“Enquanto o estilo literário é o espaço da incerteza, do indeterminado, de “brancos” que o leitor deve preencher, funcionando como máquina preguiçosa na expressão de Eco, na imprensa é o leitor que ocupará esse lugar da preguiça, sendo o trabalho do jornalista a colmatação das brechas possíveis, limitando o esforço interpretativo, construindo assim um leitor preguiçoso.”
Muitas e muitas análises e ideias da teoria política são baseadas numa consideração peculiar da condição humana em relação à sua organização: estamos procurando sempre lógicas, mecanismos e sistemas que mantenham certas condições que consideramos ideais de acordo com certos valores e certas prioridades. Hobbes queria um poder soberano porque com a desistência do direito individual a tudo cada um ficaria na sua. Pra Maquiavel é importante que uma República fosse militarmente expansiva porque o povo seria mais rico, já que ele seria uma peça fundamental da geração de riqueza da República. Tocqueville achava que os magistrados seriam mais regulados e menos arbitrários numa monarquia porque o príncipe teria medo de que eles lhe tirassem o poder, e o povo teria medo que eles abusassem o seu, e assim cada lado os regularia e cuidaria de que eles tivessem regras explícitas, que os limitariam. Dahl considerava que a poliarquia não favorece a tirania da maioria, porque a faccionalidade e as coalizações tornam difícil a formação de grandes maiorias que desrespeitariam os direitos de minorias.
Mas e se cada indivíduo não ficar na sua, ou o soberano resolver, com o poder que tem, desrespeitar o único limite que não pode cruzar (o ataque à vida)? E se o povo não for rico e for, na verdade, meio desfavorecido e mal tratado, até mesmo os militares, como reclamam tantos veteranos e tantas famílias de militares nos EUA, e a ideologia do patriotismo e a glória cívica de servir “compensassem” isso a um nível cultural? E se alguma aliança específica de poder fizesse os magistrados do monarca serem pró-ativos e arbitrários? E se uma maioria se formar em torno de uma minoria que, pela percepção cultural, não merece ser protegida de qualquer forma?
Esses não são “e se” pequenos e desprezíveis. São coisas que acontecem de novo e de novo e de novo na história da civilização Ocidental e não necessariamente põe em dúvida as teorias em si; elas são arrumadinhas e fazem todo sentido no papel, mas a questão é que são análises estruturais, falando de pessoas mais como personagens e assets de um jogo de RPG do que necessariamente o suporte mais básico de todas essas estruturas – suporte que tem que ser ativo e continuado através da legitimação e do comprometimento com um determinado sistema.
Por mais frágil que um sistema fosse do ponto de vista estrutural (mas abrir essa brecha poderia significar tal e tal coisa!) um povo consciente disso e rejeitando essa “tal e tal coisa” poderia fazer dar certo. O argumento, é claro, é que se a estrutura for melhor vai ser menos trabalhoso “fazer dar certo”, mas esse comprometimento é uma necessidade. Nesse sentido, o argumento da eficiência de uma democracia representativa em contraposição a, digamos, uma democracia direta anarquista, perde um pouco a força porque à medida que ambas as estruturas específicas da implementação de cada uma não tenham falhas óbvias o nível de comprometimento necessário pra que cada uma “dê certo” é virtualmente o mesmo. Numa república democrática representativa se pede (para que realmente “dê certo”) que o povo seja instruído e tenha tempo para dedicar à análise do que está acontecendo, para poder, depois do momento do voto, continuar “fiscalizando” o representante, e se a decisão tomada pelo parlamento for impopular e indesejada ainda é preciso verificar que canais de participação estão disponíveis para expressar o desgosto e ir até os últimos passos institucionais de expressão até que o assunto esteja resolvido… Sem falar da fiscalização mais específica dos atos executivos, das finanças do Estado, etc.
Dá muito trabalho fazer qualquer sociedade “dar certo” do jeito como imaginamos. Relegar isso completamente às leis ou a esquemas políticos responde bem a uma utopia (raramente chamada por esse nome, mas é o que ela é) de que não precisaremos um dia nos preocupar tanto assim com os assuntos comuns, porque o sistema orientará nossas opiniões e ações na direção mais justa possivelmente concebível. Mas isso é uma ilusão: há que se fazer escolhas baseadas em valores e, na minha opinião, em estruturas que permitam uma organização que incentive o engajamento público necessário para esse comprometimento (como, por exemplo, uma economia em que se dedique menos tempo ao trabalho e mais à vida cívica). Como diria Tocqueville (que teorizava muito mas, seguindo o exemplo de Montesquieu, tinha os pés no chão): “as leis são sempre pouco firmes, enquanto não se apoiam nos costumes; os costumes são a única força resistente e duradoura num povo”.
Esta é uma tradução do pequeno artigo “Some Remarks on Consensus”, escrito pelo antropólogo anarquista David Graeber para o site OccupyWallStreet. É um excelente artigo para explicar aspectos básicos do processo decisório baseado em consenso.
Houve muita discussão sobre os procedimentos do Occupy Wall Street (OWS) recentemente. Isso é bom: a atrofia e a complacência significam a morte para movimentos sociais. Qualquer experimento viável de liberdade vai ter que praticamente se reexaminar constantemente para ver o que está funcionando e o que não está – em parte porque as situações mudam o tempo todo, e em parte porque estamos tentando inventar uma cultura de democracia em uma sociedade em que quase ninguém realmente tem experiência com processos democráticos de tomada de decisão, e a maioria de nós ouviu a vida inteira que isso é impossível, e ainda em parte simplesmente porque isso tudo é um experimento, e é da natureza dos experimentos que eles às vezes não funcionam.
Muito do que tem sido discutido é o papel do consenso. Isso também é saudável, porque aparentemente há muitas noções erradas voando por aí sobre o que o consenso é e o que ele deveria ser. Alguns desses erros são tão básicos, no entanto, que eu tenho que admitir que eles me surpreendem.
Só para citar um exemplo, Justine Tunney recentemente escreveu um texto chamado “Occupiers: parem de usar o consenso!”, que se inicia por descrever o consenso como “a ideia de que um grupo deve aderir estritamente a um protocolo em que todas as decisões são unânimes” – e na sequência ela afirma que o OWS usou esse processo, com resultados desastrosos. Isso é bizarro. O OWS nunca usou o consenso absoluto. Na primeira reunião, no dia 2 de agosto de 2011, estabelecemos que usaríamos uma forma modificada de consenso com um método reserva de maioria de dois terços. Mesmo assim, a descrição estaria errada mesmo que tivéssemos usado o consenso absoluto (uma ideia hoje em dia raramente usada com grupos de mais de 20 ou 30 pessoas), uma vez que o consenso não é um sistema de votação unânime, é um sistema em que qualquer participante tem o direito de vetar uma proposta que ele considera que viola algum princípio fundamental, ou ao qual ele tem uma objeção tão profunda que caso a proposta vá em frente a pessoa provavelmente sairia do grupo. Se há uma pessoa tão envolvida com o OWS desde o início que ainda não sabe disso, e pensa que o consenso é alguma forma de sistema de votação unânime “rigoroso”, temos um grande problema. Como é possível que alguém que trabalhou com o OWS por tanto tempo ainda permanece, aparentemente, completamente ignorante dos princípios sobre os quais deveríamos estar nos apoiando?
Obviamente, isso parece ser um caso extremo. Mas reflete uma confusão mais geral. E ela existe nos dois lados do argumento: tanto alguns dos maiores apoiadores do consenso quanto seus grandes detratores pensam que o “consenso” é um conjunto formal de regras, parecido com as “Regras de ordem de Robert”, que devem ser obedecidas à risca ou jogadas fora. Isso certamente não é o que as pessoas que originalmente desenvolveram o processo formal estavam pensando! Elas viam o consenso como um grupo de princípios, um compromisso com um processo decisório no espírito da resolução de problemas, do respeito mútuo e, acima de tudo, da recusa à coerção. Era uma tentativa de criar processos que funcionassem em uma sociedade realmente livre. Nenhuma dessas pessoas, nem a mais legalista delas, era tão presunçosa a ponto de afirmar que esses são os únicos procedimentos que poderiam funcionar em uma sociedade livre. Isso teria sido ridículo.
Vou voltar a isso depois. Primeiro,
1) Consenso é uma “coisa de brancos” (ou uma coisa da classe média branca, ou uma forma elitista de opressão, etc)
A primeira coisa a ser dita sobre essa frase é que isso é muito uma coisa dos Estados Unidos. As pessoas de outros países tendem a reagir com uma expressão de confusão total quando menciono isso para elas. Mesmo nos Estados Unidos essa é uma ideia relativamente nova, e o produto de um conjunto muito particular de circunstâncias históricas.
A confusão em outros países se deve ao fato de que em quase qualquer lugar exceto nos Estados Unidos, exatamente o contrário é verdadeiro. Nas Américas, na África, na Ásia, na Oceania, você pode encontrar fortes tradições de processos decisórios por consenso, e então histórias de colonos brancos vindo e impondo as Regras de ordem de Robert, voto majoritário, representantes eleitos, e todo o pacote associado com isso – à força. Os conselhos Panchayat do sul da Ásia não operavam por voto majoritário, e ainda não operam, a não ser que haja uma direta influência colonial, ou influência de partidos políticos que aprenderam a fazer democracia em escolas coloniais e instituições governamentais que os colonos organizaram. A mesma coisa vale para assembleias comunitárias na África (na China, assembleias em vilarejos também operavam por meio do consenso até que nos anos 50 o partido comunista impôs o voto majoritário, já que Mao sentia que “votar” era mais “ocidental” e, portanto, “moderno”). Quase em todo lugar das Américas, comunidades indígenas usam o consenso, mas os brancos e os descendentes mestiços dos colonos usam voto majoritário (à medida que tomem decisões de modo igualitário de todo, o que em geral não faziam), e quando você encontra uma comunidade indígena usando o voto majoritário, é novamente pela influência explícita das ideias europeias – quase sempre, junto com oficiais eleitos, e regras formais do procedimento obviamente aprendidas em escolas coloniais ou emprestadas de regimes coloniais. Quando há oportunidade de qualquer um ensinar o consenso, a ordem se inverte: como foi no caso das comunidades zapatistas que falam Maya, que insistiram que a EZLN adotasse o consenso apesar das fortes objeções iniciais de mestiços que falavam espanhol como Marcos, ou, aliás, ativistas australianos brancos que eu conheço que me contaram que grupos de estudantes dos anos 80 e 90 tiveram que pedir aos veteranos do Novo Exército Popular (NEP) Maoísta treinamento em processo por consenso – não porque os maoístas tinham que acreditar no consenso, uma vez que o próprio Mao não gostava da ideia, mas porque as guerrilhas do NEP vinham em geral das comunidades rurais das Filipinas, que sempre usaram consenso para tomar decisões e portanto as unidades guerrilheiras espontaneamente adotaram as mesmas técnicas.
Então de onde vem a ideia de que o consenso é uma “coisa de brancos”? Comunidades indígenas na América usavam processos por consenso ao invés de votar. Os Africanos trazidos às Américas foram sequestrados de comunidades em que o consenso era a forma normal de fazer decisões coletivas, e foram enfiados violentamente numa sociedade em que “democracia” significava votar (mesmo que eles próprios não tinham o direito de fazê-lo). Enquanto isso, o único grupo significante de colonos brancos que empregava o método por consenso era o dos Quakers – e até mesmo eles desenvolveram muito de seus processos sob a influência de nativos como os Haudenosaunee.
Até onde posso entender, essas ideias vêm das brigas políticas que envolviam o surgimento do nacionalismo negro dos anos 60. O primeiro movimento de massa dos Estados Unidos que operava por consenso era o SNCC, ou Student Non-Violent Coordinating Committee [Comitê Estudantil de Coordenação Não-violenta], um grupo primariamente afro-americano criado em 1960 como uma alternativa horizontal ao (bem vertical) SCLC de Martin Luther King. A SNCC operou de forma descentralizada e usou o método por consenso. Foi a SNCC por exemplo que organizou as famosas “Viagens da liberdade” e a maior parte das campanhas de ação direta do início dos anos 60. Por volta de 1964, uma facção Black Power emergente estava procurando por uma forma de isolar e em última instância expulsar os membros brancos do grupo. Eles viram na questão do consenso uma espécie de problema-chave – isso fazia sentido, politicamente, porque muitos desses aliados brancos eram Quakers, e era vantajoso, inicialmente, enquadrar o argumento como uma questão de eficiência, ao invés de problemas políticos e morais mais fundamentais como não-violência. É importante enfatizar que as objeções ao consenso como ineficiente e culturalmente esquisito, que foram colocadas naquela época, não foram feitas em nome de uma mudança em direção a outra forma de democracia direta (por exemplo, voto majoritário), mas, em última instância, como parte da rejeição de todo um conjunto de práticas como a horizontalidade, o consenso e a não-violência, com o objetivo final de criar estruturas organizacionais hierárquicas, que podiam dar suporte a uma maior militância. Isso também correspondeu a um ataque oculto ao lugar das mulheres na organização – que havia inclusive sido criada pela famosa ativista afro-americana Ella Baker sob o princípio de que “pessoas fortes não precisam de líderes fortes”. Stokely Carmichael, o mais famoso proponente do Black Power na SNCC, notoriamente respondeu a um documento circulado por feministas (que dizia que mulheres estavam sendo sistematicamente excluídas de posições de poder na nascente estrutura de liderança) dizendo que, por ele, “a única posição para mulheres na SNCC é de bruços”.
Dentro de alguns anos a SNCC começaria a rachar; aliados brancos foram expulsos em 1965; depois de uma breve união com os Panteras ela rachou de novo, e foi dissolvida nos anos 70.
Essas tensões – desafios ao horizontalismo e ao consenso, lideranças no modelo “macho”, a marginalização de mulheres – não foram de forma alguma peculiares à SNCC. Batalhas similares estavam acontecendo em grupos predominantemente brancos: notavelmente a SDS, que ultimamente desistiu do consenso também, e acabou se dividindo em maoístas e weathermen. Essa é uma das razões pelas quais o movimento feminista do início dos anos 70, que dentro da Nova Esquerda começou parcialmente como uma reação a exatamente esse tipo de postura machista, abraçou o consenso como antídoto (os anarquistas só adotaram isso delas mais tarde). Mas uma coisa precisa ser notada. É importante. Nenhum desses desafios ao consenso foi feito em nome de uma forma diferente de democracia direta. Na verdade, eu não sei de nenhum exemplo de um grupo ativista que abandonou o consenso e a seguir se baseou em alguma forma diferente, mas igualmente horizontal, de processo decisório. O resultado final é sempre o abandono total da democracia direta. Às vezes isso acontece porque isso é exatamente o que querem aqueles que desafiam o consenso. Mas mesmo quando não é o que eles querem, a mesma coisa acontece, porque se afastar do consenso dá início a uma dinâmica que invariavelmente leva a uma direção vertical. Quando se abandona o consenso, alguns membros vão provavelmente sair do grupo como forma de protesto, justamente os mais dedicados a princípios horizontais. Facções se formam. Facções minoritárias que consistentemente perdem em votações importantes, e não têm suas preocupações incorporadas às propostas resultantes, vão em geral se separar. Uma vez que eles próprios costumam consistir de participantes mais orientados aos princípios de horizontalidade, o grupo original se torna cada vez mais vertical. Não demora muito para aqueles que nunca gostaram da democracia direta começarem a culpá-la por todos esses problemas; ela é ineficiente, e as coisas seriam muito melhores com papeis de liderança bem definidos – e só é necessário 51% do grupo restante, que está agora muito mais vertical, para abandonar completamente a democracia direta.
Obviamente, a percepção mais ampla de que o processo por consenso é uma coisa de brancos não é uma sobra de eventos que aconteceram há quarenta anos. Grande parte do problema é que, desde os anos 70, o processo por consenso tem sido desenvolvido por grupos orientados pela ação direta, e, enquanto certamente há grupos afro-americanos que operam no que pode ser entendida como a tradição de Ella Baker, a maioria desses grupos tem sido amplamente brancos. As razões são bem óbvias. Aqueles que não tem o privilégio branco enfrentam maiores níveis de repressão estatal, e (diferente de, digamos, o México, ou a Índia, em que aqueles que enfrentam mais repressão geralmente vêm de comunidades semiautônomas que operam pelo menos parcialmente baseados em consenso), nos Estados Unidos, isso limita o grau em que é possível criar espaços experimentais fora do sistema. As comunidades enfrentam preocupações práticas tão urgentes que muitos sentem que agir fora do sistema seria irresponsável. Aqueles que não pensam assim geralmente sentem que não têm outra escolha a não ser adotar práticas rigorosas de não-violência no estilo de Martin Luther King ou um militarismo revolucionário como o dos Panteras – e ambos tendem a levar a formas hierárquicas de organização. Como resultado, a cultura do consenso, o estilo em que é conduzida e as sensibilidades que a cercam acabam por refletir o pano de fundo cultural branco de classe média de muitos daqueles que a criaram e lhe deram forma, e o resultado é que aqueles que não compartilham dessas sensibilidades se sentem alienados e excluídos. Obviamente isso é algo que precisa ser trabalhado com urgência. Mas o problema aqui não é com os princípios que dão base ao consenso (que todas as vozes têm peso igual, e que ninguém será obrigado a agir contrário à sua vontade), mas com a forma com a qual eles têm sido executados – e o fato de que a forma com a qual têm sido executados tem o efeito de debilitar esses princípios.
2) Regras x princípios
Eu acho que o verdadeiro problema aqui é entender mal o que está sob escrutínio. Muitas pessoas nos dois lados do debate parecem pensar que “consenso” é um conjunto de regras. Se você seguir as regras, você está executando um processo por consenso. Se você quebrar as regras, ou executá-las na ordem errada, de alguma forma não está mais. Eu vi pessoas aparecerem nas reuniões armadas com diagramas e fluxogramas complexos baixados de alguma página da web, representando algum tipo de processo formal, e elas insistiam que aquilo ali era o processo de verdade. Então não é muito surpreendente que outras pessoas tenham sido desencorajadas por isso, ou que outras ainda achem que esse tipo particular de processo foi até onde era possível, e digam: “bem, o consenso não funciona. Vamos tentar outra coisa”.
Até onde vejo, ambos os lados estão mirando o alvo errado.
Eu vou repetir. O consenso não é um conjunto de regras. É um conjunto de princípios. Na verdade eu iria ainda mais longe para dizer que se você realmente quiser um resumo, ele se trata apenas de dois princípios: todos deveriam ter igualdade de expressão nas decisões (chame isso de “igualdade”), e ninguém deveria ser obrigado a fazer algo que realmente não queira fazer (chame isso de “liberdade”).
Basicamente, é isso. As regras são uma forma de tentar chegar a decisões no espírito desses princípios. O “processo formal por consenso”, em suas várias manifestações, é só uma técnica que as pessoas inventaram, ao longo dos anos, para chegar a decisões por grupo que resolvem problemas práticos de modo que a perspectiva de ninguém seja ignorada, e ninguém seja forçado a fazer nada que não queira ou concordar com regras que elas considerem ofensivas. É isso. É uma forma de encontrar o consenso. Não é “o consenso” em si mesmo. O processo formal como ele existe hoje provou sua utilidade para alguns tipos de pessoas, em algumas circunstâncias. É totalmente inapropriado em outras. Para pegar um exemplo óbvio: a maioria dos grupos pequenos de amigos não precisa de nenhum processo. Outros grupos podem, ao longo do tempo, desenvolver um método completamente diferente que se adeque a suas próprias dinâmicas, relações, situações, culturas e sensibilidades. E não há absolutamente razão alguma para que um grupo não possa improvisar uma técnica nova se é isso que quiserem fazer. Desde que estejam tentando criar um processo que incorpore esses princípios básicos, um que dê a todos igual oportunidade de se expressar e participar da decisão, e não force alguém a acompanhar a uma decisão que seja considerada fundamentalmente questionável, então o que eles conseguiram criar foi uma forma de processo por consenso – não importa como ela opera. Afinal, se um grupo de pessoas decide que quer operar por voto majoritário, bem, quem exatamente vai impedi-los? Se todos eles decidem que vão operar por voto majoritário, então eles atingiram um consenso (na verdade, um consenso absoluto) de que eles vão funcionar dessa forma. O mesmo seria verdade se eles decidissem basear suas decisões num jogo de comunicação com espíritos, ou apontar um membro do grupo como ditador. Quem vai impedi-los? No entanto, se pela mesma razão, no momento em que a maioria (ou os espíritos, ou o ditador) toma uma decisão que alguns pensam que é absolutamente escandalosa e se recusam a apoiar, como é que alguém vai forçá-los a obedecer? Ameaçando atirar neles? Basicamente, isso só poderia acontecer se a maioria estiver de alguma forma no controle de algum recurso-chave – dinheiro, espaço, conexões, um nome – e outros não. Isto é, se houver um meio de coerção, sutil ou não. Na ausência de uma forma de obrigar as pessoas a fazer coisas que elas não querem fazer, você está preso a alguma forma de consenso, goste você ou não.
A questão então é que tipo de processo decisório mais provavelmente levará a decisões que ninguém vai questionar tão fundamentalmente que vão deixar o grupo ou simplesmente se recusar a cooperar? Às vezes isso vai ser algum tipo de processo formal por consenso. Em outras circunstâncias essa é a última coisa que as pessoas deveriam tentar. Ainda assim, há uma razão para que uma maioria 51/49% é tão raramente empregada nessas circunstâncias: geralmente, é o método menos provável de gerar tais decisões.
Pense nisso da seguinte forma.
Imagine que uma cidade está prestes a destruir alguma praça querida e alguém faz cartazes marcando uma reunião ali perto para organizar um movimento contra aquilo. Cinquenta pessoas aparecem. Alguém diz: “eu proponho que a gente vá deitar na frente das máquinas. Vamos votar”. Então 30 pessoas levantam as mãos dizendo sim, e 20 pessoas dizem não. Bem, que possível razão existe para que as 20 pessoas que disseram não se sintam de alguma forma obrigadas a deitar na frente das escavadeiras? Estas pessoas eram 50 estranhos reunidos numa praça. Por que as opiniões de uma maioria num grupo de estranhos obrigaria uma minoria a fazer qualquer coisa – ainda mais algo que vai colocá-los em perigo pessoal?
O exemplo pode parecer absurdo – quem faria uma votação assim? – mas eu experimentei algo quase igual alguns anos atrás, em uma reunião “completamente anarquista” em Londres antes de uma mobilização em massa contra o G8. Cerca de 200 pessoas apareceram no RampArts Social Center. O facilitador, um sindicalista que não gostava de consenso, explicou que algum outro grupo propôs uma marcha, seguida de algum tipo de ação direta, e imediatamente procedeu a uma votação para verificar se nós, enquanto grupo, gostaríamos de nos juntar a eles. Estranhamente, não pareceu ocorrer a ele que, uma vez que nós não éramos de fato um grupo, mas apenas um monte de gente que apareceu numa reunião, não havia razão para pensar que aqueles de nós que não queriam participar dessa ação seriam influenciados pelo resultado. Na verdade ele nem estava fazendo uma votação. Ele estava fazendo uma enquete: “quantas pessoas estão pensando em se juntar à marcha?”. Não há nada de errado com enquetes; na verdade, uma das coisas mais úteis que ele poderia fazer nessa circunstância seria pedir para que as pessoas levantassem as mãos para que todos pudessem ver o que os outros estavam pensando. O resultado poderia ter mudado a cabeça de muitos – “bem, parece que um monte de gente está indo nessa marcha, de repente eu vou também” (embora nesse caso, na verdade, não mudou). Mas o facilitador pensou que ele estava conduzindo uma votação quanto ao que fazer, como se nós fôssemos na verdade obrigados a seguir a decisão.
Como ele pode ter sido tão cego? Bem, ele era um sindicalista. Sindicatos usam voto majoritário; é por isso que ele preferiu isso. Mas é claro, sindicatos são grupos baseados em pertença. Se você se juntar a um sindicato está, pelo próprio ato de fazê-lo, concordando em participar de suas regras, o que inclui aceitar a votação por maioria. Aqueles que não seguem as regras do grupo podem ser sancionados, ou até mesmo expulsos. Simplesmente não ocorreu a ele que o sistema de votação da maioria dos sindicatos depende da existência prévia de listas de membros, anuidades, licenças e, geralmente, bases legais – o que significa que ou todo mundo que voluntariamente entrou no sindicato estava de fato consentindo às regras, ou que se fazer parte do sindicato for obrigatório em uma determinada área devido a uma determinação governamental, todo mundo estava sujeito ao poder do Estado. Agir da mesma forma quando as pessoas não consentiram em ser obrigadas a uma decisão, e então esperar que elas sigam o que a maioria quer mesmo assim, só vai irritar mais pessoas e torná-las menos, não mais, inclinadas a fazê-lo.
Então vamos voltar para o primeiro exemplo de Justine.
A primeira vez que eu vi um bloqueio ser usado no Occupy foi em uma das primeiras assembleias gerais em agosto de 2011. Havia cerca de 100 pessoas naquele dia e no meio de uma reunião uma proposta foi feita para nos juntarmos a trabalhadores da Verizon em uma linha de piquete como gesto de solidariedade, na esperança de que eles também nos ajudassem de volta. As pessoas amaram a ideia e houve certa energia positiva, até que uma mulher na multidão, tuitando no seu celular, causalmente levantou a mão e disse “eu bloqueio isso aí”. O facilitador, abismado, perguntou por que ela bloqueou e ela explicou que mostrar solidariedade com trabalhadores poderia alienar o espectro de nossos apoiadores de direita. A discussão então acabou abruptamente e a reunião seguiu em frente. A verdade era irrelevante, a opinião popular não importava, e a solidariedade – o mais importante dos valores de esquerda – foi jogada pela janela com base nos caprichos de apenas um indivíduo. O Occupy tinha que encontrar uma nova forma de alcançar outras pessoas.
Agora, eu estava nessa reunião, e eu lembro disso vividamente porque à época eu era um dos participantes que ficou mais do que um pouco irritado com aquele bloqueio. Mas eu sei que isso simplesmente não foi o que aconteceu.
Primeiramente, como eu notei, o OWS desde o começo não tinha um sistema em que uma pessoa apenas podia bloquear uma proposta; caso houvesse um bloqueio, nós tínhamos a opção de usar um método de maioria por dois terços. Então se todo mundo realmente tivesse amado a proposta, o bloqueio poderia ser simplesmente ignorado. Enquanto muitos de nós achavam que a mulher em questão estava sendo ridícula (muitos de nós suspeitavam que o “movimento nacional” que ela dizia representar não existia de verdade), a facilitadora, ao perguntar se alguém mais se sentia assim, se surpreendeu ao descobrir que um contingente significante – alguns, mas não todos, anarquistas insurrecionistas – de fato tinham uma objeção quanto a fazer a próxima reunião numa linha de piquete, porque eles não queriam imediatamente identificar o movimento com a esquerda institucional. Uma vez que ficou claro que não foi só uma pessoa maluca, mas uma significativa porção do encontro – provavelmente não um terço, mas quase (não havia realmente 100 pessoas lá, incidentalmente; estava mais para umas 60) – ela perguntou se alguém sentia que deveríamos efetivamente passar a um voto majoritário, e ninguém insistiu. Isso foi um terrível fracasso do processo? Eu devo admitir que naquela época eu senti que aquilo era exasperante. Mas em retrospecto, percebo que se tivéssemos forçado um voto os resultados poderiam ter sido catastróficos. Porque àquela época nós, também, éramos um monte de gente que apareceu num parque. Nós não éramos realmente um “grupo”. Ninguém tinha se comprometido com nada; e, certamente, ninguém tinha se comprometido em aceitar uma decisão por maioria.
Um bloqueio não é um voto “não”. É um veto. Ou uma melhor forma de enquadrar isso é que dar a todo mundo o poder de bloquear é como dar o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos, de interromper uma lei que eles consideram inconstitucional, a qualquer um que tenha a coragem de ir à frente do grupo usá-lo. Quando você bloqueia, está dizendo que uma proposta viola um dos princípios comuns que o grupo concordou em estabelecer. É claro, nesse caso nós não tínhamos princípios comuns estabelecidos. Em casos como esse, a regra de ouro é que você deveria apenas bloquear se você sente algo tão forte quanto a um assunto que você na verdade abandonaria o grupo. Nesse sentido eu suspeito que a bloqueadora inicial estava realmente sendo irresponsável (ela não teria realmente ido embora, e muitos não sentiriam falta dela se ela fosse). Outros, no entanto, sentiam algo a mais quanto àquilo. Se tivéssemos votado fazer a próxima reunião numa linha de piquete, apesar das objeções deles, muitos provavelmente não voltariam a aparecer. O contingente antiautoritário teria sido enfraquecido. Se isso tivesse acontecido, há uma real chance de que decisões posteriores, muitas bem importantes, teriam ido em outra direção. Estou pensando aqui em particular na decisão crucial, feita algumas semanas depois, de não apontar delegados oficiais e conexões com a polícia para o 17 de setembro. A julgar pela experiência em outros lugares, se isso tivesse acontecido, tudo teria sido muito diferente e toda a ocupação teria falhado. Em retrospecto, a perda de uma oportunidade inicial de criar laços com sindicalistas em greve pareceu um pequeno preço a pagar para não seguir numa direção que poderia ter levado a isso. Especialmente porque não tivemos problema no estabelecimento de laços fortes com os sindicatos mais tarde – precisamente porque tivemos sucesso em criar uma real ocupação no parque.
Há muitas outras coisas que alguém poderia discutir. Acima de tudo, nós desesperadamente precisamos ter uma conversa sobre descentralização. Outro ponto de confusão sobre o consenso é a ideia de que é crucial ter o apoio de todo mundo sobre tudo, o que é novamente sufocante e absurdo. O consenso só funciona se grupos de trabalho ou coletivos não sentem que precisam de constante aprovação do grupo mais amplo, se a iniciativa vem de baixo, e as pessoas apenas checam com o grande grupo se há uma razão genuinamente importante para não ir em frente com alguma iniciativa sem checar com todo mundo se está certo prosseguir. Por estranho que pareça, a própria morosidade das reuniões por consenso ajuda aqui, uma vez que desencoraja as pessoas de levar problemas triviais para o grande grupo, o que potencialmente desperdiçaria o tempo de todo mundo.
Mas tudo isso sem dúvida será melhor discutido nos debates que estão acontecendo (outra boa regra de ouro pare reuniões por consenso: você não precisa dizer tudo que você quer dizer se você tem certeza que alguém vai falar as mesmas coisas que você de qualquer forma). Principalmente o que eu quero dizer é isso:
Nosso poder está nos nossos princípios. O poder do Occupy sempre foi que ele é um experimento da liberdade humana. É isso que inspirou tantos de nós a nos juntarmos a ele. É isso que apavorou bancos e políticos, que se viraram do avesso – infiltração, rachaduras, proselitismo, terrorismo, violência – para poder dizer ao mundo que falhamos, que eles provaram que uma sociedade genuinamente livre é impossível, que ela necessariamente entraria em um colapso de caos, sordidez, antagonismo, violência e disfuncionalidade. Nós não podemos permitir-lhes tal vitória. A única forma de lutarmos contra isso é renovar nosso compromisso absoluto com esses princípios. Nós nunca vamos ceder quanto à igualdade e à liberdade. Nós vamos sempre basear nossas relações uns com os outros nesses princípios. Nós não vamos reverter a estruturas e formas decisórias hierárquicas cuja premissa é o poder de coerção. Mas enquanto fizermos isso, e se realmente acreditarmos nesses princípios, isso necessariamente significa ser tão aberto e flexível quanto pudermos quanto a todo o resto.
Faz algum tempo traduzi um texto de Stanley Fish chamado “Não existe essa coisa de liberdade de expressão, e é bom que seja assim“, um artigo simultaneamente pós-moderno, didático, rigoroso e politizado que culmina num verdadeiro chamado à ação, numa constatação bastante radical quanto à inescapabilidade de uma “tomada de partido” em nossas vidas quando o assunto é expressão.
Fish é um acadêmico relativamente desconhecido no Brasil, e então fiz uma pesquisa na época para saber mais sobre ele. Como é de praxe, acabei gravitando por um momento para críticas. e já que elas estavam mais à direita que à esquerda, peguei o resumo da ideia e deixei meio que “pra lá”, porque o texto que traduzi é realmente muito bom. Mas, em suma, a bronca é que ele era um academicista cínico e descompromissado com a realidade.
Ele tem (ou tinha, já que não aparece lá desde 2013) um blog no New York Times, e lá descobri coisas muito interessantes. Acho que ele de fato fornece bastante material para o tipo de ataque que veio da direita. Vou falar um pouco sobre alguns artigos bacanas que, acredito, vale a pena ler. Não pretendo (mais) traduzi-los, então inglês é um pré-requisito. O New York Times fica chato depois de um tempo, pedindo por pagamento para acesso aos artigos, então se você tiver algum problema use a navegação anônima do Chrome. Os links para os artigos estarão formatados em negrito ao longo do artigo.
Uma posição sobre a visão de mundo liberal
Uma das coisas que me fascinou no texto que traduzi é a forma como ele vai à raiz das coisas e desfaz certas pressuposições, certos binarismos intrínsecos à forma como pensamos, revelando algo mais profundo e muito mais complexo por detrás deles. No caso do artigo sobre liberdade de expressão, a noção de que nossa expressão nunca se encontra num reino de liberdade total que é de vez em quando ameaçado por constrangimentos artificiais; que são os constrangimentos, sempre presentes pela natureza da expressão, que possibilitam qualquer expressão significativa, e que essas restrições à fala estão presentes em qualquer instituição humana com algum propósito, e que isso apontava para a conclusão de que quando alguém “invoca” a liberdade de expressão em sua defesa está usando estrategicamente um julgamento de valor dentro de um jogo de forças político.
No artigo “Citing Chapter and Verse: Which Scripture is the Right One?“, Fish argumenta (a partir de um lapso linguístico de Richard Dawkins) que muitas vezes trocamos a Bíblia pela literatura científica como “livro de autoridade”. A questão não é ter fé no método, mas ter fé de que os cientistas que estão dizendo que fizeram o experimento do jeito tal e os resultados foram tais e tais realmente fizeram o que dizem. De qualquer forma, podemos gastar trinta minutos discutindo a diferença entre as coisas, mas o que ele quer dizer é que há uma questão de autoridade original: “em qual convicção”, poderíamos perguntar a alguém que nos debate, “sobre onde a verdade e a iluminação devem ser encontradas você se baseia?”. Quando definimos uma resposta para isso (“revelação, educação, conversão”) você não pode testar essa respostacom algum árbitro independente. Essa é uma resposta pós-moderna clássica (lol) no sentido ‘derrideano’ de nada está fora do texto (não existe guardião do significado). Não existe ninguém (ou nenhuma entidade) fora dessa lógica de jogo linguístico e simbólico que possa decidir imparcialmente qual dessas “ortodoxias básicas” é melhor. E uma vez que isso não pode ser feito, “a sua resposta é agora o árbitro (e a medida) de tudo que vem até você. É ela que vai ajudar você a determinar o que serve como boa evidência e o que não serve.
O argumento todo é, portanto, epistemológico. É uma disputa nada nova, mas essa é uma boa demonstração dela: cientificistas podem argumentar que o mundo é simplesmente um conjunto de informações disponíveis. Você só observa, anota, e chega a conclusões (como um observador imparcial). É isso que Fish contesta:
Eu não estou criticando Dawkins, estou o agradecendo por apoiar [meu argumento] de que apesar de invocações de justiça e igualdade e de que devemos dar uma chance a todas as vozes, liberais clássicos, como qualquer ideólogo (e ideólogos todos nós somos), dividem o mundo entre “nós” e “eles”. […] “Nós” subscrevemos aos pilares do inquérito científico materialista e “eles” são aqueles que não o fazem. […] Não estou criticando os liberais por tomar partido por, e com, seus pares, mas por fingirem que eles estão, ou poderiam estar, fazendo outra coisa. Liberais sabem que […] quem nega o holocausto, não importa que tipo de “fatos” ou “estatísticas” sejam trazidas, são simplesmente pessoas ruins […] (incidentalmente, eu concordo com [essa posição liberal]). Mas o desejo dos liberais clássicos de pensar neles próprios como acima dos outros, como alguém que facilita a discussão ao invés de levar ela na sua própria direção favorita, faz com que eles sejam incapazes de se contentarem em dizer “vocês estão errados, nós estamos certos, e nós não vamos ouvir vocês nem dar uma chance para vocês falarem”. Em vez disso, eles fazem malabarismos para basear seus julgamentos em padrões impessoais e procedimentos imparciais (que não existem) apenas para que eles possam pronunciar suas excomunhões com mãos limpas e corações puros (apartidários e não-tribais).
Esse é o tipo de Fish que eu adoro. Ácido, corroendo camadas de hipocrisia e de justificações metafísicas que visam retirar a complexidade política dos embates intelectuais, como se eles fossem coisas puramente lógicas e não humanas; filosofia para máquinas e cálculos (como se os próprios cálculos não precisassem ser escolhidos) em vez de para organismos perspectivados.
Mas essa mesma constatação vai evoluindo de formas diferentes e alcança certas argumentações que não tenho certeza se são tão sólidas, ou tão efetivas.
O lado da religião
Em certo momento cheguei a considerar a tradução de três artigos específicos desse blog dele: “The Three Atheists“, “Atheism and Evidence“, e “Is Religion Man-Made?“. Essa é uma “trilogia” que explora os argumentos de três ateus que publicaram livros de sucesso por volta de 2007, data em que os textos foram publicados; Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens. Considerei traduzi-los porque raramente se vê uma boa defesa de religiões em geral que não seja feita por religiosos, e a maioria das que são feitas são, na minha opinião, inadequadas em vários níveis. Mas, ao reler essa trilogia de artigos, algo não me pareceu certo; não é que discordo completamente deles, mas acho que em uma segunda leitura percebi certas lacunas e ausências que me incomodaram mais do que durante a primeira.
Um campo minado
No primeiro e talvez melhor (dentre os três) artigo, Fish ataca as análises que os três ateus fazem do ponto de vista religioso. Eles o atacam por ser raso, pois substitui a dúvida e a angústia por certeza e obediência cegas; atacam-no por ser simplista, por ignorar possíveis contradições e, com base na fé, criar um mundo de falsa segurança psicológica e (no fundo) falta de fibra moral. Esse, no entanto, não é o caso para Fish, algo que ele mostra com bastante eloquência.
As objeções que Harris, Dawkins e Hitchens fazem ao pensamento religioso são elas mesmas parte do pensamento religioso: ao invés de serem varridas para debaixo do tapete de um discurso perfeito, eles são o motor do discurso, impelindo o questionamento conflituoso de teólogos e poetas (para não mencionar Jesus, que lamentou-se “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” e cada verso do livro de Jó). […] eu rascunhei esses argumentos […] não porque eles são conclusivos (apesar de serem para alguns), mas porque eles estão lá – exatamente nos textos e nas tradições que Harris, Dawkins e Hitchens dispensam como ingênuos, simplistas e ignorantes. Se você é religioso, diz Hitchens, você seria persuadido de que um criador todo-poderoso e benigno supervisiona tudo, e que “se você obedecer às regras e aos comandos que ele amorosamente prescreveu, você vai estar qualificado para uma eternidade de felicidade e repouso”. Eu não conheço nenhum enquadramento religioso que oferece uma visão tão complacente de uma vida de fé, uma vida que é sempre apresentada como um campo minado de dificuldades, obstáculos e tentações que precisam ser negociadas por uma criatura limitada em seus esforços para se alinhar (e se aliar) ao infinito.
Razão e fé
Sam Harris declara que “Vai provavelmente chegar um dia […] em que vamos alcançar um entendimento detalhado da felicidade humana, e dos próprios julgamentos éticos, a nível de cérebro” e que “há toda razão para acreditar que a pesquisa na esfera moral, se sustentada, vai forçar a convergência de todos os nossos sistemas de crença da forma que foi feita em toda outra ciência”. Eu poderia jurar que era o Comte falando (será que o livro foi publicado no gênero espírita?), mas não. É só um positivista dando uma de mãe Diná em pleno 2015.
E isso não passou despercebido por Fish, que envergonha Harris de forma mais deliciosa que maionese Heinz:
Uma assertiva muito forte é feita – nós vamos “sem dúvida descobrir conexões válidas entre nossos estados de consciência e modos de conduta” – mas nenhuma evidência é oferecida para justificá-la; e de fato a ausência de evidência se torna a razão para a confiança em sua eventual emergência. Isso parece bastante com o tipo de fé que Harris e seus colegas detestam – expectativas baseadas apenas numa primeira premissa (ela própria afirmada ao invés de provada) que, se verdadeira, exige-as, e se falsa, faz delas coisas sem sentido.
O principal argumento deste segundo artigo vai ser mostrar como fé e razão são inseparavelmente componentes uma da outra. “As razões que você dá [para acreditar em algo]”, ele argumenta, “não vêm de fora da sua fé, mas se seguem a ela e a desenvolvem”. As razões de Harris (e Dawkins) para acreditar que a moralidade pode ser naturalizada fluem da fé na ciência materialista e “fazem um loop” de volta a essa fé, dando-lhe maior substância. É um raciocínio circular, ele admite, mas não “viciosamente”: “seja lá o que você estiver fazendo – pregando, ensinando, fazendo um experimento, jogando baseball – você precisa sempre dar uma razão (mesmo que só para você mesmo) para sua fé e a razão vai ser sempre uma boa razão só por causa da sua fé”. Por fim, ele não diz que ciência e religião são as mesmas coisas; afirma que “as diferenças entre estruturas de fé [ou estruturas de razão] são reais e significativas, porque ambas vão responder a diferentes necessidades e propósitos”, mas que, dentre as diferenças, uma delas não é “a diferença entre fé e razão”.
E aqui os problemas começam. No outro artigo que comentei, na primeira seção desse post, ele fala sobre a fé liberal na epistemologia materialista como um ponto de partida que precisa ser presumido. Se ele estivesse falando dessa fé como ponto de partida de todo o raciocínio, tudo bem, mas ele se referia à fé de Dawkins no darwinismo (o que é uma comparação muito, muito ruim).
Tirando essa questão técnica (embora importante, posto que central ao argumento deste artigo), há ainda o fato de que a frase mais importante não foi levada a maiores consequências. Sim, as estruturas de fé vão responder a diferentes necessidades e propósitos – o problema é quando as coisas se entrecruzam. Sabemos hoje, dentro da antropologia, que as sociedades tradicionais não eram acientíficas – elas não tinham a instituição ciência, que é perfeitamente passível de críticas, mas é óbvio que aplicavam uma versão do método científico. Como diz Pritchard em algum lugar que tenho preguiça demais de procurar agora, se você chegasse para um índio e dissesse “mas por que eu devo plantar? Não é só fazer o ritual tal e tal e a planta cresce sozinha?” ele ia rir da sua cara, porque ele sabe que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
O problema é quando a lógica da fé religiosa deixa de responder ao tipo de dimensão psicológica, social e cultural à qual ela geralmente responde e contamina o procedimento que usamos para investigar a realidade, formar opiniões sobre aquilo que vai além da nossa interioridade (“fatos”?) e tomar decisões sobre como melhor alcançar um determinado fim (que, sim, pode vir a ser escolhido com base em valores religiosos!). Uma coisa é você ser moralmente contra o aborto, ou ainda, dentro da sua escala de valores (informada ou não por uma religião específica), valorizar menos conceitos como liberdade pessoal ou a autonomia sobre os corpos a ponto de apoiar instituições sociais que visem coibir a prática de aborto. Outra coisa é, a partir dessa fé, se recusar a ouvir ou entender argumentos contrários ou dados estatísticos que possam pôr em dificuldade coisas relativas a esses valores. É claro que esse julgamento intelectual vai estar sempre contaminado por valores; é impossível que alguém lance um olhar imparcial sobre algum dado ou argumento, mas isso não quer dizer que uma preocupação com a racionalidade e com o método científico (que “responde à necessidade e ao propósito” da investigação sobre as coisas e a formação de opiniões) não possa ajudar a superar essas barreiras axiológicas até certo ponto. É sempre uma disputa, mas a vitória (mesmo que impura) não só é possível como desejável, e isso é algo que possivelmente Fish não contestaria – mas ele tampouco endossa em seu artigo, fazendo proliferar no silêncio a sensação de que as diferenças entre a ciência e a religião, não se resumindo ao monopólio da razão, devem então ter nada a ver com arazão. Mas elas têm.
A imperfeição
No artigo que mais fez ateus se perguntarem “wtf?”, Fish diz que a ideia de que “Deus não escreveu os livros [religiosos] ou estabeleceu as regras de sua adoração, [e sim que] humanos fizeram isso, e que os resultados são […] imperfeitos” é “exatamente o que você deveria esperar”. “É Deus (se existir um) que é perfeito e infinito; humanos são finitos e confinados dentro de perspectivas históricas. Qualquer esforço para apreendê-lo […] vai necessariamente falhar em relação à transparência que se espera obter” em algum momento no futuro, um momento de visão (uma epifania, digamos). A um comentário no blog (a um artigo anterior), em que alguém argumenta que o fato de a religião ter sido criada pelo ser humano é a melhor base para o ateísmo porque ela contradiz a divindade de Deus, Fish responde que não, ela contradiz a divindade do ser humano, que é exatamente a razão de ser da religião. O ser humano não é divino, é mortal; seu criador, por ser maior que ele, não pode ser contido em categorias humanas de percepção e descrição.
Fish vai além (ou, na verdade, só até o fim), concluindo que
Se a divindade, por definição, excede a medida humana, a exigência de que a existência de Deus seja provada não faz sentido porque a maquinaria da prova, seja ela qual for, não poderia ser estendida longe o bastante a ponto de apreendê-lo. […] A crítica feita por ateus de que a existência de Deus não pode ser demonstrada não é sequer uma crítica, porque um Deus cuja existência pudesse ser demonstrada não seria um Deus; seria apenas outro objeto no campo da visão humana.
Mas esse é exatamente o ponto, Fish! Esse artigo é o que mais me irrita, justamente (similar ao que acontece no segundo dessa trilogia) por causa do que nãoé dito. Embora essa exigência dos ateus em relação a uma prova científica se estenda não apenas a Deus, mas também ao sobrenatural (fantasmas, vampiros, energias cósmicas, astrologia, etc), dá para entender que são coisas diferentes, posto que a questão do sobrenatural é muito mais prática (refere-se sobretudo aos supostos efeitos que certas coisas exercem no mundo físico). Mas a questão dos efeitos é na verdade chave. Como notou um comentador dessa postagem:
O que você parece estar dizendo, professor Fish, é que Deus é inobservável, que não podemos ver Deus (de qualquer forma) e portanto a tentativa de provar sua existência é incoerente. Isso é o mesmo que dizer que Deus não tem nenhum efeito sobre nós. Se ele tivesse um efeito, então poderíamos experimentar esse efeito e portanto observar a Deus, porque experimentar um efeito é exatamente o que a observação é.
SIM, experimentar um efeito é exatamente o que a observação é. Observar é medir um efeito que uma coisa tem sobre outra. Entenda que estou tentando definir uma categoria bem ampla aqui; observar algo visualmente é sentir e analisar o efeito que a luz que essa coisa emite, ou reflete, exerce sobre nossos olhos. Fish está querendo dizer que, ao pedir que se prove a existência de Deus, os ateus forçam os religiosos a jogar com a regra dos ateus, e nessa lógica estrangeira eles não podem ganhar, porque a lógica religiosa determina que Deus não pode ser observado (ou não seria Deus). Só que mesmo fora das regras do jogo ateu, argumento, essa é uma proposta problemática, porque engendra a conclusão de que Deus não faz a menor diferença. E se não faz (a la victim blaming) então toda crença depende unicamente do crente (e essa é uma posição que, como vimos, deve ser assumida dentro do jogo do crente, não só do ateu) e portanto a própria humildade epistemológica inerente à fé religiosa cai por terra, já que não depende do que é, mas da vontade do crente de crer!
Isso, é claro, é um problema imenso para a religião que Fish não aborda. Não aborda porque ele é religioso? Difícil. Ele mesmo diz que não é contra a proposta dos ateus ou a crítica à religião, ele só não acredita que essas três críticas sejam boas – ele está meio que tentando fazer uma oposição construtiva, exigindo mais de seus colegas, como quem diz “hey, esses argumentos não são suficientes! Arranjem uns melhores!”, mas em sua defesa da religião como advogado do diabo (ha) ele acaba perdendo um pouco do rigor que eu esperava – ele me acostumou mal com aquele artigo sobre a liberdade de expressão.
O valor da filosofia
Mas a real discordância, ao invés de simples irritação, veio ao ler “Does philosophy matter?” e sua parte 2, em que as críticas contra ele, vindas de um site conservador, começaram a fazer sentido.
Na coluna, ele basicamente argumenta que a filosofia é muito importante… Para filósofos profissionais, que debatem filosofia dentro da academia. Para todos os outros seres humanos, meros mortais, ela não importa nem um pouco. Nada. Talvez a melhor formulação dessa ideia esteja nas seguintes linhas:
Vamos supor que qualquer um dentre dois atos de persuasão ocorram: alguém que antes era um absolutista moral é agora um relativista de algum tipo, ou quem era antes relativista agora é um crente confirmado em morais absolutas. O que exatamente vai ter mudado quando um conjunto de visões filosóficas foi trocada por outra? Quase nada. Com certeza você vai agora dar respostas diferentes do que daria antes quando perguntado sobre fatos morais, verdades objetivas, evidências irrefutáveis e por aí vai; mas quando você está tentando decidir qual é a coisa certa a fazer em uma determinada situação, nenhuma dessas respostas que você daria para essas perguntas profundas vai ter qualquer impacto na sua decisão. Você não vai dizer, “porque eu acredito em morais absolutos, eu vou assumir esse novo cargo ou vou divorciar meu marido ou vou votar para os democratas”. Você tampouco vai dizer, “porque eu nego uma moral absoluta, eu não tenho mais nenhuma base para tomar decisões uma vez que qualquer decisão que eu faça é tão boa ou ruim quanto qualquer outra”. O que você vai dizer, mesmo que para você mesmo, é “Dado o que está em jogo, e os prováveis resultados de tomar esta ou aquela ação, eu acho que vou fazer isso”. Nem “Eu acredito em uma moral absoluta” nem “eu não acredito” vai ser uma razão ao longo de uma deliberação normal, não-filosófica.
Eu veementemente discordo disso. No início, tive medo de que estava fazendo isso apenas por orgulho – como uma forma de dizer, birrento, que algo não podia ser assim, como a fase de negação do luto. Mas não; com um pouco de tempo comecei a pensar (o pensamento se impôs a mim, na verdade) que aquilo era simplesmente… Falso.
Certamente há algo de verdadeiro no que ele diz, até certo ponto. Ao longo do próprio artigo ele explica que a crença em uma moral absoluta não é tão importante quanto o conteúdo dessa moral, mas ele vai dando a entender que na verdade qualquer tipo de discussão filosófica não tem importância mesmo – e, como a frase ao final da citação acima implica claramente, tudo é uma questão de contexto e cálculo (ele critica certas pressuposições liberais, mas certamente não tem o menor pudor de defender um modelo homo economicus de ser humano, pelo jeito). Também é verdade (e essa é a motivação para essas duas postagens dele) que um relativista moral não será necessariamente um monstro niilista; Fish está querendo principalmente argumentar que alguém escolher entender que a realidade não oferece nenhuma moral absoluta não quer dizer que esse alguém não tenha uma moralidade própria (e pelo fraseamento de Fish, ele não parece acreditar que as pessoas escolham muito bem que moralidade vão seguir) ou que vá sair por aí matando todo mundo.
Isso é importante e verdadeiro, mas não por causa da irrelevância das posições filosóficas; pessoalmente, acredito que nossos sentimentos, nosso entendimento e nossa imersão em relações sociais (dado o tipo de criaturas sociais e dependentes de simbolismo que somos) são grandemente responsáveis pelos valores e pelos princípios que vamos fortalecendo. Experiências, e formas de interpretá-los, geram nossos objetivos e guias de ação para nos posicionarmos e para escolhermos as pessoas e coisas que defenderemos. Ser um “relativista” realmente não significa muito nesse contexto, porque não implica que abandonemos aquilo em que acreditamos, mas tem um impacto gigantesco na forma como entendemos os outros e as coisas nas quais eles acreditam. E isso, depois, tem um impacto retroativo nas coisas que atacamos e na forma como as atacamos, além de impactar nossas relações com os outros, e também, em certas situações, decisões que tomamos.
Isso que ele diz é bastante alinhado com o que diz no texto sobre liberdade de expressão: o princípio geral e constitucional é abrangente demais e as pessoas preferem confiar nele a decisão sobre o que fazer (que tipos de discurso regular) ao invés de estudar a complexidade política da situação. Ele advoga que cada decisão sobre quais discursos coibir ou estimular é sempre local, e é pragmático – ele vê que toda disputa engendra uma decisão que amplamente independe das convicções das pessoas (convicções sobre a “primeira emenda”, que protege a liberdade de expressão, são apenas instrumentos retóricos adotados ou abandonados conforme a ocasião). O cinismo que o faz ter uma análise tão bem feita e tão instigante lá o torna francamente cego aqui – é embasbacante a paixão com a qual ele defende que a filosofia não importa em nada nas decisões que as pessoas tomam.
Mas o fato é que as pessoas têm princípios, e embora ele pense que eles são somente justificações post facto para decisões necessariamente pragmáticas (e isso em geral dá boa literatura, o que pode ter retroalimentado essa fantasia na cabeça dele), nós muitas e muitas vezes nos orientamos por eles, independente do que consideramos mais prático ou do que gostaríamos de fazer. E nesse sentido debates filosóficos importam, posições pensadas importam.
Em um momento ele faz uma diferenciação entre religião e filosofia: as pessoas são guiadas por princípios religiosos em suas decisões, então por que não seriam guiadas por princípios filosóficos? Porque, para ele, “filosofia é algo que você pode fazer ocasionalmente, religião não é” – a religião exige do crente comprometimento dele, com ela, em todas as suas atividades. Mas seu argumento, em primeiro lugar, depende de um confinamento potente da filosofia: ela pode ser apenas o tipo de masturbação exercício mental cuidadosamente montada nos corredores e salas das universidades, e nada mais. Longe de mim querer banalizar a filosofia, mas mesmo que as pessoas não sejam versadas nas melhores ferramentas do pensamento, elas pensam naquilo que acreditam e em como isso se relaciona com o que elas querem fazer (uma coisa que dá excelente literatura). Se as pessoas não pensam “direito” agora, isso é um problema cultural e pedagógico, não cognitivo (e seriamente me pergunto se Fish só pensa assim porque vive na Murica…).
Em segundo lugar, o argumento completamente desconsidera que, num mundo cada vez mais secular, a filosofia de fato substitui o comprometimento religioso posto que todo mundo precisa (não “precisa” do tipo “seria bom que tivesse”, e sim necessariamente tem) de um esquema teórico que organiza certas ideias sobre o mundo.
Noutro momento ele diz:
Mas e os conservadores (republicanos)? […] (1) A controvérsia do teto orçamentário teria sido melhor resolvida se os participantes tivessem lido e estudado os tratados filosóficos corretos, e (2) o problema com o Partido Republicano é que ele é guiado por uma má filosofia, que dita o comportamento de seus membros. O primeiro argumento é claramente bobo; segue a mesma lógica de que se apenas alguns terroristas, tiranos, e jihadistas lessem nossa constituição, as cartas federalistas, e algumas páginas de John Rawls, eles iam cair na real e se tornarem seguidores da nossa democracia.
Não, Fish, não significa isso. Embora, de fato, a lógica não possa ser “A leva a B” (porque não leva mesmo, está certo), o contato com uma ideia filosófica diferente poderia convencê-los a mudar de ideia, a depender de uma série de circunstâncias – poderia ser um fator. O problema, é claro, é que essas ideias filosóficas não estariam agindo sobre um vácuo que seria a cabeça de terroristas e tiranos, e sim sobre uma cabeça que já tem suas próprias filosofias, filosofias que já estão os influenciando a agir de tal ou tal forma. Mas tanto faz, porque mesmo assim Fish diria – mais ou menos foi o que respondeu em relação ao número (2), e algo que já citei – que a filosofia aparece apenas como justificação posterior a um ato que nada tem a ver com princípios e pensamentos.
Em suma, só se pode concluir… O que a crítica conservadora conclui a respeito dele. Ele é, de fato, alguém descompromissado, pelo menos em relação à própria profissão. Ele defende (até mesmo em seu blog) uma série de posições, mas nega que pensar nelas de forma filosófica vai fazer as pessoas agir de forma diferente. Descrente, não vê as pessoas como agindo pelo menos em algumas ocasiões de acordo com princípios ou coisas que tenham pensado; não, são 100% contextuais e dirigidas por cálculos racionais (certamente ninguém nunca evitou uma traição em um relacionamento por convicção; não, claro que não. Só acharam que não valia à pena ou que seriam pegos na mentira, só pode).
Isso não me deixa triste nem faz com que goste menos dele como teórico; ele é o que ele é. Espero ter contribuído, inclusive, um pouco para a disseminação dele no Brasil ao comentar parte de suas ideias. Mas assim como não acho que ele tenha sido perceptivo o bastante ao lidar com sua defesa às religiões, não acho que conclua bem quando conclui que o pensamento filosófico não tem nada a oferecer para o comportamento não-filosófico. As pessoas são contextuais e vários fatores incidem sobre suas escolhas; as ideias não determinam as coisas, mas tampouco o faz coisas como instintos ou vantagem pessoal. É um fator considerável que o cínico não enxerga e, como numa espécie de fé, é difícil de falsificar – sua fé lhe faz ver as coisas de um certo modo, e suas observações só reforçam sua fé.
Eu devia estar dormindo já há duas horas, mas enfim, aqui estou… Acabei vendo alguns vídeos antes de dormir e precisei vir escrever este texto, de tão agoniado que me senti em relação a esse tema.
Um agonia tipo essa, assim.
Se você assiste alguns canais estrangeiros no Youtube, como CinemaSins, Couch Tomato e Wisecrack (todos super recomendados), você vai perceber que muitas vezes eles são patrocinados pelo site Audible.com, uma loja de audio-livros (audiobooks) subsidiária da Amazon. O patrocínio significa que, logo depois que o conteúdo principal do vídeo termina começa uma propaganda feita pelo apresentador do conteúdo. A propaganda é feita de um jeito criativo; ela não parece ser feita unicamente por grana (o produto parece algo que as pessoas nesses canais realmente usam e gostam; o dia que o Jeremy do Cinema Sins fizer a propaganda de, sei lá, uma clínica de bronzeamento artificial, aí isso vai parecer falso), não é invasiva ou chata, é honesta (isto é uma propaganda) e é bastante útil, na verdade, especialmente porque depois de recomendar o site eles dizem algo como “e se você está procurando por uma recomendação de leitura, recomendamos <insira livro bacana e relacionado com o conteúdo aqui>”.
Só que tem uma coisa que me incomoda profundamente em algumas dessas propagandas: o ângulo, o rationale usado para incentivar o uso dos audiobooks. A ideia principal é: ninguém tem mais tempo, ou saco, pra ler hoje em dia. Então simplesmente ouça o livro.
Problema #1: há um problema
Mas o Audible está fazendo uma coisa boa, não está? Está reconhecendo que tem gente que não tem tempo ou paciência para ler, e muitas dessas pessoas tem algum tempo que, embora não possa ser aproveitado pra ler (estão dirigindo, ou se exercitando), pode ser aproveitado para ouvir coisas.
O Audible, sendo subsidiário da Amazon, nãopode ter interesse em não incentivar vendas de livros. Talvez ele esteja sendo simplesmente simpático com quem não gosta de ler, aproximando-se dessas pessoas estrategicamente, como um “good cop”, e fisgando-as à literatura. Começam com audiobooks e, depois, acabam indo pros livros. Boom! É assim que você cria leitores. Com uma estratégia sorrateira, praticamente tirada das páginas de um Sun Tzu (ou de um audiolivro dele, narrado pelo… Pedro Bial ou coisa parecida).
Muy amigo.
O problema é que eu tenho minhas dúvidas de que essa taxa de conversão seja necessariamente alta. Os audiobooks visam se adaptar à rotina das pessoas, e não o contrário; quem não tem tempo pra ler, mas quer ler, poderia encontrar a motivação pra abrir um espaço em suas vidas para um livro. Mas, com os audiobooks, elas não precisam mais disso: encontraram algo que se encaixa perfeitamente na rotina que elas já têm. Daqui em diante, é mais provável que elas continuem comprando audiobooks, se acostumem a eles, invistam nesse sistema de consumo de informação. A Audible pode não querer diminuir as vendas de livros de sua empresa-mãe – mas ela reconhece que algumas pessoas não vão comprar livros tão cedo, então constituem um nicho que ela pode conquistar sem medo de canibalização ou autossabotagem.
Problema #2: Conteúdo e formato
Ao tratar os livros como veículos de mensagens valiosas, você separa o conteúdo da forma de um modo absolutamente destrutivo para a arte. A mensagem é: você quer ler, mas não tem tempo. Mas existem coisas nos livros que você quer saber, então… Obtenha a informação sem a experiência. Porque ouvir as palavras de um livro vai certamente fazer com que você consiga reter algumas das coisas que entram pelos ouvidos, mas isso não tem nada a ver com o tipo de habilidade e virtude que a leitura simultaneamente exige e desenvolve: paciência, compromisso, investimento; a atitude de “stop and smell the roses” tão peculiar à análise calma, ao consumo apropriado de algo que quer ser uma experiência estética. O formato interessa. Não, só porque você conhece a história de um livro não quer dizer que o leu; só porque ouviu o conteúdo do livro, não quer dizer que o leu. Se um amigo lê o roteiro de um filme para você, ou o assiste numa sala separada e vai contando para você o que se passa na tela, não quer dizer que você viu o filme.
Isso vale mais para ficção, claro, embora a não-ficção não seja “neutra” a tal ponto que não exista uma voz, um estilo do autor. Mas é que com a não-ficção, a informação realmente vale mais: é na maioria das vezes a motivação da leitura. Eu tenho aqui um audiobook do John Keegan que estou louco pra ouvir, mas é porque quero a informação. Mas o Audible não se vende como plataforma para estudantes. Os audiobooks são vendidos, nessas propagandas, como perfeitos e convenientes substitutos de livros, inclusive os de ficção.
Problema #3: Ler é ativo; ouvir é passivo
Não só a experiência estética de ler um livro diretamente é diferente de ouvi-lo, a audição de um livro implica que alguém fez por nós as escolhas que são feitas no “processamento” que nosso cérebro faz de um texto ao lê-lo. O tom do que os personagens dizem, o ritmo; ler mexe muito mais com a nossa imaginação, porque nós temos que criar as vozes que dão vida e corpo à leitura; num audiobook, a voz é a do narrador, que faz por nós o tipo de escolha que vai nos ajudando a moldar essas vozes. Esse tipo de processo criativo faz da escuta de um audiobook uma experiência passiva, muito mais próxima da televisão que de um livro. A constituição da narrativa em nossa imaginação a partir dos sinais gráficos da escrita, muitas vezes abertos a interpretação, é uma experiência muito mais ativa. Um bom contador de histórias pode nos fazer visualizar a história, claro; mas se a ideia é “ler” audiobooks enquanto você dirige, não é nem para você ficar imaginando muita coisa.
Problema #4: Ler não vale a pena
Uma das coisas que mais me incomoda nessa propagação de que “ninguém tem tempo pra ler hoje em dia” é que isso contradiz pelo menos alguns dos cenários que o Audible defende. Você pode ler, por exemplo, enquanto faz esteira. Mas será que essas pessoas não podem fazer um pouco menos de esteira, ou fazer menos vezes a esteira por semana, para se dedicar a ler? Vamos supor que não: realmente não existe nenhum outro tempo na vida dessa pessoa que ela possa usar para ler, um pouco que seja?
É essa questão de prioridades que me deixa irritado. Pode ser que a vida de algumas pessoas seja tão louca que não sobre nenhum tempo pra ler. Mas muitos de nós temos a tendência a exagerar nossas obrigações e nossas rotinas, supervalorizando o quão “cheio de coisas para fazer” realmente estamos. Para essas pessoas, a mensagem construtiva é: Repense. Reestruture. Priorize. Encontre formas de fazer coisas que vão te fazer bem, ou que você vai curtir, e sua vida vai continuar legal – ela vai ser corrida de qualquer jeito, então inclua um pouco mais de leitura.
Mas não. O que o Audible diz é: se você pode não ler, e ainda assim se divertir, pra que ler? A mensagem ressoa porque é exatamente o que não-leitores já fazem (se você pode se divertir sem ler… Pra que ler?). O engodo é que isso dá a impressão de que a pessoa está interagindo com “livros”, quando não creio que seja bem o caso.
Joguem os livros na fogueira!!!1! Chegaram os audiobooks!!1!
Problema #5: Propaganda enganosa?
Pra fechar a discussão com chave de bosta, me pergunto: e audiolivros de fato poupam tempo? Um narrador não pode ler o livro correndo, porque se não muitos podem não entender e isso equivale a ler um livro escrito à mão com letra de médico. Tem que fazer uma leitura pausada, e eu, como leitor dinâmico, sei que progrido muito mais rápido que a fala de um narrador. Como leitor, eu posso pular partes – seja isso bom ou ruim, é uma decisão minha, e é especialmente relevante em livros de não-ficção – como espectador de um mp3, tenho que esperar ele terminar, ou ficar tentando adivinhar quanto tempo ele vai precisar pra ler aquela parte e pular especificamente aquela quantidade de segundos ou minutos (e essas adivinhações raramente dão certo de primeira).
Pior ainda, quantas vezes queremos voltar e reler aquele pedacinho que acabamos de ler? Isso deve ser um inferno de fazer com arquivos de áudio, ainda mais pra alguns dos cenários que o Audible afirma abranger (enquanto você faz uma bicicleta na academia? Enquanto dirige?). Isso me leva a pensar que talvez as pessoas não tem é tempo, nem saco, pra ficar ouvindo audiobooks – essa deveria ser a propaganda da Amazon pra vender livros, aliás…
Disclaimers
Não estou falando aqui da qualidade dos audiolivros, nem da importância desse segmento de mercado, por exemplo, para pessoas com deficiência visual; até porque não é esse o ângulo do Audible. Estou incomodado com a mensagem de que os audiolivros são bons porque dispensam a leitura; de que ninguém tem tempo, paciência ou força de vontade pra leitura.
Por outro lado, isso parece estranho vindo de quem reclamou que a leitura não deve ser incentivada com esse tipo de argumento racional voltado para seus efeitos práticos. E no entanto aqui estou eu, dizendo que os audiobooks não trazem tantos benefícios para a imaginação, a criatividade, o pensamento crítico, etc quando livros de papel… Mas acho que minha incomodação vai além disso. Com essas observações só quis marcar minha posição, reforçando o que acredito ser uma verdade incontornável: audiobooks não substituem a leitura. Ainda acho que a leitura deve ser incentivada e propagada, principalmente em relação às crianças e (pré-)adolescentes, como uma questão de prazer, de hábito, de hobby, de lazer. E esse é um dos aspectos da leitura que essa ação publicitária do Audible menospreza e diminui. Não curti.
“Com um fone de ouvido ficaria bem melhor” -n
E você, o que acha? Você consome audiolivros? Já usou o serviço do Audible.com? O que acha dessa forma de vender o serviço?
Dizem que os nossos próximos, nós escolhemos; e há quem valorize a seletividade. Isso é mentira, ou ilusão. Escolhemos contatos, aliados, antidepressivos. Amigos e amores surgem de repente: vêm da destruição, não da criação — começam com a derrubada inequívoca de qualquer relação trivial que justificava nossa ligação a eles antes, antes dessa catástrofe que solidifica nosso laço.
Relações como essas, porém – admito – mantêm-se através da comunicação, da colaboração e do incentivo, nem que seja pela inveja e pela crítica. As pessoas que passam pela nossa vida, mas quase nada significam, ensinam a conveniência, o abandono, o interesse. Eles drenam forças. Os que estão no coração ensinam a sensibilidade, a confiança e a liberdade. Estar entre eles é estar em casa. É precisar de nada para se tornar igual.
O tempo todo vemos dados alarmantes sobre o estado da leitura no Brasil. Precisamos urgentemente discutir estratégias para transformar essa realidade.
Afinal, a leitura é importante: ela nos deixa mais “inteligentes”, sem dúvida, e todos queremos um país mais inteligente, agora e no futuro. Só que, quando colocamos isso em evidência no contexto de incentivo ao hábito de leitura, confundimos algumas consequências da leitura com o que nos faz ler. Fazendo isso, erramos o alvo.
Ler faz bem à saúde
Leia mais ficção e você vai se sair melhor em provas e concursos – sua habilidade de interpretação textual vai melhorar; as palavras serão mais familiares, e textos de não-ficção, mais facilmente compreendidos. Logo você será capaz de solucionar problemas com mais eficiência. Desenvolver seu cérebro é o tipo de coisa que não tem efeitos colaterais negativos: sua lógica fica melhor, mas também sua memória, sua paciência, sensibilidade artística, perspectiva histórica, empatia, inteligência emocional, resistência a Alzheimer… Ler é como a melhor combinação de remédios e complementos vitamínicos, só que ministrada principalmente para suas habilidades intelectuais e profissionais.
Só que investir nessa visão (“ler é bom para você, então leia!”) pode ser um mau investimento, posto que apenas marginalmente efetivo, quando muito (mesmo que não conte como prejuízo, seria um desperdício de oportunidade). Se simplesmente saber que algo é ruim, danoso ou errado fosse o suficiente para que as pessoas não fizessem tais coisas – em suma, se Aristóteles estivesse certo quanto à origem do comportamento mau – o mundo seria substancialmente diferente do que é. Por mais que haja valor na conscientização (que dá origem a atitudes; só não o faz exclusivamente), as coisas não são tão simples.
Do ponto de vista administrativo, a leitura é uma questão de “habilidade acadêmica”. Como dito acima, queremos um país de leitores. Se é a falta de leitura que ameaça nos “emburrecer”, então temos que fazer as pessoas entenderem que a leitura é boa para elas até elas lerem mais.
O que escapa a essa lógica é que a leitura não é algo utilitário.A leituraé umprazer que, coincidentemente, traz benefícios a quem lê (e, trickle-down style, a todo mundo em volta desse bendito leitor). A matemática sofre do mesmo problema: ela é a manipulação da lógica; é arte com formas e abstrações. Mas, ensinada como uma ferramenta, e extraído dela todo o prazer da descoberta, tudo que os alunos veem é uma coisa que 50% das pessoas nunca vão usar no futuro (“e, de qualquer forma, existem calculadoras para quê, diabos?”). Você pode até convencer algumas pessoas a começar a ler por causa dessa questão “utilitária”, mas 1) não serão muitos; e 2) os resultados não serão duradouros, porque ao se aproximar da leitura com esse viés (“busca-se” alguma coisa, racionalmente; algum resultado, algum lucro, essa “inteligência” que é prometida) as pessoas logo vão se frustrar e… Bem, vão abandoná-la com o tempo, dando prioridade a outras coisas.
Um livro, mesmo um livro bom, não é a causa absoluta de seus efeitos; se fosse assim, todo mundo teria a mesma opinião sobre um livro. A forma como a pessoa encara a leitura vai influenciar enormemente suas impressões sobre ela. Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, os livros de Augusto Cury, de Dan Brown, de Nicholas Sparks, os 50 malditos tons… É possível que eles possam sensibilizar alguém que entre na literatura “por obrigação”, essa conveniência interessada. Mas também é possível que, lendo “por obrigação”, a pessoa não consiga entrar num mindset que permita que o prazer aflore através desses livros, ou de quaisquer outros.
Ficar enchendo o saco de alunos que não leem, fazendo um, digamos, non-reader shaming (como já vi professor fazer) só vai associar a leitura a sensações de vergonha, inferioridade, humilhação – a coisa de “escolhidos”. “Como eu não gosto muito de ler e até hoje nunca gostei, e eu não sou mesmo a pessoa mais brilhante do mundo, esse negócio de ler simplesmente não deve ser para mim…”
Tudo começa pelo hábito
Ler é uma questão de prazer – mas isso tampouco ajuda nossa causa. A leitura exige mais. Prazer por prazer, existem muitos; se posso ver um filme, beber e dançar, ou ouvir música no Youtube, por que eu deveria ler? Filmes e músicas também desenvolvem o cérebro e podem fazer pensar. A dança é também uma arte muito importante, e a corporalidade não pode ser desprezada. Tentar começar uma briga em relação a qual arte é mais prazerosa, ou (de volta ao argumento anterior) qual traz mais benefícios técnicos, não é interessante.
A chave está no hábito. Crianças aprendem coisas por causa da mais básica e fundamental dinâmica cultural da humanidade: elas querem fazer o que os adultos fazem. Mais tarde, com mais personalidade e experiência, querem fazer o que alguns adultos fazem (seus modelos e ídolos). Se estamos falando de nossas crianças e adolescentes (o “futuro da nação”), temos que mostrar aos atuais adultos que eles são seus modelos e ídolos. Claro, há outros (como as celebridades), mas estamos falando de coisas que estão ao nosso alcance, não é mesmo?
Não peça a seu filho para ler mais, explicando para ele que isso é importante, se você não lê. Não diga aos seus alunos que ler é importante para passar no vestibular, ou mesmo porque é legal – apareça com uma desgraça de livro debaixo do braço na sala de aula! Comente o que está lendo, compartilhe a experiência. Porque se essa experiência não “veio de casa” na forma de rotina, esse aluno vai precisar ser convencido de que essa é uma experiência em que vale a pena investir considerável tempo, energia, eventualmente dinheiro. Fale da trama, sem spoilers; do que você sentiu durante a leitura, do que achou mais interessante. Compare. Fisgue. Fale até de coisas que já leu, e como aquilo impactou você, pessoalmente. Pessoalmente, sim – a leitura é uma jornada pessoal.
E embora um livro não seja a causa absoluta de seus próprios efeitos, é preciso não tornar a leitura um campo minado. Jovens leitores podem ler coisas complexas; nós tiramos das obras de arte o que estamos preparados para absorver. Se não pudermos entender tudo, tudo bem. O problema não está tanto em ler a versão original ou a adaptada de Dom Casmurro; é achar que é preciso decidir qual é a leitura certa para cada idade ou grupo, ou mesmo eleger esses livros que “todo mundo deve ler”. Cada indivíduo é único em sua relação com a leitura, e deveria seguir a bússola de seus interesses. Obviamente que nem todo leitor pode começar a ler a Odisseia assim que for alfabetizado – mas volto a isso depois.
Fácil acesso
O acesso aos livros é uma pré-condição para o trabalho de incentivo à leitura. Obviamente que em escolas e localidades em que não se achem muitos livros em bibliotecas – ou mesmo sebos – é imprescindível abastecer o local com literatura; mas não se pode pensar que esse era o único problema antes, e que basta investimento em termos de compra de exemplares para que de repente haja uma proliferação miraculosa de leitores. A oferta não gera, automática e magicamente, demanda.
Sem considerar os locais com difícil acesso a livros físicos (onde a internet provavelmente também não é lá essas coisas), o acesso das pessoas em grandes centros urbanos também vem aumentando. Há centenas de escritores independentes publicando suas obras na internet (ahem…) e mesmo os ebooks tornam o caminho da decisão de leitura até a leitura em si uma coisa de 2 minutos; não é preciso nem sair de casa, nem esperar o livro chegar via correios. E só ler.
O problema é que as mesmas mídias que tornam significativamente mais confortável ler em aparelhos eletrônicos (celulares, tablets) também são aquelas que facilitam o acesso a tudo o mais – vídeos, facebook, jogos. Se antes a leitura já entrava em desvantagem na competição com outras forças de prazer e atividade de lazer, essa competição não ficou mais fácil. Ficou pior.
Uma questão humana
Isso aponta para uma única conclusão: o acesso mais fácil ajuda, é claro; e ajuda em especial aqueles que tinham um acesso nulo ou quase nulo em relação aos livros. Só que é só pré-condição; o que vai fazer diferença mesmo é o fator humano. Pais, professores e mediadores de leitura.
Sobre os pais e professores já falamos: adultos em geral que, se realmente querem ter uma influência direta sobre os pequenos a que têm acesso, devem começar a ler imediatamente e integrá-los a essa vida de leitor. Integrá-los, sim: já falamos sobre como a jornada do livro é pessoal, e isso às vezes é um problema. A criança só quer brincar, e aí vê o adulto fascinado, fechado em seu próprio mundo do livro. Parece um negócio tão solitário, esse de ler – é preciso mostrar pra essa criança por que alguém escolheria essa atitude solitária de vez em quando; como é legal, e como ela nem precisa ser solitária, na verdade. Boom – contar uma história antes de dormir, compartilhar o que você está lendo, trazer livrinhos infantis pra ir incentivando… Isso tudo conta muito mais que ficar explicando que a leitura é importante para ela tirar 10 na prova. Senhor, infinitamente mais.
Você viu o que estou fazendo aqui, não é, caro leitor [dessa postagem]? Dando uma razão racional, que não tem a ver com o prazer de ler, para que adultos comecem a ler. Bom, estou partindo do pressuposto de que adultos são muito mais propensos a agir com base nas consequências de suas ações, visando fins de mais longo prazo e valorizando coisas para além do calor do momento. Então eu realmente não estou ligando se esses adultos vão gostar de ler tanto assim; eles precisam, pra gerar leitores que, no futuro, vão ter uma relação de amor verdadeiro em relação à experiência de ler. Encare como um pequeno sacrifício que, não sei, vá que os faça abrir o coração e descobrir que também gostam de ler, afinal de contas. E que (esse é um desafio maior ainda), sempre tiveram mais tempo pra investir nisso do que achavam que tinham.
E quanto aos mediadores de leitura? Esses são profissionais importantíssimos também. Sabemos que introduzir alguém à leitura não se trata de jogar qualquer livro para eles lerem. Trata-se de alcançar os interesses deles (com sugestões e convites) quando eles podem ser muito jovens ainda para saber exatamente o que querem ler. E é importante ajudá-los nas primeiras leituras, até que eles se sintam confortáveis para começarem a ler sozinhos. Não é preciso uma formação universitária para fazer isso, claro, mas estudos, e um certo conhecimento pedagógico, ajudam a tornar esse processo mais eficiente.
Capacitação é a palavra-chave: se queremos mais leitores, temos que investir na formação do tipo de profissional que vai ser capaz de tornar a leitura interessante. Ouvi dizer que vai ser gasto bastante dinheiro numa campanha midiática, por parte do governo, em favor da leitura. Pra quê isso, gente? Que impacto real vocês acham que vai ter algum ator global falando algo como “ler é legal para caramba, melhora seu desempenho escolar e é o que o Brasil precisa, um país é feito de homens e livros blá blá blá blá blá blá leia mais!”? Seria melhor se o ator em questão se deixasse fotografar por um paparazzi lendo um livro. É um fenômeno conhecido, especialmente quando envolvem celebridades do mundo infanto-juvenil, como, sei lá, Justin Bieber. Se ele for pego lendo um livro, muitas e muitas fãs que às vezes nem gostavam de ler antes vão ver do que se trata. O fanatismo pop tem um lado bom, também.
Mas, voltando à crítica da tal campanha, e de todo o dinheiro que vai ser jogado nela: o que é preciso é investir na rede grassroots de profissionais que estará no chão da escola, trabalhando com os alunos como indivíduos merecedores de respeito que são – jornada pessoal, sim? Não dá pra transformar o incentivo à leitura em questão de massa, porque a literatura é a experiência artística que mais desafia essa massificação. A relação é pessoal, e o incentivo também deve ser; nisso deve consistir o trabalho do mediador de leitura no dia a dia da escola.
Em tempo, capacitação envolve a valorização dos professores também. Não dá para pedir que eles estejam sempre lendo mais e mais coisas enquanto trabalham de forma intensa para ganhar salários péssimos. É preciso que eles tenham tempo, também, para ler, para poder indicar esses livros que leem, poder relacionar o que estão lendo com as lições em sala de aula (que, aliás, terão mais tempo para planejar…). No fundo, advogo por um modelo educacional radicalmente diferente desse. Mas, se for para trabalhar com o que temos no futuro próximo, acho que esse é o básico do básico.
Conclusão: não é uma questão de preço
E o preço? Sabemos que os livros, no Brasil, não são baratos. Se investigarmos a questão, vamos descobrir que a grande vilã dos altos preços dos livros no Brasil é a tiragem: como temos poucos leitores, vendemos poucos livros e os imprimimos em poucas unidades para que não encalhem e gerem prejuízo.
Nesse sentido, percebam, o preço baixo não é causa de maior leitura; só será possível enquanto consequência. Além do que, comprar um livro nem sempre é a única maneira de ler livros: as bibliotecas estão aí para isso, e a discussão sobre o fácil acesso volta a ser relevante – mas, atendo-me ao preço, é importante notar que enquanto continuarmos reforçando a ideia de que a leitura só vai decolar no Brasil quando os preços baixarem, o que estamos realmente dizendo? Que vale a pena pagar 30 reais por um jantar (40, 50, enfim; depende de quão chique é o restaurante e quão caro é o livro, e o triste é que nós pagamossim essa quantia por comida quando podemos), mas não por um livro. E veja, há muitas comparações como essas, mas a do jantar é realmente emblemática; uma coisa que dura uma noite, contra uma experiência absolutamente repetível condensada num objeto (físico ou digital) duradouro.
Não se engane: quem está aprendendo as regras do jogo de viver está bem atento a essas hierarquias de valor, e a elas se adaptará. Não diga que os livros são caros – lamente o fato de não ter dinheiro o suficiente para comprar duzentos por mês. Ainda antes disso, separe efetivamente um dinheiro para comprar um capa dura, um livro de bolso, um conto digital por 1,99 na Amazon, qualquer coisa; qualquer coisa que valorize a literatura, para nós que a produzimos e para crianças e adolescentes para os quais você vai mostrar, não com palavras, e sim com gestos e atitudes, que ler é importante. Que é bacana. Que é gostoso. Que é bom.
Bom, como vocês sabem, eu sou meio que bastante contrário a fórmulas simplistas. Em se tratando de arte e literatura, a complexidade que almejo tem a ver com um “gut feeling”, uma sensação de que esse troço está certo. Você lê, relê, pensa, repensa, lê, relê – e a coisa flui, tudo se encaixa, a sensação é arrebatadora na medida planejada (ou, surpresa, melhor que a planejada) e aí pronto: você não precisa do blá blá blá técnico chato, e evita pensar demais. Você só faz. Nada de jargão, nada dos caminhos já percorridos por outros. Se parece certo, está certo. Certo?
Não. Embora eu continue achando que essa intuição, esse “GPS artístico” é fundamental e ele tem que ter liberdade para voar enquanto você escreve e analisa o que escreveu, existem três problemas fundamentais com um approach absolutamente intuitivo:
Esse seu GPS artístico tem que ser bom, e estar “calibrado”. A maioria de nós vai ter problemas em admitir que nossa intuição pode nos enganar; que ela pode não ser tão genial quanto às vezes pensamos, e pode nos levar a escrever merda. Embora seja poético pensar que o trabalho do escritor é um labor solitário, a verdade é que pontos de vista diferentes sobre a obra ainda em produção nunca pioram a arte final; tornam-na mais rica, de um jeito ou de outro, sempre. Isso sem nem falar no papel do editor… O que estou dizendo é: você precisa ler muito (e ler coisas com qualidade literária) e escrever muito para desenvolver uma sensibilidade artística boa. Isso tem a ver com confiança, orgulho, humildade, talento, habitus, capital cultural. E é uma coisa que cada autor tem que resolver consigo mesmo. (Observação: há também, obviamente, grande valor em conhecer as histórias que existem no mundo para não, ham, fazer nenhum plágio involuntário.)
Talvez você esteja se atrapalhando. Veja, mesmo que você tenha um senso artístico incrivelmente arrojado; um senso super perspicaz do quê e de como escrever para alcançar aquele efeito no leitor, pode ser que você esteja escrevendo sobre algo, ou sobre algo de um jeito específico, por causa de algum momento na sua vida, de algum interesse passageiro, de algum demônio da mente que você precisa exorcizar. Isso tudo é muito bacana, e na verdade essas são boas motivações para escrever. Só que, talvez, influenciado por essas coisas, você ache super legal falar dessa ideia, e não percebe que… Na verdade ela não é muito boa. É preciso separar o que o público vai achar de uma ideia do que você, sabendo de todo o contexto de produção da obra, vai achar. (Observação: muitas vezes, contudo, você pode deixar o leitor saber do contexto de produção. Isso muda tudo; desde um “baseado em fatos reais” até “escrevi isso aqui através do whatsapp“).
E se você não gostar do lugar para onde a sua intuição o levou? O que vai fazer? (Observação: temos ideias ruins o tempo todo. É parte do “brainstorming”.)
Para mim, o papel de teorias literárias, de estudos sobre a criação literária, é o de ferramentas que vão aparecer para consertar esses problemas. Se eles são aplicados desde o início, viram fórmulas; se as fórmulas ficam muito aparentes, são clichês. Mas, fórmulas ou clichês, histórias que têm como inspiração “modelos” de escrita são problemáticos não só por causa do que elas são, mas por causa do que elas poderiam ter sido. Forçadas desde o início a obedecer uma série de regras e ideias preconcebidas sobre o que um “bom enredo” deve ter, que tipo de genialidades elas poderiam ter sido, se esse lado diferente, ousado e (por que não?) “patinho feio” delas não tivesse sido silenciado na sua imaginação?
Primeiro a ideia, a inspiração, o planejamento completamente baseado no seu coração; depois, se você não estiver satisfeito (ou até mesmo se estiver), é hora de começar a pôr a ideia à prova; de questioná-la, analisá-la, dilapidá-la. É nessas horas que a teoria serve bem, e, novamente, o faz sempre sob o comando da sensibilidade artística. Não adianta nada mudar a sua ideia para encaixá-la numa “jornada do herói” se no final você não achar que ela ficou mais tão interessante – a saída deve ser outra, e pode estar em outras ideias teóricas sobre criação literária – ou, ainda, no meio do caminho, precisando de algum elemento até então desconhecido para surgir.
E os personagens?
Dito isso, seus personagens têm que ser esses monstrinhos vivos na sua cabeça. Demora até que se inflem e não tem problema se começam finos como papel. Eles precisam maturar. Pode demorar.
De todo modo, mesmo depois que eles parecem bem vivos e formados, ainda pode haver problemas, e você não consegue verbalizar exatamente quais são eles. Bem, eu tive esses problemas várias vezes, tenho ainda hoje, e uma grande pesquisa na internet me dotou de algumas ideias que resumo aqui para futura referência e para ajudar também quem esteja de repente procurando por isso e precise de um recurso assim. Vamos lá: como escrever bem um personagem – mas o que define um bom personagem? – como fazer com que o público se interesse, se importe com o seu personagem.
Motivação
Os personagens precisam precisar de alguma coisa. Ou querer alguma coisa, mas a linha que divide esses dois verbos é tênue.
Mais do que isso, precisamos entender o que está em jogo – ou seja, não adianta nada percebermos que um personagem quer alguma coisa se não conseguirmos
Entender (emocional e/ou racionalmente) o porquê daquela vontade / necessidade;
Entender o que vai acontecer se o personagem não conseguir o que quer / precisa;
Torcer para que ele consiga o que quer / precisa (o que tem tudo a ver com os outros dois pontos).
E, é claro, isso tudo não significa nada se o objeto de desejo do personagem for trivial ou fácil de conseguir. É preciso que seja difícil, e que ele precise se superar para conseguir o que quer.
Você percebeu que parei de falar de uma característica do personagem para falar sobre o arco do personagem? Seu arco é seu desenvolvimento durante a história: o quanto ele muda do começo ao fim de uma obra, a forma como ele passa de seu estado inicial A para algum outro estado, B. Estou chamando atenção para isso porque mencionei o arco de “superação” como se fosse o único que existisse, mas na verdade ele é a fundação básica de uma história com final feliz; gostamos dos personagens mais por causa do esforço do que por causa do sucesso, e numa história trágica o arco os leva à decepção, à falha, à lama de seus defeitos, etc. Mas a característica da superação, embora possa não ser o resultado final das ações dos personagens, continua sendo componente de sua motivação para agir: ninguém tem por objetivo ser cada vez pior. E se tiver, ela basicamente quer se superar no quão ruim é.
Superação
Uma das possíveis características de um personagem que se supera é ele ser um underdog – ou seja, o menos favorecido. Nós gostamos de torcer para o Davi contra o Golias. Por isso, aquela questão da dificuldade que acabamos de falar continua valendo: é preciso que sintamos o tamanho de sua desvantagem. E se o personagem em si é muito bom, é preciso dar-lhe uma desvantagem. Se a injustiça dessa “doação” nos faz odiar o vilão ainda mais, melhor ainda. Quem lembra da “batalha final” de Gladiador?
Mas há uma outra questão também: o personagem – underdog ou competidor de mesmo nível – para o qual torcemos vai brilhar à medida que se contrastar com o seu adversário. Quanto melhor for o inimigo (e melhor também enquanto personagem), mais o personagem vai precisar se esforçar para vencê-lo. O Coringa torna o personagem Batman mais interessante, e como o Coringa é extremamente inteligente e efetivo, as vitórias do Batman são muito mais valorizadas por nós. Isso pode parecer tolo, mas muitas vezes o que não funciona numa história e nem percebemos, é que o herói é super bacana, tem um objetivo bem legal e ele tem uma trajetória interessante até conquistá-lo… Mas o inimigo dele não é interessante, ou particularmente poderoso. Talvez o vilão seja só “as circunstâncias” (o que já foi dito, por exemplo, sobre os filmes da série Missão Impossível), e isso não é necessariamente ruim: muitas vezes temos vilões acessórios, secundários, que apenas marcam o ritmo numa história em que o verdadeiro enredo é o personagem principal lidando com uma situação péssima, que o desafia, que exige que ele dê o melhor de si. O antagonismo (ou mesmo agonismo) é de fato a chave.
A dimensão moral e um certo compromisso ético
Uma coisa interessante e que é muito citada em dicas para escrever bons personagens é uma certa dimensão moral: mesmo se o personagem for um babaca, dê-lhe um limite que ele não vá atravessar (o que lhe confere não apenas honra, convertida em respeito por parte do público, como também a impressão de que ele tem um coração, afinal). É importante também que ele tenha opiniões – podem não ser liberais e progressistas, mas que ele as tenha. Mesmo que nós sejamos apáticos e indiferentes em nossas vidas sobre uma série de assuntos, ou que encontremos pessoas assim, você tem que saber que a apatia completa pode cansar grande parte do público; irritá-lo, tornar a narrativa toda mais desinteressante. Isso porque a apatia se relaciona também ao problema da motivação – se alguém não se importa com muita coisa, o que ele na verdade quer? E se seus desejos são apenas egoístas ou fisiológicos, por que eu me importaria com isso? É possível que a superação sobre a qual você queira escrever seja alguém apático aprendendo a se importar com as coisas. Isso é interessante, e há um post muito bacana no Fuck Yeah Character Development falando sobre esse arco específico [inglês]. É importante dizer: não demore muito para tornar o personagem interessante… Ou demore, mas saiba os perigos que isso engendra em termos práticos (leitores abandonando a obra e dando uma estrela de nota no Skoob ou algo assim).
O problema que tenho com a dica da dimensão moral é o seguinte: sim, dê opiniões para os seus personagens. Faça o anti-herói assumidamente fora da lei se pôr em perigo para salvar algumas crianças de algum perigo. Faça um personagem bater o pé no chão em defesa de um princípio e não ceder sua posição. Isso tudo é ótimo. Mas tem que ser orgânico. Tem que vir a partir da caracterização de um personagem como um todo; todo o resto do que ele é e toda sua história tem que contribuir para que ele tenha essas opiniões e atitudes. Mais do que isso, não adicione esses elementos aleatórios de natureza moral para que o público “se identifique com eles”. O público não vai se identificar com nada que parecer forçado anyway, mas a questão é que se preocupar com que o público se identifique com o personagem é um negócio supervalorizado.
Digo isso porque escrever um personagem com a deliberada intenção de que o público mais amplo se identifique com eles acaba em… Bella e Edward. Não são pessoas ou personagens, são cascas: eles têm apenas características muito básicas, apenas o suficiente para que uma porção estatisticamente significativa do público-alvo possa se pôr no lugar deles – e de maneira convincente, já que não há muitos traços de personalidade neles que atrapalhem esse processo de cosplay mental. Bella é a adolescente desajeitada e sem atrativos pela qual um homem perfeito se apaixona, e nada mais. Isso já foi analisado ad nauseum (e de forma muito melhor) por aí na internet, então não insistirei no exemplo.
Mas a identificação é importante. O meu argumento é que o livro, na forma como é [bem] escrito, garante essa identificação não por causa do que há de semelhante e de não-diferente, mas apesar do que há de diferente. De novo: a boa literatura (pombas, a boa arte) nos faz conhecer personagens diferentes de nós com os quais, por causa da literatura, conseguimos nos identificar de alguma forma. E essa é parte da magia e do poder da arte, afinal: expandir nossas mentes. Ao invés de nos prender ao que já conhecemos e ao que já somos, conecta-nos a essa alteridade, a essas formas outras de existência, de pensamento, de ser-no-mundo. A preocupação, a paranoia de fazer com que os leitores se identifiquem, se identifiquem, se identifiquem nos leva aos personagens-casca. O foco no “escrever bem, que a identificação vem” (escrever bem o estilo, a história, e também os personagens), nos dá identificação sem precisar mudar nada nos personagens com esse objetivo em mente.
Em suma, o primeiro método de identificação (personagem-casca) é eficaz, mas eu acho que usá-lo é meio… Triste. Entendo isso como um compromisso ético: se você realmente acha que “mais identificação” do leitor é igual a um personagem melhor… Vá em frente. Faça ele gastar tempo e energia defendendo alguma posição política ou fazendo um ato de incrível moralidade, mesmo que isso pareça meio forçado.
Mas se essas atitudes, contudo, forem bem desenvolvidas, de forma holística, aí temos algo mais legal de se ler.
Desvelando complexidades
Dar motivação, superação e um posicionamento contextual para o seu personagem são as dicas gerais em termos de técnica e teoria literária para que entendamos o que constitui um personagem forte.
Mas isso, obviamente, não é tudo.
O leitor entende a motivação do personagem? Essa é uma motivação boa? O leitor sabe nesse momento que se o personagem não vencer, as consequências serão essas? O personagem está enfrentando (e superando) dificuldades para conseguir o que quer? Está fazendo isso a partir de uma boa razão? Essas e outras perguntas norteadoras podem ser extremamente úteis para refinarmos nosso texto. Mas a criatividade, a sensibilidade de ler e dizer “isto está legal” ou “isto é uma bosta”, são essenciais para escrever personagens bacanas e histórias centradas em seus arcos narrativos.
Como um exemplo final do que quero dizer quando digo que não bastam as fórmulas e as preocupações técnicas, deixo uma tradução rápida de alguns parágrafos do texto “What if your characters don’t want anything?“. Ele mostra só algumas das ramificações de todo esse papo sobre motivação e sobre o que torna um personagem interessante e forte:
Vontades não têm que ser simples ou fáceis de identificar.
Muitos de nós têm desejos complicados e emaranhados ao invés de impulsos simples. Na verdade, quanto mais reais seus personagens forem, menos monomaníacas suas vontades provavelmente serão na maior parte do tempo. Sentimentos múltiplos, desejos conflitantes, e às vezes motivações neuróticas são todas partes da experiência de ser humano.
Seu personagem principal pode desejar uma abstração, como “redenção”. Ou “vingança”. Ou “a aprovação do meu pai”. Pode ser algo impossível, como a aprovação de um pai que na verdade já faleceu. Ou talvez sua personagem queira algo que ela não consegue admitir – até para ela mesma – que quer. Às vezes um desejo é como uma coceira num lugar que o personagem não consegue coçar, ou uma dor irritante com a qual eles não conseguem lidar.
Além disso, as pessoas nem sempre sabem o que querem – até não poderem ter o que querem. E quanto mais difícil for de obter o que não se tem, será mais provável que as pessoas se deem conta de que precisam disso.
E mais, as vontades das pessoas podem evoluir ao longo de uma história. Ou os desejos dos seus personagens podem mudar, ou eles podem se desenvolver e ficar mais claros, ou mais confusos.
E, finalmente, ver as pessoas não conseguirem o que querem é em geral mais interessante. Mesmo no final de uma história. As pessoas que conseguem o que querem são uns babacas, e não conseguimos nos identificar com eles porque na vida raramente conseguimos o que queremos. Então se você tiver que fazer uma escolha entre deixar seu personagem alcançar seu mais querido desejo e arrancar esse desejo dele – é sempre melhor deixar o personagem querendo mais.