Utilidade pública: “cultural” não significa “uma farsa”

Muita gente pensa da seguinte forma: tudo que é “natural” é imutável no comportamento humano; é fruto de um instinto inexorável que todos nós temos apenas por existir enquanto espécie. Tudo que é “cultural”, por outro lado, não seria “necessário”, e portanto é absolutamente modificável.

Certa feita discutimos a maternidade em sala de aula. Algumas das mães da sala começaram a descrever como elas se sentiam intimamente ligadas a seus filhotes enquanto estavam ainda em suas barrigas; como aquela sensação era um instinto tão profundo que não poderia jamais ser algo “relativo” e “cultural”.

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Photo by D.A.K.Photography

A questão é que a pecha de natural é “anexada” (culturalmente – haha) àquilo que queremos salvaguardar de discussão; o que é natural é assim porque é assim, então é assim e pronto (cala a boca). Qualquer discriminação mais cedo, mais tarde, vai tentar se fundamentar em alguma teoria biológica, genética, química (negros têm cérebros menores, mulheres cuidavam das cavernas e por isso são melhores em fazer várias coisas ao mesmo tempo, besteiras do tipo). Esse é um dos grandes problemas que nós, cientistas sociais, temos com a ideia de “natureza”: ela é um discurso; uma arma utilizada em batalhas ideológicas que visam, na maior parte das vezes, esconder a origem sociocultural das coisas que sentimos e pensamos para que ninguém tente questioná-las.

A antropologia é justamente uma fonte tão poderosa de onde tirar defesas contra essa arma porque todo o argumento tem uma grande falha: para funcionar, ele precisa englobar cada homo sapiens do planeta no presente, no passado e no futuro – e o fazer ainda de acordo com uma lógica bastante consistente. É possível dizer que sentir fome é natural, não só porque todos os seres humanos a sentem, mas porque entendemos como a fome funciona (precisamos de comida para viver), e também porque isso é uma constante em praticamente todo animal. Dizer, por exemplo, que a monogamia é natural é algo fácil de contra-atacar: é só mostrar exemplos de sociedades inteiras em que a monogamia não é a regra.

Esse, é claro, é um processo bastante próximo do que conhecemos como “relativismo cultural”: afinal, os proponentes da tese de que a monogamia é natural podem simplesmente dizer que esses povos poligâmicos são aberrações antinaturais ou coisa parecida; o relativismo (e um bastante razoável até aqui) vem com o reconhecimento de que não podemos julgar a cultura dos outros dessa forma; para eles, o que eles fazem provavelmente parece muito mais natural do que a monogamia.

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Photo by ivanatman

No entanto, o grande problema é que muitos pensam que com esse relativismo passamos a ter um enfraquecimento da cultura enquanto tal. Afinal, se todas as culturas são igualmente válidas e praticamente tudo é cultural, daqui a pouco todo mundo vai fazer o que quiser. O fato de que há um jeito necessariamente certo de ser no mundo pressupõe a exclusão, a oposição de seu inverso.

As mães do exemplo anterior ficavam quase ofendidas quando dizíamos que aqueles sentimentos eram culturais, e não naturais. A razão para isso é mais do que o sentimento de que estávamos atacando a santidade da instituição maternidade: é como se disséssemos que o que elas sentiam não era forte; que não era sequer verdadeiro, mas sim “uma coisa que colocaram na cabeça delas”.

E isso é exatamente o que acontece, mas perceba: não é porque algo é cultural que é falso. Sim, todo um conjunto de ideias sobre a maternidade é passada de geração a geração como algo muito natural – é algo colocado na cabeça das pessoas. Mas isso não deixa de ter poder. Sentimo-nos compelidos a comer pela fome, mas a cultura é capaz de produzir uma pressão igualmente forte sobre as pessoas. Se esse não fosse o caso, só de sabermos que em algumas culturas todos andam pelados, a vergonha de usar roupas em público desaparecia num passe de mágica. Obviamente esse não é o caso.

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Photo by Sera Doll

A maternidade transforma o corpo de várias formas, e é uma questão importantíssima do ponto de vista biológico, e aqui é importante fazer uma distinção: a maternidade é cultural não porque ela não pode ser natural, mas porque nós somos seres extremamente culturais, e tudo que fazemos, inclusive as coisas que se originam desses processos que chamamos de naturais, passa por um “filtro” cultural. A questão não é negar que a dor e a alegria acompanham praticamente toda maternidade; é que essas coisas são interpretadas de acordo com papéis e símbolos sociais contingentes. Se você chegar para uma mãe e dizer “você pode se sentir diferente sobre ser uma mãe, se quiser; tome, aqui está um texto sobre como o povo nômade x do lugar y se sente em relação à maternidade. Estude isso e mude sua atitude!”. Isso… Não funcionaria. Mesmo que a mãe estivesse disposta a passar por essa transformação e resistisse a toda uma pressão dos outros para que ela mantenha-se fiel à própria cultura, o resultado final jamais seria uma pessoa completamente reformulada, com uma cultura nova que tenha tomado o lugar da antiga completamente.

Logicamente, esse assunto é extremamente mais complexo que esses poucos parágrafos, mas escrevo isso em tom de utilidade pública porque gostaria que mais pessoas tivessem em mente duas coisas, mesmo que seja para atacar essas duas coisas (o que é melhor do que o ataque a espantalhos que resulta da desinformação): em primeiro lugar, dizer que algo é cultural, ao invés de natural, é uma frase sobre as origens de um costume, de uma situação, de uma atitude. Quando digo que a maternidade é uma instituição cultural, estou fazendo uma observação sobre o que a origina, não necessariamente tornando-a algo pior ou tentando fazer com que mães e filhos adotem outras atitudes e costumes (eu poderia estar perfeitamente satisfeito em relação a isso e ainda assim observar que não se trata de algo natural). E, em segundo lugar, dizer que algo é cultural não significa dizer que a pessoa pode simplesmente “escolher se sentir como quiser”. A cultura não é uma questão de pura escolha individual!

Contudo, dizer que algo que muitos insistem em naturalizar é cultural é o primeiro passo para uma mudança: é como dizer “ei, olha só: é assim agora. Mas não precisa ser assim. Com o tempo, temos a capacidade de mudar de pensamento. Fazendo um esforço, as novas gerações quem sabe não terão mais contato com esse velho jeito de ser. E assim, a gente pode mudar”. Se a discussão começar a partir da ideia de que algo é naturalmente de um jeito ou de outro, a mudança jamais sairá do metafórico papel. Ou seja, dizer que algo é cultural tem uma força epistemológica, e é isso que deve ser levado em consideração. No entanto, não estou aqui para enganar ninguém: assim como o discurso de naturalização é uma arma política, colocar em evidência a natureza sociocultural de algo também pode sê-lo.

O que importa, na política, para o humano: inteligência ou valores?

Seja no tema “políticos deveriam ter ensino superior” ou “será que só os mais inteligentes deveriam votar?“, essa é uma coisa que vem constantemente à tona no debate político. A inteligência, e como ela é importante na política.

Sim, a inteligência humana é uma coisa importante em tudo que os humanos fazem, mas é importante notar como esse argumento é o tecnicista que já destrinchei no primeiro link acima – a ideia de que as coisas devem ser feitas bem, com eficiência, mas poucos se perguntam que diabo de coisas deveriam ser feitas.

Mas a questão da prioridade da inteligência no processo político vai além. Vai até o cerne da política, e também do que nos faz humanos.

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Photo by dbking

Imaginemos que vivamos na democracia direta de uma comunidade pequena; uma vila de não mais que 150, 200 pessoas. As mesmas pessoas que pensam que políticos e eleitores devem contemplar um “QI mínimo” ou coisa parecida são aqueles que vão dizer que há pessoas burras nessa comunidade, e que elas não devem participar do processo político.

Há tanto que se pode dizer sobre isso. Há pessoas incapazes, certamente; tanto idosos com alguma patologia que degenera o cérebro e nos leva a questionar sua autonomia quanto crianças pequenas que ainda têm que se acostumar mais com o processo político para participar dele com proficiência. Por outro lado, mesmo que se concorde que idosos com problemas graves e crianças não votemtratá-los como incapazes em termos discursivos – especialmente com a exclusão deles – é uma forma de, por exemplo, não acostumar as crianças com o processo político, afastá-las da vida pública, do interesse comunitário, e prejudicar sua auto-estima e confiança. O mesmo acontece com outras pessoas que, devido a uma série de circunstâncias, são excluídas da vida pública na sociedade mais ampla que é a nossa.

Mas voltemos à questão original: pessoas burras. Pessoas que são reconhecidas pela sociedade como tendo menos inteligência que outras.  Não vou entrar no mérito quanto à possibilidade e pertinência disso; vamos presumir essa condição para chegar ao ponto. Por acaso decorre que essas pessoas, por conta de suas capacidades intelectuais, não possam participar do processo político?

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Photo by amish.patel

A resposta é não. Isso só seria razoável se o processo político fosse uma discussão técnica sobre como chegar aos fins que se quer chegar. Mas o embora o processo possa envolver isso, a principal discussão (que às vezes é obscurecida quando o discurso tecnocrático toma conta) é sobre os fins a que se quer chegar. E a dignidade humana essencial, a liberdade, informa-nos que mesmo uma pessoa que não é lá muito brilhante (novamente, estou supondo isso para atacar esse argumento por dentro) tem valores que quer ver realizados, e a liberdade dessa pessoa está absolutamente relacionada à sua capacidade de expor esses valores para seus pares e buscar contribuir para que as decisões de sua comunidade reflitam esses valores (o cerne da política). Como Sandel demonstrou em seu ataque a Rawls, a liberdade tem muito a ver com a nossa identidade; com quem somos, com aquilo que nos constitui, com aquilo que nos move. E isso tudo remete à negociação identitária da comunidade: debater sobre os valores de todos até chegar a uma decisão sobre o que é mais importante fazer.

Voltando às crianças às quais não se permite plena (igualitária, ao nível dos adultos) participação no processo político: não é por serem burras que elas não podem participar. Ou mesmo ignorantes, ou sem experiência. O processo político, suas regras, sua dinâmica; isso tudo pode ser ainda desconhecido em termos de detalhe e nuance para as crianças, mas em pouco tempo elas seriam capazes de se acostumar com quem-fala-o-quê-quando, o que significa votar, o que é um recurso, um bloqueio, etc. O processo em si é como um jogo, e se as crianças podem aprender com facilidade a jogar um jogo de tabuleiro, decorando suas regras, não são as regras da democracia que as impedem de participar. É que elas ainda não passaram tempo o suficiente convivendo no mundo para que se tenha certeza de que compartilham dos mesmos valores que aquela sociedade. Adultos têm medo de que crianças participando do processo político serão egoístas, esperneando no chão, chorando rios de lágrimas porque não conseguiram o que queriam. Isso não é uma questão de inteligência, é uma questão de crianças que não absorveram o valor social de que tomar decisões em grupo é mais do que agir em interesse próprio.

Da aproximação entre o fazer literário e a vida

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Photo by the euskadi 11

Quando crio uma história (enquanto escritor) primeiro vem a ideia: a situação, o desenvolvimento, o conflito, a premissa. Depois disso vêm os personagens necessários – e as peças cenográficas que, na interação sofrida a partir das ações desses personagens, vão construindo essa premissa. Isso não é um engessamento dos personagens: no fundo eles sempre existiram a partir da situação, a partir da premissa. Foram eles que colocaram-na em movimento em primeiro lugar, só que você não sabia disso; vem mais fácil à cabeça a situação, a figura completa, com a embalagem por fora, do que seus mecanismos internos. Mas eles estão lá, e por isso são necessários. Você não consegue imaginar aquela história sem eles – J. K. Rowling disse que a história de Harry Potter veio inteira, completa, durante uma viagem de trem. E é certo, pode apostar, que Harry, Ron, Hermione, Voldemort, Dumbledore, todos esses e talvez mais alguns (Snape?) estavam lá desde o princípio, desde a primeira semente de ideia.

Aí, por último, vem a vida própria: vem aquilo que os personagens precisam ter que para que haja um desenvolvimento da premissa, para que haja uma história em si: uma narrativa, uma trajetória, uma transformação – uma ação. Você precisa deixar os personagens falarem por si, e suas decisões terem suas consequências, e você deve aceitar as reverberações disso de uma forma tal que, depois de um tempo, as lógicas dos personagens se tornam vidas dos personagens e eles, vivos, são capazes de determinar o destino da trama a partir de seus desenvolvimentos. Nesse ponto é que pode ocorrer o engessamento, se o autor não respeita as vozes dos personagens e decide continuar com um plano anteriormente definido; não, é preciso ouvi-los e segui-los ao invés disso.

Com a vida a coisa é parecida. Não que primeiro venha a sociedade e depois o indivíduo, mas a forma como nós nos aclimatamos, como nos “aculturamos”, como “aprendemos a ser gente”, indica que temos uma certa situação, sempre prenha de um conflito, toda uma premissa cultural que nos guia simbolicamente até começarmos a viver de acordo com certas necessidades. Por isso toda nossa vida, especialmente na forma como vemos a história (uma linha e não um ciclo) é uma trajetória no sentido de uma narrativa mesmo: uma mudança, uma ação que gera transformação. Começamos com essa premissa dentro de nós, muitas vezes servindo como personagens necessários para uma determinada situação cultural, e aí então, a partir dessas possibilidades e desses limites, podemos ser protagonistas para efetivar uma transformação e sermos diferentes.

Um anarquista pode ser a favor do voto obrigatório?

Em geral, há dois tipos de pessoas contrárias ao voto obrigatório. De vez em quando as motivações coincidem, mas devem ser consideradas separadamente.

  • Diferencial de inteligência – Há quem faça uma apologia à “distribuição natural de talentos” entre os humanos. Ora, alguns são simplesmente mais inteligentes que outros, dizem; portanto, se nem todos forem obrigados a votar, escolheremos melhores representantes.
  • Uma questão de princípio – Há quem seja a favor da liberdade no maior número de circunstâncias possível, e que, por esta razão, não deveríamos ser obrigados a nada – especialmente não a votar. Nessa visão, é comum ouvir dizer que votar é um direito, não um dever.

A primeira motivação é na maioria das vezes alguma forma disfarçada de classismo ou racismo. As pessoas que eles querem que não votem são os “burros” – que, para eles, se resumem a pobres, negros, favelados, nordestinos. Nas últimas décadas sempre ouvimos essa ladainha depois da vitória do PT nas urnas. Ah, se apenas os mais ric… Quer dizer, os mais inteligentes escolhessem o presidente. Aí teríamos Aécio. Ou Alckmin. Ou Serra.

A segunda revela algo mais profundo sobre o estatismo moderno; se o voto é um dever, há algo que interessa nele aos poderosos. Não é caridade ou “virtude cívica”; não é achar que fará bem às pessoas. É porque esse é um instrumento de legitimação. Como todo mundo vota, fica fácil virar para os eleitores e botar toda a culpa dos sistemas social, econômico e político nas costas deles. Quando isso acontece, a individualização e internalização da culpa não está muito longe, porque na massa disforme e monolítica dos “eleitores” o engenho de misturar “vocês” com “você” é facilmente empregado. Foram vocês que colocaram esses políticos aí. Não está gostando? Se fode, você deveria ter escolhido melhor.

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Photo by manhhai

Eu sempre fui contra o voto obrigatório, mas por causa do segundo princípio. É o que leva quase todo anarquista, arrisco dizer, a ser contra o voto obrigatório.

Mas venho escrever essa postagem para tentar destrinchar um argumento complexo, mas relevante, em especial para a comunidade anarquista: não importa muito por que ser contra o voto obrigatório; se é o motivo 1 ou o motivo 2. No final, o resultado acaba sendo o primeiro.

Uma vez que o voto obrigatório se desfaça em uma sociedade desigual e com baixo capital político como a da nossa população, o primeiro cenário se concretizará; não porque os “burros” não vão votar, mas porque quem é assim classificado pelos proponentes do primeiro cenário são aqueles que estariam mais propensos, por diversas razões, a não votar; desde a desilusão com o sistema até condições socioeconômicas e culturais.

Por outro lado, obviamente o voto não mudará nada. O que me leva a um jeito de explicar o que estou tentando dizer ao refrasear o título: votar torna um anarquista menos anarquista? Eu creio que não, porque aquilo que o anarquista sabe que é irreal, o tipo de feitiço que ele tenta quebrar em outras pessoas e na batalha cultural mais ampla, é a ligação entre voto e mudança sistêmica. O anarquista é aquele que olha para o voto e, embora possa até votar (seja pra evitar se incomodar com a multa depois ou por alguma outra razão), o que faz a diferença em sua ideologia é a perspectiva com a qual aborda seu próprio voto, em especial as expectativas em relação ao voto. O importante é saber que o voto não vai mudar nada. A diferença entre um petista e um anarquista votando no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 são as expectativas que cada um guarda em relação ao processo eleitoral.

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Photo by dcJohn

Agora, esse parece ser um argumento bastante subjetivista; se não há diferença prática (os dois votam), então não há diferença, ponto. É justo argumentar dessa forma, mas é preciso entender que só abordei o lado indivíduo-a-indivíduo da questão: o voto obrigatório é um tópico social, e precisamos abordar esse lado também. O “cenário 2” do início da postagem trata simplesmente de direitos individuais. Há um outro, e gigantesco, lado da moeda.

O voto obrigatório traz a discussão política (ou pelo menos tem a intenção, e oportunidade, de fazê-lo) para dentro das casas de quem normalmente não discutiria política. É uma forma de envolver a todos no processo político. Ao meu ver, o anarquista que se opõe ao voto obrigatório está colocando uma picuinha pessoal (e admito que esse era eu: “mas que droga, eles estão me forçando a votar. Ugh…”) acima de uma boa oportunidade de desenvolver a discussão política. Isso tem a ver também, aliás, com uma visão contraproducente de liberdade – mas não creio que seja saudável contestar isso nesta postagem…

Em nossa visão de futuro, de sociedade desejável, queremos que as pessoas se envolvam. Queremos a responsabilidade de cada um pelas decisões da comunidade. Como faz sentido rejeitar esse mesmo envolvimento nesse exato instante? – Não é o mesmo envolvimento, responderiam alguns; e nem o mesmo modelo de sociedade. Sim, é verdade, é tudo verdade. Mas é algo próximo, próximo o bastante para servir como oportunidade de discutir princípios e ideias anarquistas. De acostumar quem não está acostumado a debater ideias, projetos, valores, caminhos, e também pessoas. Sim, porque a verdadeira democracia do anarquismo não pode funcionar sem o tipo de responsabilidade pessoal por projetos que implicam a discussão de pessoas para além da discussão de representantes que temos hoje, mas não muito aquém.

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Photo by marthax

O voto obrigatório deve ser dimensionado de forma apropriada pelo anarquista; não é solução para nada – nem o obrigatório nem o voluntário – mas no esquema mais amplo das coisas como estão hoje, opor-se a ele não só ajuda o projeto de poder de quem está muito mais à direita dos anarquistas que a esquerda estatista, como também significa fechar os olhos para uma maré de discussão política que pode ser melhor aproveitada para nossos próprios objetivos.

Universos insulares (Citação por Aldous Huxley)

“Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência, debalde. Por sua própria naturez, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.”

Aldous Huxley, em As Portas da Percepção

O problema processual da privatização

Por todo o mérito que tem a discussão sobre os problemas e os benefícios da privatização, gostaria de atacar outro lado da questão: a mera possibilidade da privatização, que cria um processo político imensamente problemático.

Neste vídeo dos espetaculares Young Turks, Jimmy Dora observa que ocorrem desastres em áreas governamentais gerenciadas pela iniciativa privada porque as pessoas votaram em políticos cuja ideologia dizia que o governo não funcionava. Que o governo não serve para isso, para aquilo ou aquilo outro.

Não seria uma contradição eleger para um cargo público alguém que diz que o governo não funciona? O próprio candidato diria que ele quer entrar no governo justamente para desfazer os laços do Estado com as diversas áreas sob sua supervisão. Mas essa perspectiva não é realista; é simplesmente pessimista. E mesmo quando não é motivada por uma falha na forma como o governo conduz a saúde, a educação, a energia ou coisas do tipo, o resultado só pode ser uma falha. Um governante que não acredita na capacidade do governo de gerenciar alguma coisa… Não vai fazer esforço para que esse gerenciamento dê certo. E isso leva a falhas, que leva por sua vez a mais “evidências” de que o governo não consegue fazer nada direito.

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Photo by Mário Monte

O governo pode cuidar de saúde, de educação e de diversas outras coisas e isso pode dar certo. Existe no mínimo uma experiência em algum lugar do mundo para prová-lo. A questão é que isso demanda esforço, envolvimento comunitário (capital político) e, arrisco a partir do exposto, uma certa dose de inevitabilidade. É como a família: nos sentimos impelidos a gostar deles, perdoá-los, etc, porque, afinal, os laços que temos com eles são indissolúveis na prática. Um irmão sempre será um irmão, os pais sempre serão os pais, e por aí vai. A ideia de que é possível desfazer um laço importante (como o do governo com a saúde ou com a educação) envenena ideologicamente essa relação porque passa a mudar a forma como qualquer falha é vista: não como um acidente, algo inevitável (já que somos humanos) mas passageiro; não como uma oportunidade de aprendizado, depois da qual seguimos em frente com a cabeça erguida e melhoramos. Não – quanto mais passarmos a aceitar que a dinâmica corporativa capitalista possa cuidar melhor (em todos os critérios, não apenas a “eficiência”) de áreas de atenção do governo, mais ficaremos propensos a reinterpretar as falhas como sinais proféticos de que é exatamente isso que deveria ser feito. E, num loop de reforço positivo, vamos dar menos e menos poder para as instituições governamentais (ou instituições de controle público em geral, porque como anarquista também vejo problemas com o Estado) que, assim, falharão mais e mais.

Palavras têm poder. E, antes dos problemas já conhecidos associados à privatização, seu próprio conceito (que gera uma dinâmica) exerce um poder considerável sobre a realidade.

Ferramentas e relações humanas

A capacidade humana de fazer prosopopeia é tal que toda ferramenta desvirtua, deturpa um pouco o processo direto. Não significa que não traga para ele vantagens, mas a experiência em si não é apenas “a mesma, só que com uma ferramenta” — há algo diferente ali a partir de um novo elemento que deveria ser transicional, mas com o qual uma relação é estabelecida na mente do humano que a usa.

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Photo by JanneM

Para isso, aliás, não é necessário que a ferramenta tenha “características humanas” na simulação da voz ou sejá lá o que mais, como vemos agora em computador, celulares, robôs japoneses. Temos, então, que usar uma superfície irregular da natureza como assento e usar uma cadeira é diferente também pela relação que se estabelece com o martelo, os pregos, etc. É como se o humano estivesse em uma constante relação com o seu ambiente, também personificado. Quando não há deuses para fazer oferendas, tentamos nos tornar amigos dos nossos cúmplices — pois isso que são as ferramentas; peças-chave das quais pedimos a cooperação para transformar uma parte de Gaia em algo que nos seja útil.

Os anarco-primitivistas têm algumas ideias interessantes quanto à tecnologia: deveríamos usá-la até certo ponto, um ponto há muito ultrapassado pelo que temos hoje em dia, que é simplesmente ridículo… Acho que há um entrecruzamento entre grupos políticos pequenos e a vontade de privilegiar mais as relações humanas do que as relações entre coisas. Isso significa mais: significa a busca de relações mais diretas, sem a deturpação de ferramentas — bem como a deturpação de sistemas, que são apenas ferramentas aplicadas à vida social. Da mesma forma como o casamento deturpa a relação, o Estado deturpa a sociedade, os templos deturpam as relações com as divindades e o dinheiro deturpa as relações econômicas e assim por diante (a ideologia é o sistema simbólico produzido por um corpo de especialistas, diz Bourdieu). A busca de relações mais diretas como base — como ponto de partida, e não como objetivo último — é interessante porque é como se buscássemos ser, socialmente, células-tronco, e isso proporciona uma liberdade que não teríamos quando nos prendêssemos a um só sistema cheio de ferramentas e significações que tornaria impraticável, a priori, outros.

Vender poesia

Me disseram que eu não podia vender poesia
Disseram-me que a prosa, ao saber da troca por mercadoria
Mais que seu dever seria
Se estrangular

Disseram que a palavra voada
Aos céus lançada
Nesse mundo selvagem não resistiria, nem um dia
Sem que pra acompanhá-la houvesse melodia

Já eu, ainda acredito na palavra escrita
Naquela que pra ter vida não tem que ser dita
Mas é bom que seja, para que não se convença
Que não há mais quem pensa que ela é boa de se olhar
E que uma vez expressa, não tenha mais pressa,
Mas saiba encontrar os olhos que a queiram amar.

Da responsabilidade nasce poder

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Photo by a4gpa

Responsabilidade. O que significa agir responsavelmente? Mais do que uma questão de prática é também uma questão de estado de espírito. Ser responsável por algo é estar, de acordo com uma decisão individual aceita por outros elementos envolvidos na situação, encarregado de algo, em posição de fazer escolhas sem a intervenção ou sanção compulsória por parte de outrem. Por outro lado significa também aceitar as consequências naturais decorrentes de uma ação. As duas faces da responsabilidade são impensáveis, isoladamente, como capazes de construir a ideia de responsabilidade. Das interações sociais que decorrem de uma atitude responsável deriva-se que é a responsabilidade que gera o poder — um tipo de poder, pelo menos — e não o contrário, pois o poder não traz consigo nenhuma responsabilidade implícita (tais responsabilidades nascem a partir de um quadro de referências que não está posto aqui, e é preciso levar em conta que existem diferentes poderes que podem ser gerados a partir da responsabilidade em diferentes contextos sociais).