Liderança como fenômeno coletivo: hierarquia como salsicha enlatada

Ano passado fui fiscal do ENEM e do Vestibular da UFSC, e uma das coisas que mais me chamou atenção foi a estrutura organizacional de cada um no que tange aos fiscais. No ENEM, assim como na UFSC, havia dois fiscais de sala em cada grupo; no entanto no ENEM um era o “chefe de sala”, tendo mais obrigações e recebendo maior pagamento que seu “auxiliar”. Na UFSC qualquer um dos fiscais de sala podia exercer qualquer das funções que lhes competia; geralmente (e falo no presente pois é o que vejo já há 3 vestibulares) ocorre uma “ajuda mútua” de acordo com o contexto, e/ou o revezamento de funções.

O que leva a uma decisão governamental com vistas a dividir responsabilidades, criando o cargo de “chefe de sala”? Me parece, ainda mais que minha participação no ENEM foi a primeira e depois de duas com a UFSC, uma mesquinharia tão grande – numa coisa tão pequena que é um grupo de provas, fazer questão de dividir as tarefas, criar uma distinção, e ainda etiquetá-la com esse título pomposo e ridículo de “chefe de sala”. De onde vem isso?

Uma resposta mais “sociológica” seria provavelmente a cultura organizacional. Inércia, path-dependence ideológico, costume – a opção padrão, a escolha naturalizada e instintiva que ninguém ousa questionar ou cogita repensar. Mas me pergunto aqui num sentido mais amplo; para além do ENEM e dos vestibulares, a estrutura (psicológica, até) dessa instituição que é o cargo de chefia, de autoridade, de responsabilidade – três palavras que se amarram numa só, ao menos para o leigo, na maior parte do tempo.

O cargo de chefia serve para definir, para atribuir, responsabilidade. Essa frase, que poderia fazer parte de um livro introdutório a um curso de administração, pode ser lida como axiologicamente positiva; neutra, no máximo. No entanto, a tenciono como negativa – e de qualquer forma, esse valor só pode ser entendido num contexto de outros valores e, principalmente, objetivos (e o fato de que ele pode ser com frequência lido como positivo mostra apenas quais objetivos e valores estão presumidos de partida, compondo o plano de fundo do nosso pensamento). Em outras palavras, o que se ganha com um cargo de chefia é a capacidade de dizer: “foi ele”. “Ela é a causa disto que deu errado”. “É tal pessoa que devemos culpar e punir por nosso infortúnio”. É verdade que também atribuímos bons feitos a pessoas em cargos de autoridade (como o aumento dos empregos ou a queda da inflação a presidentes), mas do que é bom todos querem compartilhar: todos tiveram uma parte a desempenhar, um papel a fazer; foi um feito coletivo (o presidente não teria feito nada sozinho). Já o que é ruim; a marca da incompetência, da antissociabilidade ou do egoísmo, queremos afastar como a peste, atribuindo ao agente mais próximo nossas faltas como a alma enfraquecida de Voldemort agarrou-se à testa de Harry Potter. Além disso, estruturas hierárquicas costumam se prestar bem ao repasse de culpa de baixo para cima: alguém sempre pode alegar que só cumpriu ordens, e estenderemos nossa simpatia a ela a depender do castigo que a esperava em caso de descumprimento. Já “bons resultados”, advindos raramente de ordens específicas de chefes e mais do funcionamento normal das operações institucionais, não são tão passíveis a esse tipo de operação.

O fato é que essa atribuição de responsabilidade / culpa não é meramente facilitada pela criação do cargo de chefia, e sim convencionada, inventada, estabelecida enquanto objeto de um contrato entre as partes. Porque a responsabilidade real é extremamente difícil de atribuir. Como expõe Bruno Latour, acerca das associações que fazemos,

Quem mata cerca de 40 mil pessoas por ano em acidentes de carro nos Estados Unidos? Os carros? O sistema viário? O Ministério do Interior? Não, os motoristas bêbados. ¡) Quem é responsável pelo excesso de consumo de álcool? Os comerciantes de bebidas? Os fabricantes? O Ministério da Saúde? A Associação dos Donos de Bares? Não, o indivíduo que bebe tanto. Entre todas as possibilidades, só uma é sociologicamente admitida: os indivíduos que bebem demais são a causa da maioria dos acidentes de trânsito. Esse nexo causal é uma premissa, ou uma caixa-preta para quaisquer outros raciocínios no assunto. Admitido isto, a controvérsia ulterior é em torno das razões que levam os motoristas a beberem tanto. São doentes que devem ser tratados e mandados para um hospital, ou criminosos que devem ser punidos e mandados para a cadeia? Depende da definição que se dá ao livre-arbítrio, do modo como se interpreta o funcionamento cerebral, da força que se atribui à lei.

Essa é em parte a razão pela qual as ciências humanas, as sociais em particular, são tão difíceis, e também porque pode sempre haver leituras tão diversas de um momento particular sem que elas cancelem uma à outra necessariamente: as pessoas fazem atribuições diferentes de responsabilidade, e antes que o debate possa fornecer com mais clareza uma avaliação mais informada da situação, a situação já é outra. O tempo voa.

Mas então o que se ganha com o estabelecimento de cargos de autoridade? Paz de espírito, sabendo que caso alguma coisa dê errado todos saberão a quem culpar? Se for esse o caso, essa é uma troca covarde: a verdade e a complexidade do mundo acabam barganhados pela tranquilidade. Isso é o que podemos, o que devemos almejar em nossas estruturas organizacionais – sociais, culturais, políticas?

Há um cálculo de que com estes cargos estimula-se uma vigilância maior – afinal, quem está em um cargo de chefia, por não querer que nenhuma “bomba” estoure em sua mão, vai “cuidar” para que ninguém sob sua “tutela” arranje problemas. O problema, é claro, é que isso é tratar o sintoma ao invés da causa. Um certo realismo ontológico nos exige a aceitação do fato de que “shit happens”, e portanto não se trata aqui de opor o “tratamento do sintoma” à “erradicação da doença” (uma ladeira que muito frequentemente desliza à eugenia) mas, em vez disso, de ver que não adianta querer vigiar e punir se não houver um esforço coletivo para mitigar e eliminar o quanto possível incentivos sistêmicos a “fazer o errado” em primeiro lugar – se não esses mesmos incentivos, ou predisposições, farão resistência à autoridade em nome de algo que pode ser contraproducente, não obstante o valor intrínseco que o choque contra a autoridade em si mesmo tenha para um anarquista. Em outras palavras, a função de um cargo de chefia é servir como bode expiatório, independente em grande medida da realidade das “agências” envolvidas no caso, que tanto podem se sentir compelidas à obediência quanto podem aperfeiçoar as artimanhas de que dispõem para burlar o comando do chefe.

Há uma série de outros problemas e realidades envolvidas na questão hierárquica. Por ser submetido a uma lógica de obediência, tanto perde-se a prática, bem como a própria percepção da importância, do exercício da consciência individual – de julgar por si mesmo tanto os “seres” quanto os “dever-seres” da vida. Podemos estar “condenados a sermos livres” o quanto quisermos, mas isso não fará diferença alguma na prática enquanto a hierarquia for prevalente num dado grupo. A própria “ação normal” de um grupo pode ser extremamente deletéria – como a da polícia militar, no Brasil, ou de empregados da indústria petroleira, no mundo inteiro, indústria que contribui ativamente contra medidas de combate à catástrofe ambiental que se avizinha – e mesmo assim a pressão pela continuidade e conformação dificultará o tipo de discussão e decisão transformadora capaz de melhorar as coisas. Não é só o medo da punição que inibe uma determinada pauta: o próprio efeito cognitivo dos cargos de chefia constringe o pensamento, porquanto equaciona-se discutir “política” com discutir o que pode ou não ser atribuído à agência de atores poderosos num campo todo moldado pelas próprias instituições hierárquicas – e essa discussão sobre quem colocar num cargo de chefia (em quem votar) rouba, suga as energias da discussão sobre como resolver nossos problemas.

É sintomática a diferença no desenvolvimento dos trabalhos no ENEM e no Vestibular da UFSC – em que pese que ambos são uma merda por definição, é claro, não porque são piores entre seus pares, mas por toda a lógica que eles contribuem para manter e avançar, uma lógica de escola, de inteligência medida, de meritocracia (conceito ao qual logo voltaremos), etc. Apesar disso, e apesar do fato de que obviamente os fiscais, assim como eu, são sempre todos gentis e cordiais entre si (e também com os candidatos), uma diferença. No ENEM os fiscais “auxiliares” trocam de grupo em torno das “âncoras” chefes-de-sala – isto é, os chefes-de-sala ficam, no domingo, na mesma sala que ficaram no sábado; o outro fiscal de sala, o auxiliar, é que troca. Já vai embutida aí uma desconfiança, mais uma expressão de mesquinharia tosca, que não se vê na UFSC, em que a mesma equipe trabalha no mesmo grupo, com o mesmo grupo de fiscais de corredor, por três dias.

Mas isso é detalhe. O mais interessante é que o ENEM faz algo que não vi acontecer na UFSC: os coordenadores passaram um vídeo, e fizeram um apelo, para “conscientizar” os fiscais da importância que tem o ENEM na vida das pessoas e por que era importante que o processo seguisse sem problemas. Isso é até compreensível, até certo ponto louvável – mas o curioso é que no início do segundo dia, já na entrada da sala de organização, tivemos que deixar os celulares com a coordenação – coisa que só fizemos, no sábado, ao caminharmos para o grupo de atuação. A justificativa é que houve erros e dúvidas no sábado que não teriam acontecido se as pessoas tivessem prestado atenção no vídeo de orientações (um dump megalomaníaco, ineficaz e tedioso de informações) que foi exibido no sábado. Por isso, a retirada dos objetos. Não estou reclamando, tanto quanto percebendo como o clima é diferente – na organização privada que organiza o ENEM em SC (Cesgranrio) certamente a cobrança é maior (a estrutura é nacional em comparação com a local Coperve) e cada chefe, de cada escalão, é repreendido por cada potencial problema num processo que já é conhecido por escândalos (e, devido à escala, não podia ser diferente – o ENEM é todo megalomaníaco). Isso derrama para o chefe de sala, que recebe ainda mais pressão – “os outros também têm sua importância”, desculpa-se a coordenadora após puxar a orelha dos chefes de sala, “mas os chefes de sala têm uma responsabilidade maior”.

Preciso deixar uma coisa bem explícita antes de prosseguir: nada do que estou dizendo aqui é novo. Diferente. Original. Isso sobre autoridade e culpa pode ser encontrado em quase qualquer pensador que valha a pena desde Nietzsche, e todo o mais eu no mínimo suspeito que alguém mais tenha dito, ainda que não amarrando na mesma sequência e da mesma forma como eu neste post – e daí minha motivação específica para escrevê-lo, organizando minhas anotações nesse sentido. Além disso, é óbvio que a dimensão da hierarquia enquanto fiscal de vestibular não significa porra nenhuma – fazer essas comparações é só uma questão de “nostalgia” quanto a manter no texto final a “fonte de inspiração” para essas teses. Apesar disso, elas conservam sua potência quanto ao resto das coisas. Quanto ao resto do mundo.

Muitas vezes – continuando – a questão da chefia vem amarrada à da liderança. Se necessariamente os grupos humanos precisam de líderes, especialmente em processos decisórios, então precisamos de chefes. Enquanto animais sociais, necessitamos de líderes e os cargos de chefia são basicamente uma corporificação formal desse princípio.

Isso não poderia estar mais incorreto, pois vem de uma concepção errada de liderança.

A liderança é algo que acontece, não um atributo pessoal que alguém possui. Um líder é o que alguém acaba sendo, como numa função emergencial, e não o que alguém nasce para ser ou deve construir em si mesmo como sendo. É o que surge do processo social dos grupos, sempre em contexto, de forma episódica, não o que é necessário para seu funcionamento. Líderes são consequência. Não causa.

Ao longo do parágrafo a definição foi escorregando de liderança para líderes, e o fiz em nome do didatismo – mas para explicar melhor vamos retroceder e atacar o fenômeno: a liderança. O que ocorre numa situação de liderança? Alguém – ou um grupo de pessoas, a depender da escala, talvez – exerce considerável influência sobre uma quantidade de pessoas, de modo a causar efeitos no status quo. A questão é que esse “evento” em que a liderança se manifesta é composto de várias partes. Nosso ponto de vista, embutido no vocabulário da questão, faz com que enxerguemos os líderes como diabinhos sedutores exercendo (mais uma vez em que o vocabulário e suas limitações são cruciais) influência nas pessoas – como em marionetes, talvez. Não lidemos ainda com a distinção entre líderes e chefes, mas pensemos que o líder não obriga: ele inspira. Portanto esse exercício de poder é linguístico; é gramático, é xamanístico. O fenômeno da liderança, pelo menos nessa forma “pura” que estudamos para fins de exemplo, não tem nada a ver com o uso da força, da coerção.

O que esse quadro que pintei exclui são dois elementos cruciais: os liderados e o contexto em que ocorre essa liderança. A liderança acontece em tópicos, em assuntos: a cada momento (da vida pública ou individual) em que um tema recebe foco, em que vira “pauta”, abre-se uma oportunidade para que o fenômeno ocorra e o estereótipo de antropólogo clássico anote em seu caderninho o que ocorreu: a pessoa tal e tal usou de seus dons persuasivos para liderar, convencendo as pessoas a adotar tais e tais atitudes. Mas essa descrição das coisas confere literalmente nenhuma agência aos liderados, que aparecem como ovelhas (têm opinião, mas não forte o bastante), como hipnotizados (têm opinião, mas não faz diferença porque o hipnotizador consegue sobrescrevê-las a partir de seus dons) ou como completamente incapazes de atuar (não têm opiniões, por isso precisam que alguém lhes dê uma).

Além disso, fica de fora uma análise contextual que, embora perigosa de defender, vou ousar fazê-lo mesmo assim: algumas ideias podem simplesmente… Ser melhores. Não digo objetivamente – e nisso certamente é preciso incluir os liderados na análise – mas pode ser que, dada a percepção geral da realidade (da qual ninguém tem totalitário domínio, por mais totalitária que seja a sociedade) e do que está disponível como caminho de ação, o líder seja aquele que argumente bem em favor de uma ideia que já tinha bastante força, e foi, digamos, mais uma “peça” – um catalisador, talvez – de uma transformação que, embora tenha sido acelerada ou melhorada a partir de sua participação, não necessariamente estava bloqueada enquanto contingência da história. Ou, ainda por outro ângulo, sim, o líder é uma parte de cada momento de atuação de um determinado grupo. Uma parte decisiva. Mas todos aqueles que fazem parte dessa atuação também o são, e no entanto uma certa ideologia de “culto ao líder” completamente enviesa a percepção sobre o que realmente acontece quando um grupo toma uma decisão – especialmente em processos decisórios amplos, horizontais, com base em consenso – e nos faz perceber a coisa de forma incoerente; no limite, incompleta.

Esse “culto ao líder”, túnel-realidade em que o contexto mais amplo do fenômeno da liderança é ignorado em favor de alguns poucos indivíduos, promove uma “essencialização” do líder: é algo que você é. Claro que essa essência é geralmente revelada através de atos – um grande líder é um grande líder porque fez coisas que grandes líderes fazemtendo sido, portanto, um grande líder. Mas isso é uma bobagem: embora claramente as nossas experiências fazem de nós quem somos em grande medida, não existe uma “essência” de líder, especialmente não uma pregressa à atividade enquanto tal, como um “coquetel” de traços de personalidade que faça de alguém um “líder nato” (assunto ao qual voltarei em breve).

Em relação à conexão entre liderança e chefia, um “cargo de chefia” é justamente a tentativa de institucionalizar a liderança – formalizá-la, buscando isolar aquilo que se percebe como seus efeitos (por exemplo, catalizar a ação coletiva) investindo-a de autoridade. A diferença é gritante: o fenômeno da liderança diz respeito ao fato de que, quando um determinado grupo discute possibilidades de ação coletiva, alguns indivíduos terão mais recursos relevantes que outros à disposição (seja de fala, de experiência, materiais, etc), além de mais interesse no assunto e disposição a curto, médio ou longo prazo. Esses indivíduos podem usar do espaço livre de fala e convencimento para expor suas visões e, caso o grupo concorde, seus indivíduos vão formar agendas e planejamentos para ajudarem uns aos outros a tornar realidade essa visão que, por acaso, este “líder” inicial ajudou a tornar mais explícita, a descobrir, ou quem sabe a definir mesmo, em contraposição a alguma outra possibilidade. Veja, existe uma liderança aí; o fenômeno ocorre. Mas ele é mais uma consequência lógica da diversidade existente entre indivíduos em qualquer grupo humano e se adapta (aparecendo com mais ou menos força) a determinados temas, situações, contextos, etc. A chefia é a tentativa de pegar esse “roteiro” e forçá-lo a acontecer sempre, retirando a espontaneidade tanto do contexto (a intensidade da liderança é sempre a mesma, independente da situação), como do líder (que não é qualquer um que seja mais apto a sê-lo numa determinada situação, e sim uma pessoa institucionalmente investida com tal atribuição) quanto dos liderados (que devem obedecer o chefe, independente de suas vontades, perspectivas, ou mesmo potencial para serem eles mesmos líderes ou competir por essa função num dado contexto). Aliás, a essencialização é uma besteira porque é assimétrica: considera apenas os sucessos de alguém como critério para caracterizá-la como líder (como algo que faz parte de sua personalidade, ou pelo menos de sua persona pública), mas esquece convenientemente todos os momentos em que alguém fracassou enquanto líder – não enquanto chefe, mas quando defendeu publicamente uma posição e não conseguiu adesão, isto é, tentou exercer essa função e não conseguiu. Não se trata de dizer que deveríamos considerar os fracassos igualmente – classificando, assim, em não-líderes incorrigíveis e eternos aqueles que dão de cara na lama da história – mas de entender que todo líder (uma vez que um líder é líder em contexto, em situação, e portanto alguém pode ser líder centenas de vezes ao longo da vida) foi também já, muito provavelmente, um líder frustrado, um não-líder, um tentou-liderar-mas-não-conseguiu – e certamente já foi também um liderado.

A liderança é uma potência humana aberta a todos – e não digo isso tentando re-essencializar a liderança, já que há dois ou três parágrafos tenho tentado arrancá-la do pedestal em que foi posta enquanto função social. Estou apenas dizendo que é uma função que qualquer um pode exercer, em grupos de qualquer tamanho e qualquer (?) natureza, a qualquer momento. É a potência que temos de mudar mentes, de mudar opiniões, valores, sentimentos, e não depende tanto de nossa individualidade como de nossa generalidade – do fato de que é assim que funcionamos enquanto animais que interagem uns com os outros: nos influenciamos mutuamente o tempo inteiro. Uma confluência de fatores – do tempo, do espaço, da escala, das ideias – torna possível um momento em que alguém é catalisador de uma atitude coletiva mais ampla, mais direcionada, coesa. Essa pessoa é um líder, mas ela não teria sido uma se cada uma das pessoas não preenchesse um papel igualmente decisivo na estrutura de uma ação coletiva. Os liderados não são levados. São levantes.

Recuperando a questão do “líder nato”: não é verdade que algumas pessoas são simplesmente fodas demais? Que nasceram pra sublevar as massas com suas intonações e dicções perfeitas, seus sorrisos safados, seus atributos físicos que coincidem perfeitamente com o padrão estético corrente? Talvez, sim, mas algumas dessas qualidades – a desenvoltura no falar, a coragem necessária para endereçar seus companheiros iguais como tais em público, a dignidade e a auto-estima para ser seguro de si, entre muitas outras coisas – podem ser estimuladas em todos, de modo a serem no mínimo mais amplamente distribuídas, num sentido estatístico, na população (em outras palavras, não é porque existem poucas pessoas de um tipo x ou y no momento que essa proporção se repete em toda sociedade e se repetirá para todo o sempre). Além disso, as características dos líderes, quando em falta num indivíduo, previnem não só a liderança como a própria vida associativa livre. Muito se fala dos tímidos inveterados, mas não é à toa que pessoas que são tímidas a ponto de não sair na rua procurem ajuda psicológica – porque eles mesmos entendem essa condição como dificultosa. Tirando isso – casos extremos de falta de características específicas – qualquer pessoa que possa conversar e se relacionar de igual pra igual com seus pares livres (seus amigos, sua família, seus vizinhos) pode perfeitamente, dado um contexto estimulante o bastante, ser um líder. E, por fim – e o que é crucial – a própria rejeição a fazer o papel de líder tem a ver com mais um erro que se dá através da coincidência ideológica da ideia de líder com a de chefe: porque, afinal, quando se é chefe, você é responsável por tudo – você está na sua função, em enorme medida, para levar a culpa quando algo dá errado. Nesse sentido, é compreensível que muitas pessoas (que têm o mínimo de senso pra entender que é assim que as estruturas hierárquicas funcionam – embora haja um contraditório daqui a pouco, só um instante) se abstenham de, por exemplo, tomar a dianteira (a liderança) até mesmo pra organizar um encontro com os amigos. Porque entendem que, caso algo dê errado, caso seja em qualquer medida insatisfatório, é o líder quem sairá culpado; é dele de quem os amigos, no caso, falarão mal pelas costas, reclamando de sua atuação, por vezes até exigindo que fossem feitas coisas que poderiam ter sido feitas pelas próprias pessoas que falam mal – isto é, o que é liderança é tomado por chefia, e a iniciativa já morre através dessa psicologia deturpada que aprendemos desde crianças. Isso é um problema enormemente comum nas nossas relações mais próximas; é o tipo de desgraça que vemos reproduzida em textos de facebook quando alguém diz que somos basicamente, enquanto humanos, todos um bando de filhos da puta – mesmo que obviamente essa não é a única sociabilidade que nos é acessível.

Dê uma olhada na forma como o Louis C. K. defende seu voto em Hillary Clinton… Ele dá várias razões engraçadas, na verdade, mas preste atenção na que começa em 1:50. (Dica: pare em 3:00 se não quiser ouvir ele falar merda e perder a graça).

Só pra retificar uma observação do parágrafo anterior: sim, é verdade que dizer que as estruturas hierárquicas funcionam de modo a “punir” os chefes é ser extremamente generoso com eles; é quase uma frase burguesa. Mas estou aqui avaliando o cargo de chefia e suas relações com a liderança em contextos mais micro, especialmente tomando o ponto de vista de um visualizador externo, talvez um com algum poder institucional de avaliar responsabilidades e fazer um julgamento consequente. Importa também, provavelmente, que a inspiração seja uma coisa tão banal quanto a estrutura de cargos de fiscais de vestibular. Mas, de qualquer forma, vale a pena dizer que é óbvio que o real problema com a hierarquia não é nem tanto, como se disse no início do texto, que ela “fixa” para onde os olhares devem ir na hora de atribuir responsabilidades para eventos negativos, mas justamente que, embebida em coerção e autoridade, ela faz com que os chefes possam manipular a percepção do que realmente houve de errado de modo que quem “pague” as consequências dos erros sejam justamente os subalternos, independente de uma apuração mais acurada que se possa fazer dos fatos (mas mesmo assim, assumindo uma postura filosófica, que fatos? Se é um empregado ou o próprio chefe que faz uma merda, do ponto de vista de alguém que está avaliando a atuação do chefe, tanto faz: é sempre possível estar disposto a culpá-lo, já que ele deveria ter cuidado melhor do empregado, vigiado-o mais, ensinado-o melhor. E essa possibilidade de culpa constante que recai sobre o chefe é aberta necessariamente pela própria instituição do cargo de chefia).

Voltando ao que eu falava sobre a questão de “vigiar e punir” – de instituir chefes como forma de controlar os desvios por meio da cautela e do medo da retaliação autoritária, e de como o melhor seria trabalhar com as “vontades” na fonte, na própria origem dos atos que se quer evitar: isso não seria, de alguma forma, totalitário? Não seria a “ditadura da maioria” no sentido cultural de que Tocqueville e Mill tinham medo, no sentido de execração, de linchamento moral, de exílio com corpo presente, de ostracismo, de corpo apagado da visão via implante distópico a la Black Mirror?

Creio que, pelo contrário, esse é o único procedimento que de fato aceita e respeita as liberdades individuais, de consciência, mas trabalha com a possibilidade gregária de que as pessoas podem trabalhar juntas para resolver problemas e conviver. A liderança, afinal de contas, é isso – um fenômeno em que se consegue uma determinada harmonia (que não precisa ser 100%, incluir a humanidade inteira, rejeitar dissenso como o diabo) forte o bastante para causar consequências; em que se consegue uma intersecção de pensamentos, de vontades, de ideias que criam laços e, mais que isso, promessas e expectativas. Se isso soa totalitário é porque a liderança é sempre pintada como um Lênin – ou algum “populista”, momento em que a figura do líder é novamente extraída de seu contexto e entendida como um personagem sobrenatural que promove a união ao ponto de promover também a perseguição aos dissonantes (coisa que é sempre possível mas não tem a ver com o fenômeno da liderança em si, e sim com outros componentes culturais e históricos muito mais profundos – a perseguição purificadora como método pode acontecer como pano de fundo, e em vários formatos, mesmo que não adquira força majoritária integrada por uma liderança específica… Da mesma forma como, pelo jeito como a polícia militar age no Brasil, vivemos num constante estado de de exceção há décadas, mesmo sem ter tido um estado de exceção formal, como se reconhece nos dicionários, desde a redemocratização federal em 88/89).

Como entender então o fenômeno da liderança dentro do anarquismo, entre anarquistas? Da mesma forma como em qualquer outro grupo, pelo menos enquanto ele não for confundido com o fenômeno da chefia. E para não sê-lo, acima de todas as outras características já mencionadas anteriormente, creio, a mais importante é o status da responsabilidade em si. Se a chefia (novamente, além dos muitos outros efeitos e propósitos da hierarquia em termos de manutenção de uma ordem desigual) significa poder dizer “a responsabilidade é daquele ali, ó, o chefe“, a liderança implica em justamente assumir essa responsabilidade, mas num contexto, num ambiente coletivo em que todos a assumem concomitantemente. É preciso que os liderados vejam a si mesmos como levantes também, como eu os caracterizei antes (mas felizmente essa é a regra, não a exceção). É preciso que eles se entendam no processo como ativos na construção desse líder que é mais símbolo e conveniência que qualquer outra coisa: dali em diante, naquilo que o coletivo resolva fazer no que diga respeito a esse assunto em que se deu o fenômeno da liderança, a responsabilidade é de todos, a culpa é de todos, a agência é de todos.

E as consequências disso são mais do que discursivas. Porque não são só os louros que são compartilhados, assim como as derrotas e os erros: trata-se mais de uma atitude em relação aos erros do que necessariamente quem vai ficar com eles. Porque se alguém errou, o ambiente cultural dessa coletividade não vai ter como foco o apontar de dedos – o dizer “foi o líder, pois ele deveria ter prestado mais atenção, vigiado mais, sido um líder melhor, mais eficiente”, mas também não o dizer “foi aquele ali, que traiu a todos nós, foi ele que foi o culpado pela desgraça, ele e mais ninguém, eu não tenho nada a ver com isso”. Não, desde o princípio até o momento da ação e depois, enquanto houver o estar junto no agir direto com os outros, todos são responsáveis sim, a partir do mesmo princípio que confunde tudo: o que errou poderia ter sido melhor auxiliado por todos. Mas o mais importante não é que errou, mas sim como não errar mais; não é que deu problema, mas que todos trabalhem juntos para consertá-lo. A ação coletiva, intuo, pode acontecer sem o fenômeno da liderança (e quando grupos como as ocupações escolares, ou certos protestos, dizem não ter líderes, eles geralmente querem dizer que não tem chefes; têm líderes sim, e não tem problema nenhum com isso, pela minha definição nesse texto), mas com ou sem ele o que se espera de uma produtiva ação coletiva é que ela se foque menos em seus agentes particulares e mais na resolução de problemas a partir da qual foi constituída: no que precisa ser feito, nos processos sociais relacionados ao problema e à solução, nos acordos necessários pra criar soluções aceitáveis, razoáveis, e na contínua autocrítica pra garantir o bem-estar e os princípios durante a execução dos afazeres.

É verdade quando certos gurus de administração reclamam que no mundo sobram chefes e faltam líderes: só que é uma questão social, cultural, política – e não psicológica!

Daí a importância também de entender como funciona a liderança no caso de professores, de pais, de mestres de todo tipo – posso estar expondo algo até, inclusive, antitético ao que encontramos em obras importantes como “O mestre ignorante”, de Ranciére, mas tanto faz: acho que a liderança que surge nesses casos vem de um reconhecimento tácito entre os indivíduos quanto a um diferencial de saber que justifica o convencimento mais frequente que ocorre do professor ao aluno do que no sentido contrário. Como disse Graeber, a “autoridade” do professor erode a si mesma, pois a atividade do professor consiste em transformar o aluno até o ponto em que ele (o professor) não seja mais necessário – um bom professor, assim, promove cada vez menos sua autoridade. Nesse caso, seu potencial para liderança não diminui, pois é sempre latente, mas certamente as condições que o tornam mais pronunciado e provável vão deixando de existir ao longo do tempo, até que se estabeleça uma igualdade de conhecimentos (além da que já existia antes, de intelectos, eu sei, Ranciére…). O que é que a chefia, no sentido de hierarquia e autoridade, tem a adicionar de bom na relação entre professores e alunos, ou entre pais e filhos? Muito pouco ou nada. Creio que venha mais da vontade de dominação, ou do medo mais profundo mesmo, mais ulterior, de que uma inovação venha da parte das novas gerações e desloque o papel de autoridade (a posição que, como eu argumentei, confere aos pais e professores mais oportunidades de razoavelmente assumir a liderança nas relações com filhos e alunos) – em outras palavras, é uma tara por controle e manutenção de estruturas que me parece que essa própria ideia de liderança de que lancei mão ajuda a combater, embora mantenha uma cumplicidade potencial inalienável – afinal, também não é arbitrária a ligação que se faz ordinariamente entre liderança e chefia. A mesma coisa não acontece com outros termos; há obviamente um paralelismo, uma afinidade aí que convida comparações e, no nosso caso, confusões nem tão acidentais e inocentes quanto posso estar fazendo parecer.

Acho que a ideia de chefia, os cargos de responsabilidade, enfim, a instituição chamada “hierarquia”, é uma tentativa de capturar formalmente e reproduzir em massa o fenômeno da liderança. É engraçado – as críticas que se pode fazer à artificialidade do mundo industrializado, sua ideologia estúpida de consumismo, etc: tudo isso se volta justamente contra a tentativa de empacotar, rotular e vender o que é genuíno no mundo; justamente aquilo que não pode ser contido, racionalizado, contabilizado, estocado. É essa violência, às vezes simbólica, às vezes palpável, contra uma experiência mais livre e mais artística da vida que gera tanta revolta – e no entanto tudo começou não na revolução industrial ou na origem do capitalismo, e sim nessa linha de produção mais primária, mais ancestral, de tecnologias humanas: a reprodutibilidade técnica da liderança, sua cínica transformação laboratorial em chefia, e o uso que se fez dela para converter e redesenhar gigantescas estruturas humanas ao redor do planeta ao longo do tempo (e, claro, a gourmetização recente na figura do cool boss).

Vale lembrar alguns detalhes adicionais. Acho que o quadro de ação coletiva que pintei deixa pouco espaço para a retratação da falha grosseira – inclusive quando não é falha, mas ação no intuito de machucar de fato. Não vou fazer como os adversários do anarquismo que universalizam uma maldade de vilão de novela, monstrolizando a espécie humana de forma tão estúpida que até Hobbes sentiria vergonha. Mas é preciso reconhecer que não há regra sem transgressão, nem caminho humano sem contramão. E no entanto, ainda é possível encontrar uma outra forma de lidar com esses casos. A justiça restaurativa (vejam essa matéria muito interessante da Pública) é uma experiência radical de entender de forma diferente mesmo o fenômeno de responsabilidade pessoal que, apesar do que eu expus nesse texto inteiro, jamais é verdadeiramente apagada. E não creio que precisei argumentar nesse sentido tampouco: embora eu tenha dito de fato que a responsabilidade não se encontra num lugar só, não quer dizer que não exista – e se existe mesmo em muitas pessoas, compartilhada ou coincidentemente nelas colocada, existe ainda, e as pessoas precisam lidar com elas entre si. Mas acho que, dentro do processo de ação coletiva que descrevi, a justiça restaurativa é um modelo muito positivo e coerente para lidar com esse tipo de coisa. Além disso, vale a pena lembrar que valorizar a união total de um determinado grupo acima de tudo, em qualquer circunstância, é a cegueira do nacionalismo (que vale também para grupos menores, embora nesse caso tenha nomes diferentes). A dissolução de um grupo frente ao reconhecimento de que já não existe união produtiva, união que respeite as liberdades e individualidades, não é o fim do mundo.

Por último, uma curiosidade: e aqueles que não passam sem responsabilidade pessoal? A galera que não engole essa história de responsabilidade compartilhada, da fatal indeterminação de culpabilidade a partir da falta de um critério fora do “jogo de significados” – isto é, universal, inegável, neutro, absoluto – que julgue e atribua sem dissenso de quem é a responsabilidade pelo quê: como fica esse pessoal?

Bem, não sei como ficam, mas o fato é que esse é um discurso complicado. Curiosamente, eu o ouço mais vindo dos “republicans” dos Estados Unidos (do partido republicano), pelo menos a partir das notícias e matérias que consumo vindo de lá. Eles (apesar da hipocrisia que se vê em três segundos) alegam ser o partido da responsabilidade pessoal – isso aparece muito ao discutir os empréstimos estudantis universitários; quando se fala em renegociação dessa dívida, ou cancelamento ou, enfim, qualquer coisa que vá aliviar a vida dos jovens naquele país, imediatamente se rebate que eles escolheram fazer universidade porque quiseram, e agora têm que arcar com as consequências – responsabilidade pessoal.

Foi engraçado perceber que esse conceito é a imagem-espelho da “meritocracia” no Brasil. Do lado de cá, a responsabilidade pessoal (o mérito) servindo como álibi para a manutenção de privilégios nas mãos dos mesmos poucos de sempre. Do lado de lá, a responsabilidade pessoal como atributo de culpa para a manutenção de ônus nas mãos dos mesmos muitos de sempre. Não é curioso? De qualquer forma, o discurso é (não por acaso) o mesmo encontrado no cerne da estrutura da chefia: aquele que promove a separação do indivíduo do grupo, isolando-o tanto analiticamente quanto na prática. A diferença é que, no caso da chefia, essa separação se dá no plano da delegação (do acúmulo) de poder, de autoridade. No caso dos discursos sobre “responsabilidade pessoal”, o indivíduo é separado do grupo sem que isso acarrete para ele mais poder. O poder que lhe sobra nesse cálculo cognitivo é o poder do indivíduo atomizado, que se resume ao consumo: a liberdade que não é autonomia de fato, e se resume a uma atividade essencialmente passiva.

Assim, essa operação de divisão é executada de acordo com a conveniência do momento – o que acaba fazendo com que apareça como desonesta e cruel. Todos vivemos juntos, em sociedade; alguns mais juntos de uns que de outros, geograficamente, culturalmente, politicamente. Mas de todo modo nossas vidas se cruzam e há muita responsabilidade que se cruza na construção delas – que são nossas, não só minha, dele, dela; sua. Nessa construção é muito complicado escolher momentos para dizer “não, não tenho nada a ver com aquele ali ou aquela lá; não, sua situação atual é completamente derivada de suas escolhas pessoais, as quais não se conectam comigo em momento algum, sob nenhuma perspectiva, e portanto não é legítimo que façamos nada em relação a isso – se fizermos, que seja no máximo a separação ainda mais radical de nossas vidas a partir do uso do aparato de força para mantê-las tão apartadas quanto possível”.

Entender o fenômeno da liderança pela ótica mais inclusiva de “ações coletivas libertárias” é parte de um entendimento mais profundo sobre a fecundidade não só dessas ações coletivas como estratégia de luta transformação social, mas também da união entre meios e fins. Está no caminho de compreender a positividade de estabelecer como horizonte a reorganização da sociedade em termos de comunidades libertárias compostas por dezenas, centenas, milh- o número que for preciso – de ações coletivas.

Perguntas que todo autor deveria fazer ao revisar a trama de seu livro

Uma tradução deste post, descoberto no ótimo blog Fuck Yeah Character Development. A última parte foi retirada por falar principalmente de regras tipográficas da língua inglesa.

Estrutura geral do livro (o que a história é e como é contada):

  • Sobre o que é o livro? Qual é a força que dirige a narrativa?
  • Qual é o público para esse livro?
  • Ele é baseado em alguma experiência real?
  • A história funciona? Tem alguma parte que não parece muito convincente ou que, ao ser lida, parece demorar demais, “se arrastar”?
  • Há alguma parte que eu não entendo?
  • Qual é a trajetória, ou o formato, da história?
  • A história começa no lugar certo?
  • Quão rápido a história me prende?
  • Há algum momento em que a história se quebra e eu perco o interesse nela?
  • Eu acredito no que estou lendo?
  • Quão satisfatório é o final? Ele parece inevitável?
  • Parece que alguma coisa está faltando?
  • Tem alguma coisa desnecessária (personagens, detalhes, acontecimentos)?
  • Qual é o ponto de vista narrativo (primeira, segunda, terceira pessoa)? Ele muda? É consistente?
  • Os tempos verbais são consistentes? Se mudam, isso é necessário?
  • A coincidência é usada como um dispositivo narrativo? Em caso positivo, há alguma outra forma de moldar o curso dos eventos?

Personagens

  • Quem são os personagens (primários, secundários, incidentais)?
  • Eu sinto que conheço eles?
  • Eu me importo com eles?
  • Eles parecem reais?
  • O que eles querem?
  • Quais são seus pontos fortes e seus pontos fracos?
  • Eles têm conflito interno e/ou externo?
  • Eles têm alguma função (em termos de relacionamento com os outros personagens e desempenhar um papel na narrativa)?
  • Eu posso ouvir seus pensamentos, ou, se não, eu entendo como eles se sentem a partir da interação deles com outros personagens, suas palavras e suas ações?
  • Eles parecem pertencer ao tempo e ao espaço da história?

Ambientação

  • Como ela é transmitida ao leitor?
  • Quão importante é para a história?
  • É um lugar real, e seus detalhes estão corretos, ou – mais importante – eles parecem estar corretos?
  • O cenário se torna uma personagem da história?

Coisas com as quais tomar cuidado:

  • Personagens se olhando no espelho para que o autor possa descrevê-los para o leitor.
  • Livros ou capítulos começando com o personagem principal acordando, especialmente de uma ressaca.
  • “Pular” de uma mente para outra.
  • Olhe para o espelho, dê o sinal, faça a manobra: ao comparar escrever uma história com dirigir um carro, Elaine Roberts fala sobre como devemos “olhar para trás” (entender como a história tem se desenvolvido até aqui, especialmente em relação aos objetivos, pensamentos e sentimentos dos personagens), “dar o sinal” (fazer com que eles ajam ou falem algo que sinalize para algo no futuro, ainda que o leitor não entenda exatamente tudo que está acontecendo) e então “fazer a manobra” (concluir a questão de modo que o leitor tenha um momento “… aaaahh!” em relação ao que está acontecendo; este é o momento das voltas e reviravoltas da história).
  • Escrever demais (por exemplo, descrições muito longas ou se deter demais no que um personagem está sentindo).
  • Angústia e introspecção de um personagem.
  • Trechos em que quase nada está acontecendo de fato.
  • Repetição de história, personagem ou informação sobre a trama.
  • Mostre, não conte (Show, don’t tell).
    • Esse é um conceito mais amplo do que parece e essencialmente se refere à importância de tentar dramatizar em vez de afirmar, tanto quanto possível, especialmente no que concerne aos personagens. Claro que há muitas coisas que precisam ser ditas, em termos de informação, descrição, pano de fundo e cenário. Mas quanto mais você faz o seu personagem habitar o cenário, usando objetos como dispositivos, mais você estará mostrando ao leitor o mundo da história sem ter que interromper o que está acontecendo para falar sobre ele em maior profundidade. Quanto mais virmos os personagens em ação, melhor.

Algumas dicas:

  • Escreva em voz ativa, em vez de passiva.
  • Evite descrever demais: se você vê que está precisando usar várias palavras para descrever alguma coisa, pode ser que sejam as palavras erradas! Continue pensando até encontrar aquela uma palavra que transmite ao leitor exatamente a ideia precisa que você pretende transmitir.
  • Deixe o leitor habitar a escrita: deixe algumas coisas para a imaginação dele.
  • Deixe os personagens revelarem a si mesmos através de palavras e ações.
  • Evite advérbios.

Retirado do site “The Writers’ Workshop”:

Quase não existem histórias em que o autor não conta nada (telling). E não tem problema: contar coisas é uma técnica bastante útil contanto que fique confinada a seu lugar. De modo geral, você vai querer dar prioridade a contar coisas, em vez de mostrá-las, quando:

  • Você está estabelecendo uma nova cena ou capítulo e deseja que o leitor saiba rapidamente o que está acontecendo.
  • Não há nenhum drama particular com o qual lidar, somente informação necessária.
  • Você quer passar rapidamente por um período de tempo.

Você geralmente vai querer dar prioridade a mostrar coisas (showing) quando:

  • Há ação dramática acontecendo.
  • Há um conflito, especialmente entre um ou mais de seus personagens principais.
  • O incidente diz respeito a um grande desenvolvimento da narrativa.
  • O incidente envolve a revelação de importantes informações novas.
  • As emoções estão intensas.

Edições linha a linha

Uma vez que você tenha trabalhado em revisões maiores de um texto, geralmente depois de vários rascunhos (lembre-se que o livro geralmente fica ruim antes de ficar bom!), você pode se focar em uma edição mais minuciosa. Isso envolve garantir que cada frase do livro seja tão forte quanto possível:

Coisas para observar:

  • Estilo: ele pode ser melhorado? Ele é consistente?
  • Repetições ao nível de frases ou palavras específicas.
  • Garanta que a escrita seja sempre fluente, e as frases nunca sejam convolutas.
  • Expurgue qualquer escrita exagerada ou desnecessária que tenha sobrado.
  • Padronize tempo verbal e padrões gramaticais.
  • Preste atenção ao diálogo: cada personagem fala de sua própria forma? Há alguma intersecção? O diálogo parece natural?
  • Cuidado com advérbios e frases passivas.
  • Tente simplificar as coisas.

Uma resenha em profundidade de “Nature, Essence and Anarchy”, de Paul Cudenec

Uma versão em inglês dessa resenha pode ser lida aqui.

Estou dividido quanto ao livro “Nature, Essence and Anarchy” (“Natureza, Essência e Anarquia”, em tradução livre), título recente do anarquista Paul Cudenec pela Winter Oak, disponível na Amazon. Quis ler esta obra justamente para conhecer melhor os argumentos de um anarquista contemporâneo que defende a ideia de “essência” – coisa rara hoje em dia. E se por um lado não me sinto confortável falando negativamente deste livro  porque não concordo com algumas de suas ideias – e o formato do texto, como nas outras coisas que Paul Cudenec escreve, é bem agradável – há algumas coisas que me incomodaram mais profundamente aqui. Eu gostaria de discuti-las.

O objetivo desta coletânea de textos é apresentar uma filosofia (não apenas política, mas holística) contrária ao capitalismo; uma que sirva, intelectualmente, a tarefa de combatê-lo. O autor considera que ela deve atacar o pós-modernismo, que tem um efeito doentio sobre nosso sistema intelectual, criando uma “paralisia” em ampla escala; há ao longo do livro uma conjunção total entre “pensamento pós-moderno” e “capitalismo”. Para Cudenec, a noção de um mundo “construído” é essencialmente proveniente do capitalismo: para o mundo capitalista construído, tudo o mais também foi construído.

Aware on some level of its own fundamental falsity, it defends itself by projecting that falsity on to everything else that exists, in order to level the playing field and create a theoretical realm in which its own artifice no longer stands out as aberrant, alien, toxic. It becomes impossible to accuse capitalism, in particular, of being fake if you accept its big lie that everything, in general, is fake, and that there is no such thing as truth, meaning, origin, essence and nature. (p. 2)

Assim, a solução para escapar ao capitalismo passa também por rejeitar a ideia de que toda realidade é socialmente construída – aceitando que somos parte da natureza (e que uma natureza real e independente ao qual nos apegar) e, em segundo lugar, que a forma como deveríamos nos organizar, se entendermos corretamente nosso lugar enquanto parte da natureza, é o anarquismo.

Mas o pós-modernismo surgiu justamente em parte porque não ter entendido a realidade como socialmente construída foi causa de muitos problemas. Como lembra Graeber, “Stalinistas e sua corja não matavam porque sonhavam grandes sonhos […] mas porque achavam erroneamente que seus sonhos fossem certezas científicas”. Mas é possível dizer que embora os positivistas e afins tivessem afirmado um entendimento do real, fizeram-no mediante uma separação entre humanidade e natureza que é em Cudenec (de forma acertada) objeto de crítica. Nesse sentido, Cudenec advoga não apenas a consideração do “real”, mas um “real” para além do humanismo instrumentalista exacerbado dos tempos modernos.

É tão estranho assim admitir que “somos parte da natureza” e que “a natureza é algo real, e nem tudo é socialmente construído”? Claro que não. Mas isso é um truísmo, e o diabo está nos detalhes – com os quais Cudenec infelizmente não lida. Se teóricos pós-modernos apenas dissessem “não há natureza, apenas subjetividade”, isso também, de certa forma, seria uma afirmação fraca. É preciso mostrar, argumentar – como faz Derrida, por exemplo, na longa e deliciosa surra que dá em Lévi-Strauss, e toda sua teoria ao redor da proibição do incesto, em “Gramatologia”. A natureza é real, tudo bem, mas o que é a natureza? Cudenec não nos dá uma definição. Pelo menos não uma com a qual se possa trabalhar sem cair numa lógica circular a partir da qual não se pode estar errado nunca. Em um momento, a natureza é o meio-ambiente; em outro, é a essência humana; em outro, é outra coisa – a definição de Paracelso que ele cita é o mais perfeito cop-out: a natureza seria “de fato tudo que vemos diante de nossos olhos: árvores, minerais, animais, doenças, nascimento, morte… Mas o que ela nos dá é sempre algo a mais também: a manifestação de uma realidade ‘mais profunda’ – ainda que no momento não possamos definir essa profundidade mais claramente”. É irônico parafrasear a crítica feita por Sahlins a ninguém menos que Foucault, mas cai como uma luva: quando tudo é natureza, nada é natureza.

Não há nuance no entendimento que Cudenec faz do próprio pós-modernismo. Acho razoável que se diga que ele acaba colaborando com várias instituições que os anarquistas combatem; mas é um passo a mais tratá-la não só como epifenômeno do capitalismo, mas como desenvolvimento deliberado dele. O pensamento pós-moderno é equacionado com o estado de coisas em que vivemos de forma tão agressiva que poderíamos facilmente imaginar que os autores mais conhecidos dessa “tradição” (ha!) não sejam Derrida, Deleuze ou Spivak, mas sim Bill Gates, George Soros ou Rex Tillerson.

Procuro apreciar o pós-modernismo como uma forma de revisar profunda e seriamente nosso aparelho cognitivo, nosso ferramental conceitual. Pode ser que muitos tenham ido longe demais nesse revisionismo? Sim, claro. Como alguém que, por saber que sempre é útil revisar o carro antes de viajar, nunca consegue viajar porque assim que termina uma revisão, começa outra. E, como ouvi uma vez Ricardo Silva dizer, a ausência de assepsia absoluta não justifica que um médico faça uma cirurgia no esgoto. Existe uma impossibilidade prática de considerar que não há realmente uma “realidade” lá fora, e que tudo é uma ilusão, pois fazemos cálculos pragmáticos a cada segundo de nossas vidas. Apesar disso, nossa “necessária subjetividade” força a admitir que, no fundo, no fundo, podemos estar sonhando, ou vivendo uma realidade simulada: apesar da corretíssima regra quanto ao “ônus da prova”, o fato de que algo não é falseável só coloca a afirmação além do alcance da ciência, não além do campo do possível. E sim, eu entendo que isto é um agnosticismo perfeitamente criticável também – mas mesmo sem cair nesse cenário extremo, “erros” cognitivos de toda sorte, práticos e consequentes, são muito frequentes. Pessoalmente, considero cem vezes menos prejudicial um pós-moderno convicto do que um positivista / racionalista / dialético que se convenceu de que sabe a verdade e exatamente como se chegar a ela (é tão curioso como a galera da “dialética é tudo na vida” acha que o fato de que fundamentalistas religiosos e “Bolsonaros” estão errados os separa mais do que os une). Se parece óbvio que o desejável mesmo é nem um, nem outro, então o mesmo vale para uma abordagem razoável sobre a cognição humana. A melhor voz que já ouvi (li) discorrer sobre isso é a de Robert Anton Wilson, em Quantum Psychology.

Mas minha defesa do pós-modernismo não se dá apenas por essa malandra tentativa de me apegar ao que há de bom nele e ignorar o que há de ruim; aponto também como são fracas as tentativas de criticá-lo. Na maioria das vezes, o argumento é pragmático – o que é absolutamente ilegítimo do ponto de vista científico. “Se todo mundo acreditar no pós-modernismo, coisas ruins vão acontecer” – mesmo que isso fosse verdade (discutível), não significa que ele está incorreto, infelizmente. “Até Bruno Latour se arrepende de ter dado munição aos anticientíficos” – ele preferiria não ter contribuído, então, com as ciências sociais? Hmm. Talvez seria melhor Darwin não ter publicado sua teoria sobre a transformação das espécies, para não dar munição aos eugenistas? “A visão de que após a morte não há nada é muito amedrontadora, portanto não deve estar certa” – quase literalmente o que Cudenec afirma mais ao final do livro.

Uma visão crítica interessante engendrada por ideias pós-modernas é aquela que enxerga a conexão entre da definição de “naturezas” e “essências” (não importa quão benevolentes e não-“naturofóbicas”) até o julgamento dos que são “contra a natureza”. O autor mobiliza, por exemplo, uma concepção positiva de liberdade (sigo a classificação de Berlin, nesse caso), e há muitas coisas interessantes que ele diz ao fazê-lo; quando advoga, por exemplo, que a “negatividade” de um anarquista – aquilo que é geralmente considerado ruim por estar associado a, digamos, reações agressivas e destrutivas à dominação e à autoridade – é uma positividade uma vez que se relaciona à afirmação de determinados ideais e valores. Ou quando isso serve de crítica ao self liberal de um Rawls. Mas, em última instância, o problema permanece: a mesma estrutura de pensamento, os mesmos argumentos, o mesmo vocabulário de apelação à essência já foi usado com sucesso por grupos com objetivos muito diversos dos nossos – como no fascismo.

O autor fala de Kropotkin, que aparece no primeiro ensaio condenando de forma política a teoria da evolução de Darwin; um pouco depois, mostra-se como sua teoria de evolução a partir da ajuda mútua leva à conclusão de que “o anarquismo é natural – que, deixados por si sós, pessoas e outros animais tendem a cooperar com outros para o benefício coletivo” (p. 9). Hoje – talvez exceto na cultura popular, o que é um grande problema por si só – a biologia leva em consideração a cooperação como um fator importantíssimo do processo evolutivo. Mas a competição, principalmente aquela que não se dá necessariamente a nível consciente (isto é, não um leão violentamente atacando uma gazela, mas uma vegetação que infelizmente não é suficiente para uma população muito grande de animais) não pode ser descartada. Afinal, o que isso equivaleria a dizer? Que a cooperação é natural, mas a competição é antinatural? Se a natureza, ou a realidade, ou O Universo (como no último ensaio), são “tudo que existe”, então como aquilo que é poderia ser de tal forma que deveria não ser? A partir de que categoria deveríamos entender a competição? Pessoas e animais tendem a cooperar – que pessoas? Que animais? Em toda e qualquer situação? É verdade que muitos casos de violência entre seres humanos são usados como propaganda para avançar a ideia de que somos “naturalmente ruins” (e isso é burrice), mas o contrário é igualmente absurdo. E perigoso, também.

O que poderia garantir que nós, anarquistas, estamos certos sobre uma determinada racionalidade acerca da natureza humana? A introspecção, descreve-se (em termos meio místicos) em “Essência e empoderamento”, um dos textos da obra. Temos que olhar fundo para dentro de nós mesmos para descobrir nossa essência. O problema, é claro, é que este olhar não vai estar fora de um determinado contexto. Cudenec acusa o pós-modernismo de ser uma máquina de produzir silêncio (já que não há essência, não se pode falar dela), mas isto é estranho; é claro que se pode. O pós-modernismo não é uma máquina de silêncio – de “sensorial deprivation”, como começa o ensaio – mas uma máquina de “sensory overload”; seu problema é que há um certo estímulo a falar demais, sem foco, e não menos. Justamente por investigar fatores que influenciam o olhar que se empreende em busca da essência, e como os resultados dessa busca serão contingentes e contextuais a depender desses fatores, o pós-modernismo pode fazer parecer que a busca é inútil – mas não é; é preciso apenas se acostumar com a forma como certos critérios não-racionais (como nossos valores) a influenciam. Em outras palavras, o pós-modernismo não impede a introspecção; só avisa que ela jamais será pura.

O autor parece incorporar uma intuição em relação à insuficiência de “razão e introspecção” como caminho para encontrar a essência humana na própria estrutura do texto, especificamente na forma como cita outros autores. No primeiro ensaio, por exemplo, Cudenec está basicamente dizendo: “existe uma realidade objetiva, ela é a (ou faz parte da?) natureza (que é a realidade objetiva, ou faz parte dela – eu não sei!), e aqui está Paracelso, um pensador cujas ideias devemos recuperar, porque… Porque ele concorda comigo!“. Cudenec não argumenta de fato em favor da existência da tal “realidade objetiva” (exceto pela perspectiva pragmática que critiquei acima), e tampouco traz Paracelso à tona para que ele possa fazê-lo! Não há, de fato, argumentação, aqui, por parte de nenhum dos autores: separados por séculos, eles afirmam várias coisas, mas nada necessariamente com mais propriedade que seus adversários.

Quando Cudenec argumenta que há sim uma “realidade objetiva”.

Sim, estou perfeitamente em paz com a ideia de que há uma realidade à qual respondemos – mas é preciso ser exigente ao analisar ideias, e os pós-modernos são muito mais efetivos, mesmo quando argumentam o absurdo que é a negação disso, porque lidam em profundidade com as imensas dificuldades encontradas sempre que se tenta dizer uma letra sequer sobre o que esta realidade é. Se afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias, não é muito impressionante quando alguém vem dizer que é capaz de produzir um conhecimento útil e objetivo sobre a realidade humana se não vier com argumentos e indícios bem amarradinhos quanto a isso. Isso é algo que Graeber, por exemplo, ao beber da fonte de décadas de pesquisas antropológicas, faz de forma bem mais contundente (embora ainda reconheça no começo de “Fragmentos de uma antropologia anarquista”, citado acima, o perigo de uma disposição intelectual segura de si em demasia).

Mas o problema mais fundamental com a premissa de Cudenec é seu enquadramento crítico. Ele se pergunta: como podemos chamar o capitalismo de falso se tudo é falso e se não há mais significado, verdade, natureza, essência, etc? A resposta é simples: porque não precisamos chamá-lo de falso. Podemos chamá-lo de ruim. De contraproducente. E de anti-ético. Jesse Cohn demonstrou, no livro que mencionei acima, como o pós-modernismo é incapaz de produzir uma crítica ética da atualidade, uma vez que abandona este tipo de parâmetro ao relativizar tudo (e nisto Cudenec acerta em cheio). Contudo, isso não tira o mérito da crítica que ele promove aos riscos agudos da representação – uma operação necessária no pensamento que afere as “essências” e as “naturezas” dos seres. Por exemplo, uma parte muito boa do livro está na página 14:

in a world that sees only atomised individuals creating their own subjective realities, what place is there for this collective level of human life […]? In our capitalist world of separation, any authentic communal belonging has to be destroyed so that each isolated individual has to turn to the system for their sense of identity, which is sold back to them in fake form as part of a lifelong process of exploitation based on dispossession.

Essa é uma crítica muito bem colocada, mas a forma geral do argumento ao longo do ensaio não se sustenta. A construção da figura do ser humano como separada dosuperior ao resto da natureza vem de no mínimo Descartes, e é justamente o tipo de coisa que o pós-modernismo condena. No entanto, numa conjunção muito mal explicada, essa separação entre humanidade e natureza é equacionada à ultrassubjetividade pós-moderna, como se a ideia de um ser humano independenteacima da natureza surgisse com Lyotard em 1979. A própria ideia de um “humanismo instrumentalista” como muito recente é estranha, considerando que a própria noção cristã de mundo é uma em que a terra e os animais foram criados por Deus para a satisfação das necessidades humanas. Certamente isto tudo não é um “lapso” por parte do autor: é mera consequência lógica da equalização de saída que se faz entre a filosofia pós-moderna e o capitalismo contemporâneo.

Na página 16, ao final do artigo, temos outra boa parte:

If our everyday experience is of traffic jams, shopping malls and office blocks, if our minds are constantly filled with images of consumerism, domination and war, how are we to see the world as “a vast organism in which natural things harmonise and sympathise between themselves”? The answer is in our imagination. As anarchists have long understood, another world is always possible and will flourish in our collective mind long before it becomes a physical reality. We need to imagine ourselves out of the suffocating confines of industrial capitalism, leaping over all the barriers of lies that it has erected around us.

Isto é muito bom; não só em termos retóricos, mas também lógicos. Sim, nossa imaginação encontra-se sob assalto – não só da mesma forma como toda imaginação é constrangida pela experiência e as estruturas sociais às quais ela se relaciona, mas também como na análise de Graeber acerca do “assalto à imaginação”, no qual o neoliberalismo basicamente se resume. E a consideração do mundo do possível é essencial: é uma realização acerca da hermenêutica e da estética anarquistas conforme expostas por Cohn, embora, curiosamente, elas tenham muito em comum com a tríade conceitual de “real”, “atual” e “virtual”, de Deleuze e Guattari. No entanto, este belo parágrafo logo cai em uma nova armadilha à medida que a construção dessa imaginação se dá através de um “sonho” com a “autenticidade”:

We need […] to allow nature to dream itself into the core of our inner being. “Freedom for Paracelsus is anything but the arbitrary will of the subject,” says Braun. “It is not defined on the basis of the subject, of the will of the subject. Instead, it’s an act of letting-be, letting nature illuminate itself in us”.

O que seria ótimo, se apenas a ideia de natureza não fosse ela mesma sempre contingente e socialmente construída! É ótimo que Cudenec pense na natureza humana dessa forma – mas isso é filosofia política; e enquanto ideia sobre as atitudes dos seres humanos, não tem força nenhuma a não ser que esteja operante em suas cacholas. A “natureza” não vai iluminar ninguém espontaneamente na direção do anarquismo a não ser que os anarquistas tenham sucesso em convencer as pessoas de que a natureza funciona dessa forma – porque até que o façam, a natureza vai dizer (e está dizendo) coisas distintas – aliás, para pessoas distintas.

Mas consideremos também, por um momento, o argumento pragmático; mesmo que se possa considerar o capitalismo e o pós-modernismo em seus termos, como fenômenos não automaticamente idênticos, ainda resta a possibilidade (como dito acima, bastante razoável), de que ele mais “atrapalhe” do que “ajude”. É nesse sentido que Cudenec cita a famosa obra de George Orwell: já que o “pós-modernismo” (ou uma versão antecipada de sua versão mais caricata) contribui com o governo autoritário descrito na ficção distópica, em nossa própria distopia atual ele também seria prejudicial.

Contudo, creio que há uma perda de foco quanto à mensagem do livro; quem sabe até uma inversão entre causa e consequência que impede que o pós-modernismo possua algumas qualidades redentoras. Não é que o “pós-modernismo” esmague a possibilidade de revolta e transformação: quem faz isso, em 1984, é a violência, a força; o poder concentrado na autoridade e disposto em um sistema hierárquico intensamente repressor. Cudenec trata como causa (o personagem principal, no fim do livro, acreditando que não há realidade objetiva), ou mesmo condição mínima, o que deveria ser compreendido como consequência incidental (não é à toa que esta parte é a última do livro).

Não é que o governo deseja que as pessoas parem de olhar pra realidade e passem a encarar tudo como relativo; não, é que ele tem o poder de machucá-las, de controlar o fluxo de informações (efetivamente destruindo-as, parte do trabalho de Winston) e controlar recursos, o que ajuda a manter e perpetuar este controle. Se não fosse por todo esse controle exercido à força, o pensamento pós-moderno teria sido absolutamente inconveniente, pois a factualidade, e principalmente as intenções do que o governo está dizendo seriam questionados.

O problema aqui não é tanto o pós-modernismo, mas a lógica mais profunda da dominação, que usaria para o mesmo objetivo palavras que Cudenec tanto adora: diria que a natureza humana é assim ou assada, da maneira como lhe convém. E não me parece muito histórico, em termos dos exemplos que temos, dizer que se uma concepção de natureza humana é errada ela simplesmente não vingará: tendo definido a realidade de uma certa maneira, e apoiando-se em algumas ferramentas de controle ideológico, de recursos e de violência, grande parte do que aparece depois, mesmo coisas de cunho científico, será vista de forma enviesada, que reforce aquilo em que se acredita. Por isto que digo, ainda, que o “pós-modernismo” acaba sendo uma consequência “incidental”: O’Brien leu o diário de Winston. A tortura à qual o personagem principal é submetido pode ter sido “customizada” para ele: quando a ideia de uma realidade objetiva é o que ancora Winston a uma fagulha de esperança e rebeldia, é isso que tem que ser destruído. Mas para outro detento – alguém cuja rebeldia vem de um questionamento profundo e conceitual sobre todo o mundo que foi construído ao seu redor – a melhor tática pode ser reforçar justamente a ideia de que certas coisas fixas e imutáveis, e que o governo está simplesmente promovendo-as, guardando (mesmo que com “remédios amargos”) seus cidadãos de males maiores, as coisas “antinaturais”.

Em ambos os casos, o que há em comum é o Estado e o controle totalitário que exerce. Mas apesar da leitura de 1984, que considero um pouco limitada, a relação entre o pensamento pós-moderno e este controle em pelo menos uma narrativa possível do mundo que Orwell criou é clara, e nos força a pergunta: o maior inimigo do anarquismo ainda é um conjunto de concepções fixas sobre o que o mundo é, o que as pessoas são, e como tudo funciona? Ou a tendência do pós-modernismo a dissolver certezas é ainda pior? Cudenec está triste porque acredita que o pós-modernismo dissolveu as certezas de que ele gosta; mas o poder das ideias de relativização e da desconstrução serve para dissolver qualquer uma, inclusive algumas ideias modernas que ele condena (como as próprias religiões organizadas – ou o Estado!). De minha parte, ainda creio que o poder dessa dissolução pode ser mobilizado de forma produtiva. Mas a questão estratégica maior que Cudenec põe através desse ataque frontal a algumas formas improdutivas dessa dissolução é fascinante.

Há, assim, dois eixos de discussão que o livro levanta, e que considero ser grandes méritos dele: não só a questão sobre qual é a maior ameaça à construção da autonomia popular, mas também até que ponto nossa relação com a ideia de construção não informa nossa estratégia de maneira singular. O autor tem um grande problema, parece, com coisas “construídas” em oposição a “naturais”. Mas, se a “essência humana” é de fato tão anárquica, por que, após centenas de milhares de anos vivendo no planeta Terra, nos encontramos, enquanto espécie, na situação em que nos encontramos? O autor acaba preso num certo paradoxo de Godwin – se o poder corrompe a verdade, como pode a verdade derrubar o poder? Em Cudenec, temos uma construção intelectual que corrompe a essência humana, mas a essência humana ainda pode ser usada para derrotar essa construção (… mas como, se foi corrompida? Foi ou não foi corrompida?). Claro que Cudenec é mais “dialético” (o que o crítico alemão Bode diz que falta a Godwin), mas ele precisaria, para sair do paradoxo, admitir que é preciso mais do que a existência de uma natureza humana objetiva; é preciso que ela seja efetivamente construída enquanto tal para que tenha efeito enquanto tal, o que deslegitima qualquer asserção mais contundente sobre o que ela é independente daquilo que a fazemos ser. Pior do que isso, aliás, é não só sua aproximação ao grande problema filosófico de Godwin, mas ao pragmático de Marx. Quanto mais se pinta a natureza humana como dotada de um poder extraordinário de permanência e identidade, menos é necessário, suponho, que façamos algo para que ela supere as restrições artificialmente impostas sobre ela pelo capital e o Estado.

Tendo dito isto, me pergunto se realmente posso criticar Paul Cudenec de forma tão abrasiva. Afinal, o que é que estou observando? Um trabalho de filosofia? De teoria política? Ou um panfleto? Como questionou-se Cohn, objetando a ideias como as de Fish e Rorty sobre textualidade: como convencer alguém de alguma coisa reconhecendo que ela não é uma verdade absoluta? Isso me lembra, por outro lado, do que Graeber diz sobre o valor da experiência e como é muito mais difícil convencer as pessoas na teoria de que algo é possível – é geralmente mais eficaz fazê-lo de fato, mostrando na prática que é possível. E efetivar uma possibilidade não significa um monopólio sobre o entendimento da natureza humana (se o Occupy Wall Street foi possível, então somos todos anarquistas); prova apenas que uma possibilidade em relação à natureza humana foi efetivada a partir dos nossos esforços conscientes, que foram empreendidos com base em valores éticos que consideramos bons através dos nossos valores, valores estes cultivados a partir de experiências (embora seja possível passar por uma experiência e não gostar dela… O que acabaria reafirmando outro valor, suponho?).

Não é que a realidade não exista e que não haja uma tendência maior por parte dela, e assim da “natureza humana”, para que certas possibilidades sejam realizadas. Mas, pelo menos de minha “natureza” enquanto acadêmico (ha!), procuro ter muito cuidado ao fazer essas afirmações, e o ceticismo pós-moderno pode ajudar um pouco no sentido de que quando empregamos nossa racionalidade para definir e entender exatamente essa natureza, não raro cometemos erros que custam caro. Não estou dizendo que Cudenec está errando em suas concepções sobre a natureza, ou a essência humana, e especialmente não estou dizendo que quaisquer erros seus custem caro – mas talvez sua falta de inibição, de um certo cuidado cuja afeição pelo pós-modernismo seja compreensível por ser academicista, é justamente o recurso que lhe permite construir um panfleto poderoso, um discurso inspirador que possa efetivar possibilidades humanas anarquistas. Nessa perspectiva, seu discurso aparece realmente como algo potente: poético, sonhador e aguerrido. Não o tipo de coisa que cientistas políticos dizem, mas o tipo de coisa que constitui objeto de estudo da disciplina; os feitos e dizeres daqueles que tiveram a coragem de defender grandes ideias de um jeito grande. Como é que eu vou falar mal de uma coisa dessas?

An in-depth review of Paul Cudenec’s “Nature, Essence and Anarchy”

A Portuguese version of this review may be read here.

I’m split regarding “Nature, Essence and Anarchy” (Winter Oak), recent work by anarchist comrade Paul Cudenec, available at Amazon. I wanted to read it to get to know better the arguments of a contemporary anarchist who defends the idea of “essence” – a rarity these days. And if on the one hand I don’t feel exactly comfortable talking negatively of this book solely because I do not agree with some of its ideas – and Cudenec’s writing style is as pleasant as usual – there are some things that have bothered me more deeply here. I’d like to discuss them.

The goal of the book is to present a (not only political, but holistic) philosophy to counter capitalism; one that serves, intellectually, the task of combatting it. The author posits that this philosophy must attack postmodernism, which the author deems as having a sickly effect over our intellectual system, creating a large scale “paralysis”; there is a complete conjunction between postmodern thought and capitalism. For Cudenec, the notion of a “constructed” world basically comes from capitalism: “for the constructed capitalist world, everything else has also been constructed” (p. 2):

Aware on some level of its own fundamental falsity, it defends itself by projecting that falsity on to everything else that exists, in order to level the playing field and create a theoretical realm in which its own artifice no longer stands out as aberrant, alien, toxic. It becomes impossible to accuse capitalism, in particular, of being fake if you accept its big lie that everything, in general, is fake, and that there is no such thing as truth, meaning, origin, essence and nature. (p. 2)

Hence, escaping capitalism entails rejecting the idea that reality is simply socially constructed – accepting that we are a part of nature (and that there is a real and independent nature for us to attach to) and, secondly, that we should organize ourselves, if we understand our place in nature correctly, as anarchists.

Postmodernism, however, began precisely in part because not understanding reality as socially constructed has caused many problems. As Graeber reminds us, “Stalinists and their ilk did not kill because they dreamed great dreams … but because they mistook their dreams for scientific certainties.” But it is possible to say that even though positivists and the like affirmed an understanding of reality as an objective truth, they did it by separating humanity from nature, and this Cudenec (rightly) criticizes. In this sense, Cudenec advocates not only for the consideration of an “objective reality”, but also a “real” that is beyond a certain instrumentalist humanism that has been exacerbated in recent times.

Is it so weird to admit that we are “part of nature” and that “nature is real, and not everything is socially constructed?” Of course not. But this is a truism, and the devil is in the details – with which Cudenec unfortunately does not deal. If postmodern theorists only said “there is no nature, only subjectivity,” that would also be a weak assertion. It is necessary to demonstrate, to argue – as does Derrida, for instance, in the long and tasty beating it gives Lévi-Strauss, and his whole theory around the prohibition of incest, in “Of Grammatology”. Nature is real, fine, but what is nature? Cudenec does not give us a definition. At least not one we can work with without falling into a circular logic in which it is impossible to ever be wrong. There, nature is the environment; here, is the human essence; later, it’s something else – the definition he quotes from Paracelsus is the perfect cop-out: nature would be “indeed everything that we see before our eyes: trees, minerals, animals, diseases, birth, death… But what it gives us is always something else as well: the manifestation of a ‘deeper’ reality – although for the time being we cannot define this depth more clearly.” It is ironic to paraphrase the criticism written by Sahlins to none other than Foucault, but it fits like a glove: when everything is nature, nothing is nature.

There is no nuance in this vision of postmodernism: I think it quite reasonable to say of this myriad of theoretical perspectives that it ends up collaborating with various institutions that anarchists fight; but treating it not only as an epiphenomenon of capitalism, but as a deliberate development from it, goes beyond. Postmodern theory is so aggressively equated with the state of things we live in that we can easily imagine the more well-known authors of this tradition (ha!) as being not Derrida, Deleuze or Spivak, but Bill Gates, George Soros or Rex Tillerson.

The way I value postmodernism is as a tool to review our cognitive system, to be en garde against conceptual mistakes of a deeper kind. Is it possible that many postmodern thinkers have gone too far in this revisionism? Yes, of course. They act like someone who, knowing that it is useful to check the vehicle before a big road trip, never gets to actually travel, for as soon as the mechanic is done he starts the process of checking again. As I heard my professor Ricardo Silva say once, the impossibility of absolute asepsis does not justify a surgeon operating in the sewer. There is a practical impossibility of actually considering there is not a “reality” out there with which to interact, because we calculate things pragmatically every second of our lives. Despite that, our “necessary subjectivity” forces us to admit that, deep, deep down, we could really be dreaming or living in a simulated reality: a non-falsifiable fact just puts it beyond the grasp of science, it doesn’t make it impossible. And yes, I understand this is a perfectly criticizable agnosticism as well – but even ignoring these extreme scenarios, cognitive “errors” of all kinds, practical and consequential ones, are very frequent. Personally, I consider a staunch postmodern a hundred times less worrisome than a positivist / rationalist / ‘dialectics is life’ individual who is convinced (s)he knows the truth and exactly how to get to it (it is so curious how hardcore marxists think that the fact that religious fundamentalists and Trump supporters are wrong separates them, since it is rather a common feature). If it seems obvious that neither one nor the other is desirable, the same goes for a reasonable approach to human cognition. The best thing I have ever read on the subject is Robert Anton Wilson’s Quantum Psychology.

But my defense of postmodernism does not amount to this hacky attempt at holding on to the best it has to offer while ignoring its bad aspects; I also like to point out how weak the attempts at criticizing it are. Most of the times the argument is a pragmatic one – which is absolutely illegitimate from a scientific standpoint. “If everyone believes in postmodernism, then bad things are going to happen” – even if this were true (debatable), it doesn’t mean postmodernism is wrong, unfortunately. “Even Bruno Latour regrets ‘arming’ anti-scientific propagandists” – so he would rather not have contributed, then, with social sciences? Hmm. Maybe it would have been better if Darwin had not published his theory on the transformation of species, since then he wouldn’t hand out ammunition to eugenists. “The vision that there is nothing after death is too scary, therefore it must not be right” – almost literally what Cudenec states towards the end of the book.

A prolific critical viewpoint engendered by postmodern ideas is that which sees the connection between the definition of “natures” and “essences” (it doesn’t matter how benevolent and non-“naturephobic”) and the judgment of those who are “against nature”. The author mobilizes, for instance, a positive conception of liberty (I’m following Berlin’s scheme here), and there are many interesting things he says while doing it; when he advocates, for instance, that the “negativity” of an anarchist – that which is often considered bad for being associated to, say, aggressive and destructive reactions to domination and authority – is a positivity since it is related to the affirmation of some ideas and values. Or when it serves as criticism of the liberal self of a Rawls. But ultimately the problem remains: the same structure of thought, the same arguments, the same vocabulary appealing to essence has already been successfully used by groups with goals very diverse from ours – such as fascists.

The author discusses Kropotkin, who appears in the first essay politically condemning Darwin’s theory of evolution; later on, it is shown how Kropotkin’s theory of evolution based on mutual aid leads to the conclusion that “anarchism is natural – that, left to their own devices, people and other animals tend to co-operate with others for their collective benefit.” (p. 9) Today – except maybe in popular culture, which is a big issue in itself – biology takes cooperation into consideration as a very important factor of the evolutionary process. But competition, particularly that which is not necessarily a conscious phenomenon (that is, not lions violently hunting game, but not enough grass for a given population of grass-eating animals) can not be discarded. After all, what would that amount to? Would it mean that cooperation is natural, and competition is antinatural? If nature, or reality, or The Universe (with capital letters, as in the last essay), is “everything that exists”, then how is it that that which is could be in a way that it should not be? How should we categorize and understand competition? People and animals tend to cooperate – what people? What animals? In every and any situation? It is true that a lot of cases of violence among human beings are used as propaganda to advance the idea that we are “naturally bad” (and this is stupid), but the contrary is equally absurd. And dangerous, as well.

What could guarantee that we, anarchists, are right about a certain rationality regarding human nature? Introspection, Cudenec writes (in somewhat mystical terms) in “Essence and empowerment”, one of the essays. We have to look deep down into ourselves in order to find our essence. The problem, of course, is that this “look” doesn’t exist outside of a given context. Cudenec accuses postmodernism of being a silence-producing machine (since there is no essence, we can’t talk about it), but this is weird; of course we can. Postmodernism isn’t a machine that makes silence – a “sensorial deprivation” one – but rather one that produces too much noise; a “sensory overload” one. Its problem is that there is a certain stimulus to talk too much, without a focus. Exactly for investigating factors which influence the looking one might do in search of an essence, and how the results of such quest will be contingent and contextual and depending on these factors, postmodernism might make it seem like the search is useless – but it isn’t; one must only get used to the way certain non-rational criteria (such as our values) shape it. In other words, postmodernism does not impede introspection; it just warns it will never be pure.

The author seems to incorporate an intuition regarding the insufficiency of “reason and introspection” as a path to finding the human essence in the structure of the text itself, specifically in the way he cites other authors. In the first essay, for example, Cudenec is basically saying: “there is an objective reality, it is (or is part of?) nature (which is the objective reality, or is part of it – I don’t know!), and here is Paracelsus, a thinker whose ideas we should get back to, because… Well, because he agrees with me!” Cudenec does not actually argue in favor of the existence of such “objective reality” (except from the pragmatic perspective I’ve criticized above), and does not bring up Paracelsus to do that either! In fact, there is no arguing here, from any of the authors: separated by centuries, they claim many things, but not necessarily with any more propriety than their adversaries.

When Cudenec says there is indeed an “objective reality”.

Yes, I’m perfectly in peace with the idea that there is a reality we respond to – but we have to be demanding when analyzing ideas, and postmodern authors are much more effective at making their case, even when they argue the absurd that is the denial of objective reality, because they deal in depth with the immense difficulties we encounter everytime we try to say a single thing about what this reality is. If extraordinary claims require extraordinary proof, it isn’t very impressive when someone says they’re capable of producing useful and objective knowledge on reality if they don’t back it up with tightly arranged evidence. This is something that Graeber, for instance, by using as source decades of anthropological research, does way more convincingly (even though he recognizes, in the beginning of “Fragments of an anarchist anthropology”, the dangers of an intellectual disposition of too much certainty about things).

But the fundamental issue with Cudenec’s premise is its critical framing. He wonders: how can we call capitalism fake if everything is fake and there is no more meaning, truth, nature, essence, etc? The answer is simple: we don’t have to call it fake. We can call it badCounterproductive. And anti-ethical. Jesse Cohn has demonstrated, in the book I mentioned above, how postmodernism is incapable of producing an ethical criticism of actuality, once it abandons this kind of parameter when it makes everything relative (and in this Cudenec is absolutely right). However, this does not strip of its merits the criticism, made by postmodern authors, of the acute risks with representation – a necessary operation in a thought concerned with the “essences” and “natures” of beings. For instance, in a very good excerpt of the book on page 14:

in a world that sees only atomised individuals creating their own subjective realities, what place is there for this collective level of human life […]? In our capitalist world of separation, any authentic communal belonging has to be destroyed so that each isolated individual has to turn to the system for their sense of identity, which is sold back to them in fake form as part of a lifelong process of exploitation based on dispossession.

This is very well said, but the general form of the argument throughout the essay doesn’t hold up. The construction of the human being as separated from and superior over the rest of nature comes at least from Descartes, and it’s precisely the kind of thing postmodernism condemns. However, in a very badly explained mixture, this separation between humanity and nature is equated to the postmodern ultra-subjectivity, as if the idea of a human being independent from and above nature was created by Lyotard in 1979. The idea of an “instrumentalist humanism” itself as recent is weird, considering that the Christian notion of the world is one in which everything was created by God to satisfy our needs. This certainly isn’t a “lapse”, something the author forgot to think about; it is a logic consequence of outright equating postmodern philosophy and contemporary capitalism.

On page 16, at the end of the essay, another good part:

If our everyday experience is of traffic jams, shopping malls and office blocks, if our minds are constantly filled with images of consumerism, domination and war, how are we to see the world as “a vast organism in which natural things harmonise and sympathise between themselves”? The answer is in our imagination. As anarchists have long understood, another world is always possible and will flourish in our collective mind long before it becomes a physical reality. We need to imagine ourselves out of the suffocating confines of industrial capitalism, leaping over all the barriers of lies that it has erected around us.

This is excellent; not only rhetorically, but also logically. Yes, our imagination is under assault – not only in the same way every imagination is always constrained by the experiences and social structures it relates to, but also as in the analysis by Graeber related to the “attack on imagination”, which is what neoliberalism basically is. And considering the world of the possible is essential: it is a realization concerning hermeneutics and anarchist aesthetics that Cohn reaches, although, curiously, it has a lot in common with the conceptual triad of “real”, “actual” and “virtual” found in Deleuze and Guattari. However, this beautiful paragraph falls into a new trap as soon as the construction of this imagination is said to happen by means of a “dream” with “authenticity”:

We need […] to allow nature to dream itself into the core of our inner being. “Freedom for Paracelsus is anything but the arbitrary will of the subject,” says Braun. “It is not defined on the basis of the subject, of the will of the subject. Instead, it’s an act of letting-be, letting nature illuminate itself in us”.

Which would be great, if only the idea of nature weren’t itself always contingent and socially constructed! It is great that Cudenec thinks of human nature this way – but this is political philosophy; and as an idea on the attitudes of human beings, it has no strength unless it is actually operating in their heads. “Nature” won’t illuminate anyone spontaneously in the direction of anarchism unless anarchists are able to successfully convince people that nature works this way – because until they do, nature will tell them (and is telling them) different things – to different people, by the way.

But we can also consider, for a moment, the pragmatic argument; even if capitalism and postmodernism can be analyzed on their own terms, as distinct, non-automatically identical phenomena, there still remains the possibility (a quite reasonable one) that it helps less than it harms. It is in this sense that Cudenec cites Orwell’s famous work 1984: since “postmodernism” (or an anticipated version of its most stereotyped version) contributes to the authoritarian government described in the dystopic fiction, in our own current dystopia it would also be harmful.

However, I believe there is a misunderstanding regarding the message of the book; maybe even an inversion of cause and consequence that prevents us from seeing postmodernism as having redeeming qualities. It is not that “postmodernism” crushes the possibility of revolt and transformation in the book: what does that, in 1984, is violence, force; power concentrated in an authority and organized in an intensely repressive hierarchical system. Cudenec treats as cause (the main character, by the end of the book, believes there is no objective reality), or even minimal condition, what should be seen as an incidental consequence (it is not by chance that this is the last part of the book).

It is not that the government wants people to stop looking at reality and start thinking about everything as relative; no. It is that it has the power to hurt them, to control the flow of information (effectively destroying them, which is part of Winston’s job) and to control resources, which helps keep and perpetuate this control. If it weren’t for all this domination, postmodern thought would have been absolutely inconvenient, since the actuality and the intentions of what the government said would be questioned.

The problem here is not postmodernism, but the deeper logic of domination – which would even use for the same goal words and concepts Cudenec adores: human nature is this or that, according to what was needed. And it doesn’t strike me as historical to say that if a certain conception of human nature is wrong it will simply not stand: having defined reality in a certain way, and finding support on some tools of control over ideas, resources and violence, a great deal of what shows up later, even the scientific kind of evidence, will be seen through a biased perspective, reinforcing that which is already believed in. That is why I add that the “postmodernism” in 1984 is incidental: O’Brien read Winston’s diary. The torture to which the main character is subjected may have been “customized” for him: when the idea of an objective reality is what anchors Winston to a shred of hope and rebellion, this is what must be destroyed. But for another detainee – one whose rebellion comes from a deep and conceptual questioning of the world that has been built around him or her – the best tactic might be to reinforce precisely the idea that there are certain fixed and immutable things, and that the government is simply promoting them, keeping its citizens safe (even if by means of “bitter medicine”) from bigger worries, the “antinatural” stuff.

In common in both cases, the State and the totalitarian control it works. But despite this reading of 1984, which I consider a tad limited, the relationship between postmodern thought and this control in at least one possible Orwellian narrative is clear, and forces us to wonder: is the biggest enemy to anarchy still a group of fixed notions about what the world is, what people are, and how everything works? Or is the certainty-dissolving postmodern trend even worse? Cudenec is sad because he believes postmodernism destroyed the certainties he likes; but the power of relativization and deconstruction serves to dissolve any other idea, including some modern ones he condemns (such as organized religions – or the State!). I still believe the power of this dissolution can be mobilized in a productive way. But the bigger strategic question Cudenec puts out through this frontal attack to some non-productive forms of this dissolution is fascinating.

There is, thus, two axis of discussion the book brings about, which are great merits of the work: not only the question as to what the biggest threat to the construction of popular autonomy is, but also to what extent our relationship with the idea of construction informs our strategy in a singular manner. The author takes issue, it seems, with “constructed” things in opposition to “natural” ones. But, if “human essence” is in fact so anarchic, why, after thousands of years on planet Earth, we find ourselves, as a species, in the situation we do? The author locks himself into a certain paradox of Godwin – if power corrupts truth, how can truth topple power? If we are to believe Cudenec, an intellectual construction corrupts human essence, but human essence can still be used to defeat this construction (… but how, if it has been corrupted? Has it been corrupted or has it not, after all?) Of course Cudenec is more “dialectic” (what is lacking in Godwin, according to German critic Bode), but in order to get out of the paradox, he would need to admit it takes more than the existence of an objective human nature, since for it to have effects on reality it needs to be effectively constructed as such, which de-legitimizes any stronger assertion on what it is independently of what we make it to be. Worse than that, by the way, is not only his proximity to the philosophical problem in Godwin, but to the pragmatic one in Marx. The more you paint human nature as gifted with an extraordinary power of permanence and identity, the less it is needed, I suppose, that we actually do anything for it to overcome the restrictions artificially imposed over it by the capital and the State.

Having said that, I wonder if I can really criticize Paul Cudenec so abrasively. After all, what is it I’m reviewing? A work of philosophy? Of political theory? Or a pamphlet? As Cohn has noted, objecting to Fish and Rorty’s ideas on textuality: how to convince anyone of anything through the recognition that it is not an absolute truth? This also reminds me, on the other hand, of what Graeber says of the value of experience and how it is much harder to theoretically convince people something is possible – it is generally more efficient to do something, showing in practice that it is possible. And showing a possibility is real does not mean a monopoly over the understanding of human nature (if Occupy Wall Street was possible, then we’re all anarchists); it proves only that a possibility regarding human nature was made real through our conscious efforts, which have been made based on ethical grounds related to our values, which in turn have been cultivated from experiences (though it is possible to go through an experience and not come out at the other end with the same set of values learned from it… Which would end up reaffirming another value, I suppose?).

It is not that reality doesn’t exist and there is not a bigger trend related to it and “human nature”, such that certain possibilities enter into effect more often. But, at least from the perspective of an academic, I want to be very careful about these assertions, and postmodern skepticism can help a little in the sense that when we do use our rationality to define and understand this nature, it is not uncommon for us to commit costly mistakes. Now I’m not saying Cudenec is making a mistake, let alone a costly one – but maybe his disinhibition, his lack of care for postmodernism, is precisely what allows him to build a powerful pamphlet, an inspiring discourse that can turn anarchist human possibilities into reality. Not the kind of thing political scientists say, but the kind of thing they study; the deeds and words of those who were bold enough to bravely defend big ideas. How am I to speak ill of such a thing?

Perguntas e respostas sobre quão apropriado é dar socos em nazistas (com comentários)

Uma tradução deste artigo, além de alguns comentários que achei relevantes.

Eu posso socar nazistas?

Não sei. Você pode?

Eu tenho a capacidade física para fazê-lo, sim.

Então você deveria.

Eu tenho permissão para tal?

A resposta para isso também é sim.

Minha mãe me disse que a violência nunca é a resposta.

Minha mãe também disse que eu sou lindo; você não pode sempre ouvir a sua mãe.

O que aconteceu com “deixar o outro atacar primeiro”?

Nazistas não atacam primeiro com socos. Nazistas queimam o primeiro parlamento.

A esquerda não deveria ser composta por pessoas tolerantes?

Deveria ser composta por pessoas inteligentes, também, mas ela continua caindo nessa merda de “eu achei que vocês eram tolerantes”.

E o diálogo?

Diálogo é para pessoas razoáveis agindo em boa fé. Diálogo é entre duas posições aceitáveis. “Precisamos aumentar os impostos” contra “precisamos baixar os impostos” é algo que pode ser dialogado. “Precisamos aumentar os impostos” contra “Precisamos queimar os judeus em fornos” justifica uma surra.

Mas isso não é se rebaixar ao nível deles?

Isso depende. Depois de socar um nazista, você adota os princípios do nazismo?

Não.

Então você é melhor que um nazista.

Mas isso não dá razão para o inimigo?

O inimigo nesse caso é um bando de mentirosos filhos da puta que retorcerão qualquer coisa que você disser até que vire um balão em forma de suástica; se você não disser nada, vão simplesmente inventar alguma coisa. Mais vale socar um nazista.

E o que aconteceu com paz, amor e compreensão?

Ótimos objetivos, e uma vez que nos livremos dos nazistas podemos trabalhar neles. Todos os três são impossíveis quando há nazistas por perto.

Quando você deveria socar um nazista?

Sempre que tiver a chance. De preferência quando não estão olhando.

E se eles forem menores que você?

Acerte-os com o seu punho.

E se forem maiores?

Acerte-os com um taco de beisebol.

Isso não é uma ladeira escorregadia? Quando menos se espera, vamos estar socando todo mundo com quem discordamos?

Depois que derrotamos os nazistas na Segunda Guerra Mundial, continuamos atirando nas pessoas ou as tropas voltaram para casa e começaram a fazer bebês?

A segunda opção.

Pronto. O argumento da ladeira escorregadia é besteira em nove a cada dez vezes. Seres humanos são bons com ladeiras escorregadias: nós construímos escadas.

E se você achar que está socando um nazista, mas só está socando um branco com um cabelo idiota?

Corra.

O que você deveria fazer se socar um nazista?

Você deveria correr, também. Não me leve a mal: socar nazistas ainda é ilegal. Estamos discutindo moralidade.

Mas eu não quero socar ninguém.

Então mexa esse traseiro, senhor, e dê ajuda às pessoas nas linhas de frente do combate. Estamos todos juntos nisso. De novo.

Comentários

Jay escreveu:

Bom artigo, de fato eu ri.

Mas falando sério, eu me senti um pouco estranho quando ouvi sobre o que aconteceu pela primeira vez. Não me leve a mal, eu detesto nazistas, os velhos e os novos. Mas tendo levado um soco de surpresa, eu desprezo essa prática.

Para mim, se você vai acertar alguém em nome de um princípio, então faça com que o soco seja justo.

ThatJewishGirl respondeu a Jay:

Olha. Eu não vou esperar por literalmente um hematoma na minha cara para colocar alguns nos meus punhos. Eu sou muito nervosa (e muito bonita) pra isso. Eles já pintaram suásticas no painel da HUC (Universidade Judaica), e ameaçaram JCCs (Centros Comunitários Judaicos) com bombas, e isso pra mim é o bastante para começar a distribuir porradas.

Margaret Woods também respondeu a Jay:

Porque os nazistas fizeram uma luta bem justa nos campos de concentração!

Michael J. Curtiss também respondeu a Jay:

Defina um “soco justo” quando seu alvo é uma porra de um nazista, por favor.

Jay respondeu a Michael J. Curtiss:

“Defina um soco justo”

No contexto de um soco de supetão, um soco justo é quando o alvo sabe que está numa luta.

Veja eu odeio esse tipo de soco com uma paixão que está lá bem perto de odiar nazistas. De alguma forma isso aconteceu enquanto eu esperava as placas de aço e os parafusos segurarem o meu rosto por dois meses.

Enquanto eu pesquisava no google como liquidificar comida pra que ela passasse por um canudo, encontrei muitos casos similares, em que desgraçados covardes atacavam vítimas desavisadas e fugiam correndo.

Eu já estive em uma marcha antinazista […]. De vez em quando, na multidão de manifestantes pacíficos, babacas irritantes provocavam a polícia, seguros no meio da multidão. Isso me ensinou uma lição valiosa.

Só porque alguém odeia um nazista, não faz com que não possam ser idiotas eles mesmos. Mantenham a classe, pessoal.

BarFa respondeu a este último comentário de Jay:

“Veja eu odeio esse tipo de soco com uma paixão que está lá bem perto de odiar nazistas.”

^Eu sinceramente espero que você esteja falando somente da sua resposta emocional, e não das suas opiniões? Eu posso totalmente entender a primeira, já que o que acontece com alguém tende a trazer à tona os sentimentos mais fortes. Mas se essa é a sua opinião moral, sobre a qual você pensou bastante, então você está indo longe demais.

Jay respondeu a BarFa:

É claro que esses são meus sentimentos e são tão incontroláveis quanto a chuva e o sol. E é o ato de socar pessoas e fugir correndo que eu vejo como problemático, não violência contra nazistas.

Em outro ramo dos comentários, Jeff Kerr escreveu:

Eu acho que esse post é um exagero – mesmo se você está em parte fazendo piada. Violência contra outros NÃO É ACEITÁVEL – a não ser que esteja lutando numa guerra ou se defendendo (ou defendendo outra pessoa).

Eu socaria um nazista (e faria muito pior) numa guerra ou em autodefesa, mas se você começa a socar as pessoas com cujas opiniões você não concorda (não importa quão cheias de ódio), você está comprometendo o valor que nos torna diferente dos nazistas.

Este post recebeu várias respostas. A primeira foi do próprio autor do post, que disse:

Você e pessoas como você são parte do problema.

Mick Magill também respondeu a Jeff Kerr:

É POR DEFINIÇÃO “defesa de outras pessoas” atacar agressiva e violentamente nazistas e seus simpatizantes assim que eles se identificarem.

Você não espera para se defender até que esteja pelado num chuveiro.

Citizen0 também respondeu a Jeff Kerr:

É, foda-se isso.

Nazistas não gritam slogans – eles berram suas INTENÇÕES.

A Primeira Emenda [da Constituição dos Estados Unidos] me protege quando você usa “Palavras de Luta”- provocou uma resposta violenta e foi recebido com violência? – isso é permitido e constitucional.

Ao dizer que se deveria fazer uma limpeza étnica – ele já está dizendo algo que vale levar uma na boca. Invocando os nazistas e o Reich? Na cidade em que heróis de guerra foram enterrados? Para o filho de um soldado e sobrinho-neto de um herói do Dia D?

Todo… Leia isso Jeff – TODO NAZISTA merece ser socado, merece uma resposta VIOLENTA. Ou rolamos de barriga para cima e damos boas vindas a um novo Reich.

DE NOVO. JAMAIS.

Marco também respondeu a Jeff Kerr:

Eu discordo. Os ideais deles são moralmente terríveis e eles deveriam ser punidos por fazer a escolha de segui-los.

Pupienos Maximus também respondeu a Jeff Kerr:

Você parece não ter percebido que nós já ESTAMOS em guerra com eles. É uma guerra que ELES começaram. Socar nazistas É se defender e defender os outros.

Nesse senso de superioridade moral arrogante você vai direto pros campos de concentração.

Ao autor do post, que comentou “você e pessoas como você são parte do problema”, um anônimo disse que “Não, nazistas são o problema”, ao que Nigel respondeu:

Sim, e socar nazistas é a única forma de impedir que se multipliquem até o ponto em que obtenham poder real.

Veja, paramos de socar nazistas há mais ou menos 10 anos, e agora eles estão no poder!

Se você os deixa ganhar poder através do discurso de ódio, e espera até que desfiram o primeiro ataque, você vai basicamente esperar até que eles aprovem uma lei que torna ilegal você, o seu grupo ou outros grupos, e usem o Estado para destruir você ou quem quer que seja, e quando chegar nesse ponto, dar socos não vai ser suficiente. Se em seu “primeiro” ato violento mandarem uma equipe da SWAT levar você para um campo de concentração, é tarde demais para que 99,99% das pessoas resistam efetivamente.

Covardes que comandam multidões raramente vão dar socos. Mas eles vão matá-lo da mesma forma sem que você tenha um “momento de autodefesa”. A essa altura, se você for socar alguém, vai ser o policial, que vai estar “só fazendo seu trabalho”, o que não vai ajudar em nada exceto que os nazistas no poder terão como usá-lo como exemplo para justificar suas ações.

Isto está ficando longo, mas a questão é: dê socos em nazistas, ou qualquer um clamando pela matança dos outros com base somente em seus preconceitos de merda.

É um imperativo moral.

A Mick Magill, que terminou seu comentário com “você não espera para se defender até que esteja pelado num chuveiro”, DC Reade disse:

A extrema esquerda e a extrema direita fizeram suas pequenas danças nas ruas da República Alemã de Weimar ao longo de 14 anos.

Sem dúvida, de partida a extrema esquerda estava não apenas segura de estarem inviolavelmente corretos quanto à causa que defendiam, mas certos também da vitória. Tão certos que não tinham reservas quanto a “aumentar as contradições” com atos de violência de rua.

Quando a poeira baixou, o vencedor naquela luta foi a facção mais extrema da extrema direita. Talvez sua canção de luta mais famosa era um apelo para vingar uma de suas primeiras mortes, Horst Wessel.

Esse exemplo histórico não precisa ser reciclado neste país [EUA]. Pela esquerda, pela direita, por alguma facção indiferenciada de niilistas que “só querem ver o mundo pegar fogo”, por malucos teocratas cristãos ou por qualquer um. O planeta inteiro está em crise, mas os EUA em si ainda estão em posição de ter os recursos e a força de vontade nacional para mover o planeta e seus habitantes adiante. Americanos não devem reimaginar que as polarizações da Alemanha dos anos 1930 são um modelo produtivo, por qualquer ponto de vista que seja. É um modelo a se evitar. Esse é seu valor pedagógico.

Em resposta a DC Reade, Bridget pergunta “Como você crê que as pessoas deveriam lidar com nazistas hoje?”. Estimated Prophet responde a DC Reade:

Essa não é a República de Weimar. A República de Weimar foi um governo formado depois que o anterior foi desmontado após perder a maior guerra que qualquer um tenha visto. O governo anterior foi um estado hipermilitarizado que foi descrito como “um exército que tinha um Estado” 150 anos antes, tendo crescido em estatura e força desde então. O liberalismo – entendido como o sistema parlamentarista da república – foi-lhes imposto. Eu penso, certamente, que seria reducionista dizer que Hitler e a extrema direita ganharam simplesmente ou principalmente porque o nacionalismo autocrático militarizado era parte de uma “cultura alemã” ou coisa parecida, mas apesar disso deve ser notado que muitos na República de Weimar viveram a época de Bismarck e a Guerra Franco-prussiana e muitas pessoas influentes e poderosas a apoiavam e a desejavam.

Nos Estados Unidos temos nossas próprias instituições que, ainda que gravemente imperfeitas em muitos aspectos, estão longe pra caralho do Império Germânico. O tipo de fascismo e violência racial – esse homem literalmente, abertamente advocou pelo genocídio de pessoas negras – que Richard Spencer proclama não vai ser eleito. Nós provavelmente ganhamos o presidente mais à direita, mais nacionalista e mais autoritário que vamos ter no futuro próximo. A violência racial de Spencer está acontecendo, na minha opinião, num nível institucional a partir de coisas como encarceramento em massa, a guerra às drogas, e a corrupção e/ou violência da política e da polícia, mas enquanto lutamos essa luta não podemos deixá-la ocorrer nas ruas. Nós já falhamos nisso em certo sentido – veja quantos motoristas brancos (ou policiais, mas ei) já atiraram em adolescentes negros que estavam tocando suas músicas muito alto em estacionamentos. Deve NO MÍNIMO se tornar um fato conhecido que se alguém como Richard Spencer abertamente declarar a intenção de fazer coisas como essas se ele puder se safar (o que muitos já fizeram), ele não vai se sentir seguro em público. Porque se Richard Spencer se sente seguro em público depois de abertamente declarar seu desejo e sua intenção de assassinar alguém por causa de sua raça, mesmo que não seja um alvo específico, isso significa que ninguém mais que puder ser um alvo estará mais seguro, o que é a maior vitória deles.

Isso não é uma guerra de rua em Weimar. Feliz quanto ele possa estar com o resultado da eleição, Richard Spencer não está na Casa Branca ou no Congresso. A ala política deles não age por eles de fato, não é ideologicamente motivada como eles; age em interesse próprio. O poder político de Richard Spencer cresce das ruas. Vai crescer do fato de ele poder dar um discursinho legal na universidade local. Esse tipo de coisa vai encorajar grupos de afinidade nas universidades. E por aí vai. Parcialmente porque nossas instituições não ensinaram as pessoas a pensar de formas adjacentes à ideologia deles, eles não têm o suporte de massa necessário para sustentar uma guerra de rua, ainda. Não há veteranos de guerra Prussianos que sentem falta de Bismarck aqui. Não há um Partido Nazista ganhando assentos num parlamento de voto proporcional. O eleitor médio de Trump não lê Breitbart [portal nazista] – mas ele pode, se Breitbart puder ser o anfitrião de um festival de música numa praça pública. Isso tudo para dizer que o que está acontecendo não é uma guerra de rua com camisas marrons organizadas, é a garantia de que nazistas babacas e mimados com mestrado em filosofia não possam falar merda com impunidade. Richard Spencer simplesmente não tem o suporte institucional ou popular para ser comparado com os agentes da extrema direita na República de Weimar, mesmo antes da ascensão de Hitler.

Além do quê, mais do que tudo, o que os fracassos da esquerda da República de Weimar significam para mim é que é imperativo ganhar. Não há nada na natureza da extrema direita que os torna melhores em guerras de rua – a esquerda poderia ter ganhado na Alemanha, se tivesse sido melhor. No entanto – para insistir nisso – Soldados Imperiais Alemães conservadores mais velhos, treinados e militarizados e seus filhos sendo tantos e tão poderosos na República tiveram um papel importante na hora de desbalancear a equação para a direita. E nós não temos isso aqui.

Chris postou basicamente um link dizendo “bem, eu discordo”. O autor do post respondeu:

Os seus ideais vão mantê-lo bem quentinho dentro dos trens, e suas crenças poderão ser trocadas por migalhas de pão quando você chegar nos campos de concentração.

DC Reade por sua vez respondeu a isso:

Há muito entre vigilância e paranoia e isso não precisa ser suprimido.

Richard Spencer não estava advogando que os judeus desse país fossem reunidos e enviados a campos de concentração no momento em que foi atacado. Ele estava fazendo uma exposição tola sobre o que ele imaginava ser o valor midiático de co-optar um sapo de desenho animado para o propósito de propaganda. Isso não é ameaçador; é patético.

Agora Richard Spencer tem um perfil maior na mídia do que ele teria tido de outra forma, com a vantagem do que eu creio ser uma razão objetivamente razoável para ganhar simpatia das pessoas. Para todos os propósitos práticos, o cara que o socou não poderia ter feito um favor maior mesmo se tivesse estado a favor dele. Sobre o que medito, sem tirar nenhuma conclusão. No interesse da vigilância, não da paranoia.

O autor do post original retrucou:

Ah, então um nazista só é um nazista enquanto estiver ativamente falando sobre genocídio?

Nazistas não tem nenhuma razão para ganhar simpatia de ninguém. Eles são nazistas, caralho. Vários membros da minha família teriam concordado comigo nisso. Se não fosse, sabe, pela merda dos nazistas.

O’Shady também respondeu a DC Reade:

Richard Spencer já tinha uma plataforma enorme na subcultura neonazista – ele é o cara que refez a “marca” deles sob o termo “alt-right” [direita alternativa]. Ele ativamente e notoriamente esposou os aparentes valores da limpeza étnica (particularmente contra pessoas negras) e incitou violência com suas palavras em ampla escala.

Agora ele é a parte engraçada de um meme. Isso é bom.

Cthulhu também respondeu a DC Reade:

Spencer já fez e disse o suficiente para merecer uma longa fila de pessoas esperando sua vez de bater nele. Só porque ele não estava defendendo a morte de inocentes naquele momento não significa que não o tenha feito antes.

A questão é que ele é um nazistinha nojento que merece levar uma porrada na boca. E, mais importante, ele agora sabe que quanto mais ele cospe sua besteira nazista em público, maior a chance de que ele vai levar uma porrada na boca cada vez que mostra seu rosto em público. Se no fim das contas ele acabar com medo demais de sair na rua, eu estou bem com isso. Em algum momento, espera-se que ele aprenda a lição: “Caramba! As pessoas REALMENTE não concordam com essa coisa de ser um nazista de merda. Será que eu estava errado o tempo todo?” (O que, admito, requer um nível de introspecção da qual não creio que ele seja capaz). Se ele aprender que ser um nazista de merda não será tolerado, e ele cala a boca, fico bem com isso também.

Housellama disse algo interessante também (um comentário novo, sem ser uma resposta a qualquer um acima):

Para aqueles que querem uma alternativa que é violenta mas não ilegal, podem tentar isso: http://www.dailydot.com/layer8/shia-labeouf-art-livestram-white-supremacist/?fb=dd

Nesse momento do jogo, se trata de remover a mensagem deles. Remover a habilidade deles de enviar tal mensagem (no caso do Shia LaBeouf, aumentando a razão de ruído em relação ao sinal), a maioria deles se torna inofensiva. Outro exemplo é bomba de bosta, embora essas sejam menos [juridicamente] legais.

Dar socos pode auxiliar na narrativa deles e tornar a mensagem deles mais forte. Gritar contra eles remove a habilidade deles de enviar suas mensagens, ou os provoca a atacar primeiro, e nesse caso, dê socos à vontade.

Por que eu não tenho raiva de ‘transgressões’ como a de Clarice Falcão

Houve um período no final de 2016 (não durou mais que uns 3 segundos) em que vários conhecidos de Facebook se dividiram entre aqueles que apoiaram, ainda que sem muito entusiasmo ou particular devoção, o vídeo de Clarice Falcão – aquele com genitais decorados (decoradas?) – e aqueles que o condenaram como “mais uma coisa de pós-modernista” que “confunde transgressão com revolução”.

É fácil entender os dois lados da disputa. Talvez tudo se resuma (como quase sempre) a prioridades: para quem acha que a sociedade brasileira ainda é muito pudica, é interessante que um vídeo como esse faça relativo sucesso. Para quem entenda que há coisas mais importantes a tratar, e que o próprio fato de esse vídeo ser considerado “revolucionário” demonstrar o quão pouco essa palavra significa hoje em dia, o sucesso do vídeo é mais um sinal de coisas como “a esquerda precisa mudar e se reorganizar urgentemente”.

Mas sabe, eu não consigo enxergar a coisa dessa última forma. Para explicar melhor minha posição, uma pequena história:

No ano de 2007 saiu um filme chamado Beowulf. A essa época eu já conhecia o anarquismo, e até mesmo o discordianismo, então não sei por que afinal ele me deixou essa impressão – mas me lembro vividamente dela como uma espécie de momento “eureka”. Numa determinada cena (mais para o final), um dos guerreiros ligados a Beowulf (… eu acho) chega para ele e diz algo como “ouvi dizer de um novo deus ao sul, chamado Jesus. Devemos rezar para ele também?”.

Veja, esse é um filme muito merreca. Não sei se cabe na categoria de “ruim” – não lembro muita coisa dele – mas certamente é um festival de CGI cheio de clichês e que não abocanhou grande parte da consciência cultural até hoje. Nem cult virou. E no entanto, naquele fim de primavera de 2007, eu assisti essa pequena cena e achei isso foda pra caralho.

Foi uma besteira, claro, mas foi algo que deu uma relativizada muito bacana. Acho que a imagem que ficou na minha cabeça, uma espécie de insight em forma de nova obviedade, foi: “de fato essa é só mais uma religião entre muitas outras. E calhou de eu nascer numa época em e num lugar em que ela é prevalente. Mas nem sempre foi assim”.

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Photo by decafinata

É claro que embora eu acredite que toda arte minimamente transgressora pode ter esse efeito (e por isso não sou tão rápido em, ou desejoso de, julgar coisas como esse clipe da Clarice), há que se ater a contextos. Uma pequena transgressão em uma novela da globo ainda está numa novela da globo. Mas em geral não vejo qual é o problema que muita gente tem com pequenas transgressões: se causou tanto furor assim, é porque há muita gente que ainda tem potencial para ser significativamente afetado por elas. E não cabe a mim, da minha perspectiva radicalmente situada (eu realmente não consigo imaginar como essa experiência artística afetaria alguém que pensasse e sentisse muito diferente de mim; “imaginar” em termos de sensação mesmo) estipular que uma coisa ou outra não vale a pena em termos de exposição. Esforços que vão numa mesma direção general devem se juntar.

Mas talvez o grande problema de toda essa disputa esteja num certo pensamento oculto por detrás de todo fenômeno artístico que acaba criticado por não “ir longe o bastante”: espera-se demais, demais da arte. Talvez por conta do momento de “desespero” em que vivemos, espera-se da arte que faça o que nossa vontade política, micro e macro, não está fazendo: que arrebate corações e nos leve em linha reta, sem paradas ou meios termos, em direção à utopia. Sem concessões, e sem lembrar que a arte precisa operar dentro de uma série de tensões (e que é feita por pessoas de carne e osso, que precisam viver), exigimos demais. E falo isso como alguém que exige demais de mim mesmo enquanto escritor.

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Ao não incluir neste quadro considerações sobre a exploração do proletariado, o artista não vai fundo o bastante e presta um desserviço à humanidade.  Photo by h.koppdelaney

Esse, por exemplo, foi um dos meus incômodos quanto ao livro “Anarchism and the crisis of representation: Hermeneutics, Aesthetics, Politics”, do Jesse Cohn. O livro é fantástico, mas uma de minhas poucas objeções foi à forma como, na parte da produção artística, o autor busca definir o que seria a melhor forma de fazer uma “arte anarquista”, e chega a tantas restrições, poréns e sermões quanto ao que já existe por aí, que ele acaba dando um único exemplo de boa arte anarquista: “os despossuídos”, da Ursula Le Guin.

Eu tive oportunidade de conversar com ele, pela internet, e ele me disse que está trabalhando em um novo livro que reavaliará, de forma mais positiva, o entretenimento “kitsch” que ele dispensou de forma bastante rápida em suas considerações estéticas neste livro. E acho que ele de fato deveria, porque não dá para esperar tudo da arte; porque através dela (talvez inevitavelmente) expressamos não só o que queremos ser, mas tudo que já somos. E assim como não existe uma solução mágica para os problemas e os debates da política – uma holística, final, total – também não vai haver obra de arte que dê conta de tudo e o faça de maneira perfeita. Além disso, a variedade de perspectivas no mundo garante que uma grande quantidade de obras vai continuar sendo, para muitas pessoas, “transgressora”, o que é bom pois é esse confronto de perspectivas que nos faz crescer, amadurecer, expandir os horizontes. Acho que isso é louvável, e não precisa ser criticado apenas porque não é capaz de, numa só patada, sublevar os espíritos humanos em direção à coletivização dos meios de produção, ou seja lá o que for. Isso é tarefa para esforços coletivos, políticos e culturais muito mais amplos, e que, na minha humilde opinião, não vão ser tão prejudicados assim por uma produção audiovisual bem medíocre.

Sobre contratos, e o que há além deles

Na definição de Hobbes do estado de natureza, as pessoas são essencialmente iguais; dessa igual condição de oferecer perigo umas às outras – e de buscar os mesmos recursos limitados, ou seja, do igual direito natural (e vontade) a todas as coisas – surge a desconfiança, e daí, a guerra. Encontrando-se em perene insegurança, o homem deve antecipar-se a seus inimigos e atacá-los; daí a precipitação lógica da guerra.

Existem três principais causas para a luta no estado de natureza hobbesiano: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira faz o humano lutar por conquista; a segunda, por segurança, e a terceira, por reputação. Sem um poder comum para manter a paz entre os homens, haverá sempre guerra – talvez não literalmente um cenário de batalhas, afirma Hobbes, mas uma constante “disposição” para o conflito que torna impossível o usufruto da máxima liberadade natural que o homem possui neste estado de natureza.

A guerra é um estado miserável; “não há lugar para a indústria […] ou para a cultura da terra; […] Não há artes, não há letras, não há sociedade”. As paixões não devem ser culpadas por isso, apesar de serem responsáveis: afinal, as ações que advêm delas não são “pecados” conquanto não haja lei que as proíba – e a lei ainda não existe “até que se tenha concordado sobre a pessoa que deverá fazê-la”; “onde não há poder comum, não há lei: onde não há lei, não há injustiça” (HOBBES, 2009, p. 169-171). Os próprios conceitos de “justo” e “injusto”, não existindo independentemente no mundo, necessitam da emergência da lei para serem criados.

Hobbes postula que esse estado de natureza pode jamais ter existido historicamente – embora ressalte que alguns povos selvagens ainda vivam dessa forma nas Américas, além de notar que a política internacional (tratando, assim, Estados como indivíduos) funciona de forma muito semelhante.

Mas o que impele os homens a sair do estado de natureza? O medo da morte, fundamentalmente, mas também o desejo de obter coisas necessárias à vida cômoda, algo que a paz e a colaboração regulada podem trazer. Após definir as leis naturais às quais os homens racionais convergem (com as quais concordam) e discutir noções importantes no projeto filosófico hobbesiano (como “autor”, “autoridade” e a ideia de que uma multidão pode ser una), o autor inglês passa a definir assim o surgimento do Leviatã, o Estado, o Common-wealth. O Estado surge para proteger a vida individual – ou seja, para conservar a “segurança particular”; essa é a “causa final” da “introdução de [uma] restrição sobre si mesmos” (HOBBES, 2009, p. 252). Mesmo que os homens, através da razão, possam descobrir as leis naturais, ainda é preciso a força – a ameaça, o medo – para garantir o cumprimento dos acordos. A estabilidade, inclusive (tanto “interna” quanto a coesão contra um inimigo “externo”), não simplemente vem da quantidade de pessoas que vivem juntas: é preciso um poder acima da “multidão” para gerar a paz, subjugando e dirigindo os indivíduos. Um poder contínuo; não um episódico, que crie uma paz temporária. Hobbes busca uma solução estável ao longo do tempo.

Assim, conclui o autor, os homens que queiram viver em paz e garantir a própria segurança e prosperidade devem “conferir todos os seus poderes e forças a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade de vozes, em uma vontade” (HOBBES, 2009, p. 259). Existe uma autorização explícita, assim – o contrato – para que o soberano aja em nome dos súditos. Assim forma-se o Leviatã, o “Deus mortal” ao qual se deve a paz e a defesa. A essência do Common-wealth é, assim “uma pessoa cujos atos uma grande multidão, por acordos mútuos uns com os outros, tornaram-se cada um o autor, e ele deve usar a força e os meios de todos, como pensar ser expediente, para a paz e a defesa comum de todos” (HOBBES, 2009, p. 260). A pessoa a incorporar o poder soberano será conhecida como soberana.

Os contratualistas clássicos

Existe uma certa lógica em Hobbes que inaugura a tradição filosófica do contratualismo propriamente dito: imagina-se (ou supõe-se, com alguma base histórica, embora isso seja mais raro) um estado de natureza em que a humanidade se encontra; ao fazer uso da razão, os humanos se organizam politicamente (dão origem ao Estado). Essa passagem é feita através do contrato, e a sociedade resultante é melhor que a anterior.

O estado de natureza é sempre caracterizado como negativo – isso é quase uma necessidade lógica; seria estúpido ter “saído” dele se ele fosse positivo. Em geral ele é belicoso; em Locke, por exemplo, ele está sempre no limiar de se tornar belicoso uma vez que não há mecanismos para garantir os direitos naturais. Mas para Pufendorf e Spinoza, por exemplo, o que leva os homens a constituir uma sociedade civil é a infelicidade de viverem sozinhos; existe uma necessidade espiritual (para não mencionar a material), mas que de qualquer forma adjetiva como negativo o estado natural. A concepção de Rousseau é um pouco mais complexa, posto que “triádica” em vez de “diádica”; o estado de natureza em si é bom, pois o homem selvagem é bom; a “sociedade o corrompe”, isto é, processos sociais (como o estabelecimento da propriedade privada, este mesmo evento originado por outros) dão origem à sociedade civil, um estado de desigualdade e não-liberdade que é negativo. O estabelecimento da república democrática restabeleceria (o quanto possível) a positividade outrora existente.

Para todos os contratualistas, iluministas ou não, o que importa é o uso da racionalidade: é este o principal ingrediente que modela a passagem para um estado social positivo, e é a ausência dele que caracteriza, por diferentes caminhos, o estado natural como impróprio e indesejável. Parte dessa caracterização pode ser vista na forma como a “sociedade civil” (ou aquilo que vem após o contrato) é entendida. A sociedade politicamente organizada não é uma continuação óbvia, uma progressão orgânica, de unidades “naturais” como a família; ela é uma substituição do estado de natureza. Locke é um dos contratualistas mais claros quanto a isso, pois discorre acerca do poder patriarcal (familiar) e senhorial – nenhum dos quais pode servir de base para a sociedade política. A razão, característica do indivíduo racional livre (como em Kant, ou mesmo em Hobbes e também Rousseau) é a base dessa divisão radical que institui a sociedade contratual – divisão que separa os homens dos cidadãos.

Mas o que é este contrato? Como funciona este dispositivo – ou por que ele foi escolhido como a analogia capaz de explicar filosoficamente os fundamentos da sociedade política e racionalmente ordenada no contexto de um Estado? Em geral, como notou Rousseau, os homens encontram-se em toda parte em uma situação de desigualdade que por vezes se institui como escravidão; empiricamente falando, as sociedades humanas do contexto dos autores são essencialmente desiguais. Mesmo assim, em termos racionais, encontramos uma igualdade essencial entre os homens, seja em sua situação potencial (como em Hobbes, segundo quem por meio de algum artifício qualquer homem é capaz de dominar outrem) ou em sua natureza (como em Kant, em cuja concepção de sujeito Rawls se apoiará mais tarde). Entre iguais, receita o bom pensamento, só pode haver acordos consensuais; e assim, especialmente em Locke, o contrato ganha as funções simultâneas de legitimação e explicação – se indivíduos originalmente livres e iguais se submetem a um poder comum isto só pode ter sido feito através de um acordo recíproco.

Assim, o contrato aparece como a figura perfeita para compreender a situação de uma sociedade política racional, voluntária; ele complementa a noção de cada contratualista sobre o estado de natureza porque estabelece a maneira como a razão vence a natureza humana; o artifício e o engenho homologam a conquista do espontâneo e passional como a alma cristã deve dominar seu corpo. O objeto do contrato, para além do formato comum deste, varia e é mais específico, tratando dos direitos específicos que são barganhados, o que modela a sociedade resultante. Em Hobbes, todos os direitos são cedidos para o soberano, exceto o direito à vida, de modo que o súdito pode assim resistir ao Estado caso esse direito seu (que é, afinal, a razão para a constituição do Leviatã em primeiro lugar) não esteja sendo resguardado. Para Locke, os direitos individuais (o direito à propriedade, que vai além da propriedade de bens materiais mas abarca também a possa da própria vida, do próprio corpo) não são cedidos, mas conservados – no estado de natureza o que falta é apenas um juiz imparcial que possa gerenciar e ajudar a conservar os direitos. Rousseau, o mais totalizante dos contratualistas, busca a transferência completa dos direitos – mas é preciso, para entender seu projeto, compreender que o Estado tem para ele não apenas a função de proteger o indivíduo, mas de transformá-lo.

Para Hobbes e Rousseau o poder constituído pelo contrato é “absoluto”, no sentido de que os soberanos, neste caso, não estão presos às mesmas leis civis que os súditos; já para Locke, este não é o caso. Locke também se diferencia dos demais (e pelo mesmo motivo, a saber, de que para ele a tirania é pior do que a desordem e a desagregação) ao pressupor um direito inalienável à revolução caso o governo não cumpra seu papel. Os direitos em Locke não costumam ser cedidos; o direito a fazer os próprios julgamentos é transferido para agentes imparciais justamente para que se conservem e protejam os outros direitos. Caso o governo não cumpra esse papel (proteger os direitos), então ele pode ser resistido, o que não ocorre em Hobbes, Rousseau, Spinoza ou Kant: para Hobbes, apenas o indivíduo pode empregar táticas de resistência caso sua vida esteja em perigo. Para Rousseau, a própria pergunta mal faz sentido, uma vez que na República bem constituída as leis são feitas pelos próprios indivíduos, e a liberdade significa obedecer a uma lei proscrita por si a si mesmo. Já para Spinoza e Kant, a obediência nas ações é imprescindível – a liberdade a qual o Estado não pode alcançar, e assim verdadeira liberdade e potencial de resistência, está no pensamento; embora o direito de agir independentemente tenha sido alienado, o direito de pensar independentemente jamais poderia sê-lo. Quanto à questão da divisibilidade do poder, o dissenso entre os autores é na verdade aparente; nenhum dos contratualistas clássicos vê com bons olhos a divisibilidade do poder, de modo que a separação de tarefas não implica a divisão da soberania, que permanece una (em Hobbes, na figura do Leviatã; em Locke, no poder legislativo; em Rousseau, no povo estruturado para que se possa aferir a vontade geral, e assim por diante).

O contrato de Rawls

A lógica do contrato foi retomada por John Rawls em 1971 com a publicação da densa obra “Uma Teoria da Justiça”, em que se busca usar da analogia contratual não para buscar os fundamentos do Estado, mas sim os princípios da ideia de justiça. Estes princípios são entendidos como aqueles que agentes livres e racionais, preocupados em avançar seus interesses, escolheriam em uma posição inicial de igualdade como definições dos termos fundamentais da associação entre si. Os princípios, conhecidos por um termo cunhado pelo filósofo (justice as fairness, comumente traduzido como “justiça como equidade”), devem regular os contratos posteriores – incluindo, por exemplo, acordos sobre a forma governamental segundo a qual a sociedade deve se organizar. Os princípios da justice as fairness servem para determinar direitos e deveres básicos, além de ajudar a compreender como melhor fazer a divisão dos benefícios sociais, isto é, a riqueza produzida.

Rawls deve muito de sua filosofia a Kant, e para entender seu argumento central é conveniente entender o movimento mais amplo que o autor americano faz em direção ao seu projeto político geral. Sandel classifica Rawls dentro da tradição do “liberalismo deontológico”, segundo o qual o Estado (ou o agrupamento humano – trata-se, aqui, da relação mais elementar entre indivíduo e grupo) não deve impor uma doutrina moral do que é “bom” ou “desejável”, isto é, cada indivíduo deve ser livre para fazer suas próprias escolhas em relação ao que deseja e o que considera positivo. O Estado deve definir apenas o que é justo, e assim organizar a sociedade. Como fundamento dessa ideia está a noção de sujeito, de indivíduo, que é o “eu” racional, livre e possuidor de características – isto é, postula-se uma divisão essencial entre aquilo que se essencialmente é (o “eu” livre racional) e todas as características que se possui (de vontades e ideias a características sociais, corporais, etc).

Pode ser vista, assim, associação entre essa base de seu pensamento e a ideia do “véu de ignorância”, peça-chave da ideia de justice as fairness. A situação em que os indivíduos escolhem o contrato que dá origem aos fundamentos racionais da justiça é chamada de “posição inicial” ou “situação inicial”, circunstância que reúne os atributos necessários, crê Rawls, para que os verdadeiros princípios da justiça possam ser estabelecidos. Na situação inicial, todos os participantes são iguais, tendo os mesmos direitos “políticos” em relação ao procedimento: podem discursar, votar, fazer propostas, etc. O “véu de ignorância”, contudo, é a ideia de que, embora os atores ajam de acordo com seus interesses, eles não saberão quais são esses interesses; ao atuarem na posição inicial, os atores são divorciados das posições que ocuparão na sociedade vindoura, ou a que recursos acidentalmente terão acesso desde o princípio, qual será a situação em termos de prestígio cultural de um ou outro grupo – em geral, são separados de grande parte do conhecimento sobre como será suas vidas particulares. Sendo assim, podem decidir racionalmente sobre os princípios que fundamentarão a ideia geral de justiça.

Os princípios de justiça aos quais tais indivíduos, colocados nessa posição inicial hipotética (a-histórica), chegariam, são aqueles alcunhados como princípios de “justice as fairness“. São dois; segundo o primeiro, cada pessoa deve ter o mesmo direito à maior liberdade básica compatível com uma liberdade semelhante para os outros; no segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas para que sejam razoavelmente entendidas como fonte de vantagens gerais para todos e para que estejam ligadas a posições e cargos disponíveis para todos. Mais adiante no livro o segundo princípio será modificado para acomodar uma noção mais precisa: as desigualdades devem funcionar principalmente para o benefício dos mais desavantajados.

O primeiro princípio é classificado por Rawls como o princípio da igualdade: está relacionado a direitos políticos, como o voto, o direito a assembleia, a consciência, a expressão, etc. O segundo é chamado de princípio da diferença, e se relaciona à hierarquia e à riqueza, sendo regulado em termos de justiça pelo fato de que os cargos e as posições sociais melhores que outras devem estar disponíveis a todos – e que a desigualdade, como visto, deve ser de benefício para os mais desavantajados. É preciso notar que o princípio de igualdade, que define liberdades básicas que se aplicam a todos igualmente, precede o princípio de diferença; a única razão para limitar essas liberdades individuais é a interferência que elas possam exercer sobre as liberdades de outras pessoas. O princípio de igualdade, assim, não pode ser sacrificados em prol do segundo, o princípio de diferença.

As críticas à coerência filosófica de Rawls foram profundas e deixaram marcas; em 1993, o filósofo publica “Political Liberalism”, livro em que aborda uma visão mais “pragmática” de seu projeto ao não tentar embasá-lo em filosofia, mas sim em uma questão prática e organizacional: para Rawls, a melhor forma de promover a sociabilidade em uma sociedade plural é a organização com base em justiça, isto é, com o Estado funcionando como o guardião dos princípios de justiça, não impondo quaisquer valores específicos sobre os indivíduos, fazendo assim com que eles busquem resolver tais assuntos em seus foros privados. Embora a posição inicial tenha sido uma tentativa de estabelecer os princípios de justiça de forma racional, mas ainda mais empiricamente que Kant (pois baseado em uma situação de escolha por parte dos indivíduos), o fato de ela ter sido criticada como inconsistente não impede que o filósofo defenda sua posição política como um projeto meritório – que recupera a noção de contrato uma vez que se funda na razão para estabelecer direitos e deveres em relação ao Estado.

Para além do contrato

Embora Sandel não goste muito de rótulos, é geralmente associado ao “comunitarismo”, uma escola de pensamento social que, no que tange a certas interfaces com o direito, contrapõe-se às ideias de Rawls em ao menos duas formas, uma mais “fundamental” e outra mais “prática”. De forma mais básica, Sandel contende com Rawls a definição de sujeito: somos constituídos essencialmente por uma miríade de características e ideias, de modo que mesmo “fingir” que não somos para praticar a política de uma determinada maneira (no caso, a objeção em termos práticos, programáticos ao corolário das ideias dos liberais deontológicos) não seria benéfico ou justo. A alcunha de “comunitarismo” vem da valorização da participação política na formulação de uma certa identidade coletiva – o que equivaleria, em certo sentido, a atuar sobre a própria identidade também e assim ativamente definir os valores aos quais a comunidade subscreve e pelos quais se organiza.

Essa noção não necessariamente exclui os contratos do horizonte, mas lhes é provocativa por algumas razões. Primeiramente, coloca os valores de volta ao centro da discussão. Os contratos sociais dos contratualistas clássicos são diferentes porque são guiados por valores diferentes. Hobbes se preocupava acima de tudo com segurança e estabilidade; Locke se importava com uma conjunção de valores que o impedia de simpatizar com a ideia de um humano-soberano com poderes ilimitados (o valor do direito à propriedade material aparece, assim, como contra-balanço chave). Em Rawls vemos uma discussão, na definição do ideal de justiça, sobre os valores da igualdade e da liberdade; a liberdade se sobressai e a igualdade (excetuando a forma como o próprio princípio que estabelece as liberdades individuais é em muitos sentidos “igualitário”) pode ser preterida se disso resultarem determinados “benefícios”. Mas em Rawls a questão é outra: os valores estão sendo racionalmente discutidos porque há um critério de avaliação, e este é a justiça (o valor anterior, superior). Os contratualistas argumentam sobre valores e a eles se seguem estruturas contratuais logicamente necessárias. Os comunitaristas questionam a possibilidade do estabelecimento a priori de um determinado valor, um estabelecimento desligado da vida comunitária historicamente situada – com o processo político sendo em parte definido como a participação nas batalhas culturais que envolvem a delineação e adoção de valores por parte dos membros de uma comunidade, isso fragiliza argumentos estruturais mais generalizantes e universais sobre contratos.

Em segundo lugar, colocam a ideia de natureza humana em cheque. Este não é o caso apenas dos comunitaristas – uma crítica contundente à lógica por detrás de Hobbes e que animou também Madison (por exemplo) pode ser encontrada em Sahlins (2014) – mas é importante ressaltar porque essa é uma parte essencial de toda teoria contratualista; uma vez que se pretende falar de “seres humanos em geral”, as pressuposições sobre o estado de natureza são questões que concernem a todos. Toda teoria contratualista é, num primeiro momento, coerente; se os pressupostos são aceitos, podemos confiar que os consagrados autores por séculos estudados na teoria política não cometeram saltos lógicos absurdos ou inválidos na linha traçada entre premissas e consequências. A questão é que, uma vez que os pressupostos sejam questionados, todo o resto da estrutura fica comprometido.

Nesse sentido, o que o uso do dispositivo do “contrato” em geral implica?

Por que um contrato seria necessário em primeiro lugar? Digamos que um grupo de pessoas “se dá bem”; organiza-se e age de maneira benéfica para todos em todos os critérios que considerem relevantes. O que um contrato adicionaria, nesse cenário, que o grupo ainda não alcançou? O contrato seria uma forma de “pôr em escrito” o que se faz, isto é, traduzir em princípios, preâmbulos e principalmente regras aquilo que é feito. Temos assim a aparição da razão como elemento relevante; sai-se da doxa irrefletida e entra-se no campo da racionalidade, e vimos como isso é importante para os contratualistas e para Rawls. O contrato cristaliza a prática social de modo a tornar explícito o que antes se revelava apenas no agir de cada membro do grupo. Nesse sentido, assume um poder que antes se encontrava nos indivíduos; constante, parece atuar como uma garantia de que aquilo que o grupo estava fazendo antes, se respeitado o contrato, continuará a ser feito independente do que os indivíduos do grupo queiram fazer em determinados contextos.

Racionalidade e estabilidade ao longo do tempo: isto é o que o contrato oferece a um grupo que não precisa dele. É mister lembrar que, pelo menos para os contratualistas clássicos, os humanos precisam do contrato, já que, diferentemente do exemplo dos últimos parágrafos, os homens antes do contrato (no estado de natureza – ou, para Rousseau, num estado civil degenerado) estavam em uma situação ruim. A razão não seria etnografia, mas sim ato heroico através do qual a humanidade se liberta de vícios relacionados às paixões e aos instintos (isto é, formas de viver e se relacionar não necessariamente atreladas a uma lógica racional) e consolida práticas consideradas positivas por assegurar a efetivação, na vida social, de determinados valores. É claro que, com os homens tendo acabado de se livrar de uma situação ruim por meio do contrato, não pode-se descartar a possibilidade de que o contrato seja desrespeitado. Sendo assim, justifica-se as medidas de coerção necessárias para garantir um contrato. Afinal, como demonstrou Hobbes, o contrato “requer a espada”.

Mas voltemos à situação hipotética do grupo sobre o qual argumenta-se que não precisaria, em tese, do contrato. O contrato busca garantir que a (boa) situação permanecerá ao longo do tempo. Mas, sem necessidade do contrato, por que pode-se querer tal garantia? O contrato baseia-se numa suspeita fundamental; uma desconfiança elementar. Mais do que isso, uma desconfiança com a qual as paixões – os sentimentos, as emoções – não conseguem lidar; apenas a intervenção racional conseguiria garantir a continuidade de tal situação positiva.

Ao identificar essa especificidade do contrato, pode-se entender que uma sociabilidade para além de sua sombra implica formas de lidar com a desconfiança entre as pessoas que sejam baseadas em estruturas e sensibilidades que não se baseiam primariamente em uma lógica destacada das paixões. Mas até mesmo a desconfiança é problematizada. Em seu estudo seminal sobre a dívida, Graeber conclui que o crédito não surgiu da moeda, que por sua vez teria sido uma evolução do escambo; historicamente falando, o crédito foi a primeira forma humana de economia dentro de uma comunidade. O escambo, elucida o antropólogo, era usado apenas de forma muito circunscrita, entre pessoas ou povos que não se conheciam, que não mantinham nenhuma forma de relação estável ao longo do tempo – em outras palavras, que desconfiavam uns dos outros.

O que ocorreria é uma institucionalização dessa forma de sociabilidade – recuperada, por exemplo, por vários teóricos anarquistas. Kropotkin afirmou que “não é o amor ou mesmo a simpatia sobre o que se sustenta a sociedade na humanidade. É a consciência – seja ela na forma de um instinto – da solidariedade humana”. Ele define melhor: “o reconhecimento inconsciente […] da dependência próxima que a felicidade de cada um tem sobre a felicidade de todos”. Daí não decorre o estado de natureza Rousseauniano segundo o qual as pessoas são “naturalmente boas” – mas sim que há outras formas de lidar com transgressões individuais a práticas tidas como benéficas, o que Graeber denominou “instituições de contrapoder” – e nesse sentido instituições são entendidas de forma bastante ampla, podendo se referir a “hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum” ou ainda, como North diria, “as regras do jogo em uma sociedade ou, mais formalmente,… limitações socialmente projetadas que moldam as interações humanas”. Um comunistarista como Sandel se preocupa com a participação política pois esta (não seguindo um formato autoritário como em Hobbes) é, em certo sentido, uma prática social voltada para a formulação compartilhada de valores – isto é, uma prática social que em certo sentido colabora para uma sociabilidade que desafia a lógica contratual, pois coloca constantemente em questão os próprios valores que fundamentariam quaisquer contratos específicos (inclusive, por exemplo, a “justiça” como valor supremo, ou mesmo a definição de justiça).

Aqui a questão da natureza humana, da natureza do sujeito, volta a ser importante. A visão dos humanos como seres isolados cujas únicas conexões com os outros são mediadas pelo interesse egoísta (como em Hobbes, por exemplo; em reação à ideia de que a sede por poder predomina “nos peitos de todos”, Sahlins pergunta: “o que aconteceu com o leite da bondade humana?”) obviamente parece providenciar justificativa para a lógica do contrato, mas uma vez que ele tenha sido instituído com base em tal visão, ele pode acabar produzindo a realidade que supôs – profecia que cumpre a si mesma, pode institucionalizar atos antissociais.

Estudar a lógica do contrato nos revela que este dispositivo é usado para resolver, a partir da racionalidade, uma desconfiança essencial quanto aos indivíduos; revela que ele depende, seguindo estes mesmos princípios mínimos, a força, e leva assim à fixidez de valores e concepções sobre as pessoas, barganhando autonomia por uma promessa de segurança. Este mesmo esquema não é muito diferente para Rawls – a partir da posição inicial buscam-se princípios de justiça que, embora não ofendam nosso sentido geral e intuitivo do que é justo, buscam definir disputas em questões que não são óbvias (o que ele chama de “equilíbrio reflexivo”), de modo que a justiça não dependerá de circunstâncias parciais mas sim de uma determinação racional geral; ao ser respeitada pelos contratos posteriores, em última instância a sociedade criará mecanismos para garantir a aplicação dos princípios.

Esta resenha não é o contexto para debater a efetividade de tal estratégia, ou mesmo se elas se traduziram mais ou menos fielmente à prática – mas pode-se pensar, a partir desse desenho geral, que lógica social se encontra para além da ideia de contrato; uma dinâmica de institucionalização da confiança, da discussão de valores, do empoderamento de indivíduos e comunidades – o que certamente gera desconfianças e perigos; a ideia de que tais arranjos não são (tão) duradouros (quanto se queira), que não funcionam de todo, que podem acabar provocando exatamente as situações que os contratualistas previram em suas denúncias das guerras precipitadas pelas paixões indomadas. Não se descobre o quanto a lógica do contrato é prevalente no nosso entendimento do mundo social até que se tente pensar o que existe além dela a partir de um ponto de vista contemporâneo em que se busca conservar algumas de suas conquistas (certamente os anarquistas que criticam o contratualismo não desejam uma comunidade que esmague a liberdade individual em nome de um “bem comum maior”). Mas ninguém disse que a vida social poderia ser tornada livre de perigos e problemas; qualquer sociabilidade, qualquer comunidade humana, sempre será problemática. A questão é: como lidar com esses problemas?

Sobre carros voadores e lucro decrescente

Tradução de “Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2012.


Um problema secreto flutua sobre nós, um sentimento de decepção, de uma promessa quebrada que nos foi feita quando éramos crianças, sobre o que o mundo deveria ser. Estou me referindo não às falsidades de sempre que se diz às crianças (sobre como o mundo é justo, ou como aqueles que se esforçam são recompensados), mas a uma promessa em particular a uma geração – feita àqueles que eram crianças nos anos 50, 60, 70 ou 80 – uma que nunca foi bem articulada como promessa mas antes como um conjunto de presunções sobre como o nosso mundo adulto se pareceria. E uma vez que nunca foi bem uma promessa, agora que ela não virou verdade, ficamos confusos: indignados, mas ao mesmo tempo, constrangidos com a nossa própria imaginação, envergonhados que pudemos ser tão bobos de acreditar nos mais velhos para começo de conversa.

Onde, resumidamente, estão os carros voadores? Onde estão os campos de força, os raios tratores, o teletransporte, os trenós anti-gravidade, os tricorders, as pílulas da imortalidade, as colônias em Marte, e todas as outras maravilhas tecnológicas que qualquer criança que cresceu a partir da metade do século XX presumiu que existiriam a essa altura? Até mesmo aquelas invenções que pareciam prontas para surgir – clonagem ou criogenia – acabaram traindo suas ousadas promessas. O que aconteceu com essas coisas?

Somos constantemente informados sobre as maravilhas dos computadores, como se isso fosse algum tipo de compensação imprevista, mas, na verdade, não conseguimos nem que os computadores progredissem tanto quanto esperávamos que progredissem hoje em dia. Não temos computadores com os quais podemos ter uma conversa interessante, ou robôs que possam passear com os nossos cachorros ou que levem nossas roupas à lavanderia.

Como alguém que tinha oito anos de idade na época do pouso na lua, lembro de calcular que eu teria trinta e nove anos no mágico ano 2000 e de me perguntar como o mundo seria. Se eu esperava que estaria vivendo num mundo incrível? É claro. Todo mundo esperava. Se eu me sinto decepcionado agora? Parecia improvável que eu viveria para ver tudo que eu lia nas ficções científicas, mas nunca me ocorreu que eu não veria nenhuma delas. No virar do milênio, eu estava esperando uma leva de reflexões sobre o porquê de termos adivinhado tão erroneamente o futuro da tecnologia. Em vez disso, todas as vozes respeitáveis – tanto à esquerda quanto à direita – tiveram como ponto de partida a premissa de que vivemos em uma nova utopia tecnológica sem precedentes de um tipo ou de outro.

A forma mais comum de lidar com esse desconforto de que as coisas podem não ser assim é deixar isso de lado, insistindo que todo o progresso que pôde acontecer, aconteceu, tratando todo o resto como bobagem. “Oh, você quer dizer as coisas que os Jetsons tinham?”, perguntam-me – como se dissessem, mas isso era pra crianças! Certamente, como adultos, entendemos que os Jetsons eram uma visão tão precisa do futuro quanto os Flintstones eram da idade da pedra.

Mas nos anos 70 e 80, na verdade, fontes sérias como a National Geographic e o Smithsonian estavam dizendo às crianças que estações espaciais visitáveis por todos e expedições à Marte eram iminentes. Criadores de filmes de ficção científica costumavam usar datas concretas para suas fantasias futuristas, geralmente não mais adiante que uma geração à frente. Em 1968, Stanley Kubrick achou que uma audiência de cinema veria como perfeitamente natural que apenas 33 anos mais tarde, em 2001, teríamos viagens comerciais à lua, estações espaciais parecidas com cidades, e computadores com personalidades humanas mantendo astronautas em animação suspensa numa viagem à Júpiter. Videochamadas foram praticamente a única nova tecnologia daquele filme em particular que apareceu – e já era tecnicamente possível quando o filme estava em exibição. 2001 pode ser visto como uma anomalia, mas e quanto a Star Trek? O mito de Star Trek também foi criado nos anos 60, mas a série continuava sendo revivida, fazendo o público que assistiu a Star Trek Voyager em, digamos, 2005, pergunta-se o que fazer do fato de que, pela lógica da série, o mundo deveria estar se recuperando de uma luta contra o domínio de superhumanos geneticamente projetados nas Guerras Eugênicas dos anos 90.

Em 1989, quando os criadores de De Volta para o Futuro II puseram carros voadores e skates anti-gravidade nas mãos de adolescentes comuns no ano 2015, não ficou claro se isso era uma previsão ou uma piada.

A tática geral da ficção científica é ser vago em relação às datas, para fazer com que “o futuro” seja uma zona de pura fantasia, não muito diferente de Nárnia ou da Terra Média, ou como em Star Wars, “há muito tempo atrás em uma galáxia muito, muito distante”. Como consequência, nossa ficção científica do futuro não é nem um pouco do futuro, sendo mais uma dimensão alternativa, um Outro Lugar tecnológico num tempo onírico, existindo em dias por vir da mesma forma que elfos e matadores de dragões existiram no passado – uma tela vazia para o deslocamento de dramas morais e fantasias míticas nos becos sem saída do prazer de consumo.

Pode a sensibilidade cultural que veio a ser entendida como pós-modernismo ser vista como uma meditação prolongada sobre as mudanças tecnológicas que nunca aconteceram? A pergunta me veio enquanto eu assistia a um dos filmes recentes de Star Wars. O filme era péssimo, mas eu não pude deixar de me impressionar com a qualidade dos efeitos especiais. Ao me lembrar dos efeitos especiais típicos dos filmes sci-fi dos anos 50, eu ficava pensando em quão impressionada uma plateia dessa época ficaria se eles soubessem o que conseguimos fazer agora – e aí percebi que “na verdade, não. Eles não ficariam nada impressionados, não é mesmo? Eles achavam que nós estaríamos fazendo esse tipo de coisa agora. Não só pensando em maneiras mais sofisticadas de simular esse tipo de coisa”.

Essa palavra – simular – é chave. As tecnologias que têm avançado desde os anos 70 são principalmente tecnologias médicas ou tecnologias da informação – principalmente tecnologias de simulação. Elas são tecnologias do que Jean Baudrillard e Umberto Eco chamaram “hiperreal”, a habilidade de fazer imitações que são mais realistas que os originais. A sensibilidade pós-moderna, o sentimento de que entramos de alguma maneira em um período histórico absolutamente novo em que entendemos que não há nada de novo; que as grandes narrativas históricas de progresso e libertação não tinham sentido algum; que tudo agora era uma simulação, uma repetição irônica, fragmentação e montagem – tudo isso faz sentido em um ambiente tecnológico em que as únicas descobertas foram aquelas que tornaram mais fácil criar, transferir e rearranjar projeções de coisas que ou já existiam ou, acabamos percebendo, jamais existiriam. Claro, se estivéssemos tirando férias em domos geodésicos em Marte ou carregando usinas de energia nuclear de bolso ou aparelhos de telecinese ninguém estaria falando desse jeito. O momento pós-moderno foi uma forma desesperada de transformar o que só poderia de outra forma ser sentido como uma decepção amarga em algo animador, histórico e inédito.

Em suas primeiras formulações, que em grande parte vieram da tradição marxista, muito desse pano de fundo tecnológico foi reconhecido. A obra “Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio” (tradução livre), de Fredric Jameson, propôs o termo “pós-modernismo” para se referir à lógica cultural apropriada para uma nova fase tecnológica do capitalismo, que havia sido prevista pelo economista marxista Ernest Mandel desde 1972. Mandel tinha argumentado que a humanidade estava no limiar de uma “terceira revolução tecnológica”, tão profunda quanto as revoluções da agricultura e da indústria, em que computadores, robôs, novas fontes de energia e novas tecnologias de informação substituiriam o trabalho industrial – o “fim do trabalho” como isso logo seria chamado – reduzindo-nos a técnicos e designers de computadores, criando as ideias loucas que fábricas cibernéticas produziriam.

Argumentos sobre o fim do trabalho foram populares no final dos anos 70 e começo dos anos 80 à medida que pensadores ponderavam o que aconteceria à tradicional luta de classes se a classe trabalhadora não existisse (a resposta: uma política baseada em identidades). Jameson se considerava um explorador das formas de consciência e das sensibilidades históricas que provavelmente surgiriam nessa nova era.

O que aconteceu, em vez disso, é que o maior alcance das tecnologias de informação e novas formas de organizar o transporte – a “containerização”, por exemplo – permitiu que esses mesmos trabalhos industriais fossem terceirizados para a Ásia, América Latina, e outros países onde a disponibilidade de trabalho barato permitiu que os fabricantes empregassem técnicas de linha de produção muito menos tecnologicamente sofisticadas do que eles seriam obrigados a fazer em seus países natais. Da perspectiva daqueles vivendo na Europa, América do Norte e Japão, os resultados parecem ter sido bem como o previsto. As indústrias de chaminés e fumaça desapareceram mesmo; os trabalhos vieram a ser divididos entre o estrato mais baixo do setor de serviço e um estrato mais alto de pessoas sentadas em bolhas antissépticas brincando com computadores. Mas abaixo disso tudo fica uma consciência irritante de que a civilização pós-trabalho é uma gigantesca fraude. Nossos tênis de alta tecnologia cuidadosamente projetados não foram produzidos por ciborgues inteligentes ou nanotecnologia molecular autorreplicante; eles foram feitos com o equivalente às antigas máquinas de costura Singer, pelas filhas de fazendeiros mexicanos ou indonésios que, por causa da OMC ou dos acordos de comércio apoiados pela NAFTA, foram expulsos de suas terras ancestrais. É uma consciência pesada essa por detrás da sensibilidade pós-moderna e sua celebração de um jogo sem fim de imagens e superfícies.

Por que a explosão de crescimento tecnológico que todos estavam esperando – as bases lunares, as fábricas de robôs – deixou de acontecer? Há duas possibilidades. Ou nossas expectativas sobre o ritmo da mudança tecnológica não eram realistas (e nesse caso, precisamos saber por que tantas pessoas inteligentes acreditavam que elas eram) ou nossas expectativas eram realistas (e nesse caso, precisamos saber o que aconteceu para tirar dos trilhos tantas ideias e prospectos).

A maioria dos analistas sociais escolhem a primeira explicação e traçam a origem do problema à corrida espacial da Guerra Fria. Por que, os analistas se perguntam, ambos os Estados Unidos e a União Soviética se tornaram tão obcecados com a ideia da viagem espacial tripulada? Isso nunca foi um jeito eficiente de fazer pesquisa científica. E encorajou ideias nada realistas sobre o futuro da humanidade.

Poderia a resposta ser que os dois países foram, um século antes, sociedades de pioneiros, uma expandindo-se para além da fronteira oeste, a outra ao longo da Sibéria? Não compartilhavam, eles, um comprometimento com um mito do futuro expansivo e sem limites, da colonização humana de vastos espaços vazios, que ajudou a convencer os líderes desses superpoderes de que eles haviam entrado em uma “era espacial” na qual competiam pelo controle do futuro em si mesmo? Todo tipo de mito estava em jogo aqui, sem dúvida, mas isso não prova nada sobre o realismo do projeto.

Algumas daquelas fantasias de ficção científica (a essa altura já não podemos saber quais) poderiam ter vindo a existir. Para gerações mais novas, muitas fantasias como aquelas tinham se tornado realidade. Aqueles que cresceram na virada do século lendo Júlio Verne ou H. G. Wells imaginaram o mundo de 1960 com máquinas voadoras, foguetes, submarinos, rádio e televisão – e foi exatamente isso que eles viram. Se não era irrealista em 1900 sonhar com humanos viajando à lua, então por que era irrealista nos anos 60 sonhar com mochilas a jato e lavanderias-robô?

Na verdade, enquanto esses sonhos estavam sendo esboçados, a base material para a conquista deles estava começando a ser enfraquecida. Há razão para acreditar que mesmo nos anos 50 e 60, o ritmo da inovação tecnológica estava diminuindo em relação ao passo ligeiro da primeira metade do século. Houve uma última enchente de novas tecnologias em rápida sucessão nos anos 50 quando surgiram os fornos de microondas (1954), a pílula (1957) e os lasers (1958). Mas desde então, avanços tecnológicos foram maneiras inteligentes de combinar tecnologias que já existiam (como na corrida espacial) e novas maneiras de colocar tecnologias que já existiam nas prateleiras dos supermercados (o exemplo mais famoso é a televisão, inventada em 1926, mas produzida em massa apenas depois da guerra). Ainda assim, em parte porque a corrida espacial deu a todos a impressão de que avanços incríveis estavam acontecendo, a visão popular durante os anos 60 era que o ritmo da mudança tecnológica estava aumentando de formas amedrontadoras e descontroláveis.

O best seller de 1970 de Alvin Toffler, Choque do Futuro, argumentava que quase todos os problemas sociais dos anos 60 se iniciavam no ritmo crescente da transformação tecnológica. O surgimento infinito de descobertas científicas mudavam as bases da existência diária, e deixava as pessoas sem uma ideia clara do que uma vida normal seria. Considere a família, por exemplo; não só a pílula, mas a fertilização in vitro, os bebês de proveta e a doação de óvulos e espermatozoides estavam prestes a tornar a ideia de maternidade obsoleta.

Seres humanos não eram psicologicamente preparados para o ritmo de mudanças, Toffler escreveu. Ele cunhou um termo para o fenômeno: “impulsão aceleradora”. Ela começou com a Revolução Industrial, mas mais ou menos pelos anos 1850, seu efeito se tornou inequívoco. Não apenas tudo ao nosso redor estava mudando, mas a maior parte – conhecimento humano, contingente populacional, crescimento industrial, uso energético – estava mudando exponencialmente. A única solução, argumentava Toffler, era começar algum tipo de controle sobre o processo, como instituições que avaliariam tecnologias emergentes e seus efeitos possíveis, banindo assim tecnologias que seriam provavelmente muito socialmente disruptivas, guiando o desenvolvimento na direção na harmonia social.

Enquanto muitas das tendências históricas que Toffler descreve são precisas, o livro apareceu quando a maioria dos crescimentos exponenciais parou. Foi bem por volta de 1970 que o aumento no número de artigos científicos publicados no mundo – um número que tinha dobrado a cada quinze anos desde mais ou menos 1685 – começou a se nivelar. O mesmo valeu para livros e patentes.

O uso da palavra “aceleradora” foi particularmente infeliz. Pela maior parte da história humana, a maior velocidade com a qual as pessoas poderiam viajar esteve por volta de 40 km/h. Por volta de 1900 a velocidade máxima aumentou para 160 km/h, e pelos próximos setenta anos ela pareceu crescer exponencialmente. Na época em que Toffler estava escrevendo, em 1970, o recorde para maior velocidade com a qual qualquer humano havia viajado era mais ou menos 40.000 km/h, o que foi conseguido pela equipe do Apollo 10 em 1969, um ano antes. Em tal taxa de crescimento, deve ter parecido razoável presumir que era questão de décadas até estarmos explorando outros sistemas solares.

Desde 1970, nenhum novo aumento ocorreu. O recorde de maior velocidade continuou com a equipe do Apollo 10. É verdade que o Concorde, que voou pela primeira vez em 1969, conseguiu 2179 km/h. O Soviete Tupolev Tu-144, que voou primeiro, foi ainda mais rápido, com 2499 km/h. Mas essas velocidades não apenas não aumentaram; elas diminuíram desde que o Tupolev Tu-144 foi cancelado e o Concorde foi abandonado.

Nada disso interrompeu a carreira de Toffler. Ele continuou reciclando sua análise para inventar novos pronunciamentos espetaculares. Em 1980, ele produziu “A Terceira Onda”, seu argumento tirado da “terceira revolução tecnológica” do Ernest Mandel – exceto que enquanto Mandel pensava que essas mudanças seriam o fim do capitalismo, Toffler presumia que o capitalismo era eterno. Até 1990, Toffler se tornou o guru intelectual pessoal de Newt Gingrich, um congressista republicano que disse que seu texto de 1994, “Contract With America” (Contrato com a América, em tradução livre) foi parcialmente inspirado pela ideia de que os Estados Unidos precisavam sair de uma mentalidade antiquada, materialista e industrial para uma nova era de livre mercado e informação, uma civilização da Terceira Onda.

Há várias ironias nessa conexão. Uma das maiores conquistas de Toffler foi inspirar o governo a criar o OTA (Office of Technology Assessment), um escritório de avaliação tecnológica. Um dos primeiros atos de Gingrich ao ganhar o controle do Congresso em 1995 foi cancelar os fundos da OTA como um exemplo de gasto extravagante e inútil por parte do governo. Ainda assim, não há contradição aqui. A esas altura, Toffler há muito havia desistido de influenciar a política ao apelar para o público geral; ele estava ganhando a vida principalmente dando seminários para presidentes de empresas e think tanks corporativos. Suas ideias tinham sido privatizadas.

Gingrich gostava de chamar a si mesmo um “futurologista conservador”. Isso, também, pode parecer um oxímoro; mas, na verdade, o próprio conceito de futurologia de Toffler nunca foi progressista. O progresso sempre foi visto como um problema que precisava ser resolvido.

Toffler deve ser visto como uma versão peso-pena do teórico social do século XIX Auguste Comte, que acreditava estar no limiar de uma nova era – nesse caso, a era industrial – dirigida por um progresso inexorável da tecnologia, e que os cataclismas sociais de seu tempo eram causados por um desajuste do sistema social. A antiga ordem feudal desenvolveu a teologia católica, um jeito de pensar sobre o lugar do homem no cosmos que era perfeitamente adaptado ao sistema social de seu tempo, e também desenvolveu a estrutura institucional, a igreja, que distribuiu e fez valer tais ideias de uma maneira que pôde dar a todos um sentimento de significado e pertença. A era industrial desenvolveu seu próprio sistema de ideias – a ciência – mas os cientistas não tinham sido bem-sucedidos em criar nada parecido com a Igreja Católica. Comte concluiu que precisávamos desenvolver uma nova ciência, que ele chamou “sociologia”, e disse que os sociólogos deveriam fazer o papel de padres em uma nova Religião da Sociedade que deveria inspirar a todos com um amor por ordem, comunidade, disciplina do trabalho, e os valores da família. Toffler era menos ambicioso; seus futurólogos não deveriam fazer o papel de padres.

Gingrich tinha um segundo guru, um teólogo capitalista chamado George Gilder, e Gilder, como o Toffler, era obcecado com a tecnologia e a mudança social. Pode parecer estranho, mas Gilder era mais otimista. Adotando uma versão radical do argumento de Mandel sobre a Terceira Onda, ele sustentava o que estávamos vendo com a ascensão dos computadores era uma “derrubada da matéria”. A velha e materialista Sociedade Industrial, onde o valor vinha do trabalho físico, abria caminho para uma era da informação em que o valor emerge diretamente das mentes dos empreendedores, assim como o mundo havia originalmente aparecido ex nihilo da mente de Deus, e assim como o dinheiro, em uma economia genuinamente de oferta, emergia ex nihilo da Reserva Federal e fluía para as mãos de capitalistas criadores de valor. Políticas econômicas de incentivo à oferta, Gilder concluiu, garantiria que o investimento continuaria a se afastar dos elefantes brancos do velho governo, como o programa espacial, em direção a tecnologias médicas e de informação mais produtivas.

Mas se houve um afastamento consciente, ou semiconsciente, do investimento em pesquisa que pudesse levar a melhores foguetes e robôs em direção àquela que levaria a coisas como impressoras e tomografias computadorizadas, ela começou bem antes do “Choque do Futuro” de Toffler (1970) e do “Wealth and Poverty” de Gilder (“Riqueza e Pobreza”, em tradução livre; 1981). O que o sucesso deles mostra é que os problemas que eles levantaram – que os padrões de então de desenvolvimento tecnológico levariam ao caos social, e que precisamos guiar esse crescimento em direções que não desafiassem as estruturas de autoridade existentes – ecoavam nos corredores do poder. Estadistas e capitães da indústria já estavam pensando nessas questões por algum tempo.

O capitalismo industrial estimulou uma taxa extremamente rápida de avanço científico e inovação tecnológica – uma sem paralelo na história humana até então. Mesmo os maiores detratores do capitalismo, Karl Marx e Friedrich Engels, celebraram seu destravamento das “forças produtivas”. Marx e Engels também acreditavam que a necessidade contínua do capitalismo de revolucionar os meios de produção industrial seria sua perdição. Marx argumentou que, por certas razões técnicas, o valor – e portanto o lucro – só pode ser extraído do trabalho humano. A competição força os donos das fábricas a mecanizar a produção, para reduzir custos de trabalho, mas enquanto isso serve ao interesse imediato da empresa, o efeito da mecanização é fazer decrescer o lucro geral.

Por 150 anos, os economistas debateram se tudo isso era verdade. Mas se for verdade, faz sentido a decisão dos industrialistas de não gastar dinheiro de pesquisa com as fábricas de robôs que todos imaginavam nos anos 60, e em vez disso transferir o processo produtivo para locais de baixa tecnologia e trabalho intensivo na China ou no Sul Global.

E, como eu notei, há uma razão para acreditar que o ritmo da inovação tecnológica no processo produtivo – as fábricas em si mesmas – começou a cair nos anos 50 e 60, mas os efeitos colaterais da rivalidade dos Estados Unidos com a União Soviética fizeram parecer que a inovação estava acelerando. Havia a incrível corrida espacial, junto aos esforços frenéticos das indústrias americanas para aplicar tecnologias que já existiam a produtos comerciais, para criar um senso otimista de prosperidade florescente e progresso garantido que iria minar o apelo da luta de classes.

Essas iniciativas foram reações às empreitadas da União Soviética. Mas essa parte da história os Americanos dificilmente se lembram, porque no final da Guerra Fria a imagem que se fazia da União Soviética mudou de rival ousado e amedrontador para maluco patético – o exemplo de uma sociedade que não poderia funcionar. Lá nos anos 50, de fato, muitos pensadores americanos suspeitavam que o sistema soviético era melhor. Certamente, eles consideravam que nos anos 30, enquanto os Estados Unidos estavam no lamaçal da depressão econômica, a União Soviética tinha mantido níveis de crescimento econômico quase sem precedentes, de 10 a 12 porcento ao ano – uma conquista rapidamente seguida da produção de exércitos de tanques que derrotaram a Alemanha nazista, do lançamento da Sputnik em 1957, e então da primeira nave espacial tripulada, em Vostok, em 1961.

Dizem com frequência que o pouso na lua foi a maior conquista histórica do comunismo soviético. Certamente os Estados Unidos nunca teriam contemplado um tal feito se não fosse pelas ambições do Politburo. Estamos acostumados a pensar no Politburo como um grupo de burocratas cinzas sem imaginação, mas eles eram burocratas que ousaram sonhar coisas espantosas. A revolução mundial era só a primeira. É verdade também que a maioria dos sonhos – mudar o curso de grandes rios, esse tipo de coisa – acabou sendo ou socialmente ou ecologicamente desastrosa ou, como o Palácio dos Sovietes de Joseph Stalin, que tinha cem andares, ou uma estátua de Vladimir Lenin que equivalia a um prédio de vinte andares, nunca saiu do papel.

Depois do sucesso inicial do programa espacial soviético, poucos desses esquemas foram realizados, mas a liderança nunca deixou de pensar em coisas novas. Até mesmo nos anos 80, quando os Estados Unidos tentava seu último projeto grandioso (Star Wars), os soviéticos queriam transformar o mundo através dos usos criativos da tecnologia. Poucos fora da Rússia se lembram da maioria desses projetos, mas muitos recursos foram devotados a eles. Vale a pena notar que, diferentemente do Star Wars, que foi projetado para naufragar a União Soviética, a maioria deles não era essencialmente militar; como, por exemplo, a tentativa de acabar com a fome mundial ao colher de lagos e oceanos uma bateria comestível chamada spirulina, ou resolver o problema da energia no mundo lançando em órbita centenas de painéis solares gigantes, transferindo a energia de volta para a Terra.

A vitória na corrida espacial significou que, depois de 1968, os políticos americanos não levaram mais a competição a sério. O resultado foi que a mitologia da fronteira final foi mantida, mesmo que a direção da pesquisa e do desenvolvimento se afastou de qualquer coisa que pudesse levar à criação de bases em Marte e fábricas de robôs. A explicação padrão é que isso tudo resultava do triunfo do mercado. O programa Apollo foi um projeto de um “Governo Grande”, inspirado pelos soviéticos no sentido de que exigia um esforço de coordenação nacional por parte das burocracias governamentais. Assim que a ameaça soviética foi colocada de lado, contudo, o capitalismo estava livre para reverter as linhas do desenvolvimento tecnológico mais de acordo com seus imperativos normais e descentralizados de livre mercado – como a pesquisa privada em produtos vendáveis como computadores pessoais. Essa foi a linha que homens como Toffler e Gilder tomaram no fim dos aos 70 e começo dos 80.

Na verdade, os Estados Unidos nunca abandonaram esquemas gigantes, controlados pelo governo, de desenvolvimento tecnológico. Em geral, eles apenas foram transferidos para a pesquisa militar – e não apenas para esquemas em escala soviética como o Star Wars, mas para projetos de armas, pesquisa em tecnologias de comunicação e vigilância, e outros assuntos relacionados à segurança. Em algum nível isso sempre foi verdade: os bilhões gastos com pesquisas em mísseis sempre foram muito maiores que as somas alocadas ao programa espacial. Ainda assim nos anos 70, mesmo a mais simples pesquisa veio a ser conduzida seguindo prioridades militares. Uma razão pela qual não temos fábricas de robôs é porque quase 95% do financiamento de pesquisa em robótica foi canalizado através do Pentágono, que está mais interessado em criar drones não-tripulados que na automação de fábricas de papel.

Alguém poderia dizer que mesmo a mudança para a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias de informação e medicina foi não tanto uma reorientação rumo aos imperativos de mercado dos consumidores, mas parte de um esforço geral de dar sequência à humilhação tecnológica da União Soviética com a vitória total da luta de classes global – vista simultaneamente como uma imposição de absoluta dominação militar dos Estados Unidos no planeta, e, dentro do país, a derrota absoluta dos movimentos sociais.

Isso porque as tecnologias que de fato surgiram se provaram propícias à vigilância, disciplina do trabalho, e controle social. Os computadores abriram certos espaços de liberdade, como somos constantemente lembrados, mas ao invés de levar a uma utopia sem trabalho imaginada por Abbie Hoffman, eles foram empregados de tal forma que se produz o efeito oposto. Eles permitiram a financialização do capital que levou trabalhadores desesperadamente à dívida, e, ao mesmo tempo, providenciou os meios pelos quais os empregadores criaram regimes de trabalho “flexíveis” que ao mesmo tempo destruíram a estabilidade do emprego e aumentaram as horas de trabalho para quase todo mundo. Junto com a exportação dos trabalhos de fábrica, o novo regime de trabalho tem destruído o movimento sindical e destruiu qualquer possibilidade de luta de classes efetiva.

Enquanto isso, apesar de um investimento sem precedentes na pesquisa em medicina e ciências biológicas, esperamos pela cura do câncer e da gripe, e as descobertas médicas mais dramáticas que vimos tomaram a forma de drogas como o Prozac, o Zoloft ou a Ritalina – feitas sob medida para garantir que as novas exigências laborais não nos deixem loucos ao ponto de nos deixar desfuncionais.

Com resultados como esse, qual será o epitáfio do neoliberalismo? Acho que historiadores concluirão que foi uma forma de capitalismo que sistematicamente priorizou imperativos políticos sobre imperativos econômicos. Dada uma escolha entre o curso de ação que faria o capitalismo parecer o único sistema econômico possível, e um que transformaria o capitalismo num sistema econômico viável, de longo prazo, o neoliberalismo escolhe o primeiro sempre. Tudo aponta que a destruição da estabilidade do emprego junto ao aumento das horas de trabalho não cria uma força de trabalho mais produtiva (ou mais inovadora, ou mais leal). Provavelmente, em termos econômicos, o resultado é negativo – uma impressão confirmada pelas baixas taxas de crescimento em praticamente todas as partes do mundo nos anos 80 e 90.

Mas a escolha neoliberal foi efetiva na despolitização do trabalho e na sobredeterminação do futuro. Economicamente, o crescimento de exércitos, da polícia e dos serviços privados de segurança resulta num peso morto. É possível, na verdade, que o próprio peso morto de um aparato criado para garantir a vitória ideológica do capitalismo é o que vai fazê-lo naufragar. Mas é fácil também ver como asfixiar qualquer senso de que um futuro inevitável e redentor poderia ser diferente do nosso próprio mundo é uma parte crucial do projeto neoliberal.

Até aqui todas as peças parecem se encaixar. Nos anos 60, forças políticas conservadoras se assustaram com os efeitos socialmente disruptivos do progresso tecnológico, e os empresários começavam a se preocupar com o impacto econômico da mecanização. A desvanecente ameaça soviética permitiu uma realocação de recursos em direções vistas como menos desafiadoras dos arranjos sociais e econômicos, ou mesmo direções que poderiam ajudar na campanha contra os ganhos dos movimentos sociais progressistas e a favor de uma vitória decisiva no que as elites americanas viam como uma luta de classes global. A mudança de prioridades foi vista como uma saída dos projetos de “Grande Governo” e um retorno ao mercado, mas na verdade a mudança alterou a pesquisa dirigida pelo governo para longe de programas como a NASA ou fontes alternativas de energia e em direção a tecnologias militares, médicas e informáticas.

É claro que isso não explica tudo. Acima de tudo, não explica por que, mesmo nas áreas que se tornaram o foco de projetos de pesquisas bem financiados, não temos visto nada como o avanço que foi imaginado há 50 anos. Se 95% da pesquisa em robótica é financiada pelos militares, onde estão os robôs matadores atirando raios fatais pelos olhos?

Obviamente houve avanços na tecnologia militar em décadas recentes. Uma da razões pelas quais sobrevivemos à Guerra Fria é que enquanto as bombas nucleares poderiam ter funcionado como propaganda, seus sistemas de emissão nem tanto; mísseis balísticos intercontinentais não eram capazes de atingir cidades, muito menos alvos específicos dentro de cidades, e esse fato significava que não fazia muito sentido atacar primeiro com armas nucleares a não ser que você quisesse destruir o mundo todo.

Mísseis contemporâneos são comparativamente precisos. Ainda assim, armas de precisão nunca parecem capazes de assassinar indivíduos específicos (Saddam, Osama, Qaddafi), mesmo quando centenas são usadas. E as armas de raios não se materializaram – certamente não por falta de tentativa. Podemos presumir que o Pentágono gastou bilhões em pesquisas sobre um raio da morte, mas o mais perto que chegaram foi lasers que podem, se mirados corretamente, cegar um atirador inimigo olhando diretamente para a mira. Além disso ser antidesportivo, é patético: O laser é uma tecnologia dos anos 50. Armas que atordoam os inimigos não parecem estar nos planos; e no que concerne a infantaria, a arma preferida em quase todo lugar permanece sendo a AK-47, um design soviético cujo nome vem do ano em que foi apresentado: 1947.

A internet é uma inovação fantástica, mas é basicamente uma combinação global e super rápida de biblioteca, correios e catálogo de compras. Se a internet fosse descrita para um fã de ficção científica nos anos 50 e 60, e fosse apresentada como a conquista tecnológica mais dramática desde então, sua reação seria de decepção. Cinquenta anos e isso é o melhor que os cientistas conseguiram fazer? Esperávamos computadores que pudessem pensar!

Em geral, níveis de financiamento de pesquisa aumentaram dramaticamente desde os anos 70. É verdade que a proporção desse financiamento que vem do setor corporativo foi a que cresceu mais dramaticamente, ao ponto em que a iniciativa privada agora financia duas vezes mais a pesquisa científica do que o governo, mas o aumento é tão alto que a quantidade total de financiamento governamental, em dólares corrigidos, é muito maior do que era nos anos 60. Pesquisas “conceituais” ou”motivadas por mera curiosidade” – o tipo que não tem qualquer prospecto de aplicação prática imediata, e que tem mais chances de levar a descobertas inesperadas – ocupam uma porção cada vez menor do total, apesar de tanto dinheiro ser distribuído por aí hoje em dia que o total aumentou.

Ainda assim a maioria dos observadores concorda que os resultados têm sido insignificantes. Certamente não vemos nada como a corrente contínua de revoluções conceituais – herança genética, relatividade, psicoanálise, mecânica quântica – com as quais as pessoas se acostumaram, e que passaram a esperar, há cem anos. Por quê?

Parte da resposta tem a ver com a concentração de recursos em uns poucos projetos gigantes. O Projeto Genoma Humano é frequentemente citado como um exemplo. Depois de gastar quase três bilhões de dólares e empregar milhares de cientistas e auxiliares em cinco países diferentes, ele serviu principalmente para estabelecer que não há muito para ser aprendido a partir do sequenciamento genético que seja muito útil para os leigos. Ainda mais, o furor e o investimento político ao redor de tais projetos demonstram o grau em que até mesmo a pesquisa básica agora parece ser motivada por imperativos políticos, administrativos e publicitários que faz com que seja improvável que qualquer coisa revolucionária aconteça de novo.

Aqui, a nossa fascinação com as origens míticas do Vale do Silício e da internet nos cegou para o que realmente tem acontecido. Ela permitiu que imaginássemos que a pesquisa e o desenvolvimento são agora controlados, primariamente, por pequenas equipes de empreendedores destemidos, ou pelo tipo de cooperação descentralizada que cria o software livre. Mas isso não é verdade, mesmo que tais equipes de pesquisa são as que mais tendam a produzir resultados. A pesquisa e o desenvolvimento é ainda dirigida por projetos burocráticos gigantes.

O que mudou foi a cultura burocrática. A crescente interpenetração de governo, universidade e empresas levou todos a adotar a linguagem, as sensibilidades e as formas organizacionais do mundo corporativo. Isso pode ter ajudado a criar produtos vendáveis, uma vez que é isso que burocracias corporativas foram projetadas para fazer, mas em termos de estimular pesquisais originais, os resultados têm sido catastróficos.

Meu próprio conhecimento vem de universidades, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Nos dois países, nos últimos trinta anos têm se visto uma verdadeira explosão da proporção de horas de trabalho gastas com tarefas administrativas às custas de basicamente todo o resto. Na minha própria universidade, por exemplo, temos mais administradores que professores, e destes, também, espera-se que gastem pelo menos tanto tempo na administração quanto no ensino e na pesquisa combinados. O mesmo é verdade, mais ou menos, em universidades ao redor do mundo.

O crescimento do trabalho administrativo resultou diretamente da introdução de técnicas corporativas de administração. Invariavelmente, estas são justificadas como formas de aumentar a eficiência e introduzir o princípio de competição em todos os níveis. O que elas acabam significando na prática é que todo mundo acaba gastando mais tempo tentando vender coisas: propostas de bolsas, propostas de livros, análises de currículos dos estudantes para empregos e bolsas, análises de nossos colegas, prospectos de novos cursos interdisciplinares, institutos, conferências, as próprias universidades (que agora se tornaram marcas e precisam ser vendidas a possíveis alunos e contribuintes), e por aí vai.

À medida que o marketing domina a vida acadêmica, engendra documentos sobre o estímulo à imaginação e à criatividade que podiam igualmente ter sido feitos para estrangular a imaginação e a criatividade no berço. Nenhum grande novo trabalho de teoria social surgiu nos Estados Unidos nos últimos trinta anos. Fomos reduzidos ao equivalente de escolásticos medievais, escrevendo comentários intermináveis sobre teóricos franceses dos anos 70, apesar de nossa consciência culpada sobre o fato de que se novas encarnações de Gilles Deleuze, Michel Foucault ou Pierre Bourdieu aparecessem na academia hoje, negaríamos a eles cargos de professores.

Houve um tempo em que a academia foi o refúgio dos excêntricos, dos brilhantes, dos sonhadores. Não mais. É agora o domínio dos autopublicitários profissionais. Como resultado, em um dos mais bizarros atos de autodestruição social da história, parecemos ter decidido que não há mais um lugar para nossos cidadãos excêntricos, brilhantes e sonhadores. A maior parte deles definha nos porões de suas mães, quando muito fazendo ocasionais intervenções na internet.

Se tudo isso é verdade nas ciências sociais, onde a pesquisa ainda é feita com despesas mínimas e com grande frequência apenas por indivíduos, só podemos imaginar o quão pior fica para astrofísicos. E, de fato, um astrofísico, Jonathan Katz, recentemente alertou alunos que consideravam uma carreira científica. Mesmo que você consiga passar por um período, que geralmente dura uma década, sendo o lacaio de alguém, ele diz, você pode esperar que suas melhores ideias sejam frustradas a todo momento:

Você vai gastar o seu tempo escrevendo propostas em vez de fazendo pesquisa. E o que é pior, como as suas propostas são julgadas pelos seus competidores, você não pode seguir a sua curiosidade, mas deve se esforçar para antecipar e defletir críticas em vez de resolver os problemas científicos importantes. É lugar-comum que ideias originais são o beijo da morte para um projeto de pesquisa, porque ainda não se sabe se funcionam ou não.

Isso basicamente responde à pergunta sobre o porquê de não termos teletransporte ou sapatos antigravidade. O senso comum sugere que para maximizar a criatividade científica você deve encontrar pessoas inteligentes, dar-lhes os recursos para que elas se apliquem à ideia que lhes venha à cabeça, e deixe-os em paz. Muitas pesquisas não vão dar em nada, mas uma ou duas vão descobrir alguma coisa. Mas se você quer minimizar a possibilidade de descobertas inesperadas, diga a essas mesmas pessoas que elas não receberão recurso algum até que gastem o grosso de seu tempo disponível competindo umas com as outras para convencer você de que elas sabem de antemão o que vão descobrir.

Nas ciências naturais, à tirania do gerencismo podemos adicionar a privatização dos resultados das pesquisas. Como o economista britânico David Harvie nos lembrou, pesquisa de “código aberto” não é novidade. A pesquisa acadêmica sempre foi de código aberto, no sentido de que acadêmicos compartilhavam materiais e resultados. Há competição, certamente, mas é “convivial”. Isso não é mais verdade quanto a acadêmicos trabalhando no setor corporativo, onde descobertas são ciosamente protegidas, mas a difusão do ethos corporativo dentro da própria academia e institutos de pesquisa fez com que pesquisadores financiados por dinheiro público tratassem suas descobertas como propriedades pessoais. Editoras acadêmicas garantem que as descobertas que são publicadas sejam cada vez mais difíceis de acessar, trancando ainda mais o bem comum intelectual. Como resultado, a competição convivial de código aberto vira algo mais mais parecido com uma competição clássica de mercado.

Existem vários tipos de privatização, incluindo a simples compra e supressão de descobertas inconvenientes por grandes corporações com medo de seus efeitos econômicos (não podemos saber quantas fórmulas de combustível sintético foram compradas e colocadas nos cofres das empresas petrolíferas, mas é difícil imaginar que nada do tipo jamais ocorreu). Mais sutil é a forma como o ethos gerencista desencoraja tudo que seja um pouquinho diferente ou ousado, especialmente se não há prospecto de resultados imediatos. Estranhamente, a internet pode ser parte do problema nesse caso. Como Neal Stephenson disse:

A maior parte das pessoas que trabalham em corporações ou na academia testemunharam algo parecido com o seguinte: um número de engenheiros está sentado numa sala, discutindo ideias. Da discussão surge um novo conceito que parece promissor. Então uma das pessoas que tem um laptop, tendo feito uma pesquisa no Google, anuncia que essa “nova” ideia é, na verdade, uma ideia velha; ela – ou pelo menos algo vagamente parecido – já foi tentada. Ou ela falhou, ou teve sucesso. Se deu errado, nenhum gerente que quer manter seu emprego vai aprovar o dinheiro necessário para revivê-la. Se teve sucesso, então está patenteada e inserção no mercado é provavelmente inatingível, uma vez que a primeira pessoa que pensou nela terá a “vantagem de ter sido a primeira” e terá criado “barreiras” à entrada de competidores. O número de ideias aparentemente promissoras que foram destruídas dessa forma deve estar na casa dos milhões.

E então um espírito tímido e burocrático sufoca cada aspecto da vida cultural. Ele vem encoberto por um jargão de criatividade, iniciativa e empreendedorismo. Mas o jargão é irrelevante. Os pensadores que mais provavelmente farão uma descoberta conceitual são os que menos provavelmente receberão financiamento, e, se descobertas acontecerem, quem as descobre provavelmente não encontrará ninguém desejoso de ir até o fim em suas consequências mais inovadoras.

Giovanni Arrighi percebeu que depois da Companhia dos Mares do Sul, o capitalismo britânico praticamente abandonou a forma corporativa. Já pela época da revolução industrial, a Grã-Bretanha em vez disso começou a depender de uma combinação de empresas familiares e firmas de altas finanças – um padrão que continuou pelo próximo século inteiro, o período de máxima inovação científica e tecnológica (A Grã-Bretanha dessa época também é notória por ter sido tão generosa com seus esquisitões e excêntricos quanto os Estados Unidos de hoje são intolerantes. Um expediente comum era permitir que se tornassem párocos rurais, que, previsivelmente, se tornaram uma das principais fontes de descobertas científicas amadoras).

Contemporaneamente, o capitalismo corporativo burocrático foi uma criação não da Grã-Bretanha, mas dos Estados Unidos e da Alemanha, os dois poderes rivais que passaram a primeira metade do século XX lutando duas guerras sangrentas para decidir quem substituiria o Reino Unido como o poder mundial dominante – guerras que culminaram justamente em programas científicos patrocinados pelo governo para ver quem seria o primeiro a descobrir a bomba atômica. É significativo, então, que nossa estagnação tecnológica atual pareça ter começado depois de 1945, quando os Estados Unidos substituíram a Inglaterra como organizador da economia mundial.

Estadunidenses não gostam de pensar em si mesmos como uma nação de burocratas – bem o contrário, na verdade – mas no momento em que paramos de imaginar a burocracia como um fenômeno limitado a escritórios do governo, fica óbvio que é exatamente o que nos tornamos. A vitória contra a União Soviética não levou à dominação do mercado mas, na verdade, cimentou a dominação das elites gerenciais conservadoras, burocratas corporativos que usam o pretexto do pensamento a curto prazo, competitivo, voltado para o lucro, para esmagar qualquer coisa que possivelmente teria implicações revolucionárias de qualquer tipo.

Se não notamos que vivemos em uma sociedade burocrática, isso é porque as normas e práticas burocráticas se tornaram tão comuns que não podemos vê-las, ou, pior, não conseguimos nos imaginar fazendo as coisas de outra forma. Computadores têm tido um papel crucial nesse encurtamento de nossas imaginações sociais. Assim como a invenção de novas formas de automação industrial nos séculos XVIII e XIX teve o efeito paradoxal de transformar cada vez mais e mais pessoas no mundo todo em trabalhadores industriais em tempo integral, também todo o software projetado para que pudéssemos evitar responsabilidades administrativas nos transformou em administradores em meio período ou em tempo integral. Da mesma forma que professores universitários parecem sentir que é inevitável perder mais e mais de seus tempos gerenciando bolsas, donas de casas de classe média alta simplesmente aceitam que terão que gastar várias semanas todos os anos preenchendo formulários online de quarenta páginas para matricular seus filhos no ensino fundamental. Todos nós perdemos cada vez mais tempo digitando senhas em nossos telefones para gerenciar contas de banco e cartões de crédito, e aprendendo como fazer trabalhos que uma vez foram feitos por agentes de viagens, corretores e contadores.

Alguém descobriu que nos Estados Unidos uma pessoa gastará em média seis meses de sua vida esperando em semáforos. Eu não sei se estatísticas semelhantes estão disponíveis para o tempo que se perde preenchendo formulários, mas deve ser pelo menos tão longo quanto aquela. Nenhuma população na história do mundo gastou nem de perto tanto tempo engajando com papelada. Nesse estágio final e embrutecedor do capitalismo, estamos nos movendo das tecnologias poéticas em direção às tecnologias burocráticas. Por tecnologias poéticas eu me refiro ao uso de técnicas racionais para transformar fantasias loucas em realidade. Tecnologias poéticas, entendidas assim, são tão velhas quanto a civilização. Lewis Mumford percebeu que as primeiras máquinas complexas eram feitas de pessoas. Os faraós egípcios conseguiram construir as pirâmides somente por causa de seu domínio de procedimentos administrativos, que os permitiu desenvolver técnicas de linha de produção, dividindo tarefas complexas em dúzias de operações simples e delegando-as a uma equipe de trabalhadores – mesmo que lhes faltasse uma tecnologia mecânica mais complexa que o plano inclinado e a alavanca. O gerenciamento transformou exércitos de camponeses em engrenagens de uma ampla máquina. Muito depois, após a invenção das engrenagens, o projeto de uma maquinaria complexa elaborou princípios originalmente desenvolvidos para organizar pessoas.

No entanto nós vimos essas máquinas – sejam suas partes móveis braços e pernas, ou pistões, rodas e molas – serem usadas para realizar fantasias impossíveis: catedrais, o voo à lua, trilhos intercontinentais. Certamente, as tecnologias poéticas tinham algo de terrível; e poesia pode-se fazer tanto sobre moinhos satânicos quanto sobre a graça divina. Mas as técnicas administrativas, racionais, sempre estiveram a serviço de algum objetivo fantástico.

Dessa perspectiva, todos aqueles planos soviéticos malucos – mesmo se nunca postos em prática – marcaram o clímax das tecnologias poéticas. O que temos agora é o contrário. Não é que visão, criatividade, e fantasias loucas não sejam mais encorajadas, mas que a maioria permanece flutuando no ar; não há mais sequer um fingimento de que elas poderiam um dia tomar forma ou corpo. A maior e mais poderosa nação que já existiu passou as últimas décadas dizendo a seus cidadãos que eles não podem mais contemplar empreendimentos coletivos fantásticos, mesmo que – como a crise ambiental demonstra – o destino da Terra dependa disso.

Quais são as implicações políticas disso? Primeiramente, precisamos repensar algumas dos nossos mais básicos pressupostos sobre a natureza do capitalismo. Um é que o capitalismo é idêntico ao mercado, e que ambos são portanto inimigos da burocracia, que é supostamente uma criação do Estado.

O segundo pressuposto é que o capitalismo é em sua natureza tecnologicamente progressista. Marx e Engels, com todo um entusiasmo frívolo pelas revoluções industriais daquele tempo, parecem ter errado quanto a isso. Ou, para ser mais preciso: eles acertaram em dizer que a mecanização da produção industrial destruiria o capitalismo; mas erraram ao prever que a competição do mercado obrigaria os donos de fábricas a se mecanizar de qualquer forma. Se isso não aconteceu, é porque a competição do mercado não é, de fato, tão essencial à natureza do capitalismo quanto se tem presumido. A forma atual do capitalismo, em que grande parte da competição parece não passar de marketing interno dentro de estruturas burocráticas de enormes semi-monopólios, seria no mínimo surpreendente para Marx e Engels.

Defensores do capitalismo fazem três revindicações históricas amplas: primeiro, que ele incentivou o rápido crescimento científico e tecnológico; segundo, que não importa o quanto ele possa jogar uma enorme riqueza nas mãos de uma pequena minoria, ele o faz de tal forma que melhora a prosperidade geral; terceiro, que ao fazê-lo, cria um mundo mais democrático e seguro para todos. Fica claro que o capitalismo não está mais fazendo nada disso. Na verdade, muitos de seus defensores estão deixando de dizer que é um bom sistema e em vez disso recuando para a posição segundo a qual é o único possível – ou, pelo menos, o único possível para uma sociedade complexa e tecnologicamente sofisticada como a nossa. Mas como alguém poderia argumentar que os arranjos econômicos de agora serão também os únicos que vão ser viáveis em qualquer possível sociedade tecnológica do futuro? O argumento é absurdo. Como seria possível comprovar isso?

É verdade que há pessoas que concordam com essa posição dos dois lados do espectro político. Como um antropólogo e anarquista, eu encontro tipos anticivilização que insistem não apenas que a tecnologia industrial atual só pode levar a uma opressão no estilo do capitalismo, mas que isso deve necessariamente ser verdadeiro de qualquer tecnologia futura também, e portanto a libertação humana só pode ser conquistada com o retorno à idade da pedra. A maioria de nós não é composta por deterministas tecnológicos. Mas afirmações sobre a inevitabilidade do capitalismo têm que se basear em algum tipo de determinismo tecnológico. E por essa mesma razão, se o objetivo do capitalismo neoliberal é criar um mundo em que ninguém acredita que qualquer outro sistema econômico funciona, então precisa suprimir não apenas a ideia de um futuro redentor inevitável, mas qualquer futuro tecnológico radicalmente diferente. Mas há uma contradição. Defensores do capitalismo não podem se propor a nos convencer de que o progresso tecnológico está de fato aumentando, que vivemos em um mundo de maravilhas, mas que essas maravilhas tomam a forma de melhorias modestas (o mais novo iPhone!), rumores de invenções prestes a ocorrer (“ouvi dizer que eles vão começar a fabricar carros voadores logo, logo”), formas complexas de fazer malabares com informações e imagens, e maneiras ainda mais complexas de preenchimento de formulários.

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Eu não quero sugerir que o neoliberalismo capitalista – ou qualquer outro sistema – pode ser bem sucedido quanto a isso. Primeiro, há o problema de tentar convencer o mundo de que você está dirigindo o progresso tecnológico quando na verdade o atrasa. Os Estados Unidos, com sua infraestrutura decadente, paralisia frente ao aquecimento global, e o abandono simbolicamente devastador de seu programa espacial tripulado ao mesmo tempo em que a China acelera o seu próprio, está fazendo um trabalho de relações públicas particularmente ruim. Segundo, o ritmo da mudança não pode ser impedido para sempre. Avanços vão acontecer; descobertas inconvenientes não podem ser enterradas permanentemente. Outros países, menos burocratizados – ou pelo menos, lugares com burocracias que não são tão hostis ao pensamento criativo – vão lenta porém inevitavelmente chegar aos recursos necessários para continuar a partir de onde os Estados Unidos e seus aliados pararam. A internet de fato providencia oportunidades de colaboração e disseminação que pode nos ajudar a quebrar essa barreira também. De onde virá a próxima descoberta? Não podemos saber. Talvez a impressão 3D fará o que as fábricas de robôs deveriam ter feito. Ou talvez vai ser outra coisa. Mas vai acontecer.

Sobre uma conclusão podemos nos sentir especialmente confiantes: não vai acontecer dentro do enquadramento do capitalismo corporativo contemporâneo – ou qualquer forma de capitalismo. Para começar a fundar colônias em Marte, sem falar do desenvolvimento de meios para descobrir se há civilizações alienígenas com as quais entrar em contato, vamos ter que inventar um sistema econômico diferente. O novo sistema deve se parecer com uma nova gigantesca burocracia? Por que presumimos que sim? Apenas ao destruir as estruturas burocráticas existentes podemos começar esse trabalho. E se vamos começar a inventar robôs que lavem nossas roupas e limpem a cozinha, então vamos ter que nos certificar de que o que quer que substitua o capitalismo se baseie em uma distribuição bem mais igualitária de riqueza e de poder – uma que não conte mais com super-ricos, nem com os desesperadamente pobres que desejam fazer suas tarefas domésticas. Apenas então a tecnologia começará a ser direcionada para as necessidades humanas. E essa é a melhor razão para se libertar da mão morta de investidores e diretores de multinacionais – para libertar nossas fantasias das telas nas quais tais homens as aprisionaram, e deixar nossas imaginações novamente se tornarem uma força material na história humana.

A possibilidade de uma teoria política anarquista

Existe uma aversão corrente entre anarquistas à ideia de “modelos” de sociedade. Será possível, assim, pensar uma teoria política – que trabalha principalmente com modelos – anarquista?

Comentando um modelo teórico de uma economia sem dinheiro, democrática e participativa elaborado por Michael Albert, Graeber escreveu que ele “é uma conquista importante” não por acreditar “que esse modelo exato, rigorosamente da forma como ele o descreve, poderia ser instituído um dia, mas porque faz com que não se possa mais dizer que uma coisa desse tipo é inconcebível”. Parece haver uma contradição nessa defesa dos modelos, que ou são aplicáveis à realidade e por isso são eficazes… Ou não são, e nesse caso podem até se tornar munição dos detratores. O simples fato de que um modelo foi pensado não diz muito.

Graeber não faz boa defesa dos modelos porque não gosta deles, e isso é lugar-comum entre anarquistas. No Anarchist FAQ encontramos que leis constituem um “corpo morto” de instituições que separa o controle social da força moral, e deveriam ser substituídas por costumes. Na crítica à democracia feita pelo coletivo Ex-workers lemos não uma crítica de um modelo organizacional particular, mas uma exigência de que todos os modelos sejam vistos como provisórios, sendo continuamente reavaliados e reinventados.

Uma teoria política ácrata poderia ser pensada como uma busca analítica por possíveis consequências de modelos institucionais, dialogando não num sentido prescritivo, mas “dadivoso”, com as comunidades, e as fundamentações do conceito de path dependence me inspiram a defender a relevância de tal teoria. No livro “Politics in Time”, de Pierson, encontro a concepção de path dependence como algo que “se refere a processos dinâmicos envolvendo feedback positivo, que geram múltiplos resultados possíveis dependendo da sequência particular em que os eventos ocorrem”. Margaret Levi explica de um modo um pouco mais simples: “path dependence tem que significar […] que uma vez que um país ou uma região começou a seguir um caminho, os custos de reversão são altos”. Depois de um período de positive feedback e de compromissos acumulados sobre o caminho que se decidiu percorrer, mudanças serão mais difíceis, e mesmo novas mudanças vão ter seu formato condicionado por essas “primeiras” decisões.

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Photo by Internet Archive Book Images

Entender os possíveis efeitos de diferentes modelos políticos, para fazer escolhas mais bem informadas, seria então a razão de ser de uma teoria política anarquista. Estudar teoria sob a luz do path dependence justifica essa razão de ser pois evidencia o quão importante é estar bem informado para fazer escolhas, uma vez que é ressaltada a relevância de cada passo em uma cadeia de decisões políticas. É claro que pensar em termos de path dependence não torna óbvias todas as consequências de uma escolha institucional a partir do ponto de partida. Afinal, nem sempre as instituições promovem o que os projetistas pensaram que promoveriam; as motivações iniciais por detrás das primeiras escolhas, aliás, “se perdem”; os atores muitas vezes não conseguem mais controlar as instituições que criaram.

De qualquer forma, sim, há uma imprevisibilidade essencial no futuro, mas os aspectos estruturais que emergem a partir de nossas escolhas podem ser estudados. A importância do momento inicial exige o aproveitamento máximo de toda potência que a teoria possa oferecer frente a um cenário de tanta imprevisibilidade.

Mas o que é o momento inicial? E de que forma é feita a escolha que se dá neste momento inicial?

Em termos retrospectivos – quer dizer, na forma como o conceito de path dependence é utilizado pela ciência política – Pierson fala de uma dificuldade metodológica na “escolha” do “momento inicial”… Uma discussão de pouco interesse agora. Já em termos prospectivos, especialmente à medida que pode-se fazer recortes temáticos quanto aos modelos (um modelo de “família”, um modelo econômico, um modelo político, etc), o momento inicial faz referência a um momento em que pode haver uma mudança modelar significativa. De interesse para anarquistas, mudanças que levam a sociedade para mais perto da efetivação de valores e ideais ácratas.

A escolha dos modelos, contudo, é uma questão mais sutil. Tilly, por exemplo, escreve que “as pessoas realmente constroem a democracia… [Mas] constroem tem a conotação enganosa de plantas baixas e carpinteiros”, e na verdade a mudança é muito menos planejada que isso. “Quando foi que alguma mudança social já aconteceu de acordo com o projeto de alguém?”, ecoa Graeber. As pessoas não param para analisar calmamente modelos de teoria dos jogos em momentos de transformação social, comparando duas possíveis escolhas institucionais antes de qualquer decisão coletiva maior. Elas simplesmente fazem coisas. No entanto, disso não se pode depreender a futilidade de atentar a modelos teóricos — ocorre precisamente o contrário, primeiro porque o fato de as pessoas “simplesmente fazerem coisas” não indica a ausência de modelos, abstrações da mente humana referentes a padrões de comportamento – que existirão, independente da disponibilidade de alguém que os queira estudar. Uma vez que se adote um procedimento, gera-se uma expectativa que as próximas decisões sigam o mesmo caminho, ou que todas as pessoas sejam tratadas do mesmo jeito, etc. Em segundo lugar, evitar pensar e defender modelos específicos no contexto da luta política de ideias não necessariamente incentiva o pensamento não-modelar, porque esse pensamento é absolutamente incomum no pensamento humano em geral.

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Photo by David Bailey MBE

Pierson cita um estudo de Blais e Massicotte em que explica-se a dominância de sistemas políticos de representação proporcional na América Latina. Não se trata de considerações estratégicas (como se outros sistemas políticos jamais, em toda a região, pudessem ter beneficiado as elites), mas sim do fato de que os advogados constitucionais da região receberam educação formal na Europa continental (e não, digamos, na Inglaterra), e portanto esse era o modelo a que estavam intelectualmente afiliados.

Evitar discutir os modelos, mesmo que se for para condená-los em favor de princípios, implica confiar que cada indivíduo suficientemente afiliado aos princípios consiga deles derivar modelos de ação social coerentes e funcionais. Mas isso traz o grande perigo de que modelos anteriores acabem sendo preferidos, já que os princípios, menos rigidamente definíveis que modelos, podem ser “flexibilizados” para que aparentem ser coerentes com os modelos. Esta é, aliás, uma crítica que alguns anarquistas fazem à defesa do termo “democracia”: se um anarquista defende suas ideias como se fossem “democráticas”, o que o público leigo pode ouvir e assimilar é que se deve defender, por exemplo, o “voto majoritário”, já que no modelo democrático que o grande público conhece a tradição do voto majoritário já está bem consolidada.

De certa forma, o anarquismo já reconhece a noção de path dependence. Os comunistas, por exemplo, mesmo admitindo que depois da “ditadura do proletariado” o Estado desapareceria (colocando essa sociedade sem hierarquias como um objetivo, portanto), ainda desejam usar o Estado, isto é, um modelo hierárquico de mobilização social e sociedade, como meio para se chegar a um fim oposto. Isto é duramente criticado pelos anarquistas porque, afinal, as escolhas importam. Uma vez que se escolhe a manutenção da estrutura estatal, geram-se interesses, padrões de comportamentos, estruturas que construirão resistência contra qualquer força contrária. Esse é (sendo generoso ao falar de “resistência” na última frase) o resultado que encontramos nos casos da União Soviética, da China, de Cuba, entre outros.

Mas anarquistas também são conhecidos por uma característica oposta: uma espécie de “path independence”, uma tendência a não reconhecer a conjuntura como determinante em suas práticas. Há quem diga que a possibilidade de uma sociedade anarquista é tão impensável no cenário atual quanto (se não mais que) a volta do sorteio como método de escolha de representantes políticos. Mesmo assim, ao contrário de qualquer possível advogado do sorteio como método, isso não impede os anarquistas de agirem politicamente.

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Photo by Forsaken Fotos

Isso é o que mais ameaça fazer ruir a utilidade de uma teoria política entre os anarquistas: afinal, não importa se o modelo político adotado inicialmente pelo movimento não estiver “dando certo”; numa sociedade anarquista, os indivíduos podem livremente mudá-lo a hora que quiserem justamente pelo fato determinante de que o que caracteriza uma sociedade anarquista é essa disposição insurrecional para negar estruturas; uma cultura de ser path independent.

É verdade também que é preciso relativizar minha caracterização anterior dos anarquistas como “odiadores” de modelos. As várias escolas de pensamento anarquistas se distinguem por visões diferentes de sociedade em termos de modelos políticos, econômicos, jurídicos, entre outros. O problema é que enquanto a liberdade for entendida como um “experimento contínuo”, como citado anteriormente, escolhas sistemáticas não parecem consequentes. Depois de fazer o elogio ambíguo ao modelo econômico de Michael Albert, Graeber diz que está “menos interessado em decidir que tipo de sistema econômico devemos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios para que as pessoas possam tomar essa decisão”. Esse é o ímpeto do path independence: acreditar que não importa tanto o que se escolhe; a escolha (livre) sempre pode ser refeita.

O caminho de uma teoria política anarquista passa por um cálculo: por um lado, deve reconhecer que o mesmo argumento que dá suporte à coincidência entre meios e fins (como na questão do Estado no limiar revolucionário) aplica-se a todo e qualquer modelo, mesmo um adotado temporariamente. Por outro, não pode representar uma transformação de “ser” em “dever-ser” (como numa virada em que se advoga que, por causa do peso de decisões históricas, escolhas do passado não devem ser reavaliadas e reinventadas), tampouco o estabelecimento de um papel vanguardista para quaisquer teorias anarquistas.

O conceito de path dependence veio da economia, mas quatro elementos da política a tornam passível de estudo por um ângulo de positive feedback segundo Pierson: o papel central da ação coletiva, a alta densidade das instituições, as possibilidades de uso da autoridade política para aumentar assimetrias de poder e uma complexidade e opacidade intrínsecas a ela. Se analisarmos cada um desses aspectos podemos verificar a relevância de contar com boas análises modelares ao longo de processos decisórios.

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Photo by mike.benedetti

Por acaso poderíamos descartar de saída o terceiro aspecto acima, já que os anarquistas defendem justamente a abolição de assimetrias de poder e negam a legitimidade de autoridades baseadas na força? Pelo contrário. Ele é exatamente uma razão para que em qualquer situação em que se esteja tentando estruturar instituições políticas (ou de outros tipos) respeitando princípios anarquistas a atenção quanto ao modelo geral da instituição deva ser redobrada: qualquer assimetria de poder que se permita subsistir pode engatilhar uma dinâmica de positive feedback que engendraria desigualdade e dominação – e, ainda pior, poderia tornar as mesmas relações de poder menos visíveis ao longo do tempo.

O fato de a “ação coletiva” ser um elemento central da política significa dizer que “as consequências das minhas ações são altamente dependentes das ações dos outros”. Já a “alta densidade” significa que nosso envolvimento com instituições nos incentiva a buscar uma espécie de estabilidade. “Em contextos de interdependência social complexa”, explica Pierson, “novas instituições e políticas frequentemente geram altos custos fixos, efeitos de aprendizado, efeitos de coordenação e expectativas adaptativas. Instituições e políticas podem encorajar indivíduos e organizações a investir em habilidades especializadas, aprofundar relações com outros indivíduos e organizações, e desenvolver identidades sociais e políticas específicas. Essas atividades aumentam a atratividade de arranjos institucionais existentes relativos a hipóteses alternativas. Em ambientes institucionalmente densos, ações iniciais levam o comportamento individual a rotas que são difíceis de reverter”. As pessoas assumem compromissos com base em instituições e políticas existentes, e “à medida que o fazem, o custo de reversão da rota se eleva dramaticamente”. O último elemento, a complexidade e a opacidade intrínsecas à política, representa a “dificuldade de medir aspectos importantes da performance política” – o que dificulta esforços para pensar em melhorias caso exista a percepção de que um determinado modelo não está funcionando.

O que esses elementos significam? Basicamente, uma razão para não tratar escolhas estruturais com leveza, como se as decisões pudessem ser facilmente revertidas depois: uma vez que decisões são tomadas e os atores sociais se movem numa direção, as pessoas vão começar a criar expectativas quanto a essas decisões. As complicações são inúmeras; as pessoas assumem compromissos de longo prazo, a complexidade do campo político faz com que seja difícil diagnosticar a fonte exata da insatisfação das pessoas quanto às instituições, e mesmo fazer algo quanto a elas não é necessariamente uma questão de escolha individual. Simplesmente sair das instituições, então, pode exigir um custo proibitivo para o indivíduo…

Resumidamente, há uma dinâmica de estabilidade inerente a toda organização social institucional. Essa estabilidade se reforça rapidamente (“a cada aperto de mãos, a força dessa norma social aumenta”) e não está sob controle de indivíduos isolados — os processos desencadeados por decisões passadas se tornam progressivamente mais difíceis de ser interrompidos para que possam ser “reinventados”. “Se um grupo de pessoas decide que quer operar por voto majoritário”, questiona Graeber, “quem vai impedi-los?”. Não é coerente, é óbvio, que um anarquista impeça um grupo de fazer isso (especialmente um do qual ele não faça parte). Mas a questão não é essa: uma vez que o voto majoritário seja escolhido, ele vai dar início a processos de positive feedback que poderão dificultar o processo de mudança de modelo que seria necessária para evitar processos de acumulação de poder por parte de um grupo social.

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Photo by Brandy Dopkins

Uma teoria política anarquista não se preocuparia com uma definição quanto a se uma sociedade deve ou não deve, pode ou não pode operar com dinheiro, ou que um grupo deve ou não deve, pode ou não pode funcionar politicamente por meio de voto majoritário. O conceito de path dependence tampouco afirma que é impossível mudar o status quo das instituições. O que o estudo desse conceito traz é a consciência de que mesmo em “condições de liberdade” como entendidas por anarquistas as instituições produzem estabilidade, e tendem a ser menos controláveis com o passar do tempo. Qualquer tipo de instituição.

No fundo e de maneira simples, é quase possível dizer que isso se trata de uma defesa do poder que os seres humanos têm de racionalmente pensar em soluções políticas; uma defesa da necessidade de tomar as rédeas do destino nas mãos, mesmo reconhecendo as dificuldades disso e a natureza social em última instância dessa “tomada de rédeas”. Bakunin chegou a dizer, sobre a importância do início de uma revolução anarquista, que era necessária a “melhor base possível”, que “impediria a recaída e garantiria uma revolução progressiva”. Ele insistia “na necessidade de um começo sólido”, e não confiava “nem na espontaneidade nem no acaso”.

Ou seja… Há definitivamente um espaço para o engenho na formação de instituições ácratas. Nos piores casos, em que são escolhidos modelos com grandes “problemas” (do ponto de vista dos anarquistas), ao menos existirão análises sobre essas falhas, o que providenciaria ideias quanto a como combater estruturas de dominação. Afinal, esta já é a utilidade de uma teoria política anarquista em uma sociedade como a nossa, que ainda não é anarquista.

Pensamentos soltos e pequenos sobre alunos, motivações e educação

O estatuto de aluno, ou seja, daquele que deseja adquirir um conhecimento solidificado, tendo acesso a ele, sempre foi obtido através da necessidade ou da motivação: aprende-se quando é preciso ou quando se quer.

A contemporânea criação do ensino obrigatório e sua tecnocracia nos lega um novo aluno, a tal condição ascendido através da conveniência, da situação, da simples normalidade de tal o ser. Nesse novo arranjo de coisas o responsável pela motivação é o professor, que já tem ainda mais peso nas costas quando o processo educativo é encarado por algo reto, simples e matemático; algo que pode ser reduzido à lógica das escalas industriais, e que portanto para qualquer falha há sempre alguém que provocou a falha – o professor, mecânico que não soube conduzir o processo como se deve, ou o aluno, material estragado que não se conforma a ele.

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Photo by nina.jsc

A natureza do processo permanece, inquestionável, como se não fosse uma ferramenta bruta, burra, embrutecedora e ensurdecedora. Deturpação ou simples transformação? Essa nova condição de aluno deve ser encarada com naturalidade ou com estranheza, originando a nostalgia com o que um dia o aprender já significou? Ora, se considerarmos o que é melhor para o aprendizado – um aluno motivado por outrem ou por si mesmo – além de considerarmos os gastos inúteis de energia, tempo e esforço para enfiar “garganta abaixo” o que não se quer, não há dúvidas de que se trata de algo com muito menos valor.

Mas nem mesmo o passado é feito de glória absoluta, e um novo caminho deve ser conquistado em uma sociedade mais igualitária: o professor não como detentor de algo, sendo, assim, superior e constituindo uma autoridade. O aprendizado é um produto, acima de tudo, social, e com consequências sociais, e os laços e redes que ele enseja devem ser valorizados acima de tudo. Mais do que algo latente, inclusive; algo fundamental.