No sábado, dia 19, fui com um amigo conferir a exposição “Miró – A força da matéria” no MASC (saiba mais aqui; entrada gratuita, mas preste atenção à questão dos horários), e da mesma forma que podemos nos perguntar o que fazer com a arte (visual / esculturas) moderna e contemporânea, pergunto-me de forma mais circunscrita: o que fazer com esse Miró?
A exposição em si é bacana e gostaria de parabenizar todos os envolvidos; o museu, que é bem organizado e bonito, e o governo do Estado por bancar esse apoio à arte (é bacana que seja de graça). O que não gostei tanto assim foram das obras; não achei nada supremamente espetacular.
Mas a conversa que isso suscita é bacana. Veja, eu entendo a força daquilo que não é verbal; que é abstrato, ou visceral – que é etéreo e parece suprasensível, ou que é justamente muito sensível e tem tudo a ver com nossos humores e calores. Entender não é bem a palavra; a natureza dessas coisas requer que não se entenda-as por completo porque, quando se faz isso, o que se está a fazer é traduzir essas forças em conceitos, e quando elas entram no mundo das palavras e do inteligível já não são o que eram. Então digamos que eu admire e respeite a existência dessas forças. Ainda assim, na prática, da mesma forma que me dou melhor com as crianças à medida que elas começam a “falar palavras de verdade” (e quanto melhor falam, melhor), me dou melhor com arte que trata de mensagens, representações, coisas que passam pelo filtro da consciência e ficam. Sendo assim, eu tenho problemas pra realmente admirar um monte de pingos, riscos, círculos e asteriscos em cima de uma prancha de madeira como se fosse uma coisa muito maravilhosa.
Perguntar o que deveríamos tirar disso, ou o que Miró queria dizer com o que pintava, não me parece proveitoso. Acho que isso sempre significa voltar a tentar delimitar e conceituar a arte em geral, e hierarquizar seus diferentes tipos, objetivos e métodos. Acho que há (e é óbvio que independente do que eu pense é claro que há) espaço para essa arte no mundo; a arte da experiência pura, ou que tenta evocá-la (embora… Será que ela consegue? Um risco qualquer num blank canvas consegue?), ou que talvez dependa precisamente de uma certa confusão do espectador (sente-se a frustração de nunca conseguir ultrapassar a barreira que a obra representa, e assim nunca vamos de fato sentir o que o pintor sentia, por mais que ele tenha querido expressar isso através da obra) ou ainda da tendência humana a procurar por sentido e padrões (como numa brincadeira com nossa húbris cognitiva).
Mais do mesmo, isso que estou dizendo? Talvez. Mas acho que é uma interrogação que não vai acabar tão cedo, e que continuará a ser relevante para quem, como eu (pessoas não tão ligadas às artes visuais, com a exceção do cinema), vê meio que como se pela primeira vez esse tipo de arte. Até porque é um tipo de arte que nos faz questionar: se até uma criança de 5 anos faz isso, por que isso é tão especial e reverenciado? Mas será que uma criança de 5 anos faria isso? Será que há alguma característica na forma como esses artistas “loucos” dispõem suas obras que, sem que saibamos conscientemente, as tornem mais impactantes e interessantes que as coisas que uma criança de 5 anos regular faria – ainda que, na superfície, os elementos visuais acusem grande semelhança?
De minha parte, agradeço o que esse tipo de movimento artístico dos séculos XIX e XX fizeram, inclusive pela escrita: desvincular o julgamento de valor e julgamento estético de preocupações morais e da retratação mais angulada da “realidade” foi um grito de liberdade que nos permite explorar muito mais a conexão entre sentimentos, perspectivas, expressões, comportamentos e filosofias. Esse intercruzamento (trevo sempre engarrafado) é pra mim o principal lócus de construção da obra ficcional contemporânea. Ou, pelo menos, quando a obra se posiciona nesse lócus é que eu costumo achar incrível e interessante.
Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.
E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.
Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?
A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.
Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.
Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:
“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”
Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:
“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “
Vai tentar a poética:
“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”
Vai tentar a perspectiva:
“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”
É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.
Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.
Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.
Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?
Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.
Digamos que amanhã você se torne o Ditador Secreto dos Estados Unidos, obtendo assim total poder sobre o governo, a economia e a cultura em geral – tudo que os hippies chamam de “sistema”. Sua primeira tarefa é não ter sua cabeça guilhotinada por pobretões enraivecidos, o que significa que sua primeira tarefa é na verdade a manutenção da “estabilidade” (ou seja, “manter as coisas mais ou menos do jeito como estão agora”).
Imediatamente você vai perceber que está enfrentando um número interminável de protestos por parte de grupos desconjuntados, que dizem estar sendo tratados injustamente ou estão de alguma forma sendo deixados “de fora” – esse aqui está incomodado porque alguém foi atacado pela polícia; aquele outro exige maiores salários ou coisa parecida. Como lidar com isso? Claro, você poderia esmagar esses movimentos com um punho de ferro, matando, intimidando ou prendendo seus membros mais importantes. Mas isso pode se voltar contra você, transformando-os em mártires e provando, ao mesmo tempo, que eles estavam certos – você viu Star Wars; alguém sempre acha a porta de exaustão.
Não, o que você precisa fazer é ter a maioria do seu lado, contra esses reclamões. Para a sua sorte, o “sistema” vem com uma série de sutis e refinados processos criados para fazer com que as reclamações dos poucos sejam certamente ignoradas pelos muitos. Primeiro, tudo que você tem que fazer é…
Esperar que um deles desrespeite a lei, e então só falar disso
Esse pode ser literalmente o truque mais velho de todos. Eu acho que os poderosos têm feito isso com protestantes e ativistas desde os dias em que ser dilacerado por um mamute era a maior causa de acidentes fatais. Funciona assim:
A) Um certo grupo tem uma reclamação – eles sofrem discriminação, tiveram seus direitos cerceados, tanto faz – mas são uma minoria.
B) Como a maioria não é afetada, eles ignoram em grande medida a situação e não se interessam pelo que está acontecendo com os afetados. A mídia de massa não fala do assunto, porque não dá audiência.
C) Pra chamar a atenção da maioria, o grupo vai se juntar para fazer barulho, bloquear avenidas, etc. Isso força a mídia a cobrir o protesto (já que multidões barulhentas dão bons fotos e vídeos) e cobrir o assunto (já que parte da cobertura jornalística do protesto envolve a explicação sobre o quê está sendo reivindicado). Nos Estados Unidos vemos essa tática ser usada por todo mundo, desde veteranos de guerra empobrecidos e mulheres em busca do direito de voto até os protestos quanto à violência policial de 2014.
D) Para conter isso, tudo que você precisa fazer é simplesmente esperar um membro do grupo ativista – qualquer membro – cometer um crime. Aí a mídia vai focar o crime, porque tumultos e vidros quebrados dão fotos e vídeos ainda melhores que protestos. A maioria da população – que teme, acima de tudo, o crime e a instabilidade – vai provavelmente associar o movimento com a violência a partir dali.
E) Você, em sua missão para evitar que o sistema mude, pode agora reenquadrar o problema não como uma questão de opressores contra oprimidos, mas de cidadãos contra bandidos – apoiar a causa deles significa apoiar a violência. A TV vai estar cheia de imagens de lojas de conveniências em chamas e vitrines furtadas, e nesse ponto a maioria vai dizer, com um sorriso esnobe, “eu nunca protestaria contra a opressão governamental destruindo a propriedade privada de alguém!”.
“Quer dizer, por que eles não podem protestar de acordo com a lei? Sabe, tipo o Martin Luther King. É por isso que todo mundo o respeitava naquela época!”.
Agora, perceba que nem as pessoas repetindo essas coisas vão acreditar nelas de verdade – a cultura pop dos Estados Unidos e a história da humanidade estão ambas cheias de heróis que desrespeitaram as leis e destruíram um monte de coisas quando o sistema não funcionava para eles (você sabe que o Batman não tem uma licença para pilotar aquele avião). Até hoje nós aplaudimos quando povos oprimidos de outros países fazem isso. Então quando alguém diz que devemos ignorar um movimento porque eles são uma “gangue” e um amigo comenta que o mesmo poderia ser dito dos fundadores da República dos Estados Unidos, vai haver uma troca imediata de marcha. “É sério que você está comparando os manifestantes de Ferguson com aqueles corajosos heróis que foram para a cadeia, como o Thomas Paine? Eles estavam lutando por liberdade!”.
Em outras palavras, eles vão rapidamente admitir que a legalidade das táticas na verdade não tem qualquer relação com o fato de uma causa ser justa ou não – tanto veteranos de guerra, que tiveram seus membros dilacerados, quanto neonazistas, foram jogados na cadeia por protestos que acabaram mal. Membros indomáveis de um grupo não tornam a causa automaticamente errada; tampouco a tornam automaticamente certa. Todos vão concordar que isso é verdadeiro e lógico, mas aí, cinco minutos depois, vão deixar de lado toda essa lógica se um único carro de polícia estiver pegando fogo. O índice de sucesso desta técnica é muito alto – hoje, a única coisa que a maioria das pessoas na China lembra do massacre de Tiananmen Square é que ele restaurou a estabilidade e a ordem.
“Mas já que os Estados Unidos foram construídos a partir de uma revolução, não seria provável que a maioria das pessoas automaticamente ficasse do lado dos menos favorecidos, mesmo que eles pisem um pouco fora da linha?” – Isso é certamente um perigo, e por isso o próximo passo é…
Convencer a maioria privilegiada de que eles são os oprimidos
Ano passado um investidor bilionário disse que a crítica aos ricos hoje é equivalente à perseguição aos judeus durante o holocausto. Não, ele não está tendo um infarto; ele está sob a influência de uma das mais poderosas técnicas de que o sistema dispõe. Para fazer com que a maioria ignore as reclamações de qualquer grupo em desvantagem, simplesmente insista que o grupo em desvantagem é quem realmente tem o poder, e que a maioria poderosa é, assim, o grupo em real desvantagem. Isso geralmente envolve os seguintes passos:
A) Encontre um exemplo de um membro poderoso do grupo em desvantagem e exagere seu poder.
B) Diga ou faça coisas incrivelmente ofensivas até que a vítima perca a postura, e então a acuse de censura / opressão.
C) Acuse a vítima de gostar de sua vitimização e / ou de fazer o que ela faz só pela publicidade. Diga que ela estava pedindo por aquilo, e que ela foi a causa de seu próprio problema desde o início.
Vou dar alguns exemplos da vida real, e acredite: uma vez que você entender essa lógica, vai começar a vê-la em todo lugar.
Digamos que seu país tenha um problema de pobreza que está se agravando rapidamente, e os empobrecidos estão começando a fazer barulho. O passo A requer que você insista que aqueles que estão mais no fundo do poço – aqueles que dependem da assistência do governo para comprar comida – são na verdade ricos. Isso pode parecer uma tarefa impossível, se não ridícula, mas tudo que você precisa é uma nota fiscal alterada no Photoshop mostrando uma enorme quantia de subsídio governamental para alimentação sendo gasta com bebida alcoólica, e a maioria vai compartilhar isso no Facebook centenas de milhares de vezes. Ou então, encontre um vídeo de um mendigo que foi pego dirigindo um carro de luxo, e isso vai sair nas manchetes como o exemplo típico de uma pessoa pobre. Depois vem o passo B: no momento em que alguém pegar você na mentira, vá para o argumento da censura ao dizer que você é um mártir atacado pelos “politicamente corretos”. E aí vá para o passo C, no qual você diz que os ativistas que estão apoiando as vítimas de seu ataque só estão fazendo isso por dinheiro ou atenção.
É só isso, na verdade. Três passos simples – exagere o poder da vítima para levar o público para o seu lado, faça com que a vítima se irrite para que você possa se declarar como vítima, insista que todas as reclamações das vítimas contêm segundas intenções. Pronto. Acabou.
E só para deixar claro, a narrativa acima – de que todos que dizem ser pobres são secretamente ricos – é novamente algo em que ninguém acredita. Ofereça a qualquer um que diga isso a chance de viver nos projetos de moradia pública, ou nos parques de trailers onde se intocam estas secretamente ricas rainhas do seguro-desemprego, e tudo que você vai ver é uma nuvem de poeira e uma minúscula silhueta escapulindo em direção ao horizonte. Mas você não precisa que a maioria das pessoas acredite mesmo nisso, apenas que a maioria “acredite” nisso.
E é por isso que isso funciona com qualquer grupo, não importa o quão ridiculamente a dinâmica do poder os favoreça. A indústria do petróleo tem um lucro anual de 200 bilhões de dólares. Se você quer que eles sejam retratados como os oprimidos, apenas A) fale sobre como esses pobres rapazes são constantemente atacados pelo poderosíssimo lobby ambiental…
… e, sério, não tenha medo de usar palavras como “bullying”, mesmo ao falar de quem literalmente constitui um dos grupos mais poderosos e ricos da história da humanidade. Uma citação de verdade: “Se alguém estava sofrendo bullying aqui, era a Chevron. Era quase impossível para uma empresa de petróleo ser ouvida de forma justa num mundo que sofreu uma lavagem cerebral ambientalista”. É claro que a parte sobre ser ouvido de forma justa já cobre o passo B, que é a acusação de censura e o lamento relativo à vitimização. Então, no passo C, você fala sobre como os ambientalistas só pensam o que pensam pelo dinheiro (nesse caso, Al Gore) e pronto – logo você terá várias pessoas olhando para a subida nos preços da gasolina e dizendo “Valeu, Greenpeace”.
Dez anos antes, eles fizeram isso com outra desenvolvedora chamada Kathy Sierra, seguindo exatamente o mesmo padrão. Essa jogada nunca muda porque nunca para de funcionar – com esses três simples passos você pode fazer com que multidões façam bullying com quem quer que seja em seu nome, e ao mesmo tempo se proclamem heróis. Afinal de contas, qual tática seria radical demais quando você está lutando contra um gigante invencível que está tentando te intimidar e silenciar todas as críticas em troca de fama e grana?
Concentre-se em suas reclamações mais triviais (e seus membros menos simpáticos)
Uma vantagem do seu papel como Ditador Secreto é que seus cidadãos estão cheios de informação até o pescoço. Notícias voam na direção deles por todos os lados, com muitas e muitas vozes exigindo atenção ou atitudes diariamente. Cada uma dessas pessoas bem intencionadas têm muitos problemas em suas próprias vidas, então elas têm que escolher cuidadosamente com quais “problemas” vão se preocupar e quais vão ignorar. Muitas delas vão tomar essa decisão bem rapidamente, com base na informação que estiver mais à mão. O seu trabalho, então, é garantir que elas sejam expostas apenas aos exemplos mais ridículos ou esquisitos do assunto ou grupo que você quer que desapareça.
O que quer dizer que você provavelmente vai querer se basear nos canais de notícias de TV a cabo.
Só para ser equilibrado (já que eu mencionei o GamerGate acima), deixe-me pegar um exemplo recente em que isso foi utilizado contra ativistas dos direitos dos homens. Houve um pequeno furor na internet quando o filme Mad Max: Estrada da Fúria foi lançado, resultando em manchetes como “Mad Max: Estrada da Fúria atrai a ira de ativistas dos direitos dos homens”, com artigos falando sobre como “a comunidade” dos tipos que defendem os direitos dos homens estavam praticamente pegando em armas contra o filme, organizando um boicote por causa do fato de que ele continha uma mensagem supostamente feminista junto à torrente de pessoas deformadas sendo aniquiladas em batidas de carros (dica: o Mad Max não é o personagem principal).
Eu ri quando eu vi essas manchetes e retuitei os artigos. Haha, esses merdinhas dos direitos dos homens ficam loucos por qualquer coisa! Mas alguns dias depois, um pouquinho de pesquisa revelou que, apesar do fato de que essas manchetes deixavam implícito um grande movimento nacional, o “boicote” foi na verdade um único maluco reclamando sobre o filme num site de direitos dos homens nada representativo. O homem em questão não é proeminente no movimento sob qualquer perspectiva – ele gasta seu tempo postando vídeos no Youtube que raramente passam das 2000 visualizações. Então por que a blogosfera disseminou suas baboseiras como se ele fosse um porta-voz importante do movimento? Porque isso fazia o movimento parecer ridículo.
Veja, ao ressaltar a reclamação mais boba de um grupo, você imuniza o público contra qualquer reclamação real que possa vir mais tarde, criando uma reação rápida de descarte a qualquer hora que, digamos, um homem reclama de forma razoável sobre como até os homens podem ser prejudicados por papeis de gênero ou quando outro tem uma história legitimamente terrível para contar. “Ha”, as pessoas vão dizer, “esses são os mesmos caras que ficaram chorando porque o último Mad Max teve uma mulher no papel principal!”. Não, não são os mesmos caras, a não ser que estejamos literalmente falando de Aaron Clarey. “Quem?”. Pois é.
Da mesma forma, há muitos grupos por aí cuidando do bem-estar dos animais, mas eu aposto que o único que você lembra é o PETA, porque são eles que fazem todo tipo de idiotice como insistir que as pessoas chamem os peixes de “gatinhos do mar” e protestar pelados, o que não ajuda ninguém. Dessa forma, quando alguém falar sobre coisas realmente horríveis que indústrias bilionárias fazem (como confinamento intenso ou pet shops vendendo animais criados em confinamentos cruéis), você vai rolar seus olhos e dizer “são provavelmente aqueles malucos do PETA de novo!”.
Como eles são ridículos, são eles que recebem toda a cobertura midiática e se tornam o rosto do movimento. E, como resultado, nenhuma mudança significativa vai acontecer.
Mais uma vez eu não preciso ficar falando sobre como isso é ilógico – a existência de uma reclamação frívola não automaticamente significa que não há outras, mais sérias, a serem encontradas na mesma direção. Uma pessoa que sofre de câncer ainda pode reclamar que seu programa preferido de TV foi cancelado; isso não significa que o câncer dela não deve ser grande coisa e por isso não tem problema nenhum não ser tratado.
Além disso, perceba que estamos sempre tornando a questão pessoal – como visto acima, você não fala sobre aquecimento global, você fala sobre Al Gore. Você não fala sobre racismo sistêmico, fala sobre a sonegação fiscal de Al Sharpton. Você não fala sobre desigualdade social, fala sobre como todos no Occupy Wall Street tinham iPhones.
Agora, parte do problema é que esses ativistas vão apelar para a simpatia da maioria do público, e isso é uma coisa poderosa considerando que a maioria de nós gosta de ver em si uma pessoa legal e bacana. Para contra-atacar isso, você simplesmente…
Joga um grupo em desvantagem contra outro (e somente um pode “ganhar”)
Como já falamos acima, a pessoa mediana tem pouco espaço no cérebro, e tempo no dia, para dedicar a “problemas” com os quais eles precisam se preocupar. Empatia requer energia, e temos uma quantidade finita para gastar. Bem, há uma maneira sutil de usar isso em sua vantagem: deixar implícito que de fato existe pouca empatia no mundo e que prestar atenção a uma reclamação vai de alguma forma diminuir a atenção de outra. Isso faz com que você possa jogar um grupo de vítimas contra outro, fazendo com que eles se matem por quinhões de atenção.
Veja, isso significa que devemos nos focar apenas no problema mais sério entre dois, e coletivamente as vítimas de estupro são mais numerosas e ficam com consequências muito piores que pessoas falsamente acusadas de estupro. Expressar preocupação com estes últimos deve certamente indicar segundas intenções! A ideia de que na realidade as duas coisas têm um inimigo em comum – isso é, uma cultura que não faz ideia de como lidar com ataques sexuais – é deixada de lado. Sabe, mais ou menos como o racista pobre no parque de trailers e o negro pobre da cidade nunca poderiam considerar que ambos estão sendo desprivilegiados pelo mesmo sistema econômico, apenas de formas diferentes. “O quê?”, cada um deles vai dizer, “você está comparando o meu sofrimento com o dele?“
Se você conseguir convencê-los de que eles estão competindo, eles vão gastar todas as energias odiando uns aos outros, e não tentando consertar o sistema. O cara no parque de trailers não culpa os banqueiros por sua economia, ele culpa minorias e imigrantes. Apenas um de nós pode ser a verdadeira vítima aqui, caramba!
Ou, ainda mais estranho, você pode fazer com que as pessoas se recusem a simpatizar com a causa ao dar-lhes, em vez disso, uma que na verdade não existe – geralmente reativando uma versão que existia no passado. Diga que o feminismo “de verdade” era o das mulheres nos tempos antigos, lutando pelo sufrágio, mas que o “novo” feminismo é só sobre bobagem (veja, porque isso quer dizer que você totalmente estaria do lado das feministas no passado). Ou, ao mesmo tempo em que desacredita toda e qualquer causa dos negros, reitere que você estaria marchando bem ao lado de Martin Luther King se você estivesse lá nos anos 60. Sabe, quando o movimento ainda era respeitável. “Afinal, como é que essa gente faz tanto barulho por causa de índices de aprisionamento e educação sem qualidade quando linchamentos eram comuns antigamente? Então olha, eu vou ficar de fora dessa, mas se você achar uma máquina do tempo pode contar comigo que eu vou estar bem lá do seu lado, amigão!”.
É claro que você poderia usar essa mesma lógica para diminuir literalmente qualquer reclamação feita por qualquer pessoa no Planeta Terra, para sempre, desde que ela não seja a pessoa que mais está sofrendo no mundo (“Bem, eu conheço um cara que ficou com o pau preso num moedor de café duas vezes, e ele não faltou ao trabalho por causa disso!”). Mas isso funciona porque o seu público quer uma desculpa para não ter que ouvir sobre esses problemas, e essa é uma forma de eles fazerem isso e ainda sentirem que são boas pessoas. “Não é que eu não tenha empatia por nada! É só que eu reservo os meus sentimentos para coisas que eu não posso resolver”.
Diga que qualquer mudança é o fim do mundo
Essa é a falácia do “ame-o ou deixe-o”, e nossa, como ela funciona. Como Ditador Secreto com a tarefa de se certificar de que nenhuma mudança significativa ocorra, essa é a sua carta na manga.
Lembre-se, seres humanos são naturalmente avessos ao risco – as pessoas permanecem em trabalhos e relacionamentos ruins e mantém hábitos destrutivos por medo de que tentativas de consertar as coisas vão acabar pondo tudo a perder. É por isso que muitas pessoas têm medo de tomar anti-depressivos (“Claro, vai fazer com que a depressão suma, mas e se eu também perder as partes legais e diferentes da minha personalidade?”). Então, para poder usar esse medo a seu favor, tudo que você tem a fazer é retratar qualquer crítica ao sistema atual como um ataque a tudo que mais amamos na vida:
É um truque bem simples – só ignore qualquer possibilidade que envolva a simples melhoria do sistema atual e afirme que para que nos beneficiemos dele precisamos aceitar todos os aspectos do status quo, incluindo as partes que destroem vidas. Não tem problema se você não conseguir apontar por que as melhorias são impossíveis, uma vez que as partes que processam medo no cérebro são inerentemente irracionais. “Apoiadores do casamento gay querem secretamente destruir a instituição do casamento? Claro, faz todo sentido para mim!”.
E agora você consegue entender como isso pode ser combinado com as técnicas acima. A violência durante os protestos apenas prova que o que essas pessoas realmente querem é a destruição de toda sociedade civilizada! E você, a maioria poderosa, é na verdade parte da corajosa última linha de defesa de tudo que é bom contra essas hordas de malucos irracionais! E por aí vai.
Lembre-se, é isso que as pessoas querem acreditar (ou “acreditar”). É por isso que, no mundo real, não é necessário um Ditador Secreto para fazer tudo isso acontecer. Com um empurrãozinho, as pessoas – mesmo as pessoas boas – vão fazer tudo isso sozinhas. É só olhar à sua volta.
Esse livro me arrebatou por completo. Me deixou em tal estado de ânimo que, despedaçado, não consegui escrever uma resenha coerente depois dele – apenas uma assim, aos pedaços, observando de bocado em bocado essa obra prima contemporânea.
-><-
Ele é um livro tão incrível que seus defeitos lhe parecem apenas relatividades: coisas que, por razões pessoais apenas, preferências, um ou outro leitor não gostaria. Em nenhuma obra de arte pode-se aspirar à perfeição, quanto mais universal; o máximo que se pode esperar é fazer algo que mesmo os detratores vão admitir que, para um número significativo de pessoas, os defeitos identificados tornar-se-iam até qualidades.
-><-
É que acontece, por exemplo, com seu gigantismo. É verdade que depois da página 450 você começa a se perguntar se era realmente necessário conhecer mais sobre a linhagem paterna de Walter? É. Verdade que não tem mais muita certeza se vai compensar, mais à frente, prestar atenção em todos os detalhes e todos os desvios que o narrador, seja ele quem for no momento, faz? É. Mas compensa, viu?
-><-
O estilo dele, ou pelo menos o quanto disso pôde ser ainda transferido para sua tradução ao português, é muito bom. É muito, muito bom.
-><-
O romance de Patty e Walter, no fim das contas, é o mais lindo de todos os tempos. Eis o poder de uma narrativa biográfica, de personagens atormentados, e de um tipo de amor que raramente se vê hoje em dia: um trapo velho que se faz à mão com muita dificuldade e imperícia, não roupa bonita que se escolhe num baile da corte; fonte insuspeita de nossas decisões mais estranhas.
-><-
O que achei esquisito – e o único ponto que me põe numa posição estranha em relação ao livro – é 1) o grau de autoconsciência que os personagens exibem; e 2) o quanto isso pode realmente ser atribuído a eles e o quanto vem simplesmente do narrador, sem passar por suas cabeças.
É que como temos um narrador em terceira pessoa que “mergulha” nas mentes dos personagens mais frontais, às vezes é difícil saber (impossível) quando o personagem realmente está pensando algo ou não. No caso das autobiografias de Patty, fica claro – o que corrobora o motivo da estranheza.
O motivo, é preciso explicar melhor, é o seguinte: em geral um personagem tem uma característica, mesmo que oculta, aí ele age de acordo com ela, e então ele percebe que tem a característica (ou alguém percebe isso por ele, e lhe diz). O livro é muito mais aberto do que isso, dizendo para o leitor que Patty é competitiva muito antes de ter qualquer chance de mostrar que ela o seja. E ela fica pensando nisso tudo muito antes que isso seja de alguma forma explícito ou verbalizado, e sou um pouco cético quanto a essa presença de espírito autorreflexiva que todos ali retratados possuem.
De outro modo, talvez isso seja apenas um recurso literário para que várias coisas funcionem dentro da narrativa, e nesse sentido tudo vai bem, mesmo a partir daí. Ou quase: mesmo depois de duas ou três exposições, ainda não consegui entender exatamente qual é o problema de Joey com Patty. O problema, é claro, é que eu consegui entender o problema se todas as formas desnecessárias (a intelectual – ela mimou ele demais – e a poética – ele tem uma ‘parede’ sentimental posta contra ela ou algo assim), mas não na única que importa: essa lógica, no fim das contas, nunca entrou no meu coração e se naturalizou como algo perfeitamente compreensível. Os sentimentos de Patty, de Katz, de Walter, de Connie, todos bastante familiares no momento em que vão sendo lindamente tecidos na trama do livro. Até os de Joey em relação ao pai – perfeitamente compreensíveis. Mas os de Joey para com Patty vão me fazer coçar a cabeça sempre que me lembrar deles.
-><-
Algo definitivamente cativou imaginação quando você se vê conectando músicas conhecidas à nova experiência literária. No meu caso, o cover de Parachute por parte de Kawehi me lembrou muito Connie e Joey; e a música Damn Regret, do Red Jumpsuit Apparatus, me faz lembrar do livro todo.
“Reality is inherently complex; the simple never leaves the realm of the ideal, never arrives at the concrete.”
– Pierre-Joseph Proudhon
Eu estou numa cruzada. Às vezes isso me proporciona boas conversas, e às vezes me transforma num chato que se apega aos detalhes. Mas a verdade é que o que eu faço é parte decisão, parte reflexão e parte personalidade: sinto que é importante dizer, que é honesto dizer, e que é tipicamente nerd dizer, que o mundo simplesmente não é simples.
Isso pode parecer ponto pacífico, daqueles que faz o senhor que beberica bebida no bar em plena tarde de segunda-feira balançar a cabeça em silenciosa concordância. Mas a verdade é que na forma como experimentamos o mundo, adoramos a simplicidade. Ela é quase uma predisposição evolutiva: quanto mais pudermos “processar” sobre o mundo com o menor gasto de atenção, melhor – e assim “teorias de tudo” são tão atraentes. A partir de um único princípio universal, deriva-se e compreende-se tudo.
Desconfio de (teorias de) tudo. Qualquer coisa que se apresente simples demais, de categorias a acontecimentos, merece minha repulsa instintiva, uma coisa do pâncreas mesmo, que sobe a garganta quase como uma vergonha alheia, ou um orgulho arrogante. Desconfio, exijo provas, desafio: a quem me diz que o mundo é preto e branco, tenho uma vontade louca de mostrar a imensidão colorida que nos rodeia e nos afoga. Acompanhar discussões de facebook é como navegar pelo arco íris, torcendo para que quem tenha dado a última palavra não seja a voz da monocromática e inconsequente simplificação do que quer que esteja sendo debatido.
Há óbvias vantagens para a simplificação. Ela é didática; é bela. Constrói pontes, é uma base poderosa, quiçá imprescindível, para amplos acordos, e enquanto ferramenta muitas vezes é o começo de um caminho que possa ampliar ainda mais nosso entendimento sobre a complexidade intrínseca a um tema. Porque sim, tudo é complexo: temos um certo asco ao difícil num mundo tão cansativo, e ao chato num mundo tão burocrático, mas difícil não é necessariamente complexo e complexo não é obrigatoriamente chato.
Mas pode se tornar, a depender de quem fala do quê; simplicidade pode ser feia também. É a estratégia universal para reduzir e escrachar; desumaniza uma ideia e rebaixa um humano. Subestima. Revela valores, porque não dá pra ver a complexidade de tudo – precisaríamos de vida (e disposição) eterna para tal tarefa – de modo que para ser capaz de entender, usar, curtir, distinguir, desfrutar e finalmente abraçar a complexidade, é preciso a paixão que nos dá foco e decisão; o sentimento que anima o nerd. O nerd é aquele cuja paixão por um tema o impulsiona para além da simplicidade. Enquanto muitos vêem Star Wars como aquela ficção em que acontece A e B, o nerd conhece detalhes, backstage e universo estendido. Enquanto muitos vêem arquitetura de uma forma abstrata e intuitiva, o nerd conhece a história da construção do Empire State Building. Enquanto uns lembram de Newton, outros percorrem as estrelas em busca de respostas. Enquanto uns sabem que “o homem veio do macaco”, outros ficam a vontade com as lacunas do conhecimento sobre a história da evolução das espécies.
Eu gosto da complexidade e sou seu tiete. Sou um nerd quanto à ficção e ciências sociais – e também filosofia, talvez a razão pela qual mesmo sem profundidade, procuro pelo menos me aproximar de qualquer assunto esperando encontrar complexidade e tentando, assim, aproveitar o calor suave e inodoramente humano de sua manifestação gloriosa.
É muito ruim advogar que o mundo seria melhor se mais pessoas fizessem o mesmo?
Das obras de arte escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando amores. Dos nossos olhos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando preconceitos. É de preconceito e amor que são feitas as garras que nos arrancam os olhos, desnudam o ser, provocam conflitos. Dos conflitos escorrem mundos. Dos mundos escorregamos, levando um ser transformado, embebido em heroísmo, que se junta às milhões de faces que carregam nossos olhos.
“No pensamento do eterno retorno somos ensinados que o momento não pode ser separado do devir, ou seja, de tudo que foi e tudo que tornou o momento o que ele é. Portanto, ao desejar o momento também desejamos tudo o que levou até ele. Isso não significa que alguém simplesmente aceita, através de algum tipo de confiante, porém cego, fatalismo, qualquer coisa que exista porque já existiu, porque tem um passado. Afirmação não significa aceitação desprovida de crítica. O grande desafio que Nietzsche enfrenta é como ensinar a redenção através do ensinamento de que o desejo precisa aprender a desejar o impossível – tudo o que “já foi”. A redenção do desejo é obtida quando o desejo aprende que desejar o passado só é possível quando se deseja o futuro, ou seja, que a redenção do passado encontra-se no desejo criativo do futuro. Desejar o passado torna-se, assim, um ato constituído pelo ato de um novo desejo criativo. Tal desejo deve existir não como um sacrifício do presente em nome do futuro – esse seria o supremo ato de ressentimento e vingança – mas dentro do inocente momento que sempre fica à frente no futuro, garantindo a chegada do novo e do único. Redenção é apenas possível nos termos da vinda do futuro, onde o novo é criado daquilo que é velho; daquilo que já foi.”
Se tem uma coisa que adoro (e não sabia) é ser surpreendido por um livro clássico: digo, todo mundo já ouviu falar do Pequeno Príncipe. E quando a gente ouve falar demais em alguma coisa temos a impressão de saber muito sobre aquilo e, mesmo que eu não fosse capaz de fazer pra ninguém um resumo da obra, achava que já tinha uma noção do que me esperava. Mas não! A narrativa surpreendeu, e o que eu achava que era um prefácio acabou tornando-se silenciosa introdução. Well played, Exupéry, well played.
Que livro mais encantador! É muito, muito legal – achei que fosse cheio de “lições de moral” (e, de certa forma, é), mas não é de forma alguma enfadonho ou bobo, mesmo nas partes mais melosas. No meio de sua fantasia descompromissada, de traços fofos – das aquarelas às letras – dá para se emocionar sem deixar de rir. Nem de pensar.
O primeiro detalhe que me surpreendeu foi a hostilidade (leve, claro) com os baobás. É que na pesquisa para o livro conheci as árvores e, devo dizer, são impressionantes! Tadinhas, seu Exupéry, por que tanta raiva em relação a elas? Saiba que no deserto (tudo bem, não cresce no deserto do Saara, mas mesmo assim) teriam sido fonte fácil de água para você. Teria sido uma ÓTIMA inserção na história – mas não se pode ter tudo, não é?
Negócio legal do livro clássico também é que você fica procurando o tempo todo pelo “momento” famoso; é como saber que alguém vai tentar te assustar e você fica imaginando a cada esquina quando vai acontecer. Ou como ver Matrix e ficar esperando pela hora que Neo para as balas com a mão, ou ver Titanic e esperar pela hora… E agora, qual é a cena mais icônica? De qualquer forma, o que foi legal de refletir foi justamente a relação entre o famoso momento do “cativar” (que foi mais longo do que eu imaginava) e a forma como vivemos em sociedade (em oposição, talvez, a ‘em comunidade’?).
Porque cativar é criar laços – e outra coisa que a leitura de verdade desse livro me proporcionou é clareamento quanto a isso. Eu sempre fui um pouco ranzinza quanto a essa frase feita (tu és responsável por quem cativas, etc) – ora, pensava eu, cativar é criar um afeto, mas eu também não sou culpado se alguém se afeiçoa a mim. Tira essa responsabilidade de mim! Tira!
Mas a verdade é que esse é um posicionamento ético consistente com um ser-no-mundo que vivencia a empatia; que percebe que vive necessariamente em conjunto com outros seres humanos tão merecedores de carinho e atenção quanto qualquer outro. Veja, a responsabilidade é algo grande – ainda mais se for por alguém. Podemos não sentir dessa forma o tempo todo, mas às vezes podemos perceber isso (especialmente, e isso é triste, quando falhamos nessa responsabilidade). Então dá para ver o caminho que nós, avessos ao apego comunitário, trilhamos: eu não quero ser responsável por ninguém. Portanto, não posso concordar que essa criação de laços me faça responsável. Em último caso até evitamos a construção de laços; é mais fácil assim, que nem nos justificarmos teoricamente precisamos.
Temos sim responsabilidade. E isso dá medo. De certa forma podemos até ter pena dos personagens tão julgados pelo Pequeno Príncipe: todos à volta ou com a impossibilidade de criar laços ou com mecanismos para lidar com essa responsabilidade: o homem de negócios, o bêbado (e achei meio cruel zombar de um dependente químico dessa forma; não lhe ocorreu perguntar por que bebia? Foi a única parte que achei verdadeiramente triste, tanto na superfície do papel como por detrás dele), o rei, o vaidoso…
E aí chegamos à política, afinal de contas: a criação dos laços nos dota de responsabilidades sim, mas deveríamos mesmo querer criar laços (ou nos sentir enlaçados) com mais de 200 milhões de pessoas? Não é essa – se esses laços são a condição para uma virada cultural que nos faça sentir essa responsabilidade pelo rumo do país – uma expectativa nada razoável? Derrida reclama que Rousseau prioriza a fala à escrita quando repete a hierarquia metafísica básica da nossa cosmologia ocidental, mas Rousseau tinha sim um pouco de razão ao dizer que de fato as comunidades menores é que são boas, rapaz – quer dizer, não só ele: de Montesquieu a qualquer teórico anarquista vemos isso. Ademais, de que serve (para além da utilidade militar mesmo, coisa de “gente grande”, pra usar o linguajar do livro) nossa preocupação com a responsabilidade nacional se o máximo que isso acarreta é a influência que pessoas do Rio Grande do Sul exercem sobre outras, do Rio Grande do Norte, e vice-versa, sem nunca terem se falado, sem nunca terem se cativado? Não quer dizer que Derrida esteja errado em querer reabilitar a escritura, e o trabalho dele é essencial, mas… Nesse ponto Rousseau não estava idealizando nada não. Estava era bem lúcido.
Por outro lado, essa pode ser só mais uma vontade de tirar de nós a responsabilidade – já vemos isso ser feito tantas e tantas vezes, não é mesmo? Todas as vezes que nossos flagelos sociais são relegados à delegacia isso é posto em marcha: temos que prender, matar, execrar, etc. Somos um pouquinho esse Príncipe, essa figura da nobreza que, mesmo que tenha se arrependido depois (acontecerá isso frequentemente entre nós?) abandonou a Rosa por causa de seus defeitos; que julgou aqueles que não estavam prontos para os laços, sem querer se envolver muito com eles, e foi embora. Só se quer ter responsabilidade com quem não precisa de cuidado: deseja-se que sobre só gente que mereça ser cativado, sem se importar (de novo, tira essa responsabilidade de mim!) com toda a conjuntura estrutural que leva a desigualdades, injustiças, etc. Mas, por outro lado, qual é o limite? Temos que nos deixar cativar só pelos brasileiros, ou pelo mundo todo? Ou só mesmo por aqueles próximos de nós (que é o que dá pra fazer), e o resto que se exploda, de modo que se todo mundo se tornasse esse Príncipe da noite para o dia mesmo assim não alcançaríamos a paz na Terra? A atitude adulta, ao invés de própria de um infante de classes privilegiadas, não seria assumir a responsabilidade de combater a injustiça e o sofrimento, especialmente o estrutural, onde quer que ele se encontre, ao invés de tornar-se responsável apenas por aquilo que se cativa?
Ou não?
Outras coisinhas:
Me preocupa um pouco uma certa preocupação com o “ser único”. O autor-narrador vai ser o único que terá “estrelas que sabem rir”. Mas se ele não fosse o único, isso mudaria de alguma maneira o que ele sentiria? Digo, se houvesse outro sentindo essa conexão também, com outras estrelas? Cada um tem que ter a sua relação única com algo especial, pelo que entendi; mas compartilhar essa fonte de felicidade não é possível, ou ela só existe enquanto há exclusividade?
Aquele rei pode ser visto sob a ótica da antropologia anarquista de Graeber / ou dos trabalhos de Pierre Clastres e, ao mesmo tempo, de um aforismo muito bom de Nietzsche, o número 124 do livro Aurora. O cara manda, manda, manda, mas não pode ser obedecido – porque não tem, é claro, um aparelho coercitivo para fazer valer suas decisões. Aliás, é bom mesmo que o Príncipe não tenha dado muita bola para ele, porque toda essa conversinha de que o Rei tem direito de mandar porque manda com sabedoria, porque não exige de ninguém mais do que a pessoa pode dar, etc, é uma bela de uma bosta. Ah, e quanto a Nietzsche, aqui vai o que ele tinha a dizer:
O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?
Em suma, é um livro super recomendado. Não deixe de ler achando que é uma história manjada ou infantil. É mais complexa do que parece – ainda que seja, talvez, por sua simplicidade que ela tanto nos cative.
O vídeo trata, na verdade, de macacos. Robert Sapolsky, que o estrela, é um cientista que estudou babuínos dentro das áreas de neurociência e endocrinologia (para citar algumas), por mais de vinte anos. Ele diz, na verdade, que nem gosta dos babuínos – diz que são horríveis uns com os outros. Traidores, violentos, agressivos, vivem sob uma hierarquia sombria que leva a muitas desavenças e a muita tensão social, o que significa (como ele pôde comprovar in loco) altos níveis de hormônios de stress nos macacos – especialmente, é claro, naqueles que estão nos níveis mais baixos da hierarquia.
Só que algo de interessante (cientificamente falando) aconteceu: um dia o grupo de babuínos que ele estudava comeu carne contaminada. Boa parte da população do grupo, especialmente masculina, foi dizimada. Só que, e aqui vem o interessante: quem costuma comer primeiro são justamente os mais fortes, do topo da hierarquia (os que conquistaram com sangue e suor aquelas vagas na pirâmide). Isto é, os que sobraram no grupo foram justamente os mais pacíficos, os macacos alocados nas escalas mais baixas da hierarquia.
A reconstrução daquele grupo foi afetada profundamente por isso: as relações sociais de antes não foram reconstruídas da mesma forma. Na verdade o grupo se organizou de forma muito menos violenta, substituindo toda a tensão social por mais momentos de afinidade e congregação.
Agora, isso nos diz duas coisas: por um lado, a existência de cultura entre os babuínos. Obviamente uma que não se manifesta da mesma forma que a nossa, mas veja bem: entre os babuínos, a prática comum é que os machos, ao atingirem a maturidade, migrem para outros grupos. Os novos machos que chegaram nesse grupo não trouxeram de fora para dentro a violência dos grupos nos quais cresceram: pelo contrário, adaptaram-se a vida diferente. Para além disso, constatamos também que esse comportamento não está “hardwired” no DNA, ou seja, não está pré-determinado, surgindo a partir de todo um contexto social.
Por outro lado, será que isso é capaz de nos dizer alguma coisa sobre nós mesmos? Será que não conseguimos arranjar uma organização social que prescinda da hierarquia, gerando um tipo completamente diferente de sociedade para nós (uma melhor, com menos stress e mais amor, por favor, por que não?)? David Graeber pensa que sim; Louis Dumont diria que não.
Mais do que isso, acho que a pergunta é: podemos aplicar as observações sobre os animais à nossa sociedade? Na minha opinião, a única forma de acreditarmos que não podemos é continuar insistindo nessa separação absurda entre animais e humanos – não que sejamos completamente iguais, mas o grosso de nossa cultura institui uma espécie de “singularidade” nos humanos (somos simplesmente melhores) que escapou na transição de uma visão bíblica de origem da humanidade para uma visão científica (dizem os autores desse livro que todo psicólogo formado nos EUA tenta responder a uma pergunta sobre o que separa os humanos dos animais, afinal). Do mesmo modo que é triste ver Marshall Sahlins falando sobre “gene egoísta” de modo… Sinceramente, errado (ainda escreverei sobre isso aqui), é triste ver, por exemplo, professores meus se referirem aos animais com a separação em questão pressuposta e sem ser questionada; é como se, mesmo tendo lido Viveiros de Castro, não tenham prestado muita atenção ao que os ameríndios tinham a dizer de fato.
Porque se percebermos os animais como tendo suas próprias captações da realidade e manifestações de singularidades, de processos que podemos entender como minimamente análogos aos culturais, vemos que continuar dizendo a nós mesmos que tais respostas não podem ser as nossas são escolhas políticas e simbólicas, e que podemos sim, por opção, seguir o exemplo de animais – isso não é ruim; isso não faz de nós pessoas piores. Seguir o exemplo de bonobos pode ser meio extremo? Talvez (embora o argumento do livro é o de controle da paternidade – extremamente “sociobiológico” pro meu gosto, mas enfim). Mas aprender, por exemplo, com os ratos sobre o que as drogas realmente significam é um passo na direção certa. E aprender com estes babuínos, creio eu do fundo do meu coração humano, também é.
O filme “Idiocracy” é fantástico: a premissa é que, como cada vez mais as pessoas inteligentes têm menos filhos, no futuro o QI médio da humanidade vai cair tanto que todos vão ser idiotas completos. Ponha no meio disso um soldado americano (o mais “medíocre” que o exército conseguiu achar) e uma prostituta (tiveram que apelar para a iniciativa privada, no caso da mulher), que serviram como cobaias num experimento de criogenia. Quando eles acordam, 500 anos depois de serem congelados, a Terra está um desastre porque eles não conseguem fazer nada direito.
O caso é que fui ver esse filme depois que ele me foi indicado no contexto de uma discussão em que o argumento de quem o indicou era o de que, caso a realidade que Huxley previu em Admirável Mundo Novo fosse verdadeira, a culpa seria nossa. Nesse sentido, nós não damos valor ao estudo, à educação, à inteligência, e vamos pagar o preço por isso. Não consigo deixar de perceber um certo tom, nessa acusação – posso estar errado, mas sabe quando você fica coçando o queixo com aquela incomodação na cabeça? – de uma visão individualista, de sociedade atomizada, em que quando se diz que a culpa é nossa o que se quer dizer é “a culpa é minha, e a culpa é sua, e a gramática transforma isso em nossa”. O que se defende é transferir a culpa de um “ser” “outro” que não controlamos (porque assim é muito fácil reclamar, de fato) para nós, relacionar as nossas ações com suas devidas consequências e repercussões sociais. Isso é ótimo, e necessário, para não falarmos sempre de um fantasma abstrato – o duro “sistema” – sem revisarmos nosso próprio umbigo.
Só que uma revisão de umbigos por si só nunca é o suficiente, esta é a questão. Especialmente por causa 1) do alcance das nossas ações individuais; e 2) do fato de que elas não existem no vácuo, mas dentro de uma cultura, de expectativas e percepções sobre o funcionamento da sociedade. Sociedade que, pra ser o advogado do diabo durkheimiano, precisa ser construída por nós para que, quando “pré-existir” às crianças do futuro, seja uma boa influência para elas nessa coisa de valorizar a inteligência, etc.
Quando se diz, por exemplo, que o racismo é uma instituição e não um sentimento ou forma de pensar, o que se quer dizer é que se conseguirmos fazer todo mundo deixar de pensar (e sentir, o que é muito importante) de forma racista, não vai adiantar nada se a maioria da população negra mora nas favelas (ou na ordem contrária de palavras); não vai mudar muita coisa se as profissões de prestígio e os cargos de chefia são em sua maioria dos brancos e os negros sempre são os serventes, os faxineiros, os invisíveis que fazem o espetáculo acontecer para quem tem dinheiro para entrar no teatro da vida contemporânea. Isso porque a mudança dessas condições requer uma revisão de umbigos, mas a revisão de umbigos precisa levar ao próximo passo: quando os umbigos se encontram (não muito perto, que aí já é outra coisa) para combinar esforços e agir politicamente. Tomar providências para alterar uma situação que, quando injusta, não é uma coincidência posto que existem raízes históricas para ela (não adianta dizer que hoje não existe racismo [embora ele exista sim], importa é que ainda hoje se sentem os efeitos de sua preponderância absoluta no passado). Da mesma forma o passo de rever a individualidade não é o passo completo – até porque ela depende também de um fator cultural.
Marshal Sahlins, em seu belíssimo “A ilusão ocidental da natureza humana“, diz que a ideia de natureza humana no imaginário social corresponde, sutilmente, a um “cenário imaginado de adultos masculinos ativos, excluindo mulheres, crianças e idosos”. Quero focar aqui numa parte fundamental da frase: crianças. Essas decisões que fazemos são feitas em relação a um referencial. Em um maravilhoso vídeo da RSA Animate sobre educação, há uma parte que nota a disjunção atual, em muitas partes do mundo, entre educação acadêmica e um mínimo sucesso na vida – o que faz com que, é claro, mais pessoas busquem primeiro a segurança, e depois o sucesso, sem necessariamente passar por um processo em que adquira coisas como consciência política e social, conhecimentos especializados sobre sua área de atuação, ou coisas como o hábito de leitura, que podem tornar nosso raciocínio mais arguto. Deveriam fazê-lo? Há milhões de formas de argumentar que sim – mas dadas as circunstâncias e nosso ambiente cultural, não fazê-lo não é uma escolha perfeitamente racional? Porque ela é, sim.
Então a questão é que, embora essa possa não ter sido a opinião de quem me indicou o filme, há quem vá interpretar essa ideia como uma questão de consciência “que vai de cada um”: não adianta ficar “enchendo o saco” por causa da falta de protagonismo feminino em Hollywood; não adianta reclamar do tipo de entretenimento que é exibido nas concessões públicas de TV (como BBB – eu tinha um link pra colocar aqui mas o site saiu do ar – ou Malhação, que faz poucos dias vi, numa televisão ligada a esmo por aí, glorificar um beijo à força com música fofinha), e por aí vai; tudo cai na conta da liberdade absoluta de cada agente do campo social fazer o que quiser e dane-se, você que tem que deixar de ver essas coisas. Educação e entretenimento não estão separadas. As pessoas gostam de achar que são porque associam educação à escola, mas as crianças aprendem a agir em sociedade, ou seja, a se tornarem proficientes em viver em meio às pessoas ‘ao redor’ dela, os modelos de humanidade que lhe aparecem como reais e positivos, a cada minuto de suas vidas – e todas as horas que elas passam vendo televisão não são jogadas no lixo, mas são significadas e codificadas de uma maneira muito sutil, mas essencial.
Considero que a ação política, a ação social, a ação que vai além de simplesmente ser um “indivíduo melhor”, resistindo a qualquer “cultura de idiotização”, é a única resposta possível para reverter um quadro desse tipo e evitar uma “Idiocracia”. De um jeito ou de outro, assistam ao filme, que é engraçadíssimo.