Ruptura [Severance] é uma das séries mais extraordinárias do momento. Ao final da segunda temporada, me peguei pensando em como a série vai além da crítica à alienação laboral e aborda questões diferentes sobre a subjetividade.
Explicando a primeira premissa: a série mostra efeitos negativos da divisão entre “externo” e “interno”, entre a vida pessoal e a laboral. Se a pessoa pudesse não saber o que faz no trabalho, e no trabalho não saber nada sobre o resto de sua vida, ambas as “vidas” sairiam empobrecidas desse processo. Eticamente, você – seu corpo, sua existência – não faz ideia dos projetos com os quais colabora ao trabalhar; ainda, apenas uma parte de você retém qualquer agência sobre esse estado de coisas, e assim a “exploração de si” neoliberal – movida por escolhas, mas ainda assim exploratória – ganha contornos materiais diretos.
O problema é que a exploração de si seria uma reconceituação de todo o seu ser. A divisão da série (a ruptura) seria então uma forma de “resolver” essa contradição. Ela não resolve nada, contudo, porque a exploração deixa então de ser uma escolha, e passa a ser uma imposição sem a contrapartida da esperança. Como Foucault já analisava sobre o poder neoliberal, o poder não só reprime, mas produz; a exploração de si ainda se assenta em um imaginário de sucesso por meio da provação. Ao “interno” da série não sobra mais esperança – a não ser que o ambiente de trabalho seja reconfigurado como algo positivo, todo envolvente; um lugar em que se pode viver bem, e isso ser algo ao que aspirar. Na série, isso depende tanto de uma dimensão espiritual (a mitologia da família fundadora) quanto de divertimentos, práticas rituais, símbolos, etc., muito embora isso parece ter precedido a existência de uma divisão de ruptura na empresa. Isso retoma a atualidade na crítica se pensarmos que quanto mais a dominância neoliberal se intensifica, mais abandona-se qualquer pretensão de que suas promessas são reais – em vez de validar a esperança de um fora-do-trabalho positivo, que o trabalho torne-se então um sentido maior (total, inclusive) na vida de cada um, o que não é nada novo: é mais um capítulo nas disputas sociopolíticas pelo sentido coletivo da vida, em torno de ideias como a ética do trabalho, etc. Se estamos assistindo a uma intensificação disso é um debate complexo, mas parece que é isto que está posto nas intenções da empresa a partir da estrutura da premissa da série.
Poderíamos falar muito mais disso em termos de detalhes e questões secundárias, como essa mitologização da figura do “fundador” com vistas à legitimação do poder corporativo, etc. Mas eu acho que essa é a camada mais direta e óbvia da simbologia da série, e eu queria falar mais do que foi colocado a partir da segunda temporada. Na medida em que o drama se torna mais individualizado – mais baseado no drama de personagens específicos que em uma questão mais ampla sobre o que a ruptura é e está fazendo com “as pessoas” – temos um conflito mais pensado para criticar tanto o abuso instrumentalista das pessoas por parte de um poder corporativo que se vê como um guia moral da sociedade (pertinente no caso das big techs) quanto a forma como “gerenciamos” diferentes partes de nós mesmos.
Antes a “reintegração” aparecia como uma possibilidade interessante na série: você é a mesma pessoa, são só as suas memórias que estão separadas. Assim, se você pudesse reintegrá-las – seu externo lembrar do que o interno lembra, o interno lembrar do que o externo lembra – seria possível liberar o interno de sua vida limitada e o externo da sua falta de controle no trabalho. Na segunda temporada a série avança sobre essa questão ao mostrar que memórias não são só memórias, mas partes importantes da construção da subjetividade, até porque modificam nossas proclividades e, acima de tudo, nossas vontades. E ao modificar nossas vontades, o nosso “vetor” decisório, resultante de tudo aquilo que queremos num dado momento, modificam também quem somos, pois essa vetorização indica aquilo que eventualmente valorizamos e, assim, nossos caminhos, nossos comprometimentos, a visão que temos sobre nós mesmos.
A conversa entre o Mark externo e o interno no final da segunda temporada destrói, então, a ilusão reintegrativa. Não há reintegração possível porque as vontades são completamente diferentes – não há reintegração feliz porque há dois desejos excludentes que não poderão ser mutuamente satisfeitos. E se essa metáfora for aplicada às diferentes vontades que temos na vida, associadas a diferentes partes de nossa personalidade, identidade, a diferentes grupos com os quais convivemos, projetos dos quais fazemos parte, etc. – temos então essa questão do equilíbrio não só entre vida pessoal e laboral mas entre diferentes partes de nós que podemos honrar e cultivar; que merecem expressão assim como o Mark interno merece vida, ou especificamente a fruição daquilo que se constituiu como seu desejo.
Mas não é porque não há reintegração possível que não há convivência possível. Eu estou escrevendo sobre isso porque o que me chamou a atenção foi a convergência entre essa questão da série e o capítulo sobre diversidade subjetiva na minha tese de doutorado. Lá eu tinha argumentado que uma visão libertária sobre nossa subjetividade envolve respeitar e fomentar a diversidade subjetiva, buscando não uma hierarquização de nossos afetos / vontades / identidades, mas um equilíbrio entre eles que se refletiria também num equilíbrio social – isto é, na igualdade entre indivíduos e grupos para que toda essa diversidade pudesse ser apreciada e realizada (até porque também argumento que a diversidade interna simultaneamente reflete e instiga essa diversidade externa, entre pessoas e grupos).
Em outras palavras, a questão é combater relações de poder que permitem uma identidade ter precedência sobre outra (no caso o poder corporativo da Lumon, etc.), assim como promover um diálogo honesto entre as identidades para chegar a acordos de realização mutuamente benéficos.
Não acho que isso invalida a crítica anticapitalista da série, como vi um usuário do reddit escrever (“não faz sentido falar em exploração porque algumas pessoas gostam dos seus trabalhos!”). E tampouco acho que invalide outro jeito possível de interpretar a metáfora, qual seja, que a divisão subjetiva é uma materialização interna do “dividir para conquistar”. Eu não sei se essa interpretação funciona tão bem se estivermos falando de trabalhadores, na verdade, uma vez que os “internos” ainda conseguem aproveitar as brechas para se unir e subverter as coisas. Mas funciona melhor se pensarmos na ruptura não como forma de aliviar a tensão da exploração neoliberal de si, e sim como forma de engessar as divisões subjetivas.
Ou seja: sem o procedimento tecnológico da ruptura, você pode ter vontades conflitantes, e precisar de uma “negociação interna” para formar uma vida em que essas diferentes partes de você possam florescer (e isso exige equilíbrio de poder externo, ou seja, que as relações de poder sociais não exijam que você priorize absolutamente apenas uma parte de si). Só que há uma maior probabilidade de essas partes “entenderem” umas às outras pois fazem parte de um todo, de uma visão totalizante do self, que tem como base as memórias, as experiências compartilhadas. Então embora haja uma competição pelo tempo, pelo controle, por aquilo que você vai efetivamente fazer, o tempo gasto efetivando outra parte do self também gera uma satisfação e uma realização pessoal que reverbera por todo o ser, ainda que possa entrar em conflito com outras vontades e causar sofrimento também. Após a ruptura, as partes não compartilham mais nada; não conseguem se ouvir, não conseguem se sentir, e portanto isso dificulta muito essa negociação subjetiva. A ruptura, assim, poderia simbolizar visões de identidade tão fechadas e absolutas – e/ou, num sentido coletivo, polarização afetiva, etc. – de modo que as pessoas não conseguiriam mais negociar essas diferenças.
Se a reintegração é impossível e até antiética porque sinalizaria “assimilação”, submissão, hierarquização do desejo e da identidade, a ruptura prejudica também a solução libertária, que buscaria a diversidade e a igualdade, no momento em que, destruindo a memória compartilhada, dificulta o diálogo.
Even as it deals with secret societies and apocalyptic technologies in 20th-century Germany, it’s curious that Dark, Netflix’s acclaimed show, completely ignores the nazis. This does not necessarily impair the narrative, but hints at how hard it is to analyse it politically. Its ponderings over free will, for instance, follow a more properly “psychological” or “philosophical” line of enquiry, that many already explore well. Might there be something political to say about it?
Chegou a hora de fazer uma nova lista, seguindo uma tradição pessoal das listas de 2012 e 2017: uma espécie de “campeonato” que resulta numa lista das minhas 200 músicas preferidas.
É difícil responder à pergunta “qual é a sua música preferida?”: eu gosto de ser alguém que sabe não só minha música favorita mas minhas 200 músicas preferidas. E em qual ordem! Para saber mais sobre o processo de construir a lista, leia a postagem sobre a primeira lista.
Eu não sei qual é o estado da arte em pesquisas científicas sobre as “funções” dos sonhos – desses que a gente tem ao dormir. Da última vez que ouvi falar algo sobre, cogitava-se uma espécie de “desfragmentação do disco”, em que experiências do dia eram meio que analisadas e compactadas para que a nossa cognição continuasse fazendo sentido de tudo, inclusive ocorrendo aquele esquecimento básico de coisas irrelevantes ou repetidas (muito semelhantes às que acontecem em outros dias, como a memória exata de como foi trancar a porta de casa ao sair). Isso explicaria, por exemplo, como que elementos aleatórios de um dia entrariam nos cenários e nas tramas de um sonho.
Fico me perguntando se há por aí alguma teoria de sonhos baseada em ansiedade. Assim como a ansiedade teria uma função “evolutiva” no sentido de nos fazer imaginar cenários terríveis para que nos preparemos para eles, os sonhos poderiam ser apenas uma forma mais conveniente de fazer isso – afinal, já que não estamos fazendo nada naquele momento, melhor fazer essas projeções de possibilidades terríveis então do que quando estamos acordados e precisamos pensar em outras coisas ao mesmo tempo.
Por exemplo, acabei de ter um sonho em que estava me preparando para uma cirurgia ortodôntica. Mas esse foi um pesadelo – um filme de terror, ainda que mais cult e focado na ambientação do que em jump scares. E nem todos os sonhos são pesadelos. É verdade, mas – e se os próprios sonhos positivos, bons, forem essa bifurcação de um caminho que se enraíza num medo? Sim, as coisas podem dar errado – mas podemos imaginá-las dando certo. É um jeito evolutivamente inteligente de lidar com as consequências negativas da ansiedade. Afinal de contas, seria terrível se tudo que a nossa imaginação pudesse produzir fosse um conjunto de péssimas possibilidades. Sonhos bons ainda poderiam estar enraizados em medos; são apenas respostas otimistas a eles, jeitos de fazermos ecoar pela consciência a perspectiva de que conseguiremos lidar com eles.
Se este modelo tiver algo de verdade – e ele não é de todo incompatível com a ideia de “análise do dia pregresso”, pois este pode ter trazido suas próprias doses de medos e incertezas – será que ele pode ser aplicado à ideia de “sonhar acordado”? Isto é, chamamos nossas aspirações de “sonhos”. Fazemos isso, no mínimo, no ocidente – em inglês, português, espanhol… E, assim, chuto que em mais uma penca de outras línguas. Não sei quão universal é isso, mas se a associação foi feita uma vez me pergunto que verdades ela pode revelar.
Estou pensando essas coisa em parte inspirado em “The Liquidation of Belief”, um livro que Jesse Cohn está escrevendo, e que ele fez a gentileza de me enviar na fase em que quer receber críticas antes de enviar pra publicação. Em uma parte dele, ele discute a ressonância entre distúrbios de saúde mental, como delírios, incluindo a síndrome de Capgras, e o pensamento – ou a visão de mundo, talvez – de extrema direita contemporânea (“pós-fascista”). Ele não faz isso pra dizer algo simplista como “fascistas são doentes mentais”, até porque seria redundar numa compreensão empobrecida dos distúrbios mentais. Eu acho que ele analisa de forma mais sofisticada esses fenômenos da cognição, como se eles pudessem nos dizer algo mais profundo sobre a situação humana do que simplesmente “são problemas”.
A inspiração vem do fato de que, se podemos analisar “delírios” de uma forma mais produtiva, podemos estender essa análise também para os sonhos, até porque, não só linguisticamente como conceitualmente, socialmente, é muito fácil que uma coisa escorregue para a outra a depender da perspectiva. Um sonho de revolução anarquista, por exemplo, para muita gente é exatamente, precisamente, um delírio. Mas aí a diferença, é claro, é que estamos falando de uma projeção para o futuro, reconhecida mais como um desejo que precisa de ação prática para acontecer, do que um delírio típico que se refere a fatos do passado / presente que na verdade não são fatos, não aconteceram, não são assim, etc. Mesmo assim, um desejo que é colocado como projeto, e não como uma hipótese fantástica (“ah, como seria bom poder comer sem engordar nem sujar os dentes…”), imbrica também uma leitura do passado e, principalmente, do presente: se achamos que vale a pena fazer coisas que seriam consequentes para um projeto – um sonho – de revolução anarquista, é porque achamos que a realidade suporta esse projeto; que isso é, em algum nível, possível. E aí está a leitura do presente, elemento que pode ser lido por outrem como delírio.
Se é possível entender o delírio como função – como uma resposta cognitiva, se não razoável, funcional – o sonho, o sonhar acordado, poderia ocupar esse mesmo espaço, a partir da mesma ideia que levantei acima sobre o sonho que se tem dormindo: sonhos têm raízes nos medos. O sonho de ficar podre de rico, no medo da pobreza; o sonho de se casar, no medo da solidão; o de casar na igreja, com uma festa de arromba, no medo de não ser levado a sério por seus círculos sociais se não se conformar a certos rituais; o de morar no mato, nos medos da cidade; o de morar fora do país, no medo de nunca se descobrir se se deixar ser engolido pela cultura local, com a qual tão pouco se é congruente.
Se essa parte da leitura foi “autorizada” por ideias ressonantes que encontrei em Cohn, elas na verdade me vieram de uma ideia que tenho há tempos sobre como a esquerda em geral lida com os “sonhos” neoliberais. Sobre a narrativa do empreendedor de si que conquista tantos imaginários, eu fico pensando que a esquerda tem muitas respostas “estatísticas”, “sociológicas”, que, embora corretas, são também pessimistas – ou, talvez na linguagem de Cohn, tragam consigo um “afeto triste”. Elas são sempre no sentido de desestimular sonhos, de dizer: mas isso é um delírio. Não vai dar certo. São apenas instrumentos de controle capitalista. Acorde!
Demandar para que alguém acorde é uma coisa que me chama a atenção, uma peça inesperada da metáfora que estou tecendo. Primeiro: ninguém gosta de ser acordado com um berro. Segundo: ser acordado com um berro se a pessoa está tendo um sonho bom é ainda pior. Terceiro: qual o propósito de acordar? Para que a pessoa possa “viver na realidade”; viver com os outros, ter efeitos reais no mundo. Mas aí, também, depende de qual é o projeto de vida real. “Poxa, você foi me acordar pra isso?”. Assim como Cohn depois discute sobre a importância da construção de confiança e em projetos “lentos” de transformação, seria preciso acordar com carícias? Mais que isso, importa quem acorda, e para quê. Porque no âmbito da discussão ideológica pública com adversários que não compartilham um laço social minimamente relevante, um chamado para que a pessoa acorde é basicamente um chamado à conformidade. No âmbito de uma discussão desafixada de um projeto que energiza porque se trata de transformar, de melhorar, é uma exigência que o outro capitule-se aos fatos duros, ruins, nos quais o sonho se enraíza: aceite que as coisas são assim. Levante, não porque temos que lutar por esse sonho, mas porque você tem que pegar o ônibus pra trabalhar.
Mas tem outra coisa aí. Porque o próprio chamado a acordar – ou seja, considerar o “sonho” do outro menos projeto que delírio, e atar a respeitabilidade deste outro à condição que aceite uma versão da realidade que exige a aceitação daquilo que ele não acha justo ou bom – cria a própria análise deste projeto como sonho. As coisas podem ser discutidas de outra forma, mas se uma decisão é tomada de caracterizar as coisas de tal forma que terminam com você dizendo (com todas as letras ou não) que o outro tem que acordar, é aí que entramos no reino retórico do onírico. E nesse caso – e eis o pulo do gato – se estamos abordando os sonhos, estaríamos abordando também os medos. Rir do sonho do outro – o que é efetivamente o que fazemos, mesmo se estamos sérios, ao caracterizar o projeto como delírio – é o mesmo que rir de seus medos. Alguém rir do meu sonho é duplamente ultrajante, porque não só a pessoa julga minha cognição, meu entendimento do que é ou não possível no mundo; o sonho é uma exposição, uma vulnerabilidade, porque acaba comunicando também meus medos. E alguém que ri dos meus medos passa a vibe de um vilão que descobre o ponto fraco do herói. Quem ri do medo dos outros – não o riso leve, por exemplo, que vem quando a gente superestimou o medo, e agora fica tranquilo que é algo fácil de ajudar; um riso ácido, perfurante, pesado – quer diminuir o outro, reduzi-lo a seus medos; indignificar a pessoa.
Não quero transformar esse texto em algo muito mais longo do que precisa ser, e certamente haveria uma avenida pra isso aqui se agora eu quisesse estender essa metáfora ao infinito de todas as “mais indicadas” formas de luta social. Ainda assim, acho que uma saída útil aqui, nesse nível interpessoal, é a ideia de sonhos lúcidos. Não precisamos que a pessoa acorde. Não precisamos diminuir ninguém. Há que se compreender, e respeitar, medos. Mas é necessário estabelecer conexões. E nesse sentido, é possível conversar com a pessoa levando seus sonhos a sério, mas pensando em suas consequências. O que vai acontecer se você realmente concretizá-lo? Você consegue imaginar possíveis consequências ruins disso? Quais são os custos, para você e para os outros, de concretizar esse sonho? Você consegue imaginar como tudo isso afetaria sua relação com os outros? Qual é o seu objetivo, realmente, na vida – ter boas relações e experiências com os outros, ou chegar sozinho a algum lugar ou situação que idealizou? É possível recalibrar um pouco nossas expectativas, ter um pouco de coragem pra aceitar que, quanto a alguns medos, não vale a pena tentar neutralizá-los de todos, em nome de um sonho que não é só seu, mas um sonho de vivermos melhor uns com os outros, de formas menos destrutivas, mais saudáveis?
Talvez o objetivo não seja acordar ninguém, até porque no fundo o melhor mesmo, para qualquer ciclo de sono, é a pessoa acordar no seu próprio tempo. Talvez o melhor objetivo seja fomentar a transformação de sonhos em sonhos lúcidos: lentamente introduzir estímulos, a partir de uma posição de cuidado, e portanto confiança, de modo a fazer com que a pessoa controle seu sonho, em vez de ser controlada por ele.
____Sempre disse: “nós”…
E a palavra tinha a amplitude do coro,
Soava como um órgão de mil registros. ____“Nós” era uma multidão
de cálidas mãos estendidas,
pão compartilhado,
almofada acolhedora;
era um coração unânime,
o intercambio da lágrima e do sorriso.
Era um campo de espigas
que o vento inclina em uma única direção.
–Cada letra uma gota de humanidade entranhável –.
Dizer nós era apurar um vinho
de cordialidade até a embriaguez. ____Sempre disse “nós”,
por que agora, digo, “eu”,
um “eu” solitário e erguido,
alto como uma torre só cingida de ar? ____Digo, “eu”, elevando-o
sobre tudo que me rodeia;
e este “eu” tem um áspero
estalar de chicote. ____Sim, agora digo “eu”.
É que o caminho que eu ei de andar
não é senão para este “eu” só e amargo,
que não compartilha com ninguém. ____Nesta hora,
cada um está só e espera;
é uma espera que ninguém confunde
com uma esperança,
porque está feita
de desesperanças, precisamente.
Sim, agora digo “eu”. Todos
Dizemos “eu” algum dia…
SAORNIL, Lucía Sánchez. Siempre puede volver la esperanza. Madrid: Fundación Emilio Hurtado. Edición, introducción y notas de Jesús Gallego Montero. Tradução de Thiago Lemos Silva. 2022.
Today marks the 4th anniversary of David Graeber’s passing. When readingFragments of an Anarchist Anthropology I fell in love with his wit, his edge, and his range. But after years of working with his texts,translating a few, and eveninterviewing him, I still have reservations about some of his ideas. The anarchist scholar in me admires them; the anarchist who grew up in Brazil is conflicted.
Take his stance on the police. In Direct Action, he discusses how “postmodern” they are, as they sneer at the concept of truth in service of authority. But in Brazil, mafias mixing police officers and evangelical zealots – who certainly believe in ultimate truths – are on the rise. One of Graeber’s better known concepts, “bullshit jobs”, describes an issue that most Brazilians – facing high unemployment, platformisation, and the erosion of labour rights – would call a “first world problem”.
The biggest issue might be his stance on tactics for social change. During the global protests against the IMF at the start of the century, Seattle activists came down to Brazil to share their ideas, telling protesters to just “lie on the ground” when the police come. Many, however, laughed in response. Serious harm was far too likely for them to attempt such a stunt.
Graeber, who took part in the protests of that era, similarly wanted to come up with alternatives to “a politics of direct confrontation”, arguing that violence was the “recourse of the stupid”. But such an argument, especially in the context of a country like Brazil, made for a toothless kind of anarchism. For him, “more militant” tactics often relied on broader demilitarization. But it seems that his favoured strategieswere the ones which could onlybe entertained insocial environments with much less violence than most countries, let alone those in the global periphery.
Graeber’s preferred solution in the face of such violence was simply “walking away”. It was a tactic that seems to have worked wonders for medieval peasants and South American “societies against the state”. However, doing so today is far more difficult than in these contexts. The police keeps the oppressed in line andseparated by borders. With fewer resources, starting over somewhere else becomes harder, and bonds to the land are an actually excellent reason to stay. Is not running away – when one can envision alternative forms of resistance – an aggrieving capitulation to the oppressor?
Graeber was aware of all that. He denounced a world of frictionless money but gated people. He understoodthat “hospitality” is what makes any“right to leave” consequential, and studied howrelations of care were pervertedto keep us in place. But how to build a world where walking away could fix collective problems, instead of being an individual solution, truly available onlywhen rare conditions can be found?
He put his faith in occupying public spaces (such as Zuccotti Park) to experiment with the way we make decisions: change that and the rest will sort itself out. But without directly attacking structures of economic and social domination, co-option into state politics is to be expected – as in the case of many Brazilians involved in the “June journeys” of 2013.
On the other hand, some of the tactics he rejected – because he thought them outdated, morally questionable, or less effective – might be successful in other contexts, and without compromising on principles. Chilean militancycame close to burying neoliberalismin the country;native populations in the Brazilian territoryareusingforceagainst deforestation; Indian syndicalistshave recently helped build the largest strike in human history.
There are still things that global periphery radicals can learn from Graeber, however. His 566-page masterpiece on debt helps us to see through the lies of austerity doctrines, which many countries sidestepped during the coronavirus crisis but Brazil was held hostage to. And while Brazil’s job market may not have been “bullshitised” yet, his reflections on social value and caring work are useful for questioning long-standing, unfairdifferences between professions in many peripheral countries. What’s more, in the vein of pretty much all anarchists before him, Graeber’s thought was profoundly shaped by the social struggles he took part in. If his experience in Madagascar shaped his earlier thought, his unflinching support for the revolution in Rojavasignificantlyexpanded his toolbox.
Finding that the principles of consensus were already rooted in hearts and institutions,he gifted the revolutionaries with much more interesting structural analysis(in other words: don’t just trust the process). For those who cried “imperialism”, he had two words: “loser left!”. In a brilliant essay exploring the dynamics of bullying, he grappled with the responsibility of spectators in every conflict: how can they contribute to emancipatory direct action, in Rojava, Palestine, or anywhere else, even at a distance? To the right to walk away he added the rights to disobey and to change rules. Each one, he emphasised, was a reality we must make and sustain ourselves, not something we ask a sovereign to grant us.
This trajectory, more than any specific tactics, is what he teaches us as a militant. Given time, most manuals become obsolete anyway. As we say in Brazil about unfortunate gifts, “the intention is what counts”. It matters a lot that he intendedto live “among rebels” as much as possible, as he used to say. He did itprecisely because then he could both help build a freer world and be taken there by others, should he vacillate or make mistakes, as any of us might do.
We cannot defeat domination without practising its alternatives, no matter the limitations of our efforts. Graeber always did what he could to help everyone imagine a more desirable future and live it, as much as possible, in the here and now. Taking the brunt of future-killing repression, global periphery radicals canstill find within his work hopeful lessons.
O Floripa em Dobro é um “tour gastronômico” da grande Florianópolis. Idealizado por alguns “foodfluencers” da região, ele oferece dezenas de cupons de desconto no estilo “pague 1 leve 2”. Utilizei a versão de 2023 e já garanti a versão 2024 na pré-venda – que foi… Um evento interessante.
Esse negócio é muito bom, não só porque os restaurantes costumam ser bons – ruim ruim mesmo não vi nenhum – mas porque financeiramente o negócio é absurdamente compensador. Não lembro do preço da versão de 2023 mas com dois ou três cupons você já recuperava o preço gasto comprando o “carnê” (digital); no período de vigência do tour, usei mais de 40 cupons.
Em 2024, contudo, a estratégia de vendas de acesso ao app (para simplificar, vou chamar de “carnê” mesmo) está sendo um tanto quanto esquisita. Entre outras coisas que serão exploradas abaixo, 15% dos carnês digitais disponíveis foram colocados para “pré-venda” às 20h do dia 13 de junho. A venda ocorreria no próprio aplicativo. A questão é que ocorreram tantos problemas nesse momento, gerando tanta frustração, que o resultado foi uma imensa onda de reclamações no Instagram [ex. 1; ex. 2]. Fiquei pensando sobre o que deu errado e por quê. Achei interessante compartilhar essas reflexões.
O que exatamente é o Floripa em Dobro?
No comentário da imagem acima, um usuário do Instagram chama o Floripa em Dobro de “produto”. Em várias postagens de tom negativo, pessoas demonstram decepção, alegando terem sido desrespeitadas enquanto clientes.
Mas a questão é: o Floripa em Dobro é mesmo um “produto”? A conta não fecha. O pagamento que é feito pro Floripa em Dobro não é uma espécie de adiantamento pros estabelecimentos em troca de alguma vantagem intangível, como, digamos, prioridade na fila pra entrar em um restaurante. A vantagem é monetária mesmo – você economiza muito, mas muito mais do que paga (para o aplicativo). No fundo, o aplicativo está mediando uma promoção entre um restaurante e um cliente. O Floripa em Dobro não é um produto. É uma ação promocional. Você paga pra ter acesso, mas no fim das contas – literalmente; na matemática mesmo – são os restaurantes que, ao oferecer coisas de graça, diminuindo parte da receita, estão pagandopras pessoas irem visitá-los.
Promoção with extra steps
Os restaurantes poderiam simples e individualmente inventar suas próprias formas de distribuir os descontos; maneiras menos sofisticadas poderiam se valer de códigos distribuídos em redes sociais ou coisa parecida – no fundo, se pensar direitinho, não é muito trabalho. Mas o Floripa em Dobro traz algumas vantagens, seja a “distinção” da inclusão, o fato de que uma vez que ele existe pode ser uma desvantagem não participar, a facilidade para gerenciar a promoção, etc. E isso sem ter que gastar nada, já que os custos operacionais são pagos pelos próprios clientes (no momento da compra do carnê).
A questão é que em 2024 isso veio com um custo: a burocracia para possibilitar esse sistema cedeu sob o peso de muitos acessos simultâneos. Mas a esquisitice vai além de um problema pontual:
Aparentemente o carnê será vendido em duas versões: a digital e a física. Por um lado, podemos entender a versão física como uma vantagem para quem não quer usar smartphones ou levá-los para os restaurantes que visitar. Sinceramente, é o único cenário que imagino que justifique a existência de uma versão física, e não consigo levá-lo muito a sério enquanto boa justificativa. Isso simplesmente diminui o conjunto dos carnês digitais, muito mais cômodos.
Tirando os carnês físicos, que serão vendidos em um único ponto da cidade junto com a liberação do primeiro lote dos digitais, o carnê aparentemente é vendido em três fases: a pré-venda, o 1º lote, e o 2º lote. A pré-venda aparentemente só estava disponível para quem entrasse em um grupo de whatsapp. Mas os organizadores criaram quase 100 grupos. O grupo em que estou tem 315 pessoas, então imaginando uma média de 300 por grupo, são 30000 pessoas. Como vou observar depois, eles podem não ter sequer esse número de carnês no total. Por que permitiram tantos grupos de whatsapp, algo especificamente feito para a pré-venda, se nem a metade, provavelmente, acabaria conseguindo fazer a compra?
Uma esquisitice menor, mas curiosa: as pessoas poderiam utilizar o carnê na mesma noite, imediatamente após conseguir fazer a compra. Então não é bem “pré-venda”, certo? É simplesmente o 1º lote.
Há relatos no Instagram de pessoas que não estavam nos grupos e que conseguiram comprar. Isso porque fazer parte do grupo era um requerimento para a pré-venda, e contudo em nenhum momento isso foi operacionalizado. Fazer a compra não exigia alguma espécie de link ou código obtido exclusivamente no grupo; você simplesmente abria o aplicativo no horário combinado e fazia a compra. Ora, se a única vantagem de estar no grupo era receber uma informação, algo facilmente transmitido para quem não estava no grupo, não havia vantagem alguma, nem mesmo, no fim das contas, grande fator limitante de pessoas aptas a comprar na pré-venda.
O “problema pontual”, contudo, foi o travamento multifacetado do aplicativo no momento em que as compras foram permitidas. O número de acessos simultâneos causou uma diversidade notável de problemas: o aplicativo não abria; o aplicativo travava / fechava; a busca da rua pelo CEP (obrigatória) não retornava o endereço para que o processo de compra pudesse continuar; o código PIX não era disponibilizado; o cartão não era cobrado; e, o que ocorreu comigo, a compra dava erro mesmo quando a transferência PIX foi concluída (só conseguimos comprar na terceira tentativa).
A questão toda é que embora a centralização das promoções em um único centro causa também um único ponto de falha (single point of failure). O aplicativo certamente não falhará no dia a dia das operações, mas nesse momento de venda é difícil que não falhe. Várias coisas poderiam ter sido feitas para mitigar o problema – a forma como a venda ocorreu, descrita acima, poderia ter sido melhor pensada. Antes de explorar como, é importante destacar que a questão aqui não é tripudiar em cima desse aplicativo – como eles mesmos admitiram ao cogitar uma solução para próximas edições, “vivendo e aprendendo”. Não pretendo crucificar ninguém. Mas não acho que o problema foi causado não só por algumas decisões ruins, e sim por questões um pouco mais estruturais desse “modelo de negócios”.
Respostas insuficientes
Pouco após a pós-venda, os organizadores usaram stories do Instagram para dar algumas explicações e, em um dado momento, até mesmo cobrar mais respeito nos comentários. Esse pedido provavelmente veio porque as pessoas não só estavam frustradas, mas reagindo com todo tipo de acusação: ninguém conseguiu comprar, e aquilo tudo foi só uma armação para cobrar mais caro depois, ou ainda vender os dados dos potenciais clientes; venderam só para quem conhecia os donos do aplicativo, etc. Às teorias de conspiração somaram-se as acusações mais simples de incompetência e falta de consideração.
A dinâmica da internet é bastante previsível: uma chuva torrencial de ataques, muitas vezes pessoais, leva à defensividade, e assim a respostas que costumam irritar mais ainda que a primeira causa de conflito. Os organizadores basicamente postaram que 1 – Já havia gente usando naquela mesma noite, então sim, várias pessoas compraram, 2 – as pessoas já sabiam (ou deveriam saber) que não haveria para todo mundo, 3 – a organização já havia postado um vídeo avisando que esses problemas aconteceriam, 4 – já haviam inclusive avisado que não seria “por chegada” e sim “por sorte”, uma vez que os problemas provavelmente ocorreriam, e 5 – que ainda há a chance de comprar nos demais lotes.
Essas respostas são insuficientes. Em primeiro lugar, as teorias de conspiração vieram de um lugar de frustração muito momentâneo. As próprias pessoas que conseguiram comprar já estavam respondendo a esses comentários, então isso perderia crédito rápido. Mas o que não se aplacaria é a frustração de quem perdeu tempo num processo que se revelou estúpido (pra quê precisavam pedir o endereço antes de fazer a compra, ou mesmo o CPF do pagador? Que diferença faz quem vai pagar o pix, se o dinheiro cai na conta igual?) pra não ganhar nada no fim das contas – e essa questão emocional não entrou na conta do pessoal da organização, que, ao postar vídeos com pessoas já usando seus cupons, estava (perceba, é isso que alguém frustrado sentiria) basicamente esfregando na cara de quem não conseguiu comprar que eles não conseguiram fazê-lo.
As respostas de 2-4 pioram o problema porque há uma diferença entre alguém de fora avisar que vai dar problema e a própria organização avisar – pois esta última é de fato a única que pode fazer algo quanto a isso. Ou seja, se o problema era tão previsível, por que algo não foi feito? A justificativa dos organizadores foi a de que “os melhores servidores foram contratados”; nomearam especificamente a Amazon. Mas de novo, se isso não os acalmou a ponto de eles acharem que ia dar tudo certo – eles avisaram que ia dar errado – então não foi realmente uma tentativa de boa fé de evitar o problema. Foi uma forma de dizer para si mesmos que fizeram tudo que poderiam fazer, quando na verdade não fizeram. A questão toda estava na dinâmica de vendas.
E isso porque a dinâmica de vendas sempre seria esquisita do jeito como eles planejaram. Ora: por que não por ordem de chegada? Ah, mas o sistema exige que seja na sorte – OK: por que não sortear as pessoas que teriam uma janela de tempo para fazer a compra na pré-venda? Se foi “na sorte”, então poderia ter sido “na sorte” de um jeito que não fizesse ninguém perder tempo. De fato, as próprias tentativas (?) de mitigar o problema provavelmente pioraram as coisas. Os grupos de whatsapp eram para limitar o número de pessoas (de alguma forma que não sabemos), mas foram inchados a tal ponto que todos ficaram com ainda mais medo de não conseguir comprar – o próprio vídeo avisando que haveria problema provavelmente causou ainda mais pânico, e assim estratégias que entupiriam ainda mais os servidores. Aqui em casa, por exemplo, faríamos uma compra só, mas havia dois celulares tentando comprar.
A resposta 5 tampouco é suficiente porque, tirando a questão da venda presencial, os próximos lotes serão vendidos de forma semelhante – as vendas abrem em um determinado horário, previamente combinado, e é o mesmo aplicativo, com os mesmos servidores, que vai ser martelado com a mesma intensidade, talvez até maior (já que não tem mais a miragem de “tinha que estar num grupo de whatsapp). Então isso não assossega, sendo, pelo contrário, até desmotivador. E soa mesmo como descaso.
O problema da quantidade
Teoria da conspiração ou explicação plausível?
A questão é que mesmo que a forma da venda seja melhor – os organizadores já estão falando em fila virtual para as próximas edições – existe uma questão mais específica aqui: simplesmente não há Floripa em Dobro para todo mundo que queira. De fato, em um outro story do Instagram, foi explicado que não há sequer para metade dos 100 mil seguidores do perfil.
A quantidade de carnês disponíveis responde a uma dinâmica curiosa. Todo restaurante participante tem que estar preparado para que todos os seus cupons sejam usados. Nesse sentido, se o desconto oferecido é, sei lá, 40 reais, e há 20 mil cupons, o restaurante está fazendo um investimento potencial de 800 mil reais em marketing (ao longo de um ano).
Esse investimento retorna de algumas formas que são mais perceptíveis – pessoas comprando coisas para além do que está incluído no cupom, aumentando o lucro até mitigar a perda de receita ou mesmo compensá-la – e outras menos – mais pessoas conhecendo o lugar que não viriam nele se não fosse pelo carnê, ou retornando. É verdade que as variáveis são muitas, especialmente afetando as formas menos calculáveis de retorno: por que alguém com o carnê retornaria ao restaurante, se ainda tem 50, 70, 100 outros lugares pra visitar com desconto? O lugar tem que ser muito bom, e num mar de opções destacar-se assim, mesmo com comida boa, não é fácil. Eu retornei (dentro do período de vigência do carnê) a lugares participantes mesmo depois de ter usado o cupom, mas geralmente por causa da conveniência geográfica, ou porque o lugar já era barato, muitas vezes até um lugar que eu já frequentava antes. Por outro lado, a pessoa que usou o cupom pode fazer propaganda para pessoas que não têm o carnê, e aí aumentar a clientela. Mas a mesma pessoa vai conhecer tantos lugares que não há garantia de que haverá tanta conversão assim.
No fim das contas, vai haver um retorno financeiro positivo ou não no local, e um julgamento será feito se valeu a pena ou não – isto é, quão responsável o marketing do Floripa em Dobro foi para esse sucesso (ou para o fracasso). A única questão fixa é o investimento que é preciso garantir, e isso limita a quantidade de carnês disponíveis já de saída. E aqui começa a gangorra: quanto mais carnês se quer vender, menos lugares participarão (pois o custo de investimento será mais alto). Isso tornará o carnê menos atrativo, por esta razão puramente quantitativa e por outras. Nesse sentido, é seguro presumir que nunca haverá Floripa em Dobro para a população inteira da grande Florianópolis – aliás, provavelmente não haverá pra nem um quinto dela, ou mesmo um décimo.
Em suma, Floripa em Dobro é um produto que não escala. E não escala porque nem produto é, é uma ação promocional – isto é, a forma como não escala se deve a essa sua característica. E essa escassez aplicada a uma oportunidade tão boa gera uma demanda alta demais, um hype alto demais, que vai frustrar as pessoas mesmo que as vendas sejam melhor organizadas.
Balançar um “presente” desses na frente das fuças de alguém, destacando tanto todos os seus benefícios, só pra depois arrancar dos seus dedos quanto elas tentarem alcançá-lo, fica parecendo… cruel. Deixa um gosto ruim na boca. Ainda que qualquer um que deu piti no Instagram, se colocasse seus sentimentos dessa forma, reconheceria num instante quão ridículo falar de um carnê de descontos pra refeições supérfluas desse jeito. É “cruel” não conseguir participar de uma promoção pra comer hambúrger com desconto? Claro que não. Mas naquele momento, depois de desmarcar compromissos, como alguém comentou, pra passar 20 minutos de uma quinta à noite tentando argumentar com um sistema burro e mal planejado… E não resultar em nada? Naquele momento a frustração é real. E a questão é se o Floripa em Dobro precisa ser assim.
Possíveis soluções
O fato de que o Floripa em Dobro é muito propagandeado por influencers levou ele a ser bastante conhecido. O problema é querer ser conhecido quando você não tem capacidade pra atender a todo mundo que, ao te conhecer, certamente irá querer ser atendido. Então a dúvida é: pra que essa propaganda toda? O boca a boca de cada edição já seria suficiente pra tornar o programa financeiramente sustentável. Cada potencial cliente adicional – isto é, para além da capacidade do carnê – não causa nada além de dor de cabeça. Uma solução, assim, é só parar de “vender” uma coisa que não é um produto, e sim uma ação promocional.
Essa é a questão fundamental do meu argumento: em nenhum momento as pessoas são lembradas de que se trata de uma promoção. Você só vê na sua frente o preço para acessar um aplicativo que te dá descontos. E quando você não consegue se tornar cliente, parece instintivamente uma quebra de contrato – no caso, o contrato tácito, entre mercador e consumidor, de que se algo está à venda eu vou conseguir comprar se tiver o dinheiro. É revelador que vários comentários mencionaram o PROCON, inclusive naquele tom ameaçador peculiar que tem a expressão “tirei print de tudo”. Meter o PROCON no meio provavelmente (?) não tem mérito jurídico algum, mas é indicativo do fenômeno, da percepção, do que está acontecendo pra deixar essa gente tão nervosa.
O problema com a interrupção da propaganda ativa é possivelmente a mesma razão pela qual os organizadores não deram qualquer vantagem (p. ex. prioridade de compra) para os apoiadores da edição de 2023, algo que fez muita gente ficar irritada também: para os restaurantes, não é interessante que as mesmas pessoas voltem pra se aproveitar de um desconto que inclusive já tiveram ano passado. A ideia do marketing de descontos é atrair público novo; pessoas que não iriam no lugar, e assim não o conheceriam, se não fosse pela promoção. Imagino que seja legal que pessoas que já conhecem o lugar voltem, especialmente se forem consumir além do prato que concede o desconto; no mínimo dos mínimos, evita que a pessoa não volte por mais um ano por estar visitando outros lugares do carnê. Mas não é o ideal.
Se ampliar o número de carnês é improvável, e fidelizar o mesmo público é indesejável, talvez desse pra manter a mesma base de clientes mudando a base de restaurantes. Isso pode ser indesejável para a equipe do Floripa em Dobro, já que trabalhar com os mesmos parceiros comerciais oferece as vantagens da crescente confiança mútua; provavelmente elimina muita fricção. Além disso, embora eu não imagino que seja muito difícil conseguir outros 180 ou 150 estabelecimentos para um carnê alternativo… Pode ser difícil conseguir outros ótimos 180 lugares para uma terceira edição. E aí entraríamos num equilíbrio interessante entre a quantidade de lugares bons e apelativos disponíveis e a disposição deles de oferecer descontos para a mesma comunidade relativamente homogênea de clientes em um certo período de tempo – quantos anos até que gostariam de fazer isso? 2, 3, 5? Não sei dizer. Não sei se a pergunta faz muito sentido, também; talvez seja mais importante tentar fidelizar que não participar de todo.
A questão da precificação, que apareceu em uma das imagens acima, também não me parece uma boa solução – porque ainda estamos no mesmo ramo de buscar não aumentar demais o número de pessoas que quer o carnê, mantendo-o basicamente estável. Só que fazer isso através do preço (o clássico “ajustar a demanda à oferta”) mexe com o caráter da proposta. Você cobra 500 reais no negócio e de repente não é mais divertido. Faz você pensar dez vezes antes de comprar, mesmo que ainda valha a pena na ponta do lápis – de fato, você elitiza o rolê completamente. Não é bem isso que o Floripa em Dobro parece querer, não só como veículo da vontade do marketing dos restaurantes, mas como “identidade” mesmo, como “proposta” que dá coerência pra experiência. É pra ser uma coisa divertida, evocando a animação de ir conhecer comidinhas novas com pessoas queridas, não 6 bolas de chumbo no cartão de crédito, não uma corrida matemática pra fazer valer a pena o “investimento”.
Contudo, parece que voltamos à estaca zero. Restaurantes querem sangue novo, e a equipe do aplicativo parece genuinamente entusiasmada com a perspectiva de que mais pessoas, e novas pessoas, consigam aproveitar o carnê. Mas pra fazer isso, eles basicamente estão pedindo que a própria “comunidade” em torno do negócio – que em vários comentários parece se sentir “traída” por ter ajudado a fazer o negócio decolar quando era somente uma “aposta” – estão pedindo pra essa galera ficar OK com potencialmente ficar de fora esse ano. E, na verdade, que todo ano será uma loteria pra ver quem vai poder entrar.
Talvez a melhor maneira de resolver o impasse é “fraturar” o carnê, duplicando e em alguns casos até multiplicando a quantidade que pode ser vendida. Há vários critérios a partir do quais isso poderia ser feito:
Fazer uma edição “lanche” (hot dog, hambúrger, pizza), outra “frutos do mar” (que poderia incluir os sushis), “café & sobremesas”, “churrasco & italiano”, etc. Mas, também, a variedade é um atrativo do carnê, então talvez não seja lá uma ótima ideia…
Fazer dois carnês diferentes, com restaurantes diferentes. Mesmo pagando por 90 cupons em vez de 180 o preço ainda valeria à pena, e a questão de “qual edição você escolheu?” seria interessante.
Fazer carnês com vigência menor, com menos restaurantes, ciclando as opções mais rapidamente, e com preço ligeiramente menor. Carnês sazonais, por exemplo: de verão, de inverno, de outono, de primavera. Mesmo quem não conseguiu comprar poderia seguir as redes – forjar mesmo a tal “comunidade” – pra ficar de olho em mini-carnês promocionais para períodos menores. “Microcarnês” de uma semana poderiam ser vendidos para turistas, aliás. Assim, ao não concentrar demais um “tudo ou nada” que dura um ano, a coisa ficaria mais dinâmica e em tese mais pessoas conseguiriam ter acesso.
Uma solução mais fácil e rápida
Escrevi esse texto porque fiquei genuinamente intrigado com o problema que se apresentou ontem na pré-venda. Foi como um quebra-cabeça: eu quis pensar em por que as coisas deram errado, por que as pessoas ficaram tão descaralhadas da cabeça, e como poderiam ser resolvidas.
No fim das contas, a minha conclusão é que faltou transparência.
É difícil entender, por exemplo, por que a equipe faz tanto segredo em relação ao número real de carnês disponíveis. Na pré-venda seriam vendidos não um número absoluto de carnês, mas 15% do total (no final foi 35%, aparentemente). Ao avisar que nem metade dos seguidores da página conseguiriam comprar, eles não deram números – só, de novo, essa coisa vaga de “não temos nem pra metade”. Certo, mas quantos? Quantos são?? O que custa dizer quantos são?
Uma das coisas mais irritantes de argumentos sobre a suposta “eficiência” do capitalismo é que não se considera a autorregulação que não é voltada para a competição, e sim para a cooperação e a compreensão mútua, como um fator essencial de eficiência. A provável resposta para o porquê de números reais não serem revelados é que com isso seria muito fácil descobrir a receita anual da equipe de organização, e com isso fazer todo tipo de julgamento – e, também, para que potenciais competidores entrem no mercado já sabendo de algumas informações sensíveis. A preocupação com competidores não me parece tão justificada nesse momento – não conheço mesmo qualquer alternativa em Floripa – mas ela aparece com relativa frequência; no Instagram é muito comum que repitam sempre “… Floripa em Dobro, o MAIOR tour gastronômico da cidade”, etc. O capitalismo – suas manifestações culturais, também, no que tange aos julgamentos que seriam feitos sobre a receita da equipe – incentiva a opacidade e o segredo, em vez da abertura e honestidade que convida à criatividade cooperativa.
De qualquer forma, que diferença isso realmente faria? Eu acho que a principal coisa é que o aplicativo ficaria muito mais fortemente marcado para o público enquanto uma ação promocional – o que ele efetivamente é – em vez de enquanto produto. E isso faria toda a diferença na forma como as pessoas encaram o prospecto de participar disso.
Veja, promoções têm limites de unidades. Em qualquer encarte de supermercado, mesmo que isso esteja escrito em letras miúdas, você tem lá dizendo que a promoção dura até acabar o estoque ou que se aplica a, sei lá, 500 unidades. Então fica mais tangível que a coisa simplesmente acabe; se você não chegou lá a tempo de comprar, paciência, é a vida – era só uma promoção. Com o Floripa em Dobro, a intangibilidade é um problema; é menos visceral para as pessoas a ideia de que não dá pra comprar mais porque acabou – e a equipe também não se ajuda ao liberar mais 20% de cupons só pra compensar pelos problemas do aplicativo, já que isso só atiça asensação de que a escassez é manipuladora em vez de ditada pela realidade; por coisas que eles não conseguem controlar. Só que seria menos um problema se eles simplesmente fossem claros: olha, tem x unidades. 10 mil. 20 mil. 15 mil. Seja qual for o número, é isso que tem, e é isso que podemos oferecer, porque é isso que os restaurantes acordaram, porque isso é uma promoção. Quem entrou, parabéns, obrigado, bem-vindo; quem não entrou, paciência.
Eu sinceramente acho que as pessoas seriam mais compreensivas. A clareza, a abertura, diminuiria o apelo das “teorias de conspiração”, colocaria a todos na perspectiva de que isso se trata de uma promoção, no fim das contas, e que embora a experiência de participar dela poderia ser mais confortável, não passa disso. Ninguém é um “cliente lesado”, apenas uma pessoa sem sorte. E é isso.
Esse dado em particular pode nem ser tão importante quanto a postura de abertura. Muitas pessoas comentaram que os grupos de whatsapp só foram feitos para “gerar uma lista de clientes”. Isso se deve à aparente inutilidade deles para a compra do acesso, de modo que mais explicações – mais abertura – quanto ao processo de venda seria interessante. A acusação inclusive é séria; a equipe planeja vender esse banco de dados, compensando por exemplo os aparentes enormes gastos com servidores da Amazon? Por enquanto seria leviano especular sobre isso, porém o fato é que mais transparência gera mais confiança, e mais confiança quanto a uma questão leva a mais confiança quanto a outras – confiança, inclusive, uma coisa que “se ganha em gotas e se perde em baldes”.
Desejo que o Floripa em Dobro aprenda com seus erros e dê certo, mas realmente acho que o maior ajuste a ser feito, até pra própria tranquilidade da equipe tão dedicada a fazer dele uma coisa tão legal, é deixar mais claro para a comunidade que construíram em torno de si o que exatamente esse negócio é: manejar expectativas falando da realidade com todas as letras, pra ver como possibilitar uma coisa bacana pra cada vez mais gente.
Atualização 14/06 16:00
Os organizadores postaram mais algumas explicações nos stories:
Finalmente um número tangível! a quantidade de carnês físicos. Serão 800, e limitados a um por pessoa (o plano original seria que cada um poderia comprar 5). Mas, número total de carnês ainda não veio.
O grupo de whatsapp teria sido criado para facilitar a comunicação, considerando que as plataformas limitam o alcance orgânico das postagens. Até faz sentido a criação do grupo, mas nem tanto a suposta exigência da presença nele para a “pré-venda” (que operacionalmente não havia). Podiam simplesmente ter explicado sua função real desde o princípio.
Não esperavam a imensa repercussão, mas imediatamente emendam que “são influencers, tudo que a gente faz tem um grande alcance”. Bom… Então como não podiam ter antecipado a repercussão? Ao longo do dia ganharam 10 mil seguidores – mas se não havia para metade dos 100 mil, já não havia para 90 (aparentemente não havia nem para quem estava no grupo de whatsapp). A ideia da conclusão do post segue a mesma: seria preciso ter usado esse alcance não para “vender um produto” (que sabiam não haver para muitos) mas para deixar mais claro que se trata de uma ação promocional limitada.
Eles estão claramente tristes com a repercussão negativa e estão tirando bons aprendizados da situação – que é, a essa altura, a coisa mais importante que podem fazer, já que não dá (como avisaram nos stories) para implementar uma fila digital no aplicativo até a venda dos demais lotes.
Até agora parecem estar sendo proativos no suporte e nessas explicações; desejosos de atender as pessoas e de melhorar daqui pra frente. Esse post, mais uma vez, não é para tripudiar sobre uma falha mas para refletir só um tantinho mais fundo sobre suas razões, pra quem sabe haver ainda mais aprendizado.