural que apenas 33 anos mais tarde, em 2001, teríamos viagens comerciais à lua, estações espaciais parecidas com cidades, e computadores com personalidades humanas mantendo astronautas em animação suspensa numa viagem à Júpiter. Videochamadas foram praticamente a única nova tecnologia daquele filme em particular que apareceu – e já era tecnicamente possível quando o filme estava em exibição. 2001 pode ser visto como uma anomalia, mas e quanto a Star Trek? O mito de Star Trek também foi criado nos anos 60, mas a série continuava sendo revivida, fazendo o público que assistiu a Star Trek Voyager em, digamos, 2005, pergunta-se o que fazer do fato de que, pela lógica da série, o mundo deveria estar se recuperando de uma luta contra o domínio de superhumanos geneticamente projetados nas Guerras Eugênicas dos anos 90.

Em 1989, quando os criadores de De Volta para o Futuro II puseram carros voadores e skates anti-gravidade nas mãos de adolescentes comuns no ano 2015, não ficou claro se isso era uma previsão ou uma piada.

A tática geral da ficção científica é ser vago em relação às datas, para fazer com que “o futuro” seja uma zona de pura fantasia, não muito diferente de Nárnia ou da Terra Média, ou como em Star Wars, “há muito tempo atrás em uma galáxia muito, muito distante”. Como consequência, nossa ficção científica do futuro não é nem um pouco do futuro, sendo mais uma dimensão alternativa, um Outro Lugar tecnológico num tempo onírico, existindo em dias por vir da mesma forma que elfos e matadores de dragões existiram no passado – uma tela vazia para o deslocamento de dramas morais e fantasias míticas nos becos sem saída do prazer de consumo.

Pode a sensibilidade cultural que veio a ser entendida como pós-modernismo ser vista como uma meditação prolongada sobre as mudanças tecnológicas que nunca aconteceram? A pergunta me veio enquanto eu assistia a um dos filmes recentes de Star Wars. O filme era péssimo, mas eu não pude deixar de me impressionar com a qualidade dos efeitos especiais. Ao me lembrar dos efeitos especiais típicos dos filmes sci-fi dos anos 50, eu ficava pensando em quão impressionada uma plateia dessa época ficaria se eles soubessem o que conseguimos fazer agora – e aí percebi que “na verdade, não. Eles não ficariam nada impressionados, não é mesmo? Eles achavam que nós estaríamos fazendo esse tipo de coisa agora. Não só pensando em maneiras mais sofisticadas de simular esse tipo de coisa”.

Essa palavra – simular – é chave. As tecnologias que têm avançado desde os anos 70 são principalmente tecnologias médicas ou tecnologias da informação – principalmente tecnologias de simulação. Elas são tecnologias do que Jean Baudrillard e Umberto Eco chamaram “hiperreal”, a habilidade de fazer imitações que são mais realistas que os originais. A sensibilidade pós-moderna, o sentimento de que entramos de alguma maneira em um período histórico absolutamente novo em que entendemos que não há nada de novo; que as grandes narrativas históricas de progresso e libertação não tinham sentido algum; que tudo agora era uma simulação, uma repetição irônica, fragmentação e montagem – tudo isso faz sentido em um ambiente tecnológico em que as únicas descobertas foram aquelas que tornaram mais fácil criar, transferir e rearranjar projeções de coisas que ou já existiam ou, acabamos percebendo, jamais existiriam. Claro, se estivéssemos tirando férias em domos geodésicos em Marte ou carregando usinas de energia nuclear de bolso ou aparelhos de telecinese ninguém estaria falando desse jeito. O momento pós-moderno foi uma forma desesperada de transformar o que só poderia de outra forma ser sentido como uma decepção amarga em algo animador, histórico e inédito.

Em suas primeiras formulações, que em grande parte vieram da tradição marxista, muito desse pano de fundo tecnológico foi reconhecido. A obra “Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio” (tradução livre), de Fredric Jameson, propôs o termo “pós-modernismo” para se referir à lógica cultural apropriada para uma nova fase tecnológica do capitalismo, que havia sido prevista pelo economista marxista Ernest Mandel desde 1972. Mandel tinha argumentado que a humanidade estava no limiar de uma “terceira revolução tecnológica”, tão profunda quanto as revoluções da agricultura e da indústria, em que computadores, robôs, novas fontes de energia e novas tecnologias de informação substituiriam o trabalho industrial – o “fim do trabalho” como isso logo seria chamado – reduzindo-nos a técnicos e designers de computadores, criando as ideias loucas que fábricas cibernéticas produziriam.

Argumentos sobre o fim do trabalho foram populares no final dos anos 70 e começo dos anos 80 à medida que pensadores ponderavam o que aconteceria à tradicional luta de classes se a classe trabalhadora não existisse (a resposta: uma política baseada em identidades). Jameson se considerava um explorador das formas de consciência e das sensibilidades históricas que provavelmente surgiriam nessa nova era.

O que aconteceu, em vez disso, é que o maior alcance das tecnologias de informação e novas formas de organizar o transporte – a “containerização”, por exemplo – permitiu que esses mesmos trabalhos industriais fossem terceirizados para a Ásia, América Latina, e outros países onde a disponibilidade de trabalho barato permitiu que os fabricantes empregassem técnicas de linha de produção muito menos tecnologicamente sofisticadas do que eles seriam obrigados a fazer em seus países natais. Da perspectiva daqueles vivendo na Europa, América do Norte e Japão, os resultados parecem ter sido bem como o previsto. As indústrias de chaminés e fumaça desapareceram mesmo; os trabalhos vieram a ser divididos entre o estrato mais baixo do setor de serviço e um estrato mais alto de pessoas sentadas em bolhas antissépticas brincando com computadores. Mas abaixo disso tudo fica uma consciência irritante de que a civilização pós-trabalho é uma gigantesca fraude. Nossos tênis de alta tecnologia cuidadosamente projetados não foram produzidos por ciborgues inteligentes ou nanotecnologia molecular autorreplicante; eles foram feitos com o equivalente às antigas máquinas de costura Singer, pelas filhas de fazendeiros mexicanos ou indonésios que, por causa da OMC ou dos acordos de comércio apoiados pela NAFTA, foram expulsos de suas terras ancestrais. É uma consciência pesada essa por detrás da sensibilidade pós-moderna e sua celebração de um jogo sem fim de imagens e superfícies.

Por que a explosão de crescimento tecnológico que todos estavam esperando – as bases lunares, as fábricas de robôs – deixou de acontecer? Há duas possibilidades. Ou nossas expectativas sobre o ritmo da mudança tecnológica não eram realistas (e nesse caso, precisamos saber por que tantas pessoas inteligentes acreditavam que elas eram) ou nossas expectativas eram realistas (e nesse caso, precisamos saber o que aconteceu para tirar dos trilhos tantas ideias e prospectos).

A maioria dos analistas sociais escolhem a primeira explicação e traçam a origem do problema à corrida espacial da Guerra Fria. Por que, os analistas se perguntam, ambos os Estados Unidos e a União Soviética se tornaram tão obcecados com a ideia da viagem espacial tripulada? Isso nunca foi um jeito eficiente de fazer pesquisa científica. E encorajou ideias nada realistas sobre o futuro da humanidade.

Poderia a resposta ser que os dois países foram, um século antes, sociedades de pioneiros, uma expandindo-se para além da fronteira oeste, a outra ao longo da Sibéria? Não compartilhavam, eles, um comprometimento com um mito do futuro expansivo e sem limites, da colonização humana de vastos espaços vazios, que ajudou a convencer os líderes desses superpoderes de que eles haviam entrado em uma “era espacial” na qual competiam pelo controle do futuro em si mesmo? Todo tipo de mito estava em jogo aqui, sem dúvida, mas isso não prova nada sobre o realismo do projeto.

Algumas daquelas fantasias de ficção científica (a essa altura já não podemos saber quais) poderiam ter vindo a existir. Para gerações mais novas, muitas fantasias como aquelas tinham se tornado realidade. Aqueles que cresceram na virada do século lendo Júlio Verne ou H. G. Wells imaginaram o mundo de 1960 com máquinas voadoras, foguetes, submarinos, rádio e televisão – e foi exatamente isso que eles viram. Se não era irrealista em 1900 sonhar com humanos viajando à lua, então por que era irrealista nos anos 60 sonhar com mochilas a jato e lavanderias-robô?

Na verdade, enquanto esses sonhos estavam sendo esboçados, a base material para a conquista deles estava começando a ser enfraquecida. Há razão para acreditar que mesmo nos anos 50 e 60, o ritmo da inovação tecnológica estava diminuindo em relação ao passo ligeiro da primeira metade do século. Houve uma última enchente de novas tecnologias em rápida sucessão nos anos 50 quando surgiram os fornos de microondas (1954), a pílula (1957) e os lasers (1958). Mas desde então, avanços tecnológicos foram maneiras inteligentes de combinar tecnologias que já existiam (como na corrida espacial) e novas maneiras de colocar tecnologias que já existiam nas prateleiras dos supermercados (o exemplo mais famoso é a televisão, inventada em 1926, mas produzida em massa apenas depois da guerra). Ainda assim, em parte porque a corrida espacial deu a todos a impressão de que avanços incríveis estavam acontecendo, a visão popular durante os anos 60 era que o ritmo da mudança tecnológica estava aumentando de formas amedrontadoras e descontroláveis.

O best seller de 1970 de Alvin Toffler, Choque do Futuro, argumentava que quase todos os problemas sociais dos anos 60 se iniciavam no ritmo crescente da transformação tecnológica. O surgimento infinito de descobertas científicas mudavam as bases da existência diária, e deixava as pessoas sem uma ideia clara do que uma vida normal seria. Considere a família, por exemplo; não só a pílula, mas a fertilização in vitro, os bebês de proveta e a doação de óvulos e espermatozoides estavam prestes a tornar a ideia de maternidade obsoleta.

Seres humanos não eram psicologicamente preparados para o ritmo de mudanças, Toffler escreveu. Ele cunhou um termo para o fenômeno: “impulsão aceleradora”. Ela começou com a Revolução Industrial, mas mais ou menos pelos anos 1850, seu efeito se tornou inequívoco. Não apenas tudo ao nosso redor estava mudando, mas a maior parte – conhecimento humano, contingente populacional, crescimento industrial, uso energético – estava mudando exponencialmente. A única solução, argumentava Toffler, era começar algum tipo de controle sobre o processo, como instituições que avaliariam tecnologias emergentes e seus efeitos possíveis, banindo assim tecnologias que seriam provavelmente muito socialmente disruptivas, guiando o desenvolvimento na direção na harmonia social.

Enquanto muitas das tendências históricas que Toffler descreve são precisas, o livro apareceu quando a maioria dos crescimentos exponenciais parou. Foi bem por volta de 1970 que o aumento no número de artigos científicos publicados no mundo – um número que tinha dobrado a cada quinze anos desde mais ou menos 1685 – começou a se nivelar. O mesmo valeu para livros e patentes.

O uso da palavra “aceleradora” foi particularmente infeliz. Pela maior parte da história humana, a maior velocidade com a qual as pessoas poderiam viajar esteve por volta de 40 km/h. Por volta de 1900 a velocidade máxima aumentou para 160 km/h, e pelos próximos setenta anos ela pareceu crescer exponencialmente. Na época em que Toffler estava escrevendo, em 1970, o recorde para maior velocidade com a qual qualquer humano havia viajado era mais ou menos 40.000 km/h, o que foi conseguido pela equipe do Apollo 10 em 1969, um ano antes. Em tal taxa de crescimento, deve ter parecido razoável presumir que era questão de décadas até estarmos explorando outros sistemas solares.

Desde 1970, nenhum novo aumento ocorreu. O recorde de maior velocidade continuou com a equipe do Apollo 10. É verdade que o Concorde, que voou pela primeira vez em 1969, conseguiu 2179 km/h. O Soviete Tupolev Tu-144, que voou primeiro, foi ainda mais rápido, com 2499 km/h. Mas essas velocidades não apenas não aumentaram; elas diminuíram desde que o Tupolev Tu-144 foi cancelado e o Concorde foi abandonado.

Nada disso interrompeu a carreira de Toffler. Ele continuou reciclando sua análise para inventar novos pronunciamentos espetaculares. Em 1980, ele produziu “A Terceira Onda”, seu argumento tirado da “terceira revolução tecnológica” do Ernest Mandel – exceto que enquanto Mandel pensava que essas mudanças seriam o fim do capitalismo, Toffler presumia que o capitalismo era eterno. Até 1990, Toffler se tornou o guru intelectual pessoal de Newt Gingrich, um congressista republicano que disse que seu texto de 1994, “Contract With America” (Contrato com a América, em tradução livre) foi parcialmente inspirado pela ideia de que os Estados Unidos precisavam sair de uma mentalidade antiquada, materialista e industrial para uma nova era de livre mercado e informação, uma civilização da Terceira Onda.

Há várias ironias nessa conexão. Uma das maiores conquistas de Toffler foi inspirar o governo a criar o OTA (Office of Technology Assessment), um escritório de avaliação tecnológica. Um dos primeiros atos de Gingrich ao ganhar o controle do Congresso em 1995 foi cancelar os fundos da OTA como um exemplo de gasto extravagante e inútil por parte do governo. Ainda assim, não há contradição aqui. A esas altura, Toffler há muito havia desistido de influenciar a política ao apelar para o público geral; ele estava ganhando a vida principalmente dando seminários para presidentes de empresas e think tanks corporativos. Suas ideias tinham sido privatizadas.

Gingrich gostava de chamar a si mesmo um “futurologista conservador”. Isso, também, pode parecer um oxímoro; mas, na verdade, o próprio conceito de futurologia de Toffler nunca foi progressista. O progresso sempre foi visto como um problema que precisava ser resolvido.

Toffler deve ser visto como uma versão peso-pena do teórico social do século XIX Auguste Comte, que acreditava estar no limiar de uma nova era – nesse caso, a era industrial – dirigida por um progresso inexorável da tecnologia, e que os cataclismas sociais de seu tempo eram causados por um desajuste do sistema social. A antiga ordem feudal desenvolveu a teologia católica, um jeito de pensar sobre o lugar do homem no cosmos que era perfeitamente adaptado ao sistema social de seu tempo, e também desenvolveu a estrutura institucional, a igreja, que distribuiu e fez valer tais ideias de uma maneira que pôde dar a todos um sentimento de significado e pertença. A era industrial desenvolveu seu próprio sistema de ideias – a ciência – mas os cientistas não tinham sido bem-sucedidos em criar nada parecido com a Igreja Católica. Comte concluiu que precisávamos desenvolver uma nova ciência, que ele chamou “sociologia”, e disse que os sociólogos deveriam fazer o papel de padres em uma nova Religião da Sociedade que deveria inspirar a todos com um amor por ordem, comunidade, disciplina do trabalho, e os valores da família. Toffler era menos ambicioso; seus futurólogos não deveriam fazer o papel de padres.

Gingrich tinha um segundo guru, um teólogo capitalista chamado George Gilder, e Gilder, como o Toffler, era obcecado com a tecnologia e a mudança social. Pode parecer estranho, mas Gilder era mais otimista. Adotando uma versão radical do argumento de Mandel sobre a Terceira Onda, ele sustentava o que estávamos vendo com a ascensão dos computadores era uma “derrubada da matéria”. A velha e materialista Sociedade Industrial, onde o valor vinha do trabalho físico, abria caminho para uma era da informação em que o valor emerge diretamente das mentes dos empreendedores, assim como o mundo havia originalmente aparecido ex nihilo da mente de Deus, e assim como o dinheiro, em uma economia genuinamente de oferta, emergia ex nihilo da Reserva Federal e fluía para as mãos de capitalistas criadores de valor. Políticas econômicas de incentivo à oferta, Gilder concluiu, garantiria que o investimento continuaria a se afastar dos elefantes brancos do velho governo, como o programa espacial, em direção a tecnologias médicas e de informação mais produtivas.

Mas se houve um afastamento consciente, ou semiconsciente, do investimento em pesquisa que pudesse levar a melhores foguetes e robôs em direção àquela que levaria a coisas como impressoras e tomografias computadorizadas, ela começou bem antes do “Choque do Futuro” de Toffler (1970) e do “Wealth and Poverty” de Gilder (“Riqueza e Pobreza”, em tradução livre; 1981). O que o sucesso deles mostra é que os problemas que eles levantaram – que os padrões de então de desenvolvimento tecnológico levariam ao caos social, e que precisamos guiar esse crescimento em direções que não desafiassem as estruturas de autoridade existentes – ecoavam nos corredores do poder. Estadistas e capitães da indústria já estavam pensando nessas questões por algum tempo.

O capitalismo industrial estimulou uma taxa extremamente rápida de avanço científico e inovação tecnológica – uma sem paralelo na história humana até então. Mesmo os maiores detratores do capitalismo, Karl Marx e Friedrich Engels, celebraram seu destravamento das “forças produtivas”. Marx e Engels também acreditavam que a necessidade contínua do capitalismo de revolucionar os meios de produção industrial seria sua perdição. Marx argumentou que, por certas razões técnicas, o valor – e portanto o lucro – só pode ser extraído do trabalho humano. A competição força os donos das fábricas a mecanizar a produção, para reduzir custos de trabalho, mas enquanto isso serve ao interesse imediato da empresa, o efeito da mecanização é fazer decrescer o lucro geral.

Por 150 anos, os economistas debateram se tudo isso era verdade. Mas se for verdade, faz sentido a decisão dos industrialistas de não gastar dinheiro de pesquisa com as fábricas de robôs que todos imaginavam nos anos 60, e em vez disso transferir o processo produtivo para locais de baixa tecnologia e trabalho intensivo na China ou no Sul Global.

E, como eu notei, há uma razão para acreditar que o ritmo da inovação tecnológica no processo produtivo – as fábricas em si mesmas – começou a cair nos anos 50 e 60, mas os efeitos colaterais da rivalidade dos Estados Unidos com a União Soviética fizeram parecer que a inovação estava acelerando. Havia a incrível corrida espacial, junto aos esforços frenéticos das indústrias americanas para aplicar tecnologias que já existiam a produtos comerciais, para criar um senso otimista de prosperidade florescente e progresso garantido que iria minar o apelo da luta de classes.

Essas iniciativas foram reações às empreitadas da União Soviética. Mas essa parte da história os Americanos dificilmente se lembram, porque no final da Guerra Fria a imagem que se fazia da União Soviética mudou de rival ousado e amedrontador para maluco patético – o exemplo de uma sociedade que não poderia funcionar. Lá nos anos 50, de fato, muitos pensadores americanos suspeitavam que o sistema soviético era melhor. Certamente, eles consideravam que nos anos 30, enquanto os Estados Unidos estavam no lamaçal da depressão econômica, a União Soviética tinha mantido níveis de crescimento econômico quase sem precedentes, de 10 a 12 porcento ao ano – uma conquista rapidamente seguida da produção de exércitos de tanques que derrotaram a Alemanha nazista, do lançamento da Sputnik em 1957, e então da primeira nave espacial tripulada, em Vostok, em 1961.

Dizem com frequência que o pouso na lua foi a maior conquista histórica do comunismo soviético. Certamente os Estados Unidos nunca teriam contemplado um tal feito se não fosse pelas ambições do Politburo. Estamos acostumados a pensar no Politburo como um grupo de burocratas cinzas sem imaginação, mas eles eram burocratas que ousaram sonhar coisas espantosas. A revolução mundial era só a primeira. É verdade também que a maioria dos sonhos – mudar o curso de grandes rios, esse tipo de coisa – acabou sendo ou socialmente ou ecologicamente desastrosa ou, como o Palácio dos Sovietes de Joseph Stalin, que tinha cem andares, ou uma estátua de Vladimir Lenin que equivalia a um prédio de vinte andares, nunca saiu do papel.

Depois do sucesso inicial do programa espacial soviético, poucos desses esquemas foram realizados, mas a liderança nunca deixou de pensar em coisas novas. Até mesmo nos anos 80, quando os Estados Unidos tentava seu último projeto grandioso (Star Wars), os soviéticos queriam transformar o mundo através dos usos criativos da tecnologia. Poucos fora da Rússia se lembram da maioria desses projetos, mas muitos recursos foram devotados a eles. Vale a pena notar que, diferentemente do Star Wars, que foi projetado para naufragar a União Soviética, a maioria deles não era essencialmente militar; como, por exemplo, a tentativa de acabar com a fome mundial ao colher de lagos e oceanos uma bateria comestível chamada spirulina, ou resolver o problema da energia no mundo lançando em órbita centenas de painéis solares gigantes, transferindo a energia de volta para a Terra.

A vitória na corrida espacial significou que, depois de 1968, os políticos americanos não levaram mais a competição a sério. O resultado foi que a mitologia da fronteira final foi mantida, mesmo que a direção da pesquisa e do desenvolvimento se afastou de qualquer coisa que pudesse levar à criação de bases em Marte e fábricas de robôs. A explicação padrão é que isso tudo resultava do triunfo do mercado. O programa Apollo foi um projeto de um “Governo Grande”, inspirado pelos soviéticos no sentido de que exigia um esforço de coordenação nacional por parte das burocracias governamentais. Assim que a ameaça soviética foi colocada de lado, contudo, o capitalismo estava livre para reverter as linhas do desenvolvimento tecnológico mais de acordo com seus imperativos normais e descentralizados de livre mercado – como a pesquisa privada em produtos vendáveis como computadores pessoais. Essa foi a linha que homens como Toffler e Gilder tomaram no fim dos aos 70 e começo dos 80.

Na verdade, os Estados Unidos nunca abandonaram esquemas gigantes, controlados pelo governo, de desenvolvimento tecnológico. Em geral, eles apenas foram transferidos para a pesquisa militar – e não apenas para esquemas em escala soviética como o Star Wars, mas para projetos de armas, pesquisa em tecnologias de comunicação e vigilância, e outros assuntos relacionados à segurança. Em algum nível isso sempre foi verdade: os bilhões gastos com pesquisas em mísseis sempre foram muito maiores que as somas alocadas ao programa espacial. Ainda assim nos anos 70, mesmo a mais simples pesquisa veio a ser conduzida seguindo prioridades militares. Uma razão pela qual não temos fábricas de robôs é porque quase 95% do financiamento de pesquisa em robótica foi canalizado através do Pentágono, que está mais interessado em criar drones não-tripulados que na automação de fábricas de papel.

Alguém poderia dizer que mesmo a mudança para a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias de informação e medicina foi não tanto uma reorientação rumo aos imperativos de mercado dos consumidores, mas parte de um esforço geral de dar sequência à humilhação tecnológica da União Soviética com a vitória total da luta de classes global – vista simultaneamente como uma imposição de absoluta dominação militar dos Estados Unidos no planeta, e, dentro do país, a derrota absoluta dos movimentos sociais.

Isso porque as tecnologias que de fato surgiram se provaram propícias à vigilância, disciplina do trabalho, e controle social. Os computadores abriram certos espaços de liberdade, como somos constantemente lembrados, mas ao invés de levar a uma utopia sem trabalho imaginada por Abbie Hoffman, eles foram empregados de tal forma que se produz o efeito oposto. Eles permitiram a financialização do capital que levou trabalhadores desesperadamente à dívida, e, ao mesmo tempo, providenciou os meios pelos quais os empregadores criaram regimes de trabalho “flexíveis” que ao mesmo tempo destruíram a estabilidade do emprego e aumentaram as horas de trabalho para quase todo mundo. Junto com a exportação dos trabalhos de fábrica, o novo regime de trabalho tem destruído o movimento sindical e destruiu qualquer possibilidade de luta de classes efetiva.

Enquanto isso, apesar de um investimento sem precedentes na pesquisa em medicina e ciências biológicas, esperamos pela cura do câncer e da gripe, e as descobertas médicas mais dramáticas que vimos tomaram a forma de drogas como o Prozac, o Zoloft ou a Ritalina – feitas sob medida para garantir que as novas exigências laborais não nos deixem loucos ao ponto de nos deixar desfuncionais.

Com resultados como esse, qual será o epitáfio do neoliberalismo? Acho que historiadores concluirão que foi uma forma de capitalismo que sistematicamente priorizou imperativos políticos sobre imperativos econômicos. Dada uma escolha entre o curso de ação que faria o capitalismo parecer o único sistema econômico possível, e um que transformaria o capitalismo num sistema econômico viável, de longo prazo, o neoliberalismo escolhe o primeiro sempre. Tudo aponta que a destruição da estabilidade do emprego junto ao aumento das horas de trabalho não cria uma força de trabalho mais produtiva (ou mais inovadora, ou mais leal). Provavelmente, em termos econômicos, o resultado é negativo – uma impressão confirmada pelas baixas taxas de crescimento em praticamente todas as partes do mundo nos anos 80 e 90.

Mas a escolha neoliberal foi efetiva na despolitização do trabalho e na sobredeterminação do futuro. Economicamente, o crescimento de exércitos, da polícia e dos serviços privados de segurança resulta num peso morto. É possível, na verdade, que o próprio peso morto de um aparato criado para garantir a vitória ideológica do capitalismo é o que vai fazê-lo naufragar. Mas é fácil também ver como asfixiar qualquer senso de que um futuro inevitável e redentor poderia ser diferente do nosso próprio mundo é uma parte crucial do projeto neoliberal.

Até aqui todas as peças parecem se encaixar. Nos anos 60, forças políticas conservadoras se assustaram com os efeitos socialmente disruptivos do progresso tecnológico, e os empresários começavam a se preocupar com o impacto econômico da mecanização. A desvanecente ameaça soviética permitiu uma realocação de recursos em direções vistas como menos desafiadoras dos arranjos sociais e econômicos, ou mesmo direções que poderiam ajudar na campanha contra os ganhos dos movimentos sociais progressistas e a favor de uma vitória decisiva no que as elites americanas viam como uma luta de classes global. A mudança de prioridades foi vista como uma saída dos projetos de “Grande Governo” e um retorno ao mercado, mas na verdade a mudança alterou a pesquisa dirigida pelo governo para longe de programas como a NASA ou fontes alternativas de energia e em direção a tecnologias militares, médicas e informáticas.

É claro que isso não explica tudo. Acima de tudo, não explica por que, mesmo nas áreas que se tornaram o foco de projetos de pesquisas bem financiados, não temos visto nada como o avanço que foi imaginado há 50 anos. Se 95% da pesquisa em robótica é financiada pelos militares, onde estão os robôs matadores atirando raios fatais pelos olhos?

Obviamente houve avanços na tecnologia militar em décadas recentes. Uma da razões pelas quais sobrevivemos à Guerra Fria é que enquanto as bombas nucleares poderiam ter funcionado como propaganda, seus sistemas de emissão nem tanto; mísseis balísticos intercontinentais não eram capazes de atingir cidades, muito menos alvos específicos dentro de cidades, e esse fato significava que não fazia muito sentido atacar primeiro com armas nucleares a não ser que você quisesse destruir o mundo todo.

Mísseis contemporâneos são comparativamente precisos. Ainda assim, armas de precisão nunca parecem capazes de assassinar indivíduos específicos (Saddam, Osama, Qaddafi), mesmo quando centenas são usadas. E as armas de raios não se materializaram – certamente não por falta de tentativa. Podemos presumir que o Pentágono gastou bilhões em pesquisas sobre um raio da morte, mas o mais perto que chegaram foi lasers que podem, se mirados corretamente, cegar um atirador inimigo olhando diretamente para a mira. Além disso ser antidesportivo, é patético: O laser é uma tecnologia dos anos 50. Armas que atordoam os inimigos não parecem estar nos planos; e no que concerne a infantaria, a arma preferida em quase todo lugar permanece sendo a AK-47, um design soviético cujo nome vem do ano em que foi apresentado: 1947.

A internet é uma inovação fantástica, mas é basicamente uma combinação global e super rápida de biblioteca, correios e catálogo de compras. Se a internet fosse descrita para um fã de ficção científica nos anos 50 e 60, e fosse apresentada como a conquista tecnológica mais dramática desde então, sua reação seria de decepção. Cinquenta anos e isso é o melhor que os cientistas conseguiram fazer? Esperávamos computadores que pudessem pensar!

Em geral, níveis de financiamento de pesquisa aumentaram dramaticamente desde os anos 70. É verdade que a proporção desse financiamento que vem do setor corporativo foi a que cresceu mais dramaticamente, ao ponto em que a iniciativa privada agora financia duas vezes mais a pesquisa científica do que o governo, mas o aumento é tão alto que a quantidade total de financiamento governamental, em dólares corrigidos, é muito maior do que era nos anos 60. Pesquisas “conceituais” ou”motivadas por mera curiosidade” – o tipo que não tem qualquer prospecto de aplicação prática imediata, e que tem mais chances de levar a descobertas inesperadas – ocupam uma porção cada vez menor do total, apesar de tanto dinheiro ser distribuído por aí hoje em dia que o total aumentou.

Ainda assim a maioria dos observadores concorda que os resultados têm sido insignificantes. Certamente não vemos nada como a corrente contínua de revoluções conceituais – herança genética, relatividade, psicoanálise, mecânica quântica – com as quais as pessoas se acostumaram, e que passaram a esperar, há cem anos. Por quê?

Parte da resposta tem a ver com a concentração de recursos em uns poucos projetos gigantes. O Projeto Genoma Humano é frequentemente citado como um exemplo. Depois de gastar quase três bilhões de dólares e empregar milhares de cientistas e auxiliares em cinco países diferentes, ele serviu principalmente para estabelecer que não há muito para ser aprendido a partir do sequenciamento genético que seja muito útil para os leigos. Ainda mais, o furor e o investimento político ao redor de tais projetos demonstram o grau em que até mesmo a pesquisa básica agora parece ser motivada por imperativos políticos, administrativos e publicitários que faz com que seja improvável que qualquer coisa revolucionária aconteça de novo.

Aqui, a nossa fascinação com as origens míticas do Vale do Silício e da internet nos cegou para o que realmente tem acontecido. Ela permitiu que imaginássemos que a pesquisa e o desenvolvimento são agora controlados, primariamente, por pequenas equipes de empreendedores destemidos, ou pelo tipo de cooperação descentralizada que cria o software livre. Mas isso não é verdade, mesmo que tais equipes de pesquisa são as que mais tendam a produzir resultados. A pesquisa e o desenvolvimento é ainda dirigida por projetos burocráticos gigantes.

O que mudou foi a cultura burocrática. A crescente interpenetração de governo, universidade e empresas levou todos a adotar a linguagem, as sensibilidades e as formas organizacionais do mundo corporativo. Isso pode ter ajudado a criar produtos vendáveis, uma vez que é isso que burocracias corporativas foram projetadas para fazer, mas em termos de estimular pesquisais originais, os resultados têm sido catastróficos.

Meu próprio conhecimento vem de universidades, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Nos dois países, nos últimos trinta anos têm se visto uma verdadeira explosão da proporção de horas de trabalho gastas com tarefas administrativas às custas de basicamente todo o resto. Na minha própria universidade, por exemplo, temos mais administradores que professores, e destes, também, espera-se que gastem pelo menos tanto tempo na administração quanto no ensino e na pesquisa combinados. O mesmo é verdade, mais ou menos, em universidades ao redor do mundo.

O crescimento do trabalho administrativo resultou diretamente da introdução de técnicas corporativas de administração. Invariavelmente, estas são justificadas como formas de aumentar a eficiência e introduzir o princípio de competição em todos os níveis. O que elas acabam significando na prática é que todo mundo acaba gastando mais tempo tentando vender coisas: propostas de bolsas, propostas de livros, análises de currículos dos estudantes para empregos e bolsas, análises de nossos colegas, prospectos de novos cursos interdisciplinares, institutos, conferências, as próprias universidades (que agora se tornaram marcas e precisam ser vendidas a possíveis alunos e contribuintes), e por aí vai.

À medida que o marketing domina a vida acadêmica, engendra documentos sobre o estímulo à imaginação e à criatividade que podiam igualmente ter sido feitos para estrangular a imaginação e a criatividade no berço. Nenhum grande novo trabalho de teoria social surgiu nos Estados Unidos nos últimos trinta anos. Fomos reduzidos ao equivalente de escolásticos medievais, escrevendo comentários intermináveis sobre teóricos franceses dos anos 70, apesar de nossa consciência culpada sobre o fato de que se novas encarnações de Gilles Deleuze, Michel Foucault ou Pierre Bourdieu aparecessem na academia hoje, negaríamos a eles cargos de professores.

Houve um tempo em que a academia foi o refúgio dos excêntricos, dos brilhantes, dos sonhadores. Não mais. É agora o domínio dos autopublicitários profissionais. Como resultado, em um dos mais bizarros atos de autodestruição social da história, parecemos ter decidido que não há mais um lugar para nossos cidadãos excêntricos, brilhantes e sonhadores. A maior parte deles definha nos porões de suas mães, quando muito fazendo ocasionais intervenções na internet.

Se tudo isso é verdade nas ciências sociais, onde a pesquisa ainda é feita com despesas mínimas e com grande frequência apenas por indivíduos, só podemos imaginar o quão pior fica para astrofísicos. E, de fato, um astrofísico, Jonathan Katz, recentemente alertou alunos que consideravam uma carreira científica. Mesmo que você consiga passar por um período, que geralmente dura uma década, sendo o lacaio de alguém, ele diz, você pode esperar que suas melhores ideias sejam frustradas a todo momento:

Você vai gastar o seu tempo escrevendo propostas em vez de fazendo pesquisa. E o que é pior, como as suas propostas são julgadas pelos seus competidores, você não pode seguir a sua curiosidade, mas deve se esforçar para antecipar e defletir críticas em vez de resolver os problemas científicos importantes. É lugar-comum que ideias originais são o beijo da morte para um projeto de pesquisa, porque ainda não se sabe se funcionam ou não.

Isso basicamente responde à pergunta sobre o porquê de não termos teletransporte ou sapatos antigravidade. O senso comum sugere que para maximizar a criatividade científica você deve encontrar pessoas inteligentes, dar-lhes os recursos para que elas se apliquem à ideia que lhes venha à cabeça, e deixe-os em paz. Muitas pesquisas não vão dar em nada, mas uma ou duas vão descobrir alguma coisa. Mas se você quer minimizar a possibilidade de descobertas inesperadas, diga a essas mesmas pessoas que elas não receberão recurso algum até que gastem o grosso de seu tempo disponível competindo umas com as outras para convencer você de que elas sabem de antemão o que vão descobrir.

Nas ciências naturais, à tirania do gerencismo podemos adicionar a privatização dos resultados das pesquisas. Como o economista britânico David Harvie nos lembrou, pesquisa de “código aberto” não é novidade. A pesquisa acadêmica sempre foi de código aberto, no sentido de que acadêmicos compartilhavam materiais e resultados. Há competição, certamente, mas é “convivial”. Isso não é mais verdade quanto a acadêmicos trabalhando no setor corporativo, onde descobertas são ciosamente protegidas, mas a difusão do ethos corporativo dentro da própria academia e institutos de pesquisa fez com que pesquisadores financiados por dinheiro público tratassem suas descobertas como propriedades pessoais. Editoras acadêmicas garantem que as descobertas que são publicadas sejam cada vez mais difíceis de acessar, trancando ainda mais o bem comum intelectual. Como resultado, a competição convivial de código aberto vira algo mais mais parecido com uma competição clássica de mercado.

Existem vários tipos de privatização, incluindo a simples compra e supressão de descobertas inconvenientes por grandes corporações com medo de seus efeitos econômicos (não podemos saber quantas fórmulas de combustível sintético foram compradas e colocadas nos cofres das empresas petrolíferas, mas é difícil imaginar que nada do tipo jamais ocorreu). Mais sutil é a forma como o ethos gerencista desencoraja tudo que seja um pouquinho diferente ou ousado, especialmente se não há prospecto de resultados imediatos. Estranhamente, a internet pode ser parte do problema nesse caso. Como Neal Stephenson disse:

A maior parte das pessoas que trabalham em corporações ou na academia testemunharam algo parecido com o seguinte: um número de engenheiros está sentado numa sala, discutindo ideias. Da discussão surge um novo conceito que parece promissor. Então uma das pessoas que tem um laptop, tendo feito uma pesquisa no Google, anuncia que essa “nova” ideia é, na verdade, uma ideia velha; ela – ou pelo menos algo vagamente parecido – já foi tentada. Ou ela falhou, ou teve sucesso. Se deu errado, nenhum gerente que quer manter seu emprego vai aprovar o dinheiro necessário para revivê-la. Se teve sucesso, então está patenteada e inserção no mercado é provavelmente inatingível, uma vez que a primeira pessoa que pensou nela terá a “vantagem de ter sido a primeira” e terá criado “barreiras” à entrada de competidores. O número de ideias aparentemente promissoras que foram destruídas dessa forma deve estar na casa dos milhões.

E então um espírito tímido e burocrático sufoca cada aspecto da vida cultural. Ele vem encoberto por um jargão de criatividade, iniciativa e empreendedorismo. Mas o jargão é irrelevante. Os pensadores que mais provavelmente farão uma descoberta conceitual são os que menos provavelmente receberão financiamento, e, se descobertas acontecerem, quem as descobre provavelmente não encontrará ninguém desejoso de ir até o fim em suas consequências mais inovadoras.

Giovanni Arrighi percebeu que depois da Companhia dos Mares do Sul, o capitalismo britânico praticamente abandonou a forma corporativa. Já pela época da revolução industrial, a Grã-Bretanha em vez disso começou a depender de uma combinação de empresas familiares e firmas de altas finanças – um padrão que continuou pelo próximo século inteiro, o período de máxima inovação científica e tecnológica (A Grã-Bretanha dessa época também é notória por ter sido tão generosa com seus esquisitões e excêntricos quanto os Estados Unidos de hoje são intolerantes. Um expediente comum era permitir que se tornassem párocos rurais, que, previsivelmente, se tornaram uma das principais fontes de descobertas científicas amadoras).

Contemporaneamente, o capitalismo corporativo burocrático foi uma criação não da Grã-Bretanha, mas dos Estados Unidos e da Alemanha, os dois poderes rivais que passaram a primeira metade do século XX lutando duas guerras sangrentas para decidir quem substituiria o Reino Unido como o poder mundial dominante – guerras que culminaram justamente em programas científicos patrocinados pelo governo para ver quem seria o primeiro a descobrir a bomba atômica. É significativo, então, que nossa estagnação tecnológica atual pareça ter começado depois de 1945, quando os Estados Unidos substituíram a Inglaterra como organizador da economia mundial.

Estadunidenses não gostam de pensar em si mesmos como uma nação de burocratas – bem o contrário, na verdade – mas no momento em que paramos de imaginar a burocracia como um fenômeno limitado a escritórios do governo, fica óbvio que é exatamente o que nos tornamos. A vitória contra a União Soviética não levou à dominação do mercado mas, na verdade, cimentou a dominação das elites gerenciais conservadoras, burocratas corporativos que usam o pretexto do pensamento a curto prazo, competitivo, voltado para o lucro, para esmagar qualquer coisa que possivelmente teria implicações revolucionárias de qualquer tipo.

Se não notamos que vivemos em uma sociedade burocrática, isso é porque as normas e práticas burocráticas se tornaram tão comuns que não podemos vê-las, ou, pior, não conseguimos nos imaginar fazendo as coisas de outra forma. Computadores têm tido um papel crucial nesse encurtamento de nossas imaginações sociais. Assim como a invenção de novas formas de automação industrial nos séculos XVIII e XIX teve o efeito paradoxal de transformar cada vez mais e mais pessoas no mundo todo em trabalhadores industriais em tempo integral, também todo o software projetado para que pudéssemos evitar responsabilidades administrativas nos transformou em administradores em meio período ou em tempo integral. Da mesma forma que professores universitários parecem sentir que é inevitável perder mais e mais de seus tempos gerenciando bolsas, donas de casas de classe média alta simplesmente aceitam que terão que gastar várias semanas todos os anos preenchendo formulários online de quarenta páginas para matricular seus filhos no ensino fundamental. Todos nós perdemos cada vez mais tempo digitando senhas em nossos telefones para gerenciar contas de banco e cartões de crédito, e aprendendo como fazer trabalhos que uma vez foram feitos por agentes de viagens, corretores e contadores.

Alguém descobriu que nos Estados Unidos uma pessoa gastará em média seis meses de sua vida esperando em semáforos. Eu não sei se estatísticas semelhantes estão disponíveis para o tempo que se perde preenchendo formulários, mas deve ser pelo menos tão longo quanto aquela. Nenhuma população na história do mundo gastou nem de perto tanto tempo engajando com papelada. Nesse estágio final e embrutecedor do capitalismo, estamos nos movendo das tecnologias poéticas em direção às tecnologias burocráticas. Por tecnologias poéticas eu me refiro ao uso de técnicas racionais para transformar fantasias loucas em realidade. Tecnologias poéticas, entendidas assim, são tão velhas quanto a civilização. Lewis Mumford percebeu que as primeiras máquinas complexas eram feitas de pessoas. Os faraós egípcios conseguiram construir as pirâmides somente por causa de seu domínio de procedimentos administrativos, que os permitiu desenvolver técnicas de linha de produção, dividindo tarefas complexas em dúzias de operações simples e delegando-as a uma equipe de trabalhadores – mesmo que lhes faltasse uma tecnologia mecânica mais complexa que o plano inclinado e a alavanca. O gerenciamento transformou exércitos de camponeses em engrenagens de uma ampla máquina. Muito depois, após a invenção das engrenagens, o projeto de uma maquinaria complexa elaborou princípios originalmente desenvolvidos para organizar pessoas.

No entanto nós vimos essas máquinas – sejam suas partes móveis braços e pernas, ou pistões, rodas e molas – serem usadas para realizar fantasias impossíveis: catedrais, o voo à lua, trilhos intercontinentais. Certamente, as tecnologias poéticas tinham algo de terrível; e poesia pode-se fazer tanto sobre moinhos satânicos quanto sobre a graça divina. Mas as técnicas administrativas, racionais, sempre estiveram a serviço de algum objetivo fantástico.

Dessa perspectiva, todos aqueles planos soviéticos malucos – mesmo se nunca postos em prática – marcaram o clímax das tecnologias poéticas. O que temos agora é o contrário. Não é que visão, criatividade, e fantasias loucas não sejam mais encorajadas, mas que a maioria permanece flutuando no ar; não há mais sequer um fingimento de que elas poderiam um dia tomar forma ou corpo. A maior e mais poderosa nação que já existiu passou as últimas décadas dizendo a seus cidadãos que eles não podem mais contemplar empreendimentos coletivos fantásticos, mesmo que – como a crise ambiental demonstra – o destino da Terra dependa disso.

Quais são as implicações políticas disso? Primeiramente, precisamos repensar algumas dos nossos mais básicos pressupostos sobre a natureza do capitalismo. Um é que o capitalismo é idêntico ao mercado, e que ambos são portanto inimigos da burocracia, que é supostamente uma criação do Estado.

O segundo pressuposto é que o capitalismo é em sua natureza tecnologicamente progressista. Marx e Engels, com todo um entusiasmo frívolo pelas revoluções industriais daquele tempo, parecem ter errado quanto a isso. Ou, para ser mais preciso: eles acertaram em dizer que a mecanização da produção industrial destruiria o capitalismo; mas erraram ao prever que a competição do mercado obrigaria os donos de fábricas a se mecanizar de qualquer forma. Se isso não aconteceu, é porque a competição do mercado não é, de fato, tão essencial à natureza do capitalismo quanto se tem presumido. A forma atual do capitalismo, em que grande parte da competição parece não passar de marketing interno dentro de estruturas burocráticas de enormes semi-monopólios, seria no mínimo surpreendente para Marx e Engels.

Defensores do capitalismo fazem três revindicações históricas amplas: primeiro, que ele incentivou o rápido crescimento científico e tecnológico; segundo, que não importa o quanto ele possa jogar uma enorme riqueza nas mãos de uma pequena minoria, ele o faz de tal forma que melhora a prosperidade geral; terceiro, que ao fazê-lo, cria um mundo mais democrático e seguro para todos. Fica claro que o capitalismo não está mais fazendo nada disso. Na verdade, muitos de seus defensores estão deixando de dizer que é um bom sistema e em vez disso recuando para a posição segundo a qual é o único possível – ou, pelo menos, o único possível para uma sociedade complexa e tecnologicamente sofisticada como a nossa. Mas como alguém poderia argumentar que os arranjos econômicos de agora serão também os únicos que vão ser viáveis em qualquer possível sociedade tecnológica do futuro? O argumento é absurdo. Como seria possível comprovar isso?

É verdade que há pessoas que concordam com essa posição dos dois lados do espectro político. Como um antropólogo e anarquista, eu encontro tipos anticivilização que insistem não apenas que a tecnologia industrial atual só pode levar a uma opressão no estilo do capitalismo, mas que isso deve necessariamente ser verdadeiro de qualquer tecnologia futura também, e portanto a libertação humana só pode ser conquistada com o retorno à idade da pedra. A maioria de nós não é composta por deterministas tecnológicos. Mas afirmações sobre a inevitabilidade do capitalismo têm que se basear em algum tipo de determinismo tecnológico. E por essa mesma razão, se o objetivo do capitalismo neoliberal é criar um mundo em que ninguém acredita que qualquer outro sistema econômico funciona, então precisa suprimir não apenas a ideia de um futuro redentor inevitável, mas qualquer futuro tecnológico radicalmente diferente. Mas há uma contradição. Defensores do capitalismo não podem se propor a nos convencer de que o progresso tecnológico está de fato aumentando, que vivemos em um mundo de maravilhas, mas que essas maravilhas tomam a forma de melhorias modestas (o mais novo iPhone!), rumores de invenções prestes a ocorrer (“ouvi dizer que eles vão começar a fabricar carros voadores logo, logo”), formas complexas de fazer malabares com informações e imagens, e maneiras ainda mais complexas de preenchimento de formulários.

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Eu não quero sugerir que o neoliberalismo capitalista – ou qualquer outro sistema – pode ser bem sucedido quanto a isso. Primeiro, há o problema de tentar convencer o mundo de que você está dirigindo o progresso tecnológico quando na verdade o atrasa. Os Estados Unidos, com sua infraestrutura decadente, paralisia frente ao aquecimento global, e o abandono simbolicamente devastador de seu programa espacial tripulado ao mesmo tempo em que a China acelera o seu próprio, está fazendo um trabalho de relações públicas particularmente ruim. Segundo, o ritmo da mudança não pode ser impedido para sempre. Avanços vão acontecer; descobertas inconvenientes não podem ser enterradas permanentemente. Outros países, menos burocratizados – ou pelo menos, lugares com burocracias que não são tão hostis ao pensamento criativo – vão lenta porém inevitavelmente chegar aos recursos necessários para continuar a partir de onde os Estados Unidos e seus aliados pararam. A internet de fato providencia oportunidades de colaboração e disseminação que pode nos ajudar a quebrar essa barreira também. De onde virá a próxima descoberta? Não podemos saber. Talvez a impressão 3D fará o que as fábricas de robôs deveriam ter feito. Ou talvez vai ser outra coisa. Mas vai acontecer.

Sobre uma conclusão podemos nos sentir especialmente confiantes: não vai acontecer dentro do enquadramento do capitalismo corporativo contemporâneo – ou qualquer forma de capitalismo. Para começar a fundar colônias em Marte, sem falar do desenvolvimento de meios para descobrir se há civilizações alienígenas com as quais entrar em contato, vamos ter que inventar um sistema econômico diferente. O novo sistema deve se parecer com uma nova gigantesca burocracia? Por que presumimos que sim? Apenas ao destruir as estruturas burocráticas existentes podemos começar esse trabalho. E se vamos começar a inventar robôs que lavem nossas roupas e limpem a cozinha, então vamos ter que nos certificar de que o que quer que substitua o capitalismo se baseie em uma distribuição bem mais igualitária de riqueza e de poder – uma que não conte mais com super-ricos, nem com os desesperadamente pobres que desejam fazer suas tarefas domésticas. Apenas então a tecnologia começará a ser direcionada para as necessidades humanas. E essa é a melhor razão para se libertar da mão morta de investidores e diretores de multinacionais – para libertar nossas fantasias das telas nas quais tais homens as aprisionaram, e deixar nossas imaginações novamente se tornarem uma força material na história humana.

A possibilidade de uma teoria política anarquista

Existe uma aversão corrente entre anarquistas à ideia de “modelos” de sociedade. Será possível, assim, pensar uma teoria política – que trabalha principalmente com modelos – anarquista?

Comentando um modelo teórico de uma economia sem dinheiro, democrática e participativa elaborado por Michael Albert, Graeber escreveu que ele “é uma conquista importante” não por acreditar “que esse modelo exato, rigorosamente da forma como ele o descreve, poderia ser instituído um dia, mas porque faz com que não se possa mais dizer que uma coisa desse tipo é inconcebível”. Parece haver uma contradição nessa defesa dos modelos, que ou são aplicáveis à realidade e por isso são eficazes… Ou não são, e nesse caso podem até se tornar munição dos detratores. O simples fato de que um modelo foi pensado não diz muito.

Graeber não faz boa defesa dos modelos porque não gosta deles, e isso é lugar-comum entre anarquistas. No Anarchist FAQ encontramos que leis constituem um “corpo morto” de instituições que separa o controle social da força moral, e deveriam ser substituídas por costumes. Na crítica à democracia feita pelo coletivo Ex-workers lemos não uma crítica de um modelo organizacional particular, mas uma exigência de que todos os modelos sejam vistos como provisórios, sendo continuamente reavaliados e reinventados.

Uma teoria política ácrata poderia ser pensada como uma busca analítica por possíveis consequências de modelos institucionais, dialogando não num sentido prescritivo, mas “dadivoso”, com as comunidades, e as fundamentações do conceito de path dependence me inspiram a defender a relevância de tal teoria. No livro “Politics in Time”, de Pierson, encontro a concepção de path dependence como algo que “se refere a processos dinâmicos envolvendo feedback positivo, que geram múltiplos resultados possíveis dependendo da sequência particular em que os eventos ocorrem”. Margaret Levi explica de um modo um pouco mais simples: “path dependence tem que significar […] que uma vez que um país ou uma região começou a seguir um caminho, os custos de reversão são altos”. Depois de um período de positive feedback e de compromissos acumulados sobre o caminho que se decidiu percorrer, mudanças serão mais difíceis, e mesmo novas mudanças vão ter seu formato condicionado por essas “primeiras” decisões.

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Entender os possíveis efeitos de diferentes modelos políticos, para fazer escolhas mais bem informadas, seria então a razão de ser de uma teoria política anarquista. Estudar teoria sob a luz do path dependence justifica essa razão de ser pois evidencia o quão importante é estar bem informado para fazer escolhas, uma vez que é ressaltada a relevância de cada passo em uma cadeia de decisões políticas. É claro que pensar em termos de path dependence não torna óbvias todas as consequências de uma escolha institucional a partir do ponto de partida. Afinal, nem sempre as instituições promovem o que os projetistas pensaram que promoveriam; as motivações iniciais por detrás das primeiras escolhas, aliás, “se perdem”; os atores muitas vezes não conseguem mais controlar as instituições que criaram.

De qualquer forma, sim, há uma imprevisibilidade essencial no futuro, mas os aspectos estruturais que emergem a partir de nossas escolhas podem ser estudados. A importância do momento inicial exige o aproveitamento máximo de toda potência que a teoria possa oferecer frente a um cenário de tanta imprevisibilidade.

Mas o que é o momento inicial? E de que forma é feita a escolha que se dá neste momento inicial?

Em termos retrospectivos – quer dizer, na forma como o conceito de path dependence é utilizado pela ciência política – Pierson fala de uma dificuldade metodológica na “escolha” do “momento inicial”… Uma discussão de pouco interesse agora. Já em termos prospectivos, especialmente à medida que pode-se fazer recortes temáticos quanto aos modelos (um modelo de “família”, um modelo econômico, um modelo político, etc), o momento inicial faz referência a um momento em que pode haver uma mudança modelar significativa. De interesse para anarquistas, mudanças que levam a sociedade para mais perto da efetivação de valores e ideais ácratas.

A escolha dos modelos, contudo, é uma questão mais sutil. Tilly, por exemplo, escreve que “as pessoas realmente constroem a democracia… [Mas] constroem tem a conotação enganosa de plantas baixas e carpinteiros”, e na verdade a mudança é muito menos planejada que isso. “Quando foi que alguma mudança social já aconteceu de acordo com o projeto de alguém?”, ecoa Graeber. As pessoas não param para analisar calmamente modelos de teoria dos jogos em momentos de transformação social, comparando duas possíveis escolhas institucionais antes de qualquer decisão coletiva maior. Elas simplesmente fazem coisas. No entanto, disso não se pode depreender a futilidade de atentar a modelos teóricos — ocorre precisamente o contrário, primeiro porque o fato de as pessoas “simplesmente fazerem coisas” não indica a ausência de modelos, abstrações da mente humana referentes a padrões de comportamento – que existirão, independente da disponibilidade de alguém que os queira estudar. Uma vez que se adote um procedimento, gera-se uma expectativa que as próximas decisões sigam o mesmo caminho, ou que todas as pessoas sejam tratadas do mesmo jeito, etc. Em segundo lugar, evitar pensar e defender modelos específicos no contexto da luta política de ideias não necessariamente incentiva o pensamento não-modelar, porque esse pensamento é absolutamente incomum no pensamento humano em geral.

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Photo by David Bailey MBE

Pierson cita um estudo de Blais e Massicotte em que explica-se a dominância de sistemas políticos de representação proporcional na América Latina. Não se trata de considerações estratégicas (como se outros sistemas políticos jamais, em toda a região, pudessem ter beneficiado as elites), mas sim do fato de que os advogados constitucionais da região receberam educação formal na Europa continental (e não, digamos, na Inglaterra), e portanto esse era o modelo a que estavam intelectualmente afiliados.

Evitar discutir os modelos, mesmo que se for para condená-los em favor de princípios, implica confiar que cada indivíduo suficientemente afiliado aos princípios consiga deles derivar modelos de ação social coerentes e funcionais. Mas isso traz o grande perigo de que modelos anteriores acabem sendo preferidos, já que os princípios, menos rigidamente definíveis que modelos, podem ser “flexibilizados” para que aparentem ser coerentes com os modelos. Esta é, aliás, uma crítica que alguns anarquistas fazem à defesa do termo “democracia”: se um anarquista defende suas ideias como se fossem “democráticas”, o que o público leigo pode ouvir e assimilar é que se deve defender, por exemplo, o “voto majoritário”, já que no modelo democrático que o grande público conhece a tradição do voto majoritário já está bem consolidada.

De certa forma, o anarquismo já reconhece a noção de path dependence. Os comunistas, por exemplo, mesmo admitindo que depois da “ditadura do proletariado” o Estado desapareceria (colocando essa sociedade sem hierarquias como um objetivo, portanto), ainda desejam usar o Estado, isto é, um modelo hierárquico de mobilização social e sociedade, como meio para se chegar a um fim oposto. Isto é duramente criticado pelos anarquistas porque, afinal, as escolhas importam. Uma vez que se escolhe a manutenção da estrutura estatal, geram-se interesses, padrões de comportamentos, estruturas que construirão resistência contra qualquer força contrária. Esse é (sendo generoso ao falar de “resistência” na última frase) o resultado que encontramos nos casos da União Soviética, da China, de Cuba, entre outros.

Mas anarquistas também são conhecidos por uma característica oposta: uma espécie de “path independence”, uma tendência a não reconhecer a conjuntura como determinante em suas práticas. Há quem diga que a possibilidade de uma sociedade anarquista é tão impensável no cenário atual quanto (se não mais que) a volta do sorteio como método de escolha de representantes políticos. Mesmo assim, ao contrário de qualquer possível advogado do sorteio como método, isso não impede os anarquistas de agirem politicamente.

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Photo by Forsaken Fotos

Isso é o que mais ameaça fazer ruir a utilidade de uma teoria política entre os anarquistas: afinal, não importa se o modelo político adotado inicialmente pelo movimento não estiver “dando certo”; numa sociedade anarquista, os indivíduos podem livremente mudá-lo a hora que quiserem justamente pelo fato determinante de que o que caracteriza uma sociedade anarquista é essa disposição insurrecional para negar estruturas; uma cultura de ser path independent.

É verdade também que é preciso relativizar minha caracterização anterior dos anarquistas como “odiadores” de modelos. As várias escolas de pensamento anarquistas se distinguem por visões diferentes de sociedade em termos de modelos políticos, econômicos, jurídicos, entre outros. O problema é que enquanto a liberdade for entendida como um “experimento contínuo”, como citado anteriormente, escolhas sistemáticas não parecem consequentes. Depois de fazer o elogio ambíguo ao modelo econômico de Michael Albert, Graeber diz que está “menos interessado em decidir que tipo de sistema econômico devemos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios para que as pessoas possam tomar essa decisão”. Esse é o ímpeto do path independence: acreditar que não importa tanto o que se escolhe; a escolha (livre) sempre pode ser refeita.

O caminho de uma teoria política anarquista passa por um cálculo: por um lado, deve reconhecer que o mesmo argumento que dá suporte à coincidência entre meios e fins (como na questão do Estado no limiar revolucionário) aplica-se a todo e qualquer modelo, mesmo um adotado temporariamente. Por outro, não pode representar uma transformação de “ser” em “dever-ser” (como numa virada em que se advoga que, por causa do peso de decisões históricas, escolhas do passado não devem ser reavaliadas e reinventadas), tampouco o estabelecimento de um papel vanguardista para quaisquer teorias anarquistas.

O conceito de path dependence veio da economia, mas quatro elementos da política a tornam passível de estudo por um ângulo de positive feedback segundo Pierson: o papel central da ação coletiva, a alta densidade das instituições, as possibilidades de uso da autoridade política para aumentar assimetrias de poder e uma complexidade e opacidade intrínsecas a ela. Se analisarmos cada um desses aspectos podemos verificar a relevância de contar com boas análises modelares ao longo de processos decisórios.

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Photo by mike.benedetti

Por acaso poderíamos descartar de saída o terceiro aspecto acima, já que os anarquistas defendem justamente a abolição de assimetrias de poder e negam a legitimidade de autoridades baseadas na força? Pelo contrário. Ele é exatamente uma razão para que em qualquer situação em que se esteja tentando estruturar instituições políticas (ou de outros tipos) respeitando princípios anarquistas a atenção quanto ao modelo geral da instituição deva ser redobrada: qualquer assimetria de poder que se permita subsistir pode engatilhar uma dinâmica de positive feedback que engendraria desigualdade e dominação – e, ainda pior, poderia tornar as mesmas relações de poder menos visíveis ao longo do tempo.

O fato de a “ação coletiva” ser um elemento central da política significa dizer que “as consequências das minhas ações são altamente dependentes das ações dos outros”. Já a “alta densidade” significa que nosso envolvimento com instituições nos incentiva a buscar uma espécie de estabilidade. “Em contextos de interdependência social complexa”, explica Pierson, “novas instituições e políticas frequentemente geram altos custos fixos, efeitos de aprendizado, efeitos de coordenação e expectativas adaptativas. Instituições e políticas podem encorajar indivíduos e organizações a investir em habilidades especializadas, aprofundar relações com outros indivíduos e organizações, e desenvolver identidades sociais e políticas específicas. Essas atividades aumentam a atratividade de arranjos institucionais existentes relativos a hipóteses alternativas. Em ambientes institucionalmente densos, ações iniciais levam o comportamento individual a rotas que são difíceis de reverter”. As pessoas assumem compromissos com base em instituições e políticas existentes, e “à medida que o fazem, o custo de reversão da rota se eleva dramaticamente”. O último elemento, a complexidade e a opacidade intrínsecas à política, representa a “dificuldade de medir aspectos importantes da performance política” – o que dificulta esforços para pensar em melhorias caso exista a percepção de que um determinado modelo não está funcionando.

O que esses elementos significam? Basicamente, uma razão para não tratar escolhas estruturais com leveza, como se as decisões pudessem ser facilmente revertidas depois: uma vez que decisões são tomadas e os atores sociais se movem numa direção, as pessoas vão começar a criar expectativas quanto a essas decisões. As complicações são inúmeras; as pessoas assumem compromissos de longo prazo, a complexidade do campo político faz com que seja difícil diagnosticar a fonte exata da insatisfação das pessoas quanto às instituições, e mesmo fazer algo quanto a elas não é necessariamente uma questão de escolha individual. Simplesmente sair das instituições, então, pode exigir um custo proibitivo para o indivíduo…

Resumidamente, há uma dinâmica de estabilidade inerente a toda organização social institucional. Essa estabilidade se reforça rapidamente (“a cada aperto de mãos, a força dessa norma social aumenta”) e não está sob controle de indivíduos isolados — os processos desencadeados por decisões passadas se tornam progressivamente mais difíceis de ser interrompidos para que possam ser “reinventados”. “Se um grupo de pessoas decide que quer operar por voto majoritário”, questiona Graeber, “quem vai impedi-los?”. Não é coerente, é óbvio, que um anarquista impeça um grupo de fazer isso (especialmente um do qual ele não faça parte). Mas a questão não é essa: uma vez que o voto majoritário seja escolhido, ele vai dar início a processos de positive feedback que poderão dificultar o processo de mudança de modelo que seria necessária para evitar processos de acumulação de poder por parte de um grupo social.

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Photo by Brandy Dopkins

Uma teoria política anarquista não se preocuparia com uma definição quanto a se uma sociedade deve ou não deve, pode ou não pode operar com dinheiro, ou que um grupo deve ou não deve, pode ou não pode funcionar politicamente por meio de voto majoritário. O conceito de path dependence tampouco afirma que é impossível mudar o status quo das instituições. O que o estudo desse conceito traz é a consciência de que mesmo em “condições de liberdade” como entendidas por anarquistas as instituições produzem estabilidade, e tendem a ser menos controláveis com o passar do tempo. Qualquer tipo de instituição.

No fundo e de maneira simples, é quase possível dizer que isso se trata de uma defesa do poder que os seres humanos têm de racionalmente pensar em soluções políticas; uma defesa da necessidade de tomar as rédeas do destino nas mãos, mesmo reconhecendo as dificuldades disso e a natureza social em última instância dessa “tomada de rédeas”. Bakunin chegou a dizer, sobre a importância do início de uma revolução anarquista, que era necessária a “melhor base possível”, que “impediria a recaída e garantiria uma revolução progressiva”. Ele insistia “na necessidade de um começo sólido”, e não confiava “nem na espontaneidade nem no acaso”.

Ou seja… Há definitivamente um espaço para o engenho na formação de instituições ácratas. Nos piores casos, em que são escolhidos modelos com grandes “problemas” (do ponto de vista dos anarquistas), ao menos existirão análises sobre essas falhas, o que providenciaria ideias quanto a como combater estruturas de dominação. Afinal, esta já é a utilidade de uma teoria política anarquista em uma sociedade como a nossa, que ainda não é anarquista.

Pensamentos soltos e pequenos sobre alunos, motivações e educação

O estatuto de aluno, ou seja, daquele que deseja adquirir um conhecimento solidificado, tendo acesso a ele, sempre foi obtido através da necessidade ou da motivação: aprende-se quando é preciso ou quando se quer.

A contemporânea criação do ensino obrigatório e sua tecnocracia nos lega um novo aluno, a tal condição ascendido através da conveniência, da situação, da simples normalidade de tal o ser. Nesse novo arranjo de coisas o responsável pela motivação é o professor, que já tem ainda mais peso nas costas quando o processo educativo é encarado por algo reto, simples e matemático; algo que pode ser reduzido à lógica das escalas industriais, e que portanto para qualquer falha há sempre alguém que provocou a falha – o professor, mecânico que não soube conduzir o processo como se deve, ou o aluno, material estragado que não se conforma a ele.

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A natureza do processo permanece, inquestionável, como se não fosse uma ferramenta bruta, burra, embrutecedora e ensurdecedora. Deturpação ou simples transformação? Essa nova condição de aluno deve ser encarada com naturalidade ou com estranheza, originando a nostalgia com o que um dia o aprender já significou? Ora, se considerarmos o que é melhor para o aprendizado – um aluno motivado por outrem ou por si mesmo – além de considerarmos os gastos inúteis de energia, tempo e esforço para enfiar “garganta abaixo” o que não se quer, não há dúvidas de que se trata de algo com muito menos valor.

Mas nem mesmo o passado é feito de glória absoluta, e um novo caminho deve ser conquistado em uma sociedade mais igualitária: o professor não como detentor de algo, sendo, assim, superior e constituindo uma autoridade. O aprendizado é um produto, acima de tudo, social, e com consequências sociais, e os laços e redes que ele enseja devem ser valorizados acima de tudo. Mais do que algo latente, inclusive; algo fundamental.

Fases

A crença na infalibilidade do tempo enquanto agente impessoal de inexorável transformação é uma deturpação daquilo que já se dizia com Heráclito – quanto ao fato de que a mudança está sempre presente no universo. Isso nos torna mais e mais submissos a uma condição que é tanto social quanto natural, a saber, o tempo e suas propriedades por nós atribuídas, em especial em relação à idade.

Ter uma idade para fazer as coisas é criar um conjunto de pré-julgamentos sociais em relação a atitudes, mas há mais que isso em toda essa querela com o tempo: não apenas se faz necessário ser de uma maneira ou não ser de uma maneira de acordo com o tempo, como aquilo que não é aceito torna-se uma fase; algo que tivesse uma essencial data de validade anexa.

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Ora, uma tendência, um comportamento, não se transformam (sob a influência de posterior reflexão) em uma fase simplesmente porque isso acontece. Como uma criança birrenta cujo comportamento abusivo é aceito já que é apenas uma fase. Pode ser uma fase ou pode não ser: a não-interferência pode acabar significando que as mesmas características continuem se manifestando. Talvez transformadas, sim, mas então a minúcia daquilo que constitui ou não uma fase (ou um sintoma) tornam toda a discussão irrelevante por falta de critério – se a birra continua, mesmo que canalizada, disfarçada, e não se lida com ela, a fase não passou.

Há coisas que nunca são vistas como fases. Está fumando maconha? Não é fase, que passa; é um problema seriíssimo que necessita de muita conversa, cuidado e atenção. Adora jogar vídeo game? Isso é coisa que passa. Ou não?

Isso tudo faz parte dos discursos da época… Há muito envolvido nisso. Side-effect da mesma problemática é o modo como sempre se espera a degeneração de tudo que é bom – especialmente em termos de relações humanas. Qual casal de namorados nunca ouviu que “no primeiro ano é tudo flores… Depois tudo piora”. Quantos casais não estariam ainda juntos, pergunto-me, se adotassem uma postura proveniente de um conselho diferente e não-determinista como este: “a qualquer hora, sem aviso ou tendência, seu relacionamento pode piorar, melhorar ou permanecer com a mesma qualidade”.

Cooperação e competição: a vida merecida

O que impede a sociedade de se organizar em torno da cooperação é que a sociedade não tem mecanismos para garantir, com precisão, simplicidade e estabilidade, que cada um consiga viver bem independente de seus feitos individuais – em suma, a ideia de que a partir de uma situação de estabilidade, calma e bom humor as pessoas conseguem produzir, juntas, coisas boas, parece que tem que ser merecida, ganhada, só que dentro do escopo da competição que, se segundo sua própria lógica necessariamente cria perdedores, só alguns terão direito a essa situação.

Não podemos viver bem simplesmente para aproveitar a maravilha de viver; não, temos que partir de uma situação igual numa corrida maluca para alcançar uma situação boa como prêmio. Nesse sentido, o medo de compartilhar é o mesmo medo de dar ao outro a única arma que tem na corrida maluca; “e eu, como vou sobreviver assim?”. Ora, se essa pergunta não precisasse ser feita, não existiria problema algum quanto ao consumo de cultura, patentes ou comida.

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Há uma filosofia de vida pervasiva e invisível em nossa cultura (embora não seja de forma alguma exclusividade nossa, seja lá quem esse “nós” de “nossa” seja) segundo a qual a vida boa é merecida; é aquela pela qual você luta. Mas imagino, arriscando-me aqui de propósito e aceitando críticas estatísticas, que quem mais acredita nisso é quem superestima seus próprios esforços ou quem se ferrou tanto na vida que quer ver seu esforço justificado – como o subalterno que suporta o sistema de “subalternidade” porque quer que outros sofram tanto quanto ele, que passem pelo que ele passou, pois isso legitima seu sofrimento e satisfaz o viés psicológico segundo o qual o mundo é justo.

Mas também, pensando melhor: quem sobra? Todo mundo quer ter seu sofrimento justificado. Todo mundo acha que sofre, e comparar sofrimentos é algo tão ridículo quanto necessário. Se Graeber pode argumentar que a solução para grande parte de nossos problemas econômicos é um perdão total da dívida, deveríamos poder também perdoar o uso inconsciente que fazemos dos sofrimentos uns dos outros – como armas; e deveríamos poder largá-las para enxergar-nos todos como merecedores de uma boa vida e como agentes conjuntos da empreitada cooperativa que nos poderia levar a buscá-la com mais sinceridade e leveza.

“Eu vejo os seus erros, escritores novatos”, por Chuck Wendig

Esta é uma tradução de “I Smell Your Rookie Moves, New Writers“, um texto muito interessante e informativo para escritores iniciantes em geral.

Nota do tradutor: algumas coisas são um tanto quanto específicas para o contexto dos EUA (e, nesse caso, fiz adaptações), e de outras eu pessoalmente discordo, pelo menos em quão longe este autor vai ao defender um determinado estilo de literatura como “o correto” ou “o melhor”. Além disso, não é problematizado o quanto isso aqui vale para autores iniciantes, mas como a psicologia do leitor e do “mito” em torno de clássicos ou autores consagrados torna a experiência completamente diferente – o que poderia nos levar a discutir qual devem ser, afinal, as escolhas de quem quer escrever uma grande obra a despeito do contexto pessoal, social ou histórico em que ela é escrita, se é que isso é possível. Ainda assim, considero que a leitura vale muito a pena.

Eu ocasionalmente me encontro na posição de ler trabalhos de novos escritores. Às vezes é em conferências. Às vezes é só um trecho de um trabalho que está de graça na internet ou parte de um trabalho independente. Às vezes eu só me viro na cama e lá está: um manuscrito de um novo escritor, assombrando-me como um demônio vingativo.

Eu queria muito gritar com vocês.

Agora, escutem, antes que eu comece a parte em que eu berro com vocês até ficar rouco sobre as coisas que você estão fazendo errado, eu quero que você entenda que todos nós já passamos por isso. Todos nós já escrevemos mal. Escrever mal é o primeiro passo para, bem, não escrever mal. Eu já escrevi uma boa quantidade de MERDA PODRE na minha vida, e essa é uma daquelas coisas que você tem que tirar logo do seu sistema.

(Apesar de que aqui entramos também em outra questão: MERDA PODRE não é uma delicatesse. Você faz isso lá no banheiro, com a porta bem trancada para o cheiro não espalhar pela casa, esperando que a descarga dê conta do negócio. Você não se desfaz do almoço estragado de ontem no meio da sala de estar e aí o introduz como num show de teatro: “E começou o espetáculo!”. O que estou tentando dizer é que não vale a pena automaticamente publicar seus esforços de novato por aí, especialmente se esses esforços vão custar dinheiro. A mera existência de uma história não é justificativa para sua publicação. Não faça as pessoas te dar dinheiro por seus piores esforços. Faça as coisas do jeito certo antes de pedir por dinheiro por coisas ruins).

Aqui, então, estão algumas das coisas que eu notei em rascunhos feitos por escritores novos ou inexperientes, e esses eu acho que são erros padrão – e essas são coisas que autores experientes às vezes fazem também, então vasculhe esta lista, veja se você se depara com algum desses pecados, e então conserte o seu texto. Entenderam? Tudo bem? Podemos começar?

Que a gritaria comece.

TELEGRAFAR CADA MERDA QUE ACONTECE

É legal, eu sei, saber de cada coisinha que está acontecendo o tempo todo sempre na sua história. Os personagens riem e sorriem. Ok. Eles mexem em alguma coisa com as mãos. Legal. Eles bebem uma xícara de chá com o dedo mindinho para fora. Claro, por que não? Mas se você está descrevendo cada soluço, arroto, peido, tremedeira, titubeada, golada e gorgolejada, isso é um problema. Um personagem liga uma lâmpada? Massa, você não precisa descrever como ele a liga. Eu não preciso ver Jacinto Leite abrindo o zíper da calça antes de mijar e, sinceramente, eu posso nem precisar ver ele mijando a não ser que isso nos diga algo sobre seu personagem. Veja, o problema é que, quando você telegrafa todos esses movimentos – quando você descreve em detalhe cada minúscula micro-expressão e movimento peristáltico do intestino, você enche a página com uma lista de supermercado cheia de Baboseira Incrivelmente Desinteressante. O que me leva a –

NEM TUDO É INTERESSANTE

Numa estimativa grosseira, eu diria que 90% de Todas As Coisas No Mundo são desinteressantes. Tão chatas quanto desenhar com giz de cera branco num papel branco. Coisas são chatas. A vida é chata. Detalhes são em grande parte chatos.

Contar uma história é o oposto disso. Contamos histórias porque elas são interessantes. Oferecemos narrativas porque as narrativas são quebradoras de ossos: elas rompem o fêmur do status quo. É o forte, tão-alto-quanto-um-tiro som de fratura exposta de uma história que atrai nossa atenção. O cara vai trabalhar, trabalha, vai pra casa, janta e vai pra cama? Não é interessante. O cara vai trabalhar, tem os mesmos problemas com seu chefe, aguenta os dilemas padrões do dia (“cadê a merda do meu grampeador?”), vai pra casa, come um jantar de microondas, vai pra cama e dorme mal até o próximo dia, que é a mesma coisa? Ainda não é interessante. O cara vai trabalhar e é despedido? Ok, talvez, dependendo se ele faz algo inesperado em relação a isso. O cara vai para o trabalho, é atirado de um canhão e cai num galpão cheio de ninjas? PODE CONTINUAR.

Com a descrição é a mesma coisa. Você não precisa me contar com o quê tudo se parece porque eu já sei como as coisas se parecem, e a maioria das coisas não são tão interessantes. Folhas numa árvore são folhas numa árvore. Pelo impacto da história, quantas pontas uma folha de árvore tem ou como se movimentam no vento não é interessante. Isso não é um vídeo game em que você se beneficia de uma pintura autêntica e realista de cada aspecto do ambiente. Pule essa parte. Fale-nos do que é inesperado. As coisas que quebram com as nossas noções: uma das folhas está manchada de sangue? Então precisamos saber disso. Queremos saber disso.

Corte as coisas chatas.

Escreva as coisas interessantes.

Apare, aperte, recorte, fatie. Compacte a sua história toda. Derreta-a. Derreta-a!

O que me leva a…

IR LOOOOOOOONGE DEMAAAAAAAAAAAAAAAAAIS

Seja lá o que você está escrevendo, é muito longo. Corte um terço fora, ou mais. Faça isso agora. Eu não me importo se você não acha que deveria fazer isso, apenas faça. Tente. Você pode voltar atrás se não gostar. Considere isso um desafio intelectual – você pode completamente destruir 33% da sua história? Você pode fazer isso sem misericórdia e ainda contar a história que quer contar? Eu aposto perfeitamente bem que você pode.

COMECE A PORRA DA HISTÓRIA LOGO, CARALHO

A história começa na página um.

Repita: a história começa na página um.

Não começa na página dez. Não começa no capítulo cinco.

Começa na página um.

Vá logo ao ponto. Comece a história. Introduza os personagens e seus problemas e o que está em jogo em relação a esses problemas tão rapidamente quanto possível. Você acha que está sendo esperto ao não fazer isso? Você acha que precisa nos deliciar com a sua prosa luxuosa e o solo rico e argiloso do mundo que construiu e a natureza profunda dos seus personagens – ha ha, não. Estamos aqui por uma razão. Estamos aqui pela história. Se até o fim da primeira página não tem nem sinal de uma história começando? Então vamos apertar o botão e ejetar. Vamos sair de paraquedas para longe da sua atmosfera sem ar e cair num terreno onde coisas estejam realmente acontecendo.

A ESCRITA FUNCIONA DE UMA CERTA FORMA

A escrita tem regras.

Para se contar uma história (storytelling) há menos regras, e certamente mais flexíveis.

Mas escrita de verdade tem regras legítimas.

Não é matemática, não exatamente – mas as coisas se combinam de certas maneiras e somos obrigados ou a aplicar as regras ao nosso benefício ou quebrá-las para criar um efeito específico.

Você não simplesmente quebra as regras porque é divertido, ou pior, porque você as desconhece. Essa última coisa é onde a maioria dos novos escritores falham. Eles simplesmente não sabem que as coisas funcionam de uma certa forma, e quando eles escrevem em contravenção a Essas Certas Formas, nós todos sacamos isso. É muito óbvio. A prosa deles fede como vinagre enquanto eles a destilam pela página, sem saber como realmente fazer isso que nos prometeram que sabiam fazer.

 

 

Nota do tradutor: aqui o autor faz uma longa explicação sobre regras específicas ao estilo inglês de estruturação de diálogos. Para saber mais, visite diretamente o artigo original, ou visite também essa minha postagem sobre o assunto, ainda que em contexto brasileiro / português.

[…] Também cuide dos advérbios.

Advérbios têm uma má reputação na ficção, o que é uma bobagem porque advérbios estão em todo lugar. Na verdade, sabe a expressão “em todo lugar”? É uma locução adverbial! Cacete!

Advérbios, no entanto, tornam-se um problema quando fixados à força a todas as suas descrições entre diálogos. “Eu sou feita de abelhas”, Shirene disse indubitavelmente. “Eu gosto de bolo”, Roger exclamou excitadamente. “Pornô é fenomenal”, Darrell ejaculou orgasmicamente. Quando você diz essas coisas em voz alta, elas ficam péssimas. Ridículas. Elas também fazem um ótimo trabalho em nos contar coisas (telling) e um péssimo em nos mostrar coisas (showing). Se o Roger, em seu amor por bolos, nos diz o quanto ele gosta de bolos enquanto nos agarra pelos ombros e nos chacoalha violentamente, podemos ter uma ideia sobre o quanto ele está bem animado quanto aos bolos! Melhor ainda, ele não precisa nos dizer. Ele só precisa meter uma faca nas nossas costelas e e roubar o nosso bolo e então comê-lo gananciosamente sobre nosso corpo ensanguentado. Depois disso, vamos ter poucas dúvidas quanto ao quanto ele gosta da experiência de comer bolos.

DEIXE OS PERSONAGENS FALAR E ENTÃO CALE A BOCA DELES

Você precisa deixar os seus personagens falar.

O diálogo é o óleo que lubrifica as rodas da sua história.

E às vezes fica cansativo. Você ama seus personagens e acha que deveria permitir que eles falem e falem o dia inteiro porque eles são demais. Eles não são. Cale a boca deles. Mantenha o diálogo aparado e afeito ao essencial. Conciso e poderoso. Deixe que eles falem o que quiserem falar da forma que precisam falar – de uma maneira que melhor exemplifique quem os personagens são e o que eles querem – e então feche as bocas deles. Siga para a próxima coisa. Vamos ouvir outra pessoa ou falar sobre outra coisa.

EU NÃO SEI QUEM OS SEUS PERSONAGENS SÃO OU O QUE ELES QUEREM

Cada personagem precisa ser uma fonte luminosa – cada uma distinta da outra. Brilhante, e demonstrativa de sua própria cor. Não arquétipos, não estereótipos, mas pessoas complexas e facilmente distintas. E eu quero uma razão para me importar com elas. Logo de saída, eu quero isso. Eu quero saber o que elas querem, por que elas querem aquilo, e o que estão dispostas a fazer para conseguir isso. Eu preciso, dizendo de outro jeito, de suas jornadas. Sejam elas desejadas ou fardos, eu preciso saber por que essas pessoas estão aqui na página à minha frente. Isso não se aplica só ao protagonista, mas a todos os personagens.

Quem são eles?

Se você não consegue me responder rapidamente, eles se tornam ruído em vez de operar como sinal.

PERSONAGENS DEMAIS SE CHOCANDO

É muito complicado gerenciar muitos personagens.

Eu faço isso em livros e a forma como eu o faço é introduzindo-os parte a parte – não de uma vez só como se eu estivesse esvaziando uma sacola de maçãs num balcão (de onde elas sairiam rolando para longe de mim), mas um ou dois de cada vez. Deixe que eles respirem um pouco. Deixe que tenham um tempo só para eles sob os holofotes para que vejamos a tarefa acima se desenvolvendo: deixe que eles possam usar o tempo deles para nos dizer quem são, o que querem, por que o querem, o que farão para consegui-lo, e assim por diante.

Mas personagens demais de uma vez só é uma sopa com todos os ingredientes.

É uma bagunça sem consistência.

É uma coisa que eu vejo no trabalho de novos escritores.

E isso raramente funciona bem a não ser que você tenha desenvolvido a habilidade de trabalhar os seus personagens da forma como um condutor comanda todos os músicos, e seus instrumentos, em uma orquestra.

TODOS OS PERSONAGENS FALAM DO MESMO JEITO

Isso sai do que eu estava falando antes sobre cada personagem sendo sua própria fonte luminosa, separada dos outros. E eu acho que é bastante claro: se cada personagem soa como uma repetição do próximo, você tem um problema. Não se trata apenas de padrões vocais. Tem a ver com o que eles estão dizendo em adição a como eles estão falando. Tem a ver com suas ideias e visão e desejos. Pense nisso da seguinte forma: não é só a sua prosa que faz de você um autor. Não é só o seu estilo. É o que você escreve. É os temas que você expressa. Personagens operam da mesma forma. Eles têm diferentes pontos de vista e necessidades. Eles também têm suas próprias formas de expressar esses pontos de vista e essas necessidades. Trabalhe nisso. Se não, eles serão apenas clones com diferentes nomes e rostos.

VOCÊ ESTÁ TENTANDO APARECER

Pare de fazer acrobacias. Você pode fazer isso depois. Nesse momento, presuma que você tem um único objetivo: clareza. A clareza é chave. É tudo. Se eu não sei o que está acontecendo, estou fora dessa. Se eu estiver de qualquer forma confuso sobre o que está acontecendo na página? Eu vou sair daqui e ver TV, bater uma, dar uma olhada no Twitter. Faça um favor a si mesmo e tenha por objetivo somente contar a história. Pare de atrapalhar a si mesmo. Seja claro. Seja direto. Seja confiante e assertivo e mostre-nos o que está acontecendo sem nos esconder coisas importantes e sem enterrá-las sobre um monte de lama.

Você não ganha nada sendo deliberadamente ambíguo.

Os números impressionantes do Ocupa Paraná

O que os secundaristas do Paraná estão fazendo nesse momento é algo extremamente especial no Brasil. Se você ainda não está por dentro, por favor visite a página deles para mais informações, e siga-os no Facebook.

Uma das coisas mais divertidas de acompanhar à distância o que está havendo é ver o número de ocupações crescer nas últimas duas semanas de maneira espetacular. Eles postam levantamentos atualizados quase diariamente, oferecendo dados muito interessantes – com os quais resolvi brincar um pouco.

A seguir vai uma tabela contendo a data e a hora de cada atualização do movimento, junto ao número de escolas ocupadas anunciado. A seguir vão os recortes analíticos: quantas horas / dias de uma atualização a outra, com uma média de quantas escolas ocupadas por hora e por dia ao longo do tempo (clique aqui para acessar a tabela no Google Sheets).

Dados do Ocupa Paraná
Ignorem aqueles traços. São sobras de uma edição anterior.

Fonte: Ocupa Paraná

Os dados que mais chamam a atenção: nas 319 horas e meia corridas desde a primeira postagem (que contabilizava, em 6 de outubro, 27 escolas ocupadas), tivemos em média mais de duas escolas ocupadas por hora. As horas mais agitadas foram no começo da tarde do dia 17 de outubro, com 25 escolas ocupadas por hora (gente, vocês têm noção do que é isso?)! Outros momentos quentes são o resto da tarde do mesmo dia (14,3 escolas/hora) e a tarde do dia 14/10 (15,1).

Em termos de dias a coisa também é interessante. O dia com mais ocupações foi ontem mesmo, dia 19/10, com 112. Mas nos dias 14 e 13 também houve um crescimento enorme, com 105 escolas por dia. Ao todo e em média, foram mais de 59 escolas ocupadas por dia nas quase duas semanas do movimento (59,46).

Ocupações por hora

Ocupações por dia

O gráfico de ocupações por hora permite visualizar melhor os picos de ocupação – embora, por incluir horários ociosos e ser mais dependente de dinâmicas locais, não nos diz muito em termos de tendências. O gráfico dos dias, por outro lado, indica talvez a existência de certos “ciclos”; é como se um crescimento significativo do número de ocupações causasse uma impressão positiva no alunado, que demora um tempo pra se organizar até que isso resulte num novo aumento, que então reverbera de novo – ou talvez eu esteja superinterpretando 13 dias de dados agregados (além disso, não é como se ocupações deixassem de acontecer entre dias de agitação; todo dia alguma coisa parece ter acontecido).

Agora, uma coisa que eu acho que dá pra ler com certa confiança é o aumento do ritmo: a ação coletiva tem um elemento de expectativas, como num sistema de apostas. Se dentro de um grupo não há certeza do sucesso de uma atitude, todo mundo fica com medo de começar. Mas se a coisa começa a dar certo, a experiência se espalha, encorajando e motivando o pessoal que podia gostar da ideia mas está em cima do muro. Seria interessante cruzar os dados com notícias específicas (decisões judiciais, por exemplo, contra a reintegração de posse; ou as declarações desastradas do Richa). A tendência linear está em ascendência; o ritmo não parece ter diminuído e não vejo motivos, a essa altura, para que diminua – a não ser por um: o fato de que, após algum tempo, a não-ocupação de algumas escolas pode significar que seus alunos  deliberaram sobre o assunto e não desejam realizar, em sua maioria, a ocupação. Isso implica ver as escolas não-ocupadas não como território inexplorado, mas como resistente à tática (haha, me lembra uma versão reacionária da “revolução copernicana” de Clastres: as sociedades tradicionais da América do Sul não como sem Estado, mas contra o Estado). Não tenho dados, no entanto, para avaliar se é agora que se chegou a esse ponto (e espero que não). Além disso, é claro, alunos contrários sempre podem mudar de opinião (… e vice-versa, causando desocupações).

Ocupações PR

Segundo reportagem, o Paraná possui 2100 escolas estaduais, embora 1525 delas ofereçam Ensino Médio (que números mais certinhos… Suspeito um arredondamento, mas a reportagem não indica isso). Considerando que alunos do ensino fundamental não ocuparão escolas (hehehe), o teto do movimento (sem contar as universidades e os núcleos de educação, outros alvos recentes) é 1525.

Sabe o que isso significa, né? Mais da metade das escolas estaduais com ensino médio no Paraná já estão ocupadas. A tendência linear, não é preciso dizer, é crescente.

E que tal brincar um pouquinho? Mantendo esse ritmo de ocupações (e eu ainda considerei todo o período, então o começo mais lento puxou para baixo o ritmo mais acelerado da última semana) sabe quando que podemos esperar ver o Paraná inteirinho ocupado? Dia Primeiro de Novembro. Se a primeira das 27 primeiras escolas foi ocupada depois do final de setembro, isso daria um mês.

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SAVE THE DATE.

Há alguns problemas metodológicos. Primeiro que não considerei as escolas desocupadas, que poderiam bagunçar um pouco os números até mesmo de um ponto de vista teórico (se uma escola é desocupada e logo depois volta a ser ocupada, devo contá-la, para medir o ritmo, como uma nova ocupação?). Segundo que eu não sei que tipo de projeção deveria usar, se a linear, exponencial (… Suspeito que não) ou a polinomial. Terceiro que, em termos de qualidade dos dados, eu fiz uma presunção operacional de que o pessoal do Ocupa PR incluiu as escolas nas atualizações assim que foram ocupadas – e pelo que eles comentam sobre o trabalhão que dá organizar essas informações, pode ser que os dias e horários não reflitam isso com precisão (por exemplo, uma escola que demorou três dias para ser incluída na lista vai prejudicar os dados). Ainda assim, olha, creio que é uma exploração preliminar interessante.

A planilha que usei como base para essa análise está disponível nesse link. (Update: vou continuar atualizando-a publicamente!) (Update 2 21/10: a página do Ocupa PR no Facebook foi tirada do ar e ainda não está claro qual tomará seu lugar, ou se ela voltará. A UBES aparentemente está contando ocupações do Brasil inteiro, mas o Ocupa PR fazia uma verificação por fotos e tudo o mais – o processo parecia confiável. O canal de notícias no Telegram também está quieto. Voltarei a atualizar a tabela se informações fidedignas voltarem a aparecer) (Update 3 24/10: … E eles foram hackeados de novo, depois de terem voltado à ativa) (Update 4 30/10: A página já está de volta há dias mas não há novas atualizações. O que intuo é que há menos ocupações e eles não querem dar sinais de fraqueza aos adversários, por isso evitam propagar um número que lhes seria negativo – o que é compreensível. Como coloquei ali em cima, foi só uma brincadeira projetar quando todas as escolas estariam ocupadas: nem todas as escolas concordaram com as ocupações.)

Você pode baixar e brincar com os dados você mesmo, ou inclusive ver se não cometi nenhum erro analítico / tipográfico. Encorajo, especialmente os ocupantes, a usá-la como ferramenta didática – dá pra aprender um bocado sobre “Excel”, funções, gráficos / interpretação de gráficos, etc.

Aliás! Professores, pais, acadêmicos, comunidade dos bairros e cidades… Não que eu precise mesmo dizer isso, na verdade, mas enfim: na medida do possível apoiem as ocupações ao colaborar com doações, sabedoria, carinho e também conhecimentodoem aulas. Neste link você pode se oferecer para compartilhar conhecimento e ajudar essa galera que não está aí à toa. (Update 30/10: em SC também há escolas ocupadas; na Grande Florianópolis são 4 e você pode doar aulas aquiAs escolas estão abertas, gente; os alunos estão ocupando e chamando junto, não entrincheirando. Esses alunos, posso apostar, jamais estiveram tão predispostos e animados para aprender. Não estou falando só com o pessoal de esquerda ou de humanas, não: ofereça também conversas sobre computação, matemática, física, química, biologia, engenharia, etc!

Essas ocupações valorizam autonomia, respeito e horizontalidade: elas funcionam porque mexem com as vidas desses alunos, mostrando para eles na prática como é possível uma política para (muito) além da lógica mercadológica, da lógica do Estado, das instituições representativas tradicionais (sim, e isso inclui partidos). E funciona também fenomenalmente como tática por ser não-violenta (dialogando bem com a população leiga em geral – adoraria ver pesquisas de opinião, no Paraná e no Brasil, sobre o tema; quem sabe em Novembro…) e por exercer pressão lá onde dói: o que ela significa, e as pessoas sentem, é que a hierarquia é desnecessária.

Construir alternativas que fortaleçam a comunidade no sentido não necessariamente de enfrentar instituições de dominação, como quem diz “odeio você!”, mas sim de construir instituições de contrapoder, como quem olha pro Estado – que agora pode estar vestindo a máscara de Temer, Richa, Mendonça, mas amanhã virão outros – e diz: “… Pra que diabos precisamos de você mesmo?”.

Parabéns e força aos estudantes do Paraná!

Como manter o leitor interessado em partes mais lentas da história

Esta é em parte uma tradução dessa postagem no The Writing Realm. Caberia perguntar não só o que é uma “parte lenta” em primeiro lugar, mas porque ela seria indesejável. Seria isso uma questão cultural – já que os autores e seus leitores cada vez mais buscam pelo ritmo de um Hollywood action blockbuster nas obras literárias?

Acho que não. É uma questão de dinâmica narrativa; mesmo que o estilo do autor seja longo (como o de um Saramago) ou mais descritivo (como o de um Tolkien), isso não significa prejuízo para a estrutura da história e para o interesse do leitor. Não se trata tanto dos parágrafos, mas do “momento” da narrativa; um segmento do enredo em que “nada acontece”. Há uma sensação de vazio, de tédio, que é indesejável independente de quão dependente de adrenalina você seja. Acontece em dramas, em ação, em fantasia, em suspense, em ficção científica… E é muito mais fácil de detectar enquanto leitor do que enquanto autor, pois muitas vezes trata-se de algum grupo de elementos narrativos necessário a algum encaminhamento planejado de antemão. Por exemplo, o personagem A precisa chegar até um momento B na trama; como esse é o objetivo do autor, partes ruins ao longo dessa jornada são negligenciadas ou mesmo consideradas um mal necessário.

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Daí a importância de ler, reler, reler mais uma vez e reler de novo (ou seja, revisar) o que se está escrevendo. Especialmente com um espaço de tempo entre a escrita impulsiva e a revisão (dar espaço para que os olhos respirem, e cheguem com novas perspectivas ao que foi feito). Escrever é reescrever; essas dicas a seguir procuram dar direções interessantes quanto ao quê reescrever caso entenda-se que existe uma “parte lenta” na história – um momento em que você se arrasta pela leitura, querendo logo que ela acabe. Numa obra ideal, nenhum trecho da história deveria fazer o leitor se sentir assim.

  • Desenvolva as subtramas
  • Considere as relações entre os personagens. O personagem principal está brigando com seu melhor amigo? Os irmãos estão descobrindo algo sobre si mesmos?
  • Considere relacionamentos românticos; o que está havendo com eles?
  • Quando conquistar um objetivo se torna mais difícil, seu personagem perde a fé? O foco? A esperança? Qual é seu estado mental, e como você pode representá-lo por atitudes do personagem? Lembre-se: show, don’t tell.
  • O seu personagem tem um bom sistema de suporte? Ele está solitário? O seu personagem consegue motivar a si mesmo, mesmo quando as coisas ficam difíceis?
  • Seu personagem está fisicamente bem? Está cansado o tempo todo devido ao stress? Como está a saúde do personagem em relação a seu objetivo?
  • Considere retrabalhar o enredo. Se os outros aspectos da sua história não prendem a atenção do leitor, talvez você deva alterar a trama.

A diferença entre o anarquismo clássico e o contemporâneo

Existe uma certa resistência bem informada ao anarquismo. Não aquela ligada necessariamente a interesses, poderes, riquezas, status; é a resistência da pessoa comum que, mesmo com os valores forjados no medo particular que nos permeia, ainda julga com mais sinceridade a proposta anarquista e articula um medo social quanto a se perder na indeterminação da vida.

Eu não bebo (álcool). É bem verdade que o cheiro da maioria das bebidas alcoólicas já me dá razões gastronômicas para evitá-las, mas mesmo que pudesse (e disso não duvido) me acostumar aos sabores delas há razões mais profundas, ainda que nada filosóficas, pelas quais as rejeito afirmativamente. Digo que não “filosóficas” porque nada têm de morais ou pretensamente universais. São minhas, bem minhas, mesmo que por acaso as tenha em comum com alguém. E essas minhas razões se resumem ao fato de que gosto muito de minha consciência, muito obrigado. Tenho uma relação de amor e ódio com a anestesia, à qual certamente agradeço o fato de não ter sido obrigado a presenciar minha própria cirurgia de apendicite, mas que ainda certamente temo e prefiro não ter que experimentá-la de novo se possível. O fato é que me perder nos meus próprios descaminhos; soltar-me, confiando nos instintos que supostamente tomam as rédeas na ocasião da bebedeira ou intoxicação alucinógena – isso é algo que não gosto, assim como há quem não goste de baratas, de escuro, de altura, de palhaços.

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Photo by SubtlePanda  

TRIGGERED

Se essa é uma dinâmica particular, privada, individual, há também a forma como ela toma corpo nas relações com outras pessoas. Um motivo literário (um trope) bastante popular é o da pessoa que “tem medo de se apaixonar” ou “medo de se apegar” – ou, ainda, que tem dificuldades em relacionamentos porque é um “control freak” que não consegue lidar com certa indeterminação, com algum acaso, com o fato de que nem tudo pode ser controlado, previsto, checado e regulado. Os relacionamentos nos bagunçam; isso causa aflição. E essa mesma dicotomia entre regular e deixar viver encontra sua última expressão no campo social.

Certamente que não há nenhuma lógica que leve de A a B linearmente para todas as pessoas. Por mais que eu, por exemplo, não queira largar minha consciência, que pode não ser lá grandes coisas mas é minha, sou anarquista – e a filosofia política do anarquismo é aquela que preconiza o “let it go” grupal em que relaxaríamos de amarras e as interações sociais seriam menos mediadas, mais livres, mais soltas, mais ocasionais e mais casuais.

Isso é fonte de agonia e ansiedade para muitos. É disto que falo quando menciono os valores que podem, ao meu ver, legitimamente causar uma grande rejeição em relação ao anarquismo. E, por outro lado, é aqui que vejo uma grande distinção entre o anarquismo clássico e o contemporâneo – uma que começa com um mal entendimento sobre o anarquismo.

Em certo sentido esse mal entendimento é já um clássico. Anarquismo como bagunça, caos, desorganização. A anarquia é a ordem, já dizia Proudhon, mas já entenderemos como ele queria dizer outra coisa, creio. De qualquer forma, a confusão entre anarquia e caos (por muitas vezes nada ingênua, é claro) está na raiz dessa expectativa de que o anarquismo signifique relações desreguladas entre indivíduos, uma matriz de mônadas comunicantes que viria a substituir aquilo que entendemos por sociedade, Estado, família, etc. A “pulsão” anarquista, seu impulso e sua paixão, estariam na desagregação que forçosamente viria à tona com a dissolução violenta das hierarquias, opressões e tradições. O impulso, digamos, “republicano” (estatal, sim, mas ainda com certa preocupação quanto a uma tentativa de equilibrar diversos fatores da vida individual) ou “fascista” (uma pura vontade de ordem rígida, por mais que pareça uma abominação ressignificar essa palavra de forma tão rápida e leviana), esse quer construir, quer reformar, e quer principalmente regular, amarrar, estruturar.

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O problema é que o anarquismo também pretende fazer esse tipo de construção.

O anarquismo clássico está mais próximo dessa aparente vontade de desregular (o “let it go” grupal), por mais “social” que possa ter sido, à medida que seu argumento em grande parte está ligado a um certo “naturalismo” otimista. Como Woodcock bem resumiu, havia essa ideia de que, se deixados sozinhos e sem recurso a uma autoridade, os seres humanos simplesmente se organizariam bem, sem violência. Mesmo anarquistas contemporâneos sentem a erupção desse pensamento, que os trai quando menos se espera. É o “procedimentalismo” que às vezes aflora do nada em Graeber, que diz “tanto faz; deixe as pessoas livres para decidirem por si mesmas e tudo vai dar certo!”. No episódio 27 do Solecast o convidado, membro do Ex-workers, comenta que a democracia é boa para concluir disputas, não mas para resolvê-las. Se nos livrarmos da democracia, ele disse, encontraremos melhores formas de resolver os conflitos.

É nesse sentido que o anarquismo clássico se volta para o objeto do medo daqueles que veem com grande desconfiança uma sociedade desamarrada. Por mais que estejam confortáveis com alguma organização social, essa organização não necessariamente precisa vir de um esforço consciente; ele “surge” como consequência natural de uma liberdade conquistada – naturalmente sem as estruturas de poder das “democracias”, encontraremos uma forma (não-violenta, positiva, não-destrutiva) de resolver nossos conflitos. Promover o anarquismo não seria promover um outro artificialismo, alternativa de vida que também deve ser construída paulatinamente – mas sim apenas devolver as pessoas às suas verdadeiras naturezas, que enfim poderiam se desenvolver sem o constrangimento das instituições de poder.

O que argumento é que o anarquismo contemporâneo entende que esse não é o caso. Que, como diz Graeber ou Nietzsche, temos vários instintos (não apenas os bons, naturais), mas isso não diz nada sobre nós por si só. O que importa são as estruturas que conseguimos construir para dirigir esses instintos, fazendo o possível para canalizá-los, redirecioná-los, mesmo hierarquizá-los.

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Photo by Delicioso Itiman

Mas de que forma, então, separa-se o “controlacionismo” estatista daquele do anarquismo que entendo como contemporâneo? Seguindo a divisão de Graeber entre instituições de poder e de instituições de contrapoder.

O ponto de vista estatista é considerar que o grande perigo são os indivíduos, e assim constroem-se instituições de poder (prisões, polícia, exército, etc) para dominá-los. A visão anarquista é que o grande perigo é justamente esse pensamento, essa cultura, essa lógica, que cria um monstro auto-perpetuador, e desde a origem incontrolável – o Estado. O Leviatã.

A visão estatista é aquela segundo a qual deve-se usar de violência com vistas a manter a coesão social. A visão anarquista é aquela que pretende construir uma coesão social, mas não deseja fazê-lo por meio da violência – mas sim por instituições de contrapoder, isto é, sensibilidades, ideias, culturas. Uma forma compartilhada e deliberada de pensar que nos prepare para resistir à erupção de vontade de dominação entre nós. Formas compartilhadas de viver e conviver que, por meio de incentivos e reprimendas sociais, direcionem a ação estratégica dos indivíduos para o combate a atitudes e estruturas de dominação.

O anarquismo jamais se livra do otimismo – é quase um otimismo metodológico; contudo, há formas de aproveitar essa crença (tão justificável quanto a pessimista) em termos analíticos sem idealizar o ser humano ou desvalorizar a importância do artifício, do engenho na construção de sociedades livres.

Isso me leva a uma bifurcação textual que pretendo aproveitar para publicar dois textos aqui no blog. Uma questão que nasce disso é o papel da análise modelar dentro da teoria anarquista – em outras palavras, a possibilidade de uma teoria política anarquista (em contraposição a, digamos, o que o anarquismo historicamente é: uma filosofia política). É possível, mesmo desejável para anarquistas, discutir modelos abstratos de sociedade? Que valor têm essas discussões? Outra comunicação importante, fruto desse pensamento sobre instituições de contrapoder, é a questão dos direitos, das liberdades individuais (clássicos do liberalismo), num contexto como esse. Faz sentido falar em liberdade de expressão numa sociedade anarquista? Ou em direitos humanos? Como ficaria a questão da “tirania da maioria”? É sobre essas questões que pretendo falar em breve.