What the global periphery can learn from David Graeber

Today marks the 4th anniversary of David Graeber’s passing. When reading Fragments of an Anarchist Anthropology I fell in love with his wit, his edge, and his range. But after years of working with his texts, translating a few, and even interviewing him, I still have reservations about some of his ideas. The anarchist scholar in me admires them; the anarchist who grew up in Brazil is conflicted.

Take his stance on the police. In Direct Action, he discusses how “postmodern” they are, as they sneer at the concept of truth in service of authority. But in Brazil, mafias mixing police officers and evangelical zealots – who certainly believe in ultimate truths – are on the rise. One of Graeber’s better known concepts, “bullshit jobs”, describes an issue that most Brazilians – facing high unemployment, platformisation, and the erosion of labour rights – would call a “first world problem”.

The biggest issue might be his stance on tactics for social change. During the global protests against the IMF at the start of the century, Seattle activists came down to Brazil to share their ideas, telling protesters to just “lie on the ground” when the police come. Many, however, laughed in response. Serious harm was far too likely for them to attempt such a stunt.

Graeber, who took part in the protests of that era, similarly wanted to come up with alternatives to “a politics of direct confrontation”, arguing that violence was the “recourse of the stupid”. But such an argument, especially in the context of a country like Brazil, made for a toothless kind of anarchism. For him, “more militant” tactics often relied on broader demilitarization. But it seems that his favoured strategies were the ones which could only be entertained in social environments with much less violence than most countries, let alone those in the global periphery.

Graeber’s preferred solution in the face of such violence was simply “walking away”. It was a tactic that seems to have worked wonders for medieval peasants and South American societies against the state”. However, doing so today is far more difficult than in these contexts. The police keeps the oppressed in line and separated by borders. With fewer resources, starting over somewhere else becomes harder, and bonds to the land are an actually excellent reason to stay. Is not running away – when one can envision alternative forms of resistance – an aggrieving capitulation to the oppressor?

Graeber was aware of all that. He denounced a world of frictionless money but gated people. He understood that “hospitality” is what makes any “right to leave” consequential, and studied how relations of care were perverted to keep us in place. But how to build a world where walking away could fix collective problems, instead of being an individual solution, truly available only when rare conditions can be found?

He put his faith in occupying public spaces (such as Zuccotti Park) to experiment with the way we make decisions: change that and the rest will sort itself out. But without directly attacking structures of economic and social domination, co-option into state politics is to be expected – as in the case of many Brazilians involved in the June journeys” of 2013.

On the other hand, some of the tactics he rejected – because he thought them outdated, morally questionable, or less effective – might be successful in other contexts, and without compromising on principles. Chilean militancy came close to burying neoliberalism in the country; native populations in the Brazilian territory are using force against deforestation; Indian syndicalists have recently helped build the largest strike in human history.

There are still things that global periphery radicals can learn from Graeber, however. His 566-page masterpiece on debt helps us to see through the lies of austerity doctrines, which many countries sidestepped during the coronavirus crisis but Brazil was held hostage to. And while Brazil’s job market may not have been “bullshitised” yet, his reflections on social value and caring work are useful for questioning long-standing, unfair differences between professions in many peripheral countries. What’s more, in the vein of pretty much all anarchists before him, Graeber’s thought was profoundly shaped by the social struggles he took part in. If his experience in Madagascar shaped his earlier thought, his unflinching support for the revolution in Rojava significantly expanded his toolbox.

Finding that the principles of consensus were already rooted in hearts and institutions, he gifted the revolutionaries with much more interesting structural analysis (in other words: don’t just trust the process). For those who cried “imperialism”, he had two words: “loser left!”. In a brilliant essay exploring the dynamics of bullying, he grappled with the responsibility of spectators in every conflict: how can they contribute to emancipatory direct action, in Rojava, Palestine, or anywhere else, even at a distance? To the right to walk away he added the rights to disobey and to change rules. Each one, he emphasised, was a reality we must make and sustain ourselves, not something we ask a sovereign to grant us.

This trajectory, more than any specific tactics, is what he teaches us as a militant. Given time, most manuals become obsolete anyway. As we say in Brazil about unfortunate gifts, “the intention is what counts”. It matters a lot that he intended to live “among rebels” as much as possible, as he used to say. He did it precisely because then he could both help build a freer world and be taken there by others, should he vacillate or make mistakes, as any of us might do.

We cannot defeat domination without practising its alternatives, no matter the limitations of our efforts. Graeber always did what he could to help everyone imagine a more desirable future and live it, as much as possible, in the here and now. Taking the brunt of future-killing repression, global periphery radicals can still find within his work hopeful lessons.

Reflexões sobre a (pré-)venda do Floripa em Dobro de 2024

O Floripa em Dobro é um “tour gastronômico” da grande Florianópolis. Idealizado por alguns “foodfluencers” da região, ele oferece dezenas de cupons de desconto no estilo “pague 1 leve 2”. Utilizei a versão de 2023 e já garanti a versão 2024 na pré-venda – que foi… Um evento interessante.

Esse negócio é muito bom, não só porque os restaurantes costumam ser bons – ruim ruim mesmo não vi nenhum – mas porque financeiramente o negócio é absurdamente compensador. Não lembro do preço da versão de 2023 mas com dois ou três cupons você já recuperava o preço gasto comprando o “carnê” (digital); no período de vigência do tour, usei mais de 40 cupons.

Em 2024, contudo, a estratégia de vendas de acesso ao app (para simplificar, vou chamar de “carnê” mesmo) está sendo um tanto quanto esquisita. Entre outras coisas que serão exploradas abaixo, 15% dos carnês digitais disponíveis foram colocados para “pré-venda” às 20h do dia 13 de junho. A venda ocorreria no próprio aplicativo. A questão é que ocorreram tantos problemas nesse momento, gerando tanta frustração, que o resultado foi uma imensa onda de reclamações no Instagram [ex. 1; ex. 2]. Fiquei pensando sobre o que deu errado e por quê. Achei interessante compartilhar essas reflexões.

O que exatamente é o Floripa em Dobro?

No comentário da imagem acima, um usuário do Instagram chama o Floripa em Dobro de “produto”. Em várias postagens de tom negativo, pessoas demonstram decepção, alegando terem sido desrespeitadas enquanto clientes.

Mas a questão é: o Floripa em Dobro é mesmo um “produto”? A conta não fecha. O pagamento que é feito pro Floripa em Dobro não é uma espécie de adiantamento pros estabelecimentos em troca de alguma vantagem intangível, como, digamos, prioridade na fila pra entrar em um restaurante. A vantagem é monetária mesmo – você economiza muito, mas muito mais do que paga (para o aplicativo). No fundo, o aplicativo está mediando uma promoção entre um restaurante e um cliente. O Floripa em Dobro não é um produto. É uma ação promocional. Você paga pra ter acesso, mas no fim das contas – literalmente; na matemática mesmo – são os restaurantes que, ao oferecer coisas de graça, diminuindo parte da receita, estão pagando pras pessoas irem visitá-los.

Promoção with extra steps

Os restaurantes poderiam simples e individualmente inventar suas próprias formas de distribuir os descontos; maneiras menos sofisticadas poderiam se valer de códigos distribuídos em redes sociais ou coisa parecida – no fundo, se pensar direitinho, não é muito trabalho. Mas o Floripa em Dobro traz algumas vantagens, seja a “distinção” da inclusão, o fato de que uma vez que ele existe pode ser uma desvantagem não participar, a facilidade para gerenciar a promoção, etc. E isso sem ter que gastar nada, já que os custos operacionais são pagos pelos próprios clientes (no momento da compra do carnê).

A questão é que em 2024 isso veio com um custo: a burocracia para possibilitar esse sistema cedeu sob o peso de muitos acessos simultâneos. Mas a esquisitice vai além de um problema pontual:

    1. Aparentemente o carnê será vendido em duas versões: a digital e a física. Por um lado, podemos entender a versão física como uma vantagem para quem não quer usar smartphones ou levá-los para os restaurantes que visitar. Sinceramente, é o único cenário que imagino que justifique a existência de uma versão física, e não consigo levá-lo muito a sério enquanto boa justificativa. Isso simplesmente diminui o conjunto dos carnês digitais, muito mais cômodos.
    2. Tirando os carnês físicos, que serão vendidos em um único ponto da cidade junto com a liberação do primeiro lote dos digitais, o carnê aparentemente é vendido em três fases: a pré-venda, o 1º lote, e o 2º lote. A pré-venda aparentemente só estava disponível para quem entrasse em um grupo de whatsapp. Mas os organizadores criaram quase 100 grupos. O grupo em que estou tem 315 pessoas, então imaginando uma média de 300 por grupo, são 30000 pessoas. Como vou observar depois, eles podem não ter sequer esse número de carnês no total. Por que permitiram tantos grupos de whatsapp, algo especificamente feito para a pré-venda, se nem a metade, provavelmente, acabaria conseguindo fazer a compra?
    3. Uma esquisitice menor, mas curiosa: as pessoas poderiam utilizar o carnê na mesma noite, imediatamente após conseguir fazer a compra. Então não é bem “pré-venda”, certo? É simplesmente o 1º lote.
    4. Há relatos no Instagram de pessoas que não estavam nos grupos e que conseguiram comprar. Isso porque fazer parte do grupo era um requerimento para a pré-venda, e contudo em nenhum momento isso foi operacionalizado. Fazer a compra não exigia alguma espécie de link ou código obtido exclusivamente no grupo; você simplesmente abria o aplicativo no horário combinado e fazia a compra. Ora, se a única vantagem de estar no grupo era receber uma informação, algo facilmente transmitido para quem não estava no grupo, não havia vantagem alguma, nem mesmo, no fim das contas, grande fator limitante de pessoas aptas a comprar na pré-venda.

O “problema pontual”, contudo, foi o travamento multifacetado do aplicativo no momento em que as compras foram permitidas. O número de acessos simultâneos causou uma diversidade notável de problemas: o aplicativo não abria; o aplicativo travava / fechava; a busca da rua pelo CEP (obrigatória) não retornava o endereço para que o processo de compra pudesse continuar; o código PIX não era disponibilizado; o cartão não era cobrado; e, o que ocorreu comigo, a compra dava erro mesmo quando a transferência PIX foi concluída (só conseguimos comprar na terceira tentativa).

A questão toda é que embora a centralização das promoções em um único centro causa também um único ponto de falha (single point of failure). O aplicativo certamente não falhará no dia a dia das operações, mas nesse momento de venda é difícil que não falhe. Várias coisas poderiam ter sido feitas para mitigar o problema – a forma como a venda ocorreu, descrita acima, poderia ter sido melhor pensada. Antes de explorar como, é importante destacar que a questão aqui não é tripudiar em cima desse aplicativo – como eles mesmos admitiram ao cogitar uma solução para próximas edições, “vivendo e aprendendo”. Não pretendo crucificar ninguém. Mas não acho que o problema foi causado não só por algumas decisões ruins, e sim por questões um pouco mais estruturais desse “modelo de negócios”.

Respostas insuficientes

Pouco após a pós-venda, os organizadores usaram stories do Instagram para dar algumas explicações e, em um dado momento, até mesmo cobrar mais respeito nos comentários. Esse pedido provavelmente veio porque as pessoas não só estavam frustradas, mas reagindo com todo tipo de acusação: ninguém conseguiu comprar, e aquilo tudo foi só uma armação para cobrar mais caro depois, ou ainda vender os dados dos potenciais clientes; venderam só para quem conhecia os donos do aplicativo, etc. Às teorias de conspiração somaram-se as acusações mais simples de incompetência e falta de consideração.

A dinâmica da internet é bastante previsível: uma chuva torrencial de ataques, muitas vezes pessoais, leva à defensividade, e assim a respostas que costumam irritar mais ainda que a primeira causa de conflito. Os organizadores basicamente postaram que 1 – Já havia gente usando naquela mesma noite, então sim, várias pessoas compraram, 2 – as pessoas já sabiam (ou deveriam saber) que não haveria para todo mundo, 3 – a organização já havia postado um vídeo avisando que esses problemas aconteceriam, 4 – já haviam inclusive avisado que não seria “por chegada” e sim “por sorte”, uma vez que os problemas provavelmente ocorreriam, e 5 – que ainda há a chance de comprar nos demais lotes.

Essas respostas são insuficientes. Em primeiro lugar, as teorias de conspiração vieram de um lugar de frustração muito momentâneo. As próprias pessoas que conseguiram comprar já estavam respondendo a esses comentários, então isso perderia crédito rápido. Mas o que não se aplacaria é a frustração de quem perdeu tempo num processo que se revelou estúpido (pra quê precisavam pedir o endereço antes de fazer a compra, ou mesmo o CPF do pagador? Que diferença faz quem vai pagar o pix, se o dinheiro cai na conta igual?) pra não ganhar nada no fim das contas – e essa questão emocional não entrou na conta do pessoal da organização, que, ao postar vídeos com pessoas já usando seus cupons, estava (perceba, é isso que alguém frustrado sentiria) basicamente esfregando na cara de quem não conseguiu comprar que eles não conseguiram fazê-lo.

As respostas de 2-4 pioram o problema porque há uma diferença entre alguém de fora avisar que vai dar problema e a própria organização avisar – pois esta última é de fato a única que pode fazer algo quanto a isso. Ou seja, se o problema era tão previsível, por que algo não foi feito? A justificativa dos organizadores foi a de que “os melhores servidores foram contratados”; nomearam especificamente a Amazon. Mas de novo, se isso não os acalmou a ponto de eles acharem que ia dar tudo certo – eles avisaram que ia dar errado – então não foi realmente uma tentativa de boa fé de evitar o problema. Foi uma forma de dizer para si mesmos que fizeram tudo que poderiam fazer, quando na verdade não fizeram. A questão toda estava na dinâmica de vendas.

E isso porque a dinâmica de vendas sempre seria esquisita do jeito como eles planejaram. Ora: por que não por ordem de chegada? Ah, mas o sistema exige que seja na sorte – OK: por que não sortear as pessoas que teriam uma janela de tempo para fazer a compra na pré-venda? Se foi “na sorte”, então poderia ter sido “na sorte” de um jeito que não fizesse ninguém perder tempo. De fato, as próprias tentativas (?) de mitigar o problema provavelmente pioraram as coisas. Os grupos de whatsapp eram para limitar o número de pessoas (de alguma forma que não sabemos), mas foram inchados a tal ponto que todos ficaram com ainda mais medo de não conseguir comprar – o próprio vídeo avisando que haveria problema provavelmente causou ainda mais pânico, e assim estratégias que entupiriam ainda mais os servidores. Aqui em casa, por exemplo, faríamos uma compra só, mas havia dois celulares tentando comprar.

A resposta 5 tampouco é suficiente porque, tirando a questão da venda presencial, os próximos lotes serão vendidos de forma semelhante – as vendas abrem em um determinado horário, previamente combinado, e é o mesmo aplicativo, com os mesmos servidores, que vai ser martelado com a mesma intensidade, talvez até maior (já que não tem mais a miragem de “tinha que estar num grupo de whatsapp). Então isso não assossega, sendo, pelo contrário, até desmotivador. E soa mesmo como descaso.

O problema da quantidade

Teoria da conspiração ou explicação plausível?

A questão é que mesmo que a forma da venda seja melhor – os organizadores já estão falando em fila virtual para as próximas edições – existe uma questão mais específica aqui: simplesmente não há Floripa em Dobro para todo mundo que queira. De fato, em um outro story do Instagram, foi explicado que não há sequer para metade dos 100 mil seguidores do perfil.

A quantidade de carnês disponíveis responde a uma dinâmica curiosa. Todo restaurante participante tem que estar preparado para que todos os seus cupons sejam usados. Nesse sentido, se o desconto oferecido é, sei lá, 40 reais, e há 20 mil cupons, o restaurante está fazendo um investimento potencial de 800 mil reais em marketing (ao longo de um ano).

Esse investimento retorna de algumas formas que são mais perceptíveis – pessoas comprando coisas para além do que está incluído no cupom, aumentando o lucro até mitigar a perda de receita ou mesmo compensá-la – e outras menos – mais pessoas conhecendo o lugar que não viriam nele se não fosse pelo carnê, ou retornando. É verdade que as variáveis são muitas, especialmente afetando as formas menos calculáveis de retorno: por que alguém com o carnê retornaria ao restaurante, se ainda tem 50, 70, 100 outros lugares pra visitar com desconto? O lugar tem que ser muito bom, e num mar de opções destacar-se assim, mesmo com comida boa, não é fácil. Eu retornei (dentro do período de vigência do carnê) a lugares participantes mesmo depois de ter usado o cupom, mas geralmente por causa da conveniência geográfica, ou porque o lugar já era barato, muitas vezes até um lugar que eu já frequentava antes. Por outro lado, a pessoa que usou o cupom pode fazer propaganda para pessoas que não têm o carnê, e aí aumentar a clientela. Mas a mesma pessoa vai conhecer tantos lugares que não há garantia de que haverá tanta conversão assim.

No fim das contas, vai haver um retorno financeiro positivo ou não no local, e um julgamento será feito se valeu a pena ou não – isto é, quão responsável o marketing do Floripa em Dobro foi para esse sucesso (ou para o fracasso). A única questão fixa é o investimento que é preciso garantir, e isso limita a quantidade de carnês disponíveis já de saída. E aqui começa a gangorra: quanto mais carnês se quer vender, menos lugares participarão (pois o custo de investimento será mais alto). Isso tornará o carnê menos atrativo, por esta razão puramente quantitativa e por outras. Nesse sentido, é seguro presumir que nunca haverá Floripa em Dobro para a população inteira da grande Florianópolis – aliás, provavelmente não haverá pra nem um quinto dela, ou mesmo um décimo.

Em suma, Floripa em Dobro é um produto que não escala. E não escala porque nem produto é, é uma ação promocional – isto é, a forma como não escala se deve a essa sua característica. E essa escassez aplicada a uma oportunidade tão boa gera uma demanda alta demais, um hype alto demais, que vai frustrar as pessoas mesmo que as vendas sejam melhor organizadas.

Balançar um “presente” desses na frente das fuças de alguém, destacando tanto todos os seus benefícios, só pra depois arrancar dos seus dedos quanto elas tentarem alcançá-lo, fica parecendo… cruel. Deixa um gosto ruim na boca. Ainda que qualquer um que deu piti no Instagram, se colocasse seus sentimentos dessa forma, reconheceria num instante quão ridículo falar de um carnê de descontos pra refeições supérfluas desse jeito. É “cruel” não conseguir participar de uma promoção pra comer hambúrger com desconto? Claro que não. Mas naquele momento, depois de desmarcar compromissos, como alguém comentou, pra passar 20 minutos de uma quinta à noite tentando argumentar com um sistema burro e mal planejado… E não resultar em nada? Naquele momento a frustração é real. E a questão é se o Floripa em Dobro precisa ser assim.

Possíveis soluções

O fato de que o Floripa em Dobro é muito propagandeado por influencers levou ele a ser bastante conhecido. O problema é querer ser conhecido quando você não tem capacidade pra atender a todo mundo que, ao te conhecer, certamente irá querer ser atendido. Então a dúvida é: pra que essa propaganda toda? O boca a boca de cada edição já seria suficiente pra tornar o programa financeiramente sustentável. Cada potencial cliente adicional – isto é, para além da capacidade do carnê – não causa nada além de dor de cabeça. Uma solução, assim, é só parar de “vender” uma coisa que não é um produto, e sim uma ação promocional.

Essa é a questão fundamental do meu argumento: em nenhum momento as pessoas são lembradas de que se trata de uma promoção. Você só vê na sua frente o preço para acessar um aplicativo que te dá descontos. E quando você não consegue se tornar cliente, parece instintivamente uma quebra de contrato – no caso, o contrato tácito, entre mercador e consumidor, de que se algo está à venda eu vou conseguir comprar se tiver o dinheiro. É revelador que vários comentários mencionaram o PROCON, inclusive naquele tom ameaçador peculiar que tem a expressão “tirei print de tudo”. Meter o PROCON no meio provavelmente (?) não tem mérito jurídico algum, mas é indicativo do fenômeno, da percepção, do que está acontecendo pra deixar essa gente tão nervosa.

O problema com a interrupção da propaganda ativa é possivelmente a mesma razão pela qual os organizadores não deram qualquer vantagem (p. ex. prioridade de compra) para os apoiadores da edição de 2023, algo que fez muita gente ficar irritada também: para os restaurantes, não é interessante que as mesmas pessoas voltem pra se aproveitar de um desconto que inclusive já tiveram ano passado. A ideia do marketing de descontos é atrair público novo; pessoas que não iriam no lugar, e assim não o conheceriam, se não fosse pela promoção. Imagino que seja legal que pessoas que já conhecem o lugar voltem, especialmente se forem consumir além do prato que concede o desconto; no mínimo dos mínimos, evita que a pessoa não volte por mais um ano por estar visitando outros lugares do carnê. Mas não é o ideal.

Se ampliar o número de carnês é improvável, e fidelizar o mesmo público é indesejável, talvez desse pra manter a mesma base de clientes mudando a base de restaurantes. Isso pode ser indesejável para a equipe do Floripa em Dobro, já que trabalhar com os mesmos parceiros comerciais oferece as vantagens da crescente confiança mútua; provavelmente elimina muita fricção. Além disso, embora eu não imagino que seja muito difícil conseguir outros 180 ou 150 estabelecimentos para um carnê alternativo… Pode ser difícil conseguir outros ótimos 180 lugares para uma terceira edição. E aí entraríamos num equilíbrio interessante entre a quantidade de lugares bons e apelativos disponíveis e a disposição deles de oferecer descontos para a mesma comunidade relativamente homogênea de clientes em um certo período de tempo – quantos anos até que gostariam de fazer isso? 2, 3, 5? Não sei dizer. Não sei se a pergunta faz muito sentido, também; talvez seja mais importante tentar fidelizar que não participar de todo.

A questão da precificação, que apareceu em uma das imagens acima, também não me parece uma boa solução – porque ainda estamos no mesmo ramo de buscar não aumentar demais o número de pessoas que quer o carnê, mantendo-o basicamente estável. Só que fazer isso através do preço (o clássico “ajustar a demanda à oferta”) mexe com o caráter da proposta. Você cobra 500 reais no negócio e de repente não é mais divertido. Faz você pensar dez vezes antes de comprar, mesmo que ainda valha a pena na ponta do lápis – de fato, você elitiza o rolê completamente. Não é bem isso que o Floripa em Dobro parece querer, não só como veículo da vontade do marketing dos restaurantes, mas como “identidade” mesmo, como “proposta” que dá coerência pra experiência. É pra ser uma coisa divertida, evocando a animação de ir conhecer comidinhas novas com pessoas queridas, não 6 bolas de chumbo no cartão de crédito, não uma corrida matemática pra fazer valer a pena o “investimento”.

Contudo, parece que voltamos à estaca zero. Restaurantes querem sangue novo, e a equipe do aplicativo parece genuinamente entusiasmada com a perspectiva de que mais pessoas, e novas pessoas, consigam aproveitar o carnê. Mas pra fazer isso, eles basicamente estão pedindo que a própria “comunidade” em torno do negócio – que em vários comentários parece se sentir “traída” por ter ajudado a fazer o negócio decolar quando era somente uma “aposta” – estão pedindo pra essa galera ficar OK com potencialmente ficar de fora esse ano. E, na verdade, que todo ano será uma loteria pra ver quem vai poder entrar.

Talvez a melhor maneira de resolver o impasse é “fraturar” o carnê, duplicando e em alguns casos até multiplicando a quantidade que pode ser vendida. Há vários critérios a partir do quais isso poderia ser feito:

    • Fazer uma edição “lanche” (hot dog, hambúrger, pizza), outra “frutos do mar” (que poderia incluir os sushis), “café & sobremesas”, “churrasco & italiano”, etc. Mas, também, a variedade é um atrativo do carnê, então talvez não seja lá uma ótima ideia…
    • Fazer dois carnês diferentes, com restaurantes diferentes. Mesmo pagando por 90 cupons em vez de 180 o preço ainda valeria à pena, e a questão de “qual edição você escolheu?” seria interessante.
    • Fazer carnês com vigência menor, com menos restaurantes, ciclando as opções mais rapidamente, e com preço ligeiramente menor. Carnês sazonais, por exemplo: de verão, de inverno, de outono, de primavera. Mesmo quem não conseguiu comprar poderia seguir as redes – forjar mesmo a tal “comunidade” – pra ficar de olho em mini-carnês promocionais para períodos menores. “Microcarnês” de uma semana poderiam ser vendidos para turistas, aliás. Assim, ao não concentrar demais um “tudo ou nada” que dura um ano, a coisa ficaria mais dinâmica e em tese mais pessoas conseguiriam ter acesso.

Uma solução mais fácil e rápida

Escrevi esse texto porque fiquei genuinamente intrigado com o problema que se apresentou ontem na pré-venda. Foi como um quebra-cabeça: eu quis pensar em por que as coisas deram errado, por que as pessoas ficaram tão descaralhadas da cabeça, e como poderiam ser resolvidas.

No fim das contas, a minha conclusão é que faltou transparência.

É difícil entender, por exemplo, por que a equipe faz tanto segredo em relação ao número real de carnês disponíveis. Na pré-venda seriam vendidos não um número absoluto de carnês, mas 15% do total (no final foi 35%, aparentemente). Ao avisar que nem metade dos seguidores da página conseguiriam comprar, eles não deram números – só, de novo, essa coisa vaga de “não temos nem pra metade”. Certo, mas quantos? Quantos são?? O que custa dizer quantos são?

Uma das coisas mais irritantes de argumentos sobre a suposta “eficiência” do capitalismo é que não se considera a autorregulação que não é voltada para a competição, e sim para a cooperação e a compreensão mútua, como um fator essencial de eficiência. A provável resposta para o porquê de números reais não serem revelados é que com isso seria muito fácil descobrir a receita anual da equipe de organização, e com isso fazer todo tipo de julgamento – e, também, para que potenciais competidores entrem no mercado já sabendo de algumas informações sensíveis. A preocupação com competidores não me parece tão justificada nesse momento – não conheço mesmo qualquer alternativa em Floripa – mas ela aparece com relativa frequência; no Instagram é muito comum que repitam sempre “… Floripa em Dobro, o MAIOR tour gastronômico da cidade”, etc. O capitalismo – suas manifestações culturais, também, no que tange aos julgamentos que seriam feitos sobre a receita da equipe – incentiva a opacidade e o segredo, em vez da abertura e honestidade que convida à criatividade cooperativa.

De qualquer forma, que diferença isso realmente faria? Eu acho que a principal coisa é que o aplicativo ficaria muito mais fortemente marcado para o público enquanto uma ação promocional – o que ele efetivamente é – em vez de enquanto produto. E isso faria toda a diferença na forma como as pessoas encaram o prospecto de participar disso.

Veja, promoções têm limites de unidades. Em qualquer encarte de supermercado, mesmo que isso esteja escrito em letras miúdas, você tem lá dizendo que a promoção dura até acabar o estoque ou que se aplica a, sei lá, 500 unidades. Então fica mais tangível que a coisa simplesmente acabe; se você não chegou lá a tempo de comprar, paciência, é a vida – era só uma promoção. Com o Floripa em Dobro, a intangibilidade é um problema; é menos visceral para as pessoas a ideia de que não dá pra comprar mais porque acabou – e a equipe também não se ajuda ao liberar mais 20% de cupons só pra compensar pelos problemas do aplicativo, já que isso só atiça a sensação de que a escassez é manipuladora em vez de ditada pela realidade; por coisas que eles não conseguem controlar. Só que seria menos um problema se eles simplesmente fossem claros: olha, tem x unidades. 10 mil. 20 mil. 15 mil. Seja qual for o número, é isso que tem, e é isso que podemos oferecer, porque é isso que os restaurantes acordaram, porque isso é uma promoção. Quem entrou, parabéns, obrigado, bem-vindo; quem não entrou, paciência.

Eu sinceramente acho que as pessoas seriam mais compreensivas. A clareza, a abertura, diminuiria o apelo das “teorias de conspiração”, colocaria a todos na perspectiva de que isso se trata de uma promoção, no fim das contas, e que embora a experiência de participar dela poderia ser mais confortável, não passa disso. Ninguém é um “cliente lesado”, apenas uma pessoa sem sorte. E é isso.

Esse dado em particular pode nem ser tão importante quanto a postura de abertura. Muitas pessoas comentaram que os grupos de whatsapp só foram feitos para “gerar uma lista de clientes”. Isso se deve à aparente inutilidade deles para a compra do acesso, de modo que mais explicações – mais abertura – quanto ao processo de venda seria interessante. A acusação inclusive é séria; a equipe planeja vender esse banco de dados, compensando por exemplo os aparentes enormes gastos com servidores da Amazon? Por enquanto seria leviano especular sobre isso, porém o fato é que mais transparência gera mais confiança, e mais confiança quanto a uma questão leva a mais confiança quanto a outras – confiança, inclusive, uma coisa que “se ganha em gotas e se perde em baldes”.

Desejo que o Floripa em Dobro aprenda com seus erros e dê certo, mas realmente acho que o maior ajuste a ser feito, até pra própria tranquilidade da equipe tão dedicada a fazer dele uma coisa tão legal, é deixar mais claro para a comunidade que construíram em torno de si o que exatamente esse negócio é: manejar expectativas falando da realidade com todas as letras, pra ver como possibilitar uma coisa bacana pra cada vez mais gente.

Atualização 14/06 16:00

Os organizadores postaram mais algumas explicações nos stories:

    • Finalmente um número tangível! a quantidade de carnês físicos. Serão 800, e limitados a um por pessoa (o plano original seria que cada um poderia comprar 5). Mas, número total de carnês ainda não veio.
    • O grupo de whatsapp teria sido criado para facilitar a comunicação, considerando que as plataformas limitam o alcance orgânico das postagens. Até faz sentido a criação do grupo, mas nem tanto a suposta exigência da presença nele para a “pré-venda” (que operacionalmente não havia). Podiam simplesmente ter explicado sua função real desde o princípio.
    • Não esperavam a imensa repercussão, mas imediatamente emendam que “são influencers, tudo que a gente faz tem um grande alcance”. Bom… Então como não podiam ter antecipado a repercussão? Ao longo do dia ganharam 10 mil seguidores – mas se não havia para metade dos 100 mil, já não havia para 90 (aparentemente não havia nem para quem estava no grupo de whatsapp). A ideia da conclusão do post segue a mesma: seria preciso ter usado esse alcance não para “vender um produto” (que sabiam não haver para muitos) mas para deixar mais claro que se trata de uma ação promocional limitada.

Eles estão claramente tristes com a repercussão negativa e estão tirando bons aprendizados da situação – que é, a essa altura, a coisa mais importante que podem fazer, já que não dá (como avisaram nos stories) para implementar uma fila digital no aplicativo até a venda dos demais lotes.

Até agora parecem estar sendo proativos no suporte e nessas explicações; desejosos de atender as pessoas e de melhorar daqui pra frente. Esse post, mais uma vez, não é para tripudiar sobre uma falha mas para refletir só um tantinho mais fundo sobre suas razões, pra quem sabe haver ainda mais aprendizado.

Verdade factual

Os vídeos do Tempero Drag são em geral muito bons; só às vezes é que me lembram do ranço marxista que incomoda.

Esse sobre dissonância cognitiva é bem redondo, exceto numa premissa muito curiosa que é a tal da “verdade factual”.

Não quero voltar à polêmica pós-moderna, mas vou pelo caminho da observação de que muitas línguas indígenas das Américas (esqueci a referência, talvez um livro sobre os Awa Guajá) embutem em frases descritivas estruturas como “para mim” ou “me parece que” (ou lhe parece que, te parece que, parece a eles que, etc.). Não é tanto uma escolha de usar essa estrutura quando uma descrição mais sucinta – “isto é tal coisa” – serviria; a estrutura mais sucinta simplesmente não existe.

Daí que fico me perguntando se não há uma alternativa para a insistência em “verdades factuais”, qual seja, o reconhecimento da verdade da impressão subjetiva não enquanto necessidade de se curvar a ela, mas de reconhecer que ela produz efeitos.

Se o outro está me dizendo que é assim que percebe a realidade, é assim que ele percebe a realidade.

Não quer dizer que todas as outras pessoas que veem algo diferente estejam erradas. E nesse caso certamente não quer dizer quer devo me basear no que esta única pessoa diz. Mas quer dizer que essa percepção alternativa é simplesmente um dado da realidade que tenho que levar em consideração nos meus atos. Assim como ela precisa levar em consideração o fato de que é a única a ter essa percepção.

Estou cansado pra desenvolver isso, e me parece fútil considerando quanta tinta já foi derramada sobre isso… Mas tudo me parece relacionado a uma estrutura política que possibilita a exigência de uma verdade factual. Não dá pra construir convivência a partir do trabalho de compatibilizar diferentes percepções? O que é a exigência de que separemos opiniões e visões, cada qual com a sua, de fatos, e que é só sobre estes que se deve construir política comum?

Não quero também reificar percepções equivocadas. A troca de experiências também pode levar à troca de visões. E uma troca que a pessoa julga ter sido valiosa. Ela estava errada. Valeu a pena passar a ver a realidade com outros olhos. Etc.

Barricadas em tempos de desastre

Estive lendo Barricadas em tempos de desastre, excelente livro do João Branco sobre educação em Oaxaca, e houve uma sinergia temática quando acabei vendo, entre uma sessão de leitura e outra, uma conversa com Alana Lemos Bueno sobre seu livro acerca do novo ensino médio.

Interessantes sinergias. Tirar de contexto a descrição que Branco faz da educação para a comunalidade colocaria muita gente de cabelo em pé, e com razão… Uma das citações, por exemplo, é de uma pessoa falando sobre como parte integrante da educação deles foi aprender a fazer tortillas como sua mãe e sua avó faziam. Entram aqui comparações com as aulas de brigadeiro do novo ensino médio.

A questão é que Branco passa um bom tempo discutindo o caráter anticapitalista e decolonial de uma noção completamente diferente de trabalho permeando os povos tradicionais de Oaxaca. E a questão que se coloca para a tensão contemporânea mais básica das disputas curriculares no Brasil – educação para ensinar os fundamentos da ciência e da cultura ou preparação para os desafios da vida adulta – é que não é problema nenhum preparar para a vida adulta; o problema é 1) quando a vida adulta é uma merda e 2) quando a vida adulta é tão alienada que não se encontra oportunidade para mobilizar ciência e cultura para agência efetiva. O buraco na verdade é ainda mais embaixo, porque é desesperador mesmo defender a educação propedêutica dos moldes coloniais, já que mesmo o ensino básico do “acúmulo de conhecimento humano” (ai ai…) embute presunções e metodologias cujo currículo oculto é o ensino, como Branco assinala, da passividade/irresponsabilidade política mediante a inculcação da obediência e da hierarquia como enquadramentos fundamentais de qualquer organização efetiva.

Como já cravara Paul Goodman, o único método de ensino que funciona é construir uma sociedade em que valha a pena viver. Mas não só isso. A boa educação precisa partir de uma humildade mais profunda em que não há ensino-aprendizagem e sim, como coloca Branco usando a expressão de um entrevistado, o constante “aprender junto”, com o objetivo de instigar a agência política e educacional de cada indivíduo. Sem esse questionamento mais profundo, permaneceremos incapazes de visualizar o horizonte para além da prisão conceitual colonial.

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Em tempo: uma premissa de fundo que me irrita nos debates sobre o novo ensino médio ou sobre modelos de educação em geral é a da escola ou espaço educativo como redoma, como esfera de influência absoluta, que tanto pode ser separada do lado de fora quanto pode ser completamente efetiva em sua doutrinação. Desde que o mundo é mundo a doutrinação é ressentida e resistida – e as conexões entre o dentro e o fora tornam possível ver a farsa pelo que ela é. Não todo mundo, claro, mas o sucesso incidental de um modelo em produzir algumas pessoas que o defendem organicamente não permite dizer que isso uma mudança de modelo para outro vai necessariamente aumentar o domínio de seus correlatos ideológicos.

Em outras palavras, no novo ensino médio claramente se vê as pretensões de hegemonia ideológica neoliberal – mas se ela vai conseguir impor essa ideologia é uma história completamente diferente. Inclusive podemos esperar, sabendo quão bosta ela é, que em algum momento a reação será grande. Agora, ano passado, enfim, quando da implementação do novo ensino médio, já foi bastante grande. E aí?

E aí que ainda assim obviamente preferiríamos ter outro modelo de educação. Mas por quê? Se não é claro que sua implementação é necessariamente uma coisa boa para ele, por que nos preocupar com isso?

Acho que cheguei numa resposta que me agrada. Não é que o modelo vai ter sucesso em convencer ideologicamente as novas gerações. É que ele vai ter sucesso em deteriorar as relações dentro da comunidade escolar no momento em que convence – por vários mecanismos – os profissionais dentro dela a serem os policiais de sua implementação contra os estudantes. Por mais que os profissionais não gostem dela, a escolha de se tornarem cúmplices amargará essas relações, e será um fator a mais de tensão que corrói essa comunidade em vez de fortalecê-la em prol de projetos emancipatórios. E aí não é mais uma questão educacional ou curricular, mas política, econômica, e cultural; do poder centralizador do Estado de impor uma visão, dos interesses de classe inerentes aos interesses do Estado, e de todo um esquema de legitimação dessa realidade.

Sobre vítimas perfeitas e cultura sexual

Pode-se dizer que a condenação de Daniel Alves oferece um padrão procedimental ao qual outras cortes podem aspirar, melhorando a capacidade de alguns agentes estatais de lidar com estupros em benefício das vítimas. Por outro lado, incomoda tudo aquilo que pode caracterizá-la como exceção: seja a repercussão global do caso ou, assunto que discuto neste texto, a “perfeição” da vítima.

Muito foi dito sobre o fato de que, enquanto Alves mudou de versão 5 vezes, a vítima manteve-se absolutamente consistente em todos os seus relatos, fornecidos em diferentes contextos para diferentes agentes. Elogia-se as normativas que determinaram o que deveria ser feito já naquela noite e naquele local em que o estupro ocorreu. Inclusive veículos da mídia corporativa brasileira souberam falar sobre a reação imediata da vítima assim que ela saiu do banheiro (ela não mostrou-se abalada de pronto, somente alguns minutos depois, e isso não quer dizer nada). Mais que isso, sequer se conheceu (digamos, “publicamente”) a identidade da vítima, o que aparentemente evitou a “contaminação” do julgamento de um fato específico por julgamentos de outros aspectos de sua vida. A disponibilidade da vítima para exames físicos imediatos foi também crucial, uma vez que demonstrou evidências físicas de agressões, inclusive de natureza sexual.

No entanto, se mulheres há muito são desacreditadas em suas acusações a despeito da presença de muitas dessas características, o fato de que essa presença agora pode lhes favorecer ainda deixa no ar questões quanto ao que acontecerá – o que continuará acontecendo – quando estas faltam. Em outras palavras, quando a vítima é inconsistente em sua narrativa; quando demora a reagir e a denunciar; quando, por conta disso, resta menos ou nenhuma evidência física; quando não há gravações audiovisuais do local ou testemunhas. Ou, simplesmente, quando a vítima é conhecida e, como esta é humana, vêm à tona uma série de coisas que podem pesar contra si: idiossincrasias sociais ou sexuais, ou talvez momentos em que tenha mentido para alguém ou se comportado de forma reprovável.

Como anarquista, desejo que processos intercomunitários de mediação ocorram a partir de uma tal acusação. Mas, como abolicionista penal, também questiono a positividade de enjaular agressores. Esta é, inclusive, uma primeira “ironia” da forma como o Estado contemporâneo, o tal democrático de direito, lida com acusações de estupro. Como a pena é restritiva de liberdade, dura, longa, pesada – e tudo isso na teoria, sem nem considerar a realidade de qualquer prisão específica – insiste-se em não considerar ninguém criminalmente culpado até que a culpa esteja comprovada para além da dúvida razoável. Some-se a isso uma história patriarcal e a condenação de homens requer comprovação para além da menor das sombras de dúvida. Em contraste, se agressões levarem a consequências (restaurativas, transformativas) mas não à obliteração físico-social do agressor, pode ser muito mais fácil conseguir admissões, ou principalmente fazer com que comunidades sejam firmes no apoio a acusadores, pelo simples fato de que essa solidariedade trará mais consequências positivas – inclusive admissões das (já raras) acusações falsas – que negativas. Como disse Kropotkin, instituições anárquicas removem incentivos estruturais que intensificam nossa indisposição a sermos culpados por algo.

Não digo nada inédito ao comentar também o quanto o próprio processo de “vitimização” por si só demanda uma certa “perfeição” da vítima. Muito mais que um termo técnico do direito, sabemos que a vítima é um papel no teatro social. É difícil separar subjetivamente o “julgamento” enquanto análise de fatos (o que exatamente aconteceu) do “julgamento” enquanto análise de narrativas: “estão me dizendo que este é um agressor, e esta é uma vítima; isto é verossímil? Seus comportamentos, tanto quanto posso percebê-los neste contexto, suportam essa história, de acordo com as minhas construções simbólicas do que é um agressor, e do que é uma vítima?”. Por mais que reclamemos da forma como a direita enquadra toda reivindicação progressista enquanto “vitimização”, não é difícil compreender o que leva alguém a não querer que sua vida seja (re)definida a partir desse papel. Isso tem consequências tanto comportamentais – e se a pessoa não quiser passar os dias se lamuriando, em uma espécie de luto adiantado por seu próprio suicídio, até que a condenação oficial saia? – quanto psicológicas e sociais: não só ter sido uma vítima em um momento específico, mas ser uma vítima, é estar amarrado a uma subjetividade passiva; é ser moralmente definido enquanto objeto de outrem, ser potencialmente cada vez mais tratado como alguém sem voz, incapaz de tomar à frente de qualquer coisa; um coitado, traumatizado, danificado, que inspira mais caridade que respeito.

Mais que isso, a institucionalidade em torno da justiça fornecida pelo Estado enquanto serviço demanda a vítima perfeita no sentido de submissão a seus procedimentos. A vítima não é aquela que lidera sua comunidade em busca não só de restauração mas de transformação; é aquela que reclama a ação de outros – dos agentes estatais que lhe perscrutarão os interiores e tomarão decisões que devem ser reconhecidas por todos. Pode ser que o Estado tenha procedimentos “avançados” para lidar com vítimas “imperfeitas” no que tange ao seu histórico de vida, as circunstâncias do estupro, a demora na acusação, etc. Ele nunca poderá, porém, por sua própria posição arrogada em relação à adjudicação da questão, deixar de fazer com que a vítima precise incorporar o papel social de vítima nesse sentido mais estrutural. E por essa passividade, quando saber a “verdade” de uma situação e fazer “justiça” fica nas mãos de uma estrutura burocrática estrutural e historicamente associada a desequilíbrios de poder mil, teremos mais decepção que responsividade – ou, no mínimo dos mínimos, um processo em que essa relação entre autoridade e subordinado, entre soberano e humilde suplicante, é reafirmada. E aí podemos nos perguntar em que medida isso se relaciona com a continuidade de uma posição precária da parte das vítimas usuais – ex. mulheres (especialmente de minorias étnico-raciais), dissidentes sexuais, etc. – que não ajuda, a médio e longo prazo, a prevenir estupros.

Isto é, afinal, o grande objetivo, não? A prevenção de estupros. Já é difícil fazer com que seja assegurado a “vítimas imperfeitas” solidariedade suficiente para superar os danos e assumir agência em processos de justiça transformadora (causar mudanças positivas na vida de outras pessoas – evitando, por exemplo, novos estupros da parte do mesmo estuprador). Mas como fazer com que haja menos vítimas em primeiro lugar, e em particular menos dessas vítimas “imperfeitas”?

Eu já vou chegar em respostas melhores e mais, digamos, “clássicas”, mas queria passar primeiro por uma questão que não vejo ser tão discutida. É um assunto um tanto estranho, mas que levam a reflexões interessantes.

Algumas dessas “imperfeições” de “vítimas imperfeitas” têm a ver com as situações em que estupros ocorrem. As vítimas podem estar embriagadas, por exemplo, ou podem estar sozinhas com o estuprador, caso em que todo processo legal necessariamente derrete sob o imperativo ético de que não é possível escolher, para efeitos de punição criminal, entre a palavra de uma pessoa e a palavra de outra.

Fico pensando que é curioso como nossas conversas sobre como lidar com estupros nunca abordam diretamente esse tipo de circunstância. Isso é simplesmente naturalizado – no mínimo, é o “dado da realidade” que temos que presumir ao pensar nas soluções para o problema. A gigantesca maioria dos estupros ocorrem entre pessoas que se conhecem, que convivem; e, tirando os estupros coletivos, que imagino serem estatisticamente muito poucos a despeito da atenção que (com justiça) se lhes dá, em circunstâncias de seclusão. Estou falando de premissas básicas da nossa “cultura sexual”, digamos assim; dos ritos e das expectativas associadas à sexualidade. Básicas porque não me refiro aqui a “novidades contemporâneas” como o Tinder. Estou falando de coisas muito mais estruturantes, historicamente profundas – e por isso mesmo simples. A mais importante, talvez, a presunção de que a relação sexual “normal” é aquela que ocorre entre duas pessoas, digamos, “isoladas” de outras.

Entendo que existem no mínimo três razões interconectadas para não questionar esse aspecto fundamental da nossa cultura sexual. Em primeiro lugar, não é uma resposta adequada a curto prazo. Esses questionamentos podem levar a um movimento, digamos, contracultural – bem, não seria o primeiro – mas este demoraria para fazer efeito; enquanto isso, os problemas continuarão para indivíduos que, é preciso dizer, não podem ser culpados por querer exercer sua sexualidade dentro da cultura às quais foram integrados desde que nasceram. “Culpados”, aliás, leva imediatamente à segunda razão: o quanto isso se parece com (mas não é) culpabilizar vítimas (é possível imaginar um cruel “quem mandou ir pra cama com ele sozinha?”). E, em terceiro, a sugestão obviamente soa como o uso de um problema sério e legítimo para fins de “safadeza”.

Mas quais as razões para pensarmos criticamente acerca disso? Ora, apliquemos à sexualidade uma análise social de aspecto mais genérico. Malatesta certa vez disse que “o que de fato rouba a liberdade e torna a agência impossível é o isolamento que deixa uma pessoa impotente”. Isso se aplica, para um simples exemplo, a como empresas odeiam sindicatos, já que reclamações individuais podem ser processadas (ou simplesmente ignoradas, claro) de forma muito mais fácil e benéfica para patrões e acionistas do que aquelas coletivamente (ou até publicamente) compartilhadas, pensadas, e adotadas como mote para disputas abertas. Se você está “sozinho”, tende a ter menos recursos para reagir à opressão: recursos materiais, sociais, até mesmo psicológicos. Afinal, é corriqueiro questionarmos nossa própria razoabilidade quando não sabemos que nossas insatisfações são compartilhadas por outros – “Será que estou errado? Será que estou exagerando? Será que estou maluco? Sou o único que pensa assim?”.

É curioso lembrar, por exemplo, de um tropo clássico de histórias, digamos, de “iniciação na vida romântica”: a pessoa insegura que fica frustrada por nunca encontrar oportunidade para conversar com o objeto de suas afeições, pois este nunca está sozinho. Este tropo, não fujamos dos fatos, é classicamente heteronormativo – na maioria das vezes estamos falando de meninos reclamando que meninas “andam sempre em bando, até para ir ao banheiro”. Como é curioso que, tivesse o menino típico seus desejos atendidos, a situação ficaria mais conveniente para ele, mas não necessariamente para ela. A questão é: por que cada menina entende que deve deixar “o bando”, digamos, para trás, embrenhando-se sozinha em algum lugar recluso com outro indivíduo, quando se trata do ato sexual? Numa circunstância mais anárquica, com mais igualdade de gênero, por que cada parceiro, independente de gênero – especialmente em atos sem comprometimento de maior prazo (como com o Tinder), ou em contextos marcados por insegurança e maior probabilidade de prejudicar outrem por ignorância ou inexperiência – por que cada parceiro não entenderia ser mais apropriado ter alguém de confiança junto, na situação, para cuidar do que acontece “entre quatro paredes”?

Novamente, é fácil descartar essa ideia sob a justificativa de que ela é mero fruto de alguma lascívia descarada da parte de quem a propõe. Mas há objeções melhores a essa ideia. Pode-se dizer que isso colocaria as pessoas envolvidas diretamente no ato sexual em maior “risco social”, pois seriam julgados por suas “performances”, principalmente à boca pequena. Em resposta, poder-se-ia dizer que isso já acontece o tempo todo, exceto que com menos testemunhas para corroborar – ou contradizer, inclusive – tais fofocas; assim, em vez de mais risco, ter-se-ia na verdade maiores chances de minimizá-lo.

Pode-se dizer que a proposta, ao basicamente normalizar o voyeurismo, poderia provocar mais inibição e insegurança, reprimindo a experimentação segura da autenticidade individual. Por um lado, isso ignora que tal cultura jamais poderia ser erigida com base na relação que a maioria das pessoas atualmente têm com seus corpos e suas sexualidades, ao menos no Brasil; as futuras gerações precisariam se acostumar a tratar o sexo com uma naturalidade ainda inimaginável. Mas por outro lado, seria justo argumentar que o ato sexual perderia uma característica importante: justamente a experiência de entregar-se a uma profunda vulnerabilidade diante de outro indivíduo, (ao menos idealmente) igualmente vulnerável. De fato, sentir a necessidade de ter outras pessoas por perto nesse momento seria uma recusa a essa entrega, e portanto um bloqueio à construção de uma confiança genuína, profunda, íntima, que sabemos que pode existir em relações afetivas saudáveis.

A melhor réplica a isso pode ser que, então, o “acompanhamento seguro” de atos sexuais poderia se limitar a momentos em que os indivíduos envolvidos não têm ainda (ou não pretendem ter) uma relação sólida entre si, ou são (sentem-se) ainda inexperientes demais para se entregar em completa vulnerabilidade. Na verdade, colocando as coisas dessa forma, é estranho como entendemos que não é bom deixar alguém fazer sozinho pela primeira vez a grande maioria das coisas “perigosas” da vida. Ninguém faz bungee jumping, escala montanhas, ou voa de asa delta pela primeira vez sozinho. Ninguém aprende a dirigir sozinho, e no Brasil há uma exigência legal de que se aprenda em instituições específicas, com carros adaptados com freios para os instrutores. Mas quando se trata de sexo, achamos normal que duas pessoas igualmente inexperientes aprendam sozinhas, ou aprendam com os piores manuais possíveis (manuais em geral já são pouco eficazes, mas a pornografia é especialmente ruim). Ou, então, que uma pessoa inexperiente se torne vulnerável ao transar pela primeira vez com alguém mais experiente, colocando-se portanto em vias de ser muito mais facilmente “manipulada”, no sentido abusivo do termo. Há atividades, inclusive, que nunca se faz sozinho mesmo que a pessoa já seja experiente – pilotos de aviação comercial, por exemplo, sempre têm copilotos; certamente há cirurgias que poderiam ser feitas por uma única médica mas que se beneficiam da presença de vários profissionais. Se pensarmos que o sexo sempre terá um grau considerável de perigo, e que este é inerente à relação entre duas pessoas, por que não torná-lo sempre uma coisa que exige um cuidado mais amplo, isto é, envolvendo mais que as duas pessoas cuja interação gera o perigo?

Uma tréplica é que essa proposta implica um retorno à tutela de sexualidades, como nos “anos de antigamente” em que as pessoas “faziam a corte” acompanhadas de seus pais e basicamente não deveriam fazer nada de particularmente picante antes do casamento (e, claro, muitas vezes nem depois, com o homem procurando “emoção” fora de casa, etc.). Uma possível resposta é que é claro que uma proposta progressista não desejaria reavivar esse cenário, mas que o progressismo não se confunde com individualismo. Propor que as pessoas normalizem fazer coisas juntas, de fato fazer todo tipo de coisa juntas – em, bem, “grupos de afinidade” – não seria uma nova máscara do patriarcado. Isso, claro, se as pessoas estiverem juntas justamente para fornecer apoio para experimentações, para ousadias, e não para policiar a segurança do status quo. Tal policiamento tornaria a amizade em questão “chata”, e aí cada indivíduo escolheria outra pessoa, outro grupo, para ajudá-lo a se aventurar. E, claro, subjacente à possibilidade de rescindir uma tal relação de cuidado está a possibilidade de não escolher ninguém e simplesmente encarar as situações sozinho. A questão é que uma mudança cultural significaria encarar tal escolha pela solidão como algo “esquisito”, acima de tudo “não-recomendável”, ainda que não necessariamente ilegal ou motivo para ostracismos.

Em muitas menos palavras, pode-se colocar a questão da seguinte forma: assim como o isolamento social em geral de mulheres é uma prática emblemática do patriarcado, o isolamento de um casal durante o ato sexual pode ser entendido como uma prática cultural que, embora obviamente não se resuma a isso, é conveniente para abusadores, e portanto perigosa em contextos tão marcados por inúmeras desigualdades sociais que podem incidir sobre violências sexuais, seja questões de gênero, raça, classe, deficiências, neurotipicidade, etc.

Um argumento semelhante pode ser feito à própria questão do álcool, pois em uma sociedade cujas pessoas têm em geral um conhecimento tão precário sobre práticas sexuais respeitosas e sadias, muitos, por exemplo, podem escolher se embriagar para transar, algo que legitimamente desejam, para que consigam suportar o fato de que a transa não será muito boa. Assim, não é que qualquer pessoa seja culpada por um estupro que aconteça enquanto estiver bêbada, mas podemos pensar que nossas práticas culturais relativas ao sexo meio que incentivam o uso de álcool para que o sexo ocorra, o que é conveniente para abusadores no momento em que reduz a capacidade de se defender e gera “vítimas imperfeitas” (com memórias incompletas ou incoerentes sobre o que ocorreu, por exemplo). Isso, claro, ocorre em conjunção com a outra prática cultural – a transa isolada entre duas pessoas – de modo que uma forma de subverter isso culturalmente seria consumir álcool somente acompanhado de outra pessoa, um acompanhamento que não pode terminar até o retorno da sobriedade, mesmo que uma das pessoas desmaie, mesmo que uma das pessoas queira ficar sozinha, mesmo se uma das pessoas quiser transar com outrem.

Pensando bem, isso não seria muito diferente (em espécie, ainda que seja radicalmente diferente em grau) do pacto para eleger um “motorista da rodada”, membro do grupo de beberrões que não bebe para poder dirigir.  Seria simplesmente uma repactuação do ato social de se embriagar, a ideia de que deve haver uma parceria de cuidado para este momento, que no momento fica aquém de questões sexuais mas poderia abrangê-las.

E ao fazê-lo, inclusive, levantaria questões interessantes. Dizemos, por exemplo – entre progressistas, claro – que uma pessoa bêbada não pode fornecer consentimento, mesmo que esteja consciente. Mas por quê? Este é o caso porque consideramos que a pessoa não está pensando direito? Que as coisas que decide fazer não seriam uma expressão verdadeira do seu eu? Isso presume que a bebida alcoólica altera substancialmente a identidade de alguém – algo que já ouvi dizer, de pessoas que bebem, não ser bem o caso: “as pessoas acham que a gente vira outra pessoa quando bebe”, uma amiga uma vez me disse, “mas a gente só fica mais intensamente o que já é”. Segundo essa lógica, se alguém não transaria num certo momento se estivesse sóbrio, não quer dizer que sua decisão de transar (tomada enquanto bêbado) não represente um desejo real, nem que satisfazer esse desejo seja um desrespeito à sua autonomia pessoal. Seria então mais razoável dizer que o problema do consentimento alcoolizado está no fato de que a pessoa pode não se lembrar de ter consentido. Isso significa que, para o resto dos seus dias, no futuro projetado para além daquele momento de estupor, ela não terá o registro subjetivo, a certeza fundamentada na memória, de que ela agiu como queria, de que a outra pessoa não a enganou, não “tirou vantagem” dela, não desrespeitou sua vontade, não ignorou sinais contraditórios – ela não terá certeza de que a outra pessoa não a agrediu, efetivamente; que não traiu sua confiança e pisou em sua humanidade, o que perturba mesmo na forma de mera dúvida. Porém, se houver outra pessoa de confiança no quarto no momento em que o consentimento alcoolizado é conferido, não seria esse consentimento menos eticamente comprometido? Afinal, a outra pessoa estaria ali para garantir que ao menos seu eu alcoolizado sabia o que queria e teve sua autonomia respeitada. O “eu sóbrio” pode até se arrepender, mas arrependimento não implica violência; é apenas um desconforto – a discrepância entre seus desejos em diferentes estados de consciência – que a pessoa terá que processar sem poder exigir que a pessoa com quem transou assuma um papel de agressora em sua vida.

No entanto, o melhor argumento contra essa ideia (de que mudanças em certas práticas culturais sexuais básicas ajudaria a prevenir estupros) é o de que isso não parece realmente atuar sobre a intenção de cometer estupros. Pelo contrário: mesmo que isso seja sobre expectativas compartilhadas, e não comportamentos individuais – e portanto não se preste à culpabilização – isso ainda coloca sobre os ombros de vítimas potenciais a responsabilidade por evitar a vitimização.

É claro que isso poderia ser lido de outra forma: seria muito esquisito entender a ação direta dos de baixo contra os de cima (em termos de luta anticapitalista, antiautoritária, etc) como “colocar a responsabilidade por evitar a opressão nos ombros dos oprimidos”. Pensando melhor, esse argumento de fato existe: já ouvi pessoas dizerem que ações diretas de solidariedade com o objetivo de, p. ex. financiar autonomamente projetos dentro de escolas públicas, são ruins porque naturalizam o fato de que esse dinheiro deveria estar vindo do Estado. A briga, segundo essas pessoas, é para que esse dinheiro venha “de onde deveria vir” (especialmente porque já pagamos impostos demais). Ora, são os oprimidos que querem mudar as coisas; para anarquistas, esperar até que os opressores façam algo – mesmo que a espera seja “ativa”, com reclamação, cobrança, protesto – é contraproducente, inclusive porque reforça a hierarquia e a exclusividade de iniciativas que não nos educa, na prática do dia a dia, a sermos uma força ativa em nossas vidas. Se formos continuar acreditando que a única forma de combater o estupro é esperar que estupradores em potencial não realizem seu potencial, estamos mantendo as vítimas em potencial numa posição de passividade; estamos, de fato, adiantando sua “vitimicidade” antes mesmo de elas “realizarem” seu potencial de vítima. Em outras palavras, se há algo que elas podem fazer, por que não fazê-lo?

Mas há uma forma mais contundente de frasear essa objeção. A questão não é quem deve ser o agente da mudança progressista: a questão é que transformar nossas práticas por medo seria, em certo sentido, ceder à ameaça. Ou seja, se devemos extirpar nossos desejos por certas coisas – como ter uma experiência íntima de fato íntima, com um único outro indivíduo – porque existe quem nos ameace quando realizamos esse desejo, quão diferente isso é de mulheres que deixam de andar sozinhas à noite em lugares ermos porque sabem que são “vítimas em potencial” por fazê-lo? Ainda que os argumentos em favor de uma cultura sexual mais “coletivista” (por falta de termo melhor; alternativas incluem “não-solitária” ou “socialmente profilática”) fossem persuasivos, talvez seja mais utópico (no sentido de desejável) lutar por transformações sociais em que não houvesse motivos para desconfiar tanto assim que a intimidade possa ser convertida em abuso.

Mas isto é sequer possível? Será que não há algo de fundamental na intimidade que a transforme numa dessas contradições inescapáveis da vida? Ou seja, ela ser algo que desesperadamente queremos, que nos faz muito bem quando é boa, mas justamente por isso pode se converter no pior dos abusos, um potencial de dano que não pode ser prevenido sem impossibilitar, ao mesmo tempo, alcançar suas mais nobres alturas.

Uma crítica a essa forma de ver as coisas é uma resposta clássica à questão do abuso: a intimidade corre mais risco de se converter em abuso quando há outras desigualdades sociais, outras opressões estruturais, que invadem e corrompem esse núcleo da experiência humana. Em outras palavras, ninguém veria a intimidade como oportunidade para opressão se não houvessem motivos nem apoios externos para tanto.

Explico melhor: segundo esse argumento, seria muito menos corriqueiro que a intimidade se transformasse em abuso se fazê-lo não resultasse no reforço de certas vantagens materiais ou sociais externas à intimidade – se homens não quisessem ser brutos para “pagar de machões” para outros homens (desigualdade relativas a papeis de gênero e heteronormatividade), se não quisessem tratar mulheres como seres inferiores para reforçar um patriarcado que lhes reserva vantagens no sistema capitalista, se a desumanização de certas minorias étnico-raciais, de pessoas trans, ou pessoas com deficiência, por exemplo, não transformasse certos corpos em corpos com os quais, por exemplo, homens brancos cis sentem que podem “experimentar” fantasias de violência impunemente, etc. Em outras palavras, sem opressões estruturais que “premiam” certos comportamentos em que se busca submeter outras pessoas (o estupro como arma de submissão), e que tornam as palavras e a integridade física dessas certas pessoas menos respeitadas – que de fato as deixam com menos armas para combater esses abusos – teríamos menos abusos.

Mas essa resposta parece levar muito pouco a sério o impacto, sobre essas próprias desigualdades, de questões culturais relativas à organização da intimidade. Será mesmo que uma ampla e interseccional igualdade de salários e de propriedades (a curto prazo) ou a comunização dos meios de produção (a longo prazo) daria um golpe fatal nos esquemas cognitivos e narrativos que produzem “vítimas imperfeitas”? Por exemplo: será que ninguém mais, tendo sido agredido durante um ato sexual, se sentiria envergonhado por ter, digamos, “confiado na pessoa errada”? Apoios comunitários seriam assim tão fortes, e a participação integral da pessoa em diversas comunidades tão equânime e consequente, que ela realmente conseguiria mover outras pessoas e comunidades (as envolvidas com o agressor) a empreenderem esforços por compensações e transformações, mesmo sem conseguir provar decisivamente o que aconteceu, tendo revelado o ocorrido muito tempo depois?

Podemos talvez pensar que num futuro mais anárquico – e especialmente “pós-escassez” – a questão passe menos pelo crivo da “prova” e mais pelo crivo da manutenção de boas relações, algo, aliás, que podemos encontrar em inúmeros procedimentos de mediação não-ocidentais. Em outras palavras, simplesmente não é de bom tom ofender as pessoas – que se imiscuem conosco em inúmeras outras relações e empreitadas – chamando-as de mentirosas sem evidências claras da mentira (mesmo que tampouco haja evidências inequívocas da ocorrência). Se uma pessoa diz que foi agredida, mesmo que ela esteja mentindo, ela está precisando de alguma coisa – tudo bem, é uma grande sacanagem mentir sobre isso, mas pra chegar ao ponto de fazer isso a pessoa está, digamos, doente; ela precisa de alguma ajuda. Como fazer para organizar essa ajuda sem legitimar uma acusação falsa, reintegrando as pessoas em vez de expulsando-as e condenando-as (e as próprias comunidades) a uma escalada dos problemas em vez de sua resolução, lidando ainda com os (justíssimos) ressentimentos e raivas que um processo desse causaria… Isso tudo é um desafio que não só não pode ser resolvido a priori, com fórmulas independentes de contexto, como também não pode ser visto como algo menor no desafio de manter anarquias enquanto formas políticas duradouras de relação.

Dito de outra forma, a intimidade – ou talvez nossa cultura sexual, a nossa organização pragmática da intimidade – tende a criar situações de “impossibilidade de saber o que realmente aconteceu” que nos deixam extremamente desconfortáveis. E aqui chegamos a uma questão fundamental. Tendo em vista que essas situações vão ainda acontecer quanto a outras coisas – que não têm nada a ver com sexo – como deve ser nossa reação a isso? “Nossa” reação porque reação social: podemos, em outras palavras, julgar nossas instituições pela forma como abordam essa questão e conseguem produzir felicidade ao processá-las adequadamente. Como, então, devemos nos organizar em relação a essas situações? Como nossas instituições devem processá-las? Em geral, há duas abordagens possíveis: ou nos organizamos para sistematicamente tentar diminuir a quantidade de situações em que não sabemos bem o que aconteceu – não sabemos os “fatos duros” da questão; ou, simplesmente aceitamos que a vida é assim e não fazemos nada para diminuir a quantidade dessas circunstâncias (ainda que ainda precisemos de alguma maneira de lidar com elas quando surgem).

Se pensarmos, talvez de forma iluminista, “prometeica”, que nós conseguiremos diminuir a quantidade de acusações de agressão em que não sabemos dos fatos, quão desejável isto é? Afinal de contas, pode-se dizer que é isso que Estados dizem que tentam fazer quando assumem a responsabilidade por investigar acusações de estupros. Enquanto indivíduos, não podemos ser imparciais; não olhamos para o mundo pelos olhos de um deus onipresente. Mas gigantescas burocracias de investigação com poderes soberanos são criadas e mantidas para criar tais olhos divinos, embora apenas a posteriori: é preciso poder coletar provas de todo tipo e investigar até poder descobrir o que aconteceu. Mas, claro, legitimar esse poder soberano tem um custo – para anarquistas, uma gigantesca perda de liberdade inerente ao desequilíbrio de poder que a soberania estatal representa. Conseguiríamos nós, autonomamente, de forma libertária, diminuir significativamente o número de situações em que não se sabe o que aconteceu entre quatro paredes, mas sem recurso à soberania estatal? Daí a discussão acima: um modo de fazer isso seria mantendo uma cultura sexual em que sempre “há testemunhas” de atos sexuais, ou pelo menos para aqueles que ocorrem entre pessoas sem uma intimidade sólida já estabelecida. Ainda que isso seja possível, ainda que algum antropólogo diga inclusive que isso já existe ou existiu em algum lugar, inclusive… Isso lá valeria a pena?

De qualquer forma, qualquer separação rígida entre materialidade e cultura está fadada a problemas tanto analíticos quanto políticos. O progresso material em direção ao igualitarismo de recursos, de meios de produção, etc. que anarquistas desejam certamente virá acompanhada (sem nenhum julgamento de causalidade aqui) de transformações culturais, e muito provavelmente de transformações na nossa cultura sexual (afinal, falei bastante de patriarcado mas pode-se dizer que este texto é um comentário sobre a sexualidade burguesa). Pode ser que uma cultura sexual em que sempre se exige a participação de múltiplos corpos e olhares (múltiplos no sentido de mais que dois) não seja o melhor caminho. Eu sequer discuti neste texto questões como poliamor/não-monogamia ou anarquia relacional, que talvez respondam melhor a algumas dessas inquietações. Ainda assim, resta a reflexão de que pode ser frutífero pensar as culturas de sexualidade que possam corresponder a uma materialidade mais anárquica.

Marx, o político

Eu tive um professor na UFSC, Jean Castro, que frequentemente comentava como Marx era um pensador bem menos moralista do que a maioria das pessoas o presumia. Por esse prisma, ele não teria sido tão intelectualmente movido por compaixão em relação à situação da classe trabalhadora, por um senso de que a situação dela era imoral, mas por uma análise mais fria de que o capitalismo ruiria sob o peso do proletariado.

Eu acho essa análise particularmente interessante porque colabora com a retirada de Marx do pedestal dos profetas no qual ele é frequentemente colocado. Isso na verdade o aproxima de pessoas como os estrategistas políticos dos partidos contemporâneos, que, no contexto da tarefa de “chegar ao poder” – de acumular poder – estudam, hoje, questões como “como conquistar o público evangélico”, ou “como captar o eleitorado feminino”. No próprio 18 de Brumário, em que ele aprofunda sua análise de classes (que de outro modo é apenas um rascunho), ele basicamente mostra como o Bonaparte alavancou uma determinada classe para chegar ao poder; suas próprias análises basicamente implicariam que, conforme os tempos mudam, será cada vez mais importante apelar para outra “classe” – ora, podemos até imaginar que ele teria usado o termo como hoje se falaria de “grupos”, “segmentos”, etc., ainda que o critério de classificação dele seja particularmente bom. O objetivo da acumulação de poder pode ser diferente para cada ator que contrata cada estrategista (com Marx no caso sendo ambos contratante e contratado nesse cenário), e isso certamente afeta a análise, mas o propósito da análise é semelhante. Pode-se pensar, por exemplo, que a tese do estrategista Marx sobre o proletariado industrial como público-alvo chave ou falhou ou simplesmente não é mais verdadeira; que é imprescindível, hoje, enfocar o precariado ou explorar clivagens raciais.

Que Marx tenha sido um revolucionário não invalidaria essa perspectiva. A despeito de se ou quando ou com que intensidade tenha se convertido em social-democrata, em algum momento apoiou a revolução da classe trabalhadora como um todo num sentido socialista do termo. Mas a completa legitimação de governos representativos burgueses não ocorreria até o pós-segunda guerra; pode-se dizer que o terreno político em que o estrategista se movia era outro, com golpes de estado e guerras civis no menu do dia o tempo inteiro. O próprio movimento do marxismo em direção à social-democracia é justamente a atualização da análise conforme a topologia foi mudando: o proletariado industrial até pode ser a chave, mas a porta agora tem duas fechaduras, e só abre junto com eleições.

Analisar Marx como uma amálgama de político profissional e do estrategista que hoje em dia é um profissional contratado pelo primeiro é uma forma de reenquadrar a contribuição do marxismo para o socialismo. Ele não é um “irmão”, com quem brigamos mas temos afinidades fundamentais, mas sim uma espécie de chefe paternalista. Além, claro, de tornar muito mais natural e óbvia a acusação de eurocentrismo que pesa sobre seu arcabouço teórico. Como teórico aclamado das leis das Sociedades Humanas, isso causa polêmica – mas se ele é simplesmente um político & publicitário, é muito normal. Afinal, ninguém espera que Lula vença uma eleição na Índia, ou que João Santana rode uma campanha na Islândia. Marx queria ganhar poder no lugar que conhecia, onde nasceu e foi criado, e é claro que suas análises políticas serviam (quando muito) à sua região. Isso não significa que sua análise do capitalismo esteja errada, nem que seu eurocentrismo a torne inútil – afinal, de fato uma dominação global deste sistema econômico, de modo que, por conta disso, mesmo que ela seja eurocêntrica ela ainda é fértil. Não obstante, em relação ao que se deveria fazer uma vez que se compreenda a situação, ele se torna muito pouco distinguível de um político profissional.

Não estou dizendo que ele seria um fisiocrata, um membro do Centrão; ele certamente era idealista. A liberdade marxista consiste na superação da imposição da natureza (entendida aqui como arbitrariedade, aleatoriedade; o oposto do controle racional humano); isso em nada contradiz toda a ideologia eurocentrada de progresso que bem conhecemos. O futuro, dizia, se parece mesmo com uma grande fábrica; quem falou em desaparecimento do Estado no futuro comunista foram outros – Marx mesmo via no máximo o fazia desaparecer retoricamente, no sentido de que uma vez que o Estado fosse usado legitimamente pela classe trabalhadora (esta desaparecendo também enquanto classe), ele seria completamente absorvido no âmbito da sociedade e deixaria de ser uma força opressiva sobre ela. Mas isto não quer dizer a desaparição da burocracia, das relações hierárquicas que conformam o Estado como instituições de governo – ele deixar de ser opressivo é basicamente uma interpretação de como as pessoas se relacionariam com ele, não uma observação sobre diferentes formas de sociabilidade e organização da tomada de decisões.

Sim, ele falou sobre o futuro dever ser obra dos próprios trabalhadores. Mas o que isso exatamente significa? Lembremos que o primeiro congresso da AIT deliberou sobre a presença de “intelectuais” na organização; pra muitos delegados só deveria estar ali quem estava de fato trampando em alguma fábrica ou com algum ofício. Se esta resolução tivesse sido aprovada Marx acabaria tendo que sair. Há várias formas de dizer que um movimento coletivo foi “obra dos trabalhadores”: várias desculpas pra fazer com que alguns indivíduos os representem. Pode-se até pensar na crítica que Bakunin fez sobre, sim, um trabalhador pode ascender ao poder, mas aí deixará de ser trabalhador, sim? Um antídoto antecipado ao veneno gramsciano do intelectual orgânico.

Estou dizendo que Marx poderia muito bem ser compreendido como um político profissional, um estrategista, um publicitário, ainda que idealista, cheio das melhores intenções – alguém que buscou a ciência de quem governa, como colocou Malatesta; a busca por aliados entre o povo contra as classes, e entre as classes contra as massas. Estou dizendo isso aqui, e não num periódico acadêmico, porque não estou com saco pra fundamentar com citações paginadas tudo que digo, nem de pesquisar quem já fez esse argumento antes, já que não é possível que eu tenha sido o primeiro – mas certamente é preciso observar que não o faço para desqualificar a esquerda em geral. Muito pelo contrário: estou dizendo isso porque, como anarquistas, temos sempre os dois pés atrás em termos de reforçar projetos e iniciativas que acabem servindo de trampolim para políticos profissionais. Nos guardamos contra isso o tempo todo; alertamos as pessoas quanto a isso. Acho que valeria a pena nos guardarmos também contra a possibilidade de sustentarmos o culto à personalidade de Marx, ainda que os efeitos não sejam os mesmos, estando ele morto há muito tempo. Ocorre que está muito vivo em muitas iniciativas com as quais podemos colaborar, mas a colaboração pode ser esperta em termos de não reforçar uma imagem que ele não merece, assim como não quisemos reforçar a imagem do Getúlio pai dos pobres, ou do Lula, etc. A ideia do grande teórico das ciências sociais que dá a linha de parte substancial de toda análise socialista – do vocabulário mais fundamental que usamos, muitas vezes – pode ser desconstruída à esquerda.

References for “Mechanical failures and anarchist freedom”

In this essay, I talk about metaphors for freedom among anarchists. I particularly discuss a metaphor concerning failure in complex systems, pointing out that anarchists relate freedom to the deep transformation of social patterns. Here are the references I cited in this essay:

  • BENALLY, Klee. Introduction: Indigenous Anarchism is a collect call. In: BLACK SEED (Ed.). Not on Any Map: Indigenous Anarchy in an Anti-political World. Writings from Black Seed, a journal of green and indigenous anarchy, and beyond. Berkeley: Pistols Drawn, 2021. P. i–xiii.
  • BOOKCHIN, Murray. The Ecology of Freedom: the emergence and dissolution of hierarchy. Palo Alto: Cheshire Books, 1982.
  • DAY-WOODS, Shaun. Dancing & Digging: Proverbs on Freedom & Nature. Night Forest Press, 2021.
    • I have reviewed this book here.
  • DIAS, Álvaro Machado. Por que algoritmos decisórios falham. Folha de São Paulo, 2023. Available from: https://tinyurl.com/22cyarw7. Visited on: 4 Nov. 2023.
  • FERGUSON, Kathy E. The Feminist Case Against Bureaucracy. Philadelphia: Temple University Press, 1984.
  • GELDERLOOS, Peter. Worshipping power: an anarchist view of early state formation. Chico: AK Press, 2016.
  • [on Guy Debord:] GRAEBER, David. Direct Action: An Ethnography. Edinburgh: AK Press, 2009.
  • GRAEBER, David. The utopia of rules: on technology, stupidity, and the secret joys of bureaucracy. London: Melville House, 2015.
  • [on Diego de Santillán:] GRUPO DE ESTUDIOS JOSÉ DOMINGO GÓMEZ ROJAS. 101 definiciones del anarquismo. 2nd ed. Santiago: Editorial Eleuterio, 2017.
  • HECKERT, J. Anarchy without Opposition. In: DARING, C. B. et al. (Eds.). Queering anarchism: addressing and undressing power and desire. Edinburgh: AK Press, 2012. p. 50–59.
  • KINNA, Ruth. Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016.
  • LAURSEN, Eric. The Operating System: An Anarchist Theory of the Modern State. Chico: AK Press, 2021.
  • MORGAN, Richard. The Making of Kropotkin’s Anarchist Thought: Disease, Degeneration, Health and The Bio-Political Dimension. Milton: Routledge, 2021.
  • [on Hobbes:] NEOCLEOUS, Mark. The Monster and the Police: Dexter to Hobbes. In: CORREIA, David; WALL, Tyler (Eds.). Violent Order: Essays on the Nature of Police. Chicago: Haymarket Books, 2021. P. 141–158.
  • PELTON, Josh. Engineering Wisdom: Tolerance & Failing Gracefully. 2018. Available from: https://tinyurl.com/2s3pcvjv. Visited on: 31 Oct. 2023.
  • PELTON, Josh. How Complex Systems Fail. 2021a. Available from: https://tinyurl.com/4vttpc55. Visited on: 13 May 2022.
  • PELTON, Josh. Social Rationality. 2021b. Available from: https://tinyurl.com/ym8nszsr. Visited on: 18 July 2022.
  • RECLUS, Élisée. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. Translation by Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Imaginário, 2002[1898].
    • There’s an English version here, but it’s just excerpts, the one I’m referencing is much longer.
  • ROBINSON, Cedric J. The Terms of Order: Political Science and the Myth of Leadership. Albany: SUNY Press, 1980.
  • [on Zapatistas:] SHENKER, Sarah Dee. Towards a world in which many worlds fit?: Zapatista autonomous education as an alternative means of development. International Journal of Educational Development, v. 32, n. 3, p. 432–443, 2012.
  • TRESCH, John. The Romantic Machine. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.
  • VARELA, Francisco. Reflections On The Chilean Civil War. In: BROWN JR., God. Edmund G. et al. (Eds.). Lindisfarne Letter 8: The Cultural Contradictions of Power. Crestone: the Lindisfarne Association, 1979. P. 13–19.
  • WOODS, David D. et al. Behind Human Error: Cognitive Systems, Computers, and Hindsight. Columbus: The Ohio State University, 1994.
  • ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. London: Profile Books, 2019.

Transcript:

Anarchists often employ metaphorical imagery when discussing liberty, but it is often hard to tell when metaphor ends and literal allusion begins. For example, David Graeber conceived of freedom as a tension between a “play” principle in human activity and the rule-bound games we generate when we play. Is this a metaphor, or are we literally to conceive of all human institutions, like the family, capitalism, or the state, as akin to football or poker? What about Murray Bookchin’s “ecology of freedom”, seeing as we are, indeed, animals?

Some turn to zeitgeist-capturing technology to make a point: for Guy Debord, writing during the rise of the television in 1968-ish France, people were becoming an audience to their own lives; for Eric Laursen, the State is like a computer’s operating system. Others prefer physical terms, in different levels of abstraction. Heckert wrote that to hold tightly — to shame, resentment, or any emotion or any story of how the world really is — is to be held tightly, and this is not freedom; to hold gently is to be held gently, which is freedom. Kropotkin, as Richard Morgan writes, employed images and tropes from bio-political science but took them literally and made them real in a radical political framework.

Élisée Reclus once warned us that proverbial formulas (often metaphorical) are dangerous, as one happily acquires the habit of repeating them like a machine, as if to avoid reflection. This message also contains a metaphor about machines. I think this is actually a very useful figure of speech to discuss what liberty means within anarchism. This is for lots of reasons. It symbolises — as noted by Reclus — unconsciousness even amidst action. Also, anarchism took shape as the industrial revolution took flight, the latter demanding, as Cedric Robinson wrote, a kind of submission which invaded every recess of the worker’s existence. It therefore references the anarchist criticism of humans literally made to perform inhuman rhythms.

In this essay I want to discuss anarchist freedom by digging a little deeper into a particular metaphor using the figure of the machine: the notion of “failure in complex systems”, an idea from the field of engineering, at least as I read it through the work of David Woods and colleagues. I am also going to be quoting Josh Pelton a lot: he’s an engineer with a penchant for philosophy and sociology and a marvellous Youtube channel called Thunk, which I highly recommend.

When operating large-scale machinery, such as aeroplanes or nuclear reactors, people tend to notice and fix what looks broken, but if everything is shut down every time a light bulb needs changing, nothing is ever going to get done. Such systems are thus usually designed with enough margins for errors that allow them to keep running in spite of issues; repairs happen when they’re necessary or when there’s a convenient opportunity. Complex systems, then, run in a constant state of slight disrepair.

Sometimes, however, a combination of things left unfixed leads to catastrophic failure, hurting people. When this happens, it is common to search for a single cause that explains the disaster, especially if it allows for attribution of guilt. Quote-unquote “Human error” is quickly found, for even if the cause was mechanical, someone may, for example, have missed evidence that something was wrong, or not have planned adequately for it from the beginning. To avoid future issues, the culprits might be exiled, punished, or simply retrained.

However, Woods and colleagues explain that there is no such thing as human error. Different knowledge of events and context, or different goals, lead to different judgments of people’s performances. As Pelton summarises, human error is above all an artefact of hindsight bias, which recontextualises something as if it obviously contributed to the disaster in a way that anyone should have seen coming. In other words, there will always be ways to explain failure through negligence or incompetence, just because in a complex system there’s always something going wrong. Erroneous actions should only be the starting point for an investigation, but one that inquires the system itself. Human error, Woods and colleagues write, is not some deficiency or flaw or weakness that resides inside people, being rather a result of their interaction with the system.

On the other hand, there is a counterproductive way to focus on the system. One may, Woods and colleagues write, restrict the range of human activity, perhaps by policing practitioners so they more closely follow the rules, or by introducing more automation to quote-unquote “eliminate people” from the process altogether. But, as Pelton notes, adding more moving parts to take humans out of the loop mixes in new variables that might fail, and therefore tends to produce even more errors — and crucially, more judgments of human error. Emphasis on increasing efficiency generates more pressure on operators, write Woods and colleagues, and additional technology creates new burdens and complexities for already beleaguered practitioners, leading to new modes of failure.

How can we reliably avert disaster, then? Well, failures must be seen as opportunities to learn and change. Instead of using investigations to find out how others failed (presumably to punish them), information flow must be rewarded so that better decisions can be made and issues are less likely to be overlooked. Pelton summarises the best way to prevent critical failures in complex machines as simply… Empowering people to spot and fix problems as they crop up, making the system more adaptive and robust. He also notes that repair is messy, idiosyncratic, unpredictable, and unlike assembly lines, not conducive to automation or rote procedure; it is artisanal work, requiring artistry, problem-solving, expertise, as well as the time needed to experiment. Hence empowering autonomous, decentralised repair includes training and experience, but also providing ample resources, as well as understanding what pressures we’re applying to individuals that will influence how they make everyday decisions about safety.

If the metaphor isn’t obvious yet, I’m going to spell it out. Anarchists can be seen as making a similar case, with the “complex machines” in question standing for “societies” or “social patterns”, machines made of their own operators, who “run” themselves to perform the “task” of… living their own lives! Interaction in a sufficiently large group always involves conflict (that is, “we” too collectively live in constant “slight disrepair”). Yet, people do not usually suspend every commitment they have as the result of a quarrel until their relationships are perfectly harmonious. Everything goes on until “rituals”, from phone calls and meetings to interventions and assemblies, provide “convenient opportunities” for “fixes”, that is, for restoring people’s willingness to cooperate with one another. Still, a lot can be missed because of all the complexity involved. Problems might compound and combine until they cause harm on a greater scale.

Anarchists were not the first to point out that such harm is not a matter of human error. A lot of post-republican Roman thinkers, for example, basically said as much when they concluded that the Republic ruined not because people lacked virtue, but because of constitutional shortcomings. However, for anarchists the solution cannot be bureaucratic, like “taking humans out of the loop”. With machines, after things go wrong we often notice overlooked signals that could have indicated vulnerabilities. With social relations it’s similar, and improving social consciousness, that is, seeing and appreciating the significance of such signals, should be the bread and butter of how we relate. This would empower us to recognise potential problems and act directly on them (you know, “to spot them and fix them as they crop up”) in a collective, yet decentralised manner, even if this means deep social transformation (that is, in the metaphor, the system is made “more adaptive”). Doing so requires education (in the metaphor, “training”), sharing and rotating responsibilities (in the metaphor, “experience”), and common access against the artificial scarcity of private property (in the metaphor, “ample resources”) to combat relevant inequalities (in the metaphor, the “pressures applied on individuals that influence their decisions”) so that people retain their capacity to keep on “fixing” and therefore improving their relations.

Moreover, this metaphor also fits anarchism well in the sense that ongoing negotiation and adjustment is emphasised over social blueprints — and by this I don’t mean to contrast repair with creation but to think of repairing as creative activity. Of course it involves forecast and planning for robustness (also known in engineering as designing for tolerance); it encompasses, speaking of societies rather than machines, accounting for path dependence and keeping in mind the coherence between means and ends. Still, obsessing over the initial moment of creation misses the point that, by fixing something, someone might in the future, as Pelton discusses the fixing of broken objects, think of how fun it was to see the insides of the thing, how they’ve learned the right way to do something, and how a friend helped them out. These are all things that can’t be designed into a system: people have to decide how to restore its functionality, and that decision may change or subvert the values of the designer.

Metaphorically, then, this is all about institutions that are constantly reassessed by confident, socially conscious individuals. Of course sovereignty-supporting political traditions, I’m talking here about Marxists, liberals, social democrats, etc., of course they also want to “avoid disasters”. But if you think about it, for them a disaster is when predetermined ideal outcomes are threatened — not necessarily causation of harm. After all, they are in favour of there being national armies and police and prisons and whatnot, which are meant to cause harm and threaten those who would threaten their ideal constitutions.

Indeed, the point of all conformist social engineering is to induce people to not mind being harmed; as Kathy E. Ferguson writes, bureaucracies seek to “tie up our loose ends” and reduce us to a reflection of an organization. In this sense, society under patriarchy, white supremacy, statism, capitalism, and other forms of intersecting domination really begins to resemble an aeroplane or a nuclear reactor: a machine tied to a specific purpose regardless of what kind of machine people might require in their lives now or in the future – in yet other words, the designer’s values cannot be subverted.

Even further, each individual becomes like an expendable, replaceable part, evaluated according to their “performance”: they are increasingly rendered… machine-like. To respect state representatives, ponders Peter Gelderloos, is to mistake them for reasonable human beings rather than the organic masks that an insatiable machine wears in order to extend its power.

Of course, every social system is self-reinforcing, and that is actually good; anarchists also want anarchy to be sustainable. But the kinds of social systems anarchists envision are qualitatively different. They include in their own enacting a way to undo themselves, as Francisco Varela puts it; anarchism, Klee Benally analyses, is a dynamic politic that invites its very destruction while maintaining composure of core principles; it tries to create a healthy culture as Shaun Day-Woods defines it: one that doesn’t keep anything that can’t be destroyed.

Instead of humans becoming more like machines, the institutions that anarchists are intent on promoting are supposed to be more organic: balanced, open-ended, diverse. Creation is always anarchist, wrote Diego de Santillán, and so are creators if they do not create in view of automating themselves. As Ruth Kinna discusses regarding Kropotkin’s vision, his defence of organisational proposals being always open to revision and dissent ultimately meant that society should be a living, evolving organism. Even more, in the end, there is no “one”, single society; no single “social machine”; like the Zapatistas, who walk toward a world in which many worlds fit, anarchists also conclude that the challenge really is to integrate multiple utopias; to render diverse social machines interoperable without disasters.

In the end, the problem is not exactly machines themselves. Analysing romantic tropes, which were somewhat influential among anarchists, John Tresch notes that machines drew forth virtual powers and brought about conversions among hidden forces; they could be used to create new wholes and organic orders, remaking humans’ relationship to nature and renewing nature itself. Anarchists seem to draw a line between creating and using machines on one hand and, metaphorically or not, being one, being absorbed into one, on the other. If Hobbes himself described the Leviathan as a huge machine, anarchists often attacked this “mechanical” political reasoning, exploring what “more organic” relations would look like.

Of course, to heed Reclus’s warning, this metaphor is far from straightforward. If social machines are made of ourselves and our relational patterns, there may be a difference in how organic or mechanic they are, but the boundaries between creating, using, and being them are definitely blurred, to say the least. Even if the metaphor is not perfect, however, I still think it deserves attention given recent technological developments.

For Shoshana Zuboff, present-day global technology conglomerates commodify our behaviour, shaping it at scale through automated machine processes that nudge, coax, tune, and herd us toward profitable outcomes. It is no longer enough to automate information flows about us; increasingly the goal is to automate us. The enormous amount of data produced about us enables automated decision-making, private and public, leading to what Álvaro Dias calls dystopian iteration: when the future, conceived as a straight line, without surprises or chances of being transformed, is reified by algorithmic decisions, crystallising imbalances and externalities.

In other words, if anarchists criticise the building of agency-crushing sovereign “machines” out of our own actions and dispositions, this is becoming less metaphorical as time passes. The automated, racist control of predictive policing, credit scores, and algorithmic bosses; advances in the emulation of human likeness and knowledge; the grim suffocation of war by drone surveillance and AI-targeted strikes; the invasiveness of pregnancy-guessing gadgets: all of this seems to strengthen the anarchist case for a rethinking of what “freedom” means. At least, that is, if this notion is at all to remain a guiding aspiration for the future.

Uma proposta para a abolição de notas em avaliações, por Paul Goodman

Trecho do livro Compulsory Miseducation (“Deseducação Obrigatória”).

Que meia dúzia de universidades de prestígio – Chicago, Stanford, a “Ivy League” toda – abandonem as notas e usem os testes apenas e inteiramente para fins pedagógicos, conforme a conveniência dos professores.

Qualquer pessoa que conheça o temperamento frenético das escolas atuais entenderá a transvaloração de valores que seria afetada por essa modesta inovação. Para a maioria dos alunos, a nota competitiva passou a ser a essência do processo. O ingênuo professor aponta para a beleza do conteúdo e para a engenhosidade da pesquisa que o produziu; o aluno esperto pergunta se isso cai na prova.

Deixem-me falar logo de uma objeção cuja unanimidade é fascinante. Acho que a grande maioria dos professores concorda que a avaliação atrapalha o ensino e promove um espírito ruim, que leva a trapacear e plagiar. Tenho diante de mim a coletânea de ensaios Examining in Harvard College, e esse é o consenso. No entanto, afirma-se uniformemente que a avaliação é inevitável, pois de que outra forma as escolas de pós-graduação, as fundações e as empresas saberão quem aceitar, premiar e contratar? Como os caçadores de talentos saberão a quem recorrer?

Testando os candidatos, é claro, de acordo com os requisitos das tarefas específicas da instituição que os quer, da mesma forma como são testados os candidatos ao serviço público ou a licenças para a prática de medicina, direito e arquitetura. Por que os professores de Harvard deveriam estar fazendo esses testes para as empresas e fundações?

Essa objeção é ridícula. Dean Whitla, do Escritório de Testes de Harvard, ressalta que os testes de aptidão escolar e de desempenho usados para admissão em Harvard são um índice excelente para o desempenho geral em Harvard, melhor do que as notas do ensino médio ou as notas de cursos específicos de Harvard. Presumivelmente, esses testes de admissão à faculdade são feitos sob medida para o que Harvard e instituições semelhantes desejam. Pela mesma lógica, não seria melhor se um empregador aplicasse seu próprio teste de aptidão profissional em vez de confiar nos caprichos dos especialistas de Harvard? Na verdade, duvido que muitos empregadores se preocupem em analisar essas notas; é mais provável que estejam interessados apenas num diploma de Harvard, seja lá o que isso signifique para eles. As notas têm mais peso nas escolas de pós-graduação – aqui, como em qualquer outro lugar; o sistema funciona principalmente para seu próprio benefício.

É realmente necessário lembrar aos nossos acadêmicos a antiga história das provas. Na universidade medieval, o objetivo principal da prova exaustiva era aceitar o candidato como colega ou não. Sua defesa de mestrado era uma obra que lhe permitia entrar na guilda. Não se tratava de fazer avaliações comparativas. Não era para eliminar e selecionar para um licenciador ou empregador extramuros. Certamente não era para colocar um jovem contra outro em uma feia competição. Minha impressão filosófica é que os medievais achavam que sabiam o que era um trabalho bom e que somos competitivos porque não sabemos. Mas quanto mais o status é alcançado por meio de uma avaliação competitiva amplamente irrelevante, menos saberemos.

(É claro que nossos exames americanos nunca tiveram essa orientação puramente de guilda, assim como nossas faculdades raramente tiveram autonomia absoluta; o exame era para satisfazer superintendentes, anciãos, regentes distantes – e eles, como superiores paternais, sempre gostaram mais de dar notas do que de aceitar colegas. Mas eu afirmo que essa configuração por si só torna impossível para o aluno se tornar um mestre, crescer e começar a trabalhar por conta própria. Ele sempre estará tirando 10 ou 9 para algum supervisor. E no cenário atual, ele sempre estará subindo no pescoço de seu amigo.)

Talvez os principais opositores à abolição das notas sejam os alunos e seus pais. Os pais devem ser simplesmente ignorados; sua ansiedade já causa problemas suficientes. Para os alunos, parece-me que um dos principais deveres da universidade é privá-los de seus penduricalhos, de sua dependência em avaliações e motivações extrínsecas, e forçá-los a enfrentar a difícil empreitada do conhecimento em si, e finalmente perder-se nela.

Um efeito lamentável das notas é anular os vários usos dos testes. A prova, tanto para o aluno quanto para o professor, é um meio de estruturar e também de descobrir o que está faltando ou o que está errado e o que foi assimilado e pode ser pressuposto dali em diante. A revisão – inclusive a revisão sob alta pressão – é um meio de reunir os fragmentos, de modo que haja rasgos de percepção sinóptica.

Há vários bons motivos para fazer testes e para vários tipos de testes. Mas, se o objetivo é descobrir os pontos fracos, qual é o sentido de dar nota baixa e puni-los, se isso convida o aluno a ocultar seus pontos fracos, fingindo saber algo, quando não trapaceando? A conclusão natural da síntese é o cair da ficha em si, não uma nota por ela ter caído. Para a importante questão do nivelamento, se for possível estabelecer no aluno a crença de que ele está sendo testado não para obter notas e fazer comparações injustas, mas para seu próprio benefício, o aluno normalmente deve buscar seu próprio nível, onde ele se sente desafiado porém ainda assim capaz de enfrentar o desafio, em vez de empurrar com a barriga um nível mais avançado. Se o aluno ousar aceitar a si mesmo como é, a nota do professor será um instrumento rudimentar comparado à autoconsciência do aluno. Mas é raro em nossas universidades que os alunos sejam incentivados a perceber objetivamente sua grande confusão. Ao contrário de Sócrates, nossos professores se baseiam em vontade de poder em vez de vergonha e idealismo ingênuo.

Muitos alunos são preguiçosos, por isso os professores tentam incitá-los ou ameaçá-los por meio de notas. A longo prazo, isso faz mais mal do que bem. A preguiça é um mecanismo de defesa do caráter. Pode ser uma forma de evitar o aprendizado, a fim de proteger a presunção de que já se é perfeito (mais além, o desespero de que nunca se conseguirá sê-lo). Pode ser uma forma de evitar precisamente o risco de falhar e ser rebaixado. Às vezes, é uma forma de dizer educadamente: “Não quero”. Mas como foram as exigências autoritárias dos adultos que criaram essas atitudes em primeiro lugar, por que repetir o trauma? Chega um momento em que devemos tratar as pessoas como adultos, com preguiça e tudo. Uma coisa é ter a coragem de tirar um malandro de sua aula; outra coisa bem diferente é dar-lhe um zero, como faz um chefe.

O mais importante de tudo é que, muitas vezes, é óbvio que hesitar em fazer um trabalho, especialmente entre os jovens brilhantes que ingressam em grandes universidades, significa exatamente o que parece. O trabalho não é adequado para mim, nem para essa matéria, nem para esse momento, nem para essa escola, nem para a escola como um todo. O aluno pode não ser estudioso no sentido clássico de viver com a cabeça nos livros; ele pode estar cansado da escola; talvez seu desenvolvimento deva tomar outra direção agora. Mas, infelizmente, se esse aluno for inteligente mas inseguro de si, ele pode ser intimidado a tirar nota para passar, e isso confunde tudo. Meu palpite é que estou descrevendo uma situação comum. Que desperdício terrível de uma vida jovem e do esforço de um professor! Esse aluno não reterá nada do que botou na prova para passar […].

E, ironicamente, o inverso também é provavelmente verdadeiro. Um aluno reprovado e eliminado mecanicamente está realmente pronto e ansioso para aprender em um ambiente escolar, mas ainda não pegou o jeito. Um bom professor pode reconhecer a situação, mas o computador faz o que quer.

Que se foda o poder, por Benjamin Zephaniah (1958-2023)

“Que se foda o poder – e vamos só cuidar uns dos outros. A maioria das pessoas sabe que a política está fracassando. O problema é que não conseguem imaginar uma alternativa. Lhes falta confiança. Eu simplesmente parei de prestar atenção em propaganda. Desliguei a televisão que só conta mentiras e comecei a pensar por mim mesmo. Aí eu realmente comecei a me encontrar com pessoas – e acredite em mim, não há nada mais maravilhoso que encontrar e conhecer as pessoas que só estão tentando viver suas vidas. Plantando, ensinando, e até gerenciando economias em que ninguém tem poder. É por isso que sou um anarquista.” – Benjamin Zephaniah

Como a arquitetura pode nos ajudar com a adaptação à pandemia: o vírus não é só uma crise de saúde, mas de design

Texto por Kim Tingley, originalmente publicado no New York Times em junho de 2020, traduzido semi-automaticamente com o auxílio do DeepL.

A última aula que Joel Sanders deu pessoalmente na Escola de Arquitectura de Yale, no dia 17 de Fevereiro, aconteceu na ala moderna da Galeria de Arte da Universidade de Yale, uma estrutura de tijolo, betão, vidro e aço que foi concebida por Louis Kahn. É amplamente aclamada como uma obra-prima. Uma parede longa, virada para a Rua Chapel, não tem janelas; virando a esquina, há uma parede curta que é só janelas. A contradição entre opacidade e transparência ilustra uma face da tensão fundamental dos museus, que por acaso foi o tema da palestra de Sanders nesse dia: Como pode um edifício guardar objetos preciosos e também exibi-los? Como mover massas de pessoas através de espaços finitos de modo a que nada – e ninguém – seja prejudicado?

Durante todo o semestre, Sanders, que é professor em Yale e também dirige o Joel Sanders Architect, um estúdio localizado em Manhattan, tinha pedido aos seus alunos que pensassem num desafio do século XXI para os museus: tornar as instalações que foram frequentemente construídas há décadas, se não séculos, mais inclusivas. Tinham realizado workshops com os funcionários da galeria para aprender como o emblemático edifício poderia satisfazer melhor as necessidades do que Sanders chama “corpos não conformes”. Com isto ele se refere a pessoas cuja idade, sexo, raça, religião ou capacidades físicas ou cognitivas as colocam frequentemente em desacordo com o ambiente construído, que é tipicamente concebido para pessoas que encarnam normas culturais dominantes. Na arquitetura ocidental, Sanders salienta que “normal” foi explicitamente definido – pelo antigo arquitecto romano Vitruvius, por exemplo, cujos conceitos inspiraram o “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, e, no tempo de Kahn, pelo “Homem Modulador” de Le Corbusier – como um homem branco jovem e alto.

Quando a crise do coronavírus levou Yale a fazer aulas online, o primeiro pensamento de Sanders foi: “Como você faz o conteúdo de sua classe parecer relevante durante uma pandemia global? Por que deveríamos estar falando de museus quando temos assuntos mais urgentes para falar”? Fora do campus, os ambientes construídos e a forma como as pessoas se moviam neles começaram a mudar imediata, indireta e desesperadamente. As mercearias ergueram escudos de plexiglass em frente aos registros e colocaram adesivos ou linhas adesivas no chão para criar um espaçamento de seis pés entre os clientes; como resultado, menos compradores cabem com segurança no interior e linhas serpentearam para fora da porta. As pessoas se tornaram hiper-conscientes em relação aos outros e às superfícies que poderiam ter que tocar. De repente, Sanders percebeu que todos tinham se tornado um “corpo não conforme”. E os lugares considerados essenciais tinham que decidir quão perto deixá-los chegar uns dos outros. O vírus não era simplesmente uma crise de saúde; era também um problema de design.

As tensões criadas por determinadas pessoas interagindo com determinados espaços tem sido há muito tempo um interesse de Sanders. “Eu amo coisas bonitas, mas não estou interessado na forma por si”, diz ele. “O que conta é a experiência humana e a interação humana, e como a forma facilita isso”.

O início de sua carreira coincidiu com a crise da AIDS em Nova York. Aquela época, quando, como homossexual, ele se sentia indesejado ou ameaçado em espaços públicos, informou seu ethos de design. Seu portfólio inclui residências com plantas abertas e flexíveis que permitem que as pessoas assumam diferentes papéis – uma área sentada poderia ser usada para trabalho ou lazer, digamos – e adotem arranjos familiares não tradicionais. Cerca de cinco anos atrás, quando a discussão sobre se as pessoas transgêneros deveriam ter o direito de usar banheiros públicos correspondentes à sua identidade de gênero se tornou notícia nacional, Sanders ficou impressionado com o fato de que “ninguém falava sobre isso do ponto de vista do design”, diz ele. “Todos presumiram e aceitaram banheiros segregados por sexo”. Como, ele se perguntava, teríamos acabado com os banheiros masculinos e femininos em primeiro lugar?

Enquanto trabalhava em um artigo com Susan Stryker, professora de estudos de gênero e mulheres na Universidade do Arizona, ele soube que o banho público tinha sido uma atividade coletiva em vários pontos da história; assim era a defecação, que, quando não acontecia na rua ou envolvia um vaso, às vezes acontecia em uma instalação comunitária separada. Somente com o advento da canalização interna e dos sistemas de saneamento municipal no século XIX é que os banhos e a eliminação começaram a se unir. Segundo o estudioso jurídico Terry Kogan, os primeiros banheiros internos que eram específicos para cada sexo e abertos ao público apareceram nos EUA em meados do século XIX, onde eram extensões de espaços de salão separados para homens e mulheres.

Segregar os banheiros por sexo claramente não era um imperativo biológico. Isso expressava os papéis sociais de homens e mulheres na época vitoriana. E se, perguntaram Sanders e Stryker, você em vez disso organizasse esse espaço em torno da atividade que estava sendo realizada e quanta privacidade ela exigia? O “banheiro” inteiro poderia ser uma área sem paredes ou portas, exceto em bancas privadas próximas às costas. Atividades que requerem menos privacidade, como lavagem das mãos, poderiam ser localizadas em uma zona central, abertamente visível. “Você poderia fazer do banheiro um espaço que não fosse uma sensação de perigo elevado, porque há uma porta fechada e alguém que não deveria estar lá está lá”, diz Stryker, que é transgênero.

Uma maior visibilidade, eles esperavam, tornaria os banheiros mais seguros para as mulheres transexuais, que correm maior risco de violência ali. Sanders também começou a encontrar outros para quem estes espaços significavam ansiedade constante por uma série de razões: usuários de cadeiras de rodas, aqueles que auxiliam pais idosos ou crianças pequenas, muçulmanos fazendo abluções, mulheres amamentando. Ele percebeu como sua própria perspectiva era limitada, assim como a dos clientes que ele normalmente consultava sobre seus projetos. “Você precisa ter a experiência viva do usuário final”, disse-me ele. “Isso é o que arquitetos como eu nunca foram treinados para fazer e nós não somos bons nisso”.

Em 2018, Sanders, Stryker e Kogan publicaram suas pesquisas e protótipos para banheiros multiusuário e multigêneros em um site como parte de uma iniciativa que eles chamaram de “Paralisados!” Na mesma época, Sanders formou um novo ramo de sua firma chamado MIXdesign para funcionar como um grupo de reflexão e consultoria. O objetivo era identificar aqueles cujas necessidades raramente foram consideradas na arquitetura – que poderiam até estar evitando espaços públicos – e colaborar com eles em recomendações que os projetistas poderiam usar para tornar os edifícios mais acolhedores para o maior número de pessoas possível.

O caos que o Covid-19 trouxe a lugares outrora familiares emprestou uma urgência a esta missão: A MIX poderia usar a abordagem que estava desenvolvendo para imaginar espaços não apenas para uma maior variedade de indivíduos, mas para uma realidade inteiramente nova?

A arquitetura tem que mediar entre as necessidades percebidas do momento versus as necessidades desconhecidas do futuro; entre as necessidades imediatas de nossos corpos e o desejo de criar algo que superará as gerações passadas. Na medida em que locais públicos começam a reabrir, as autoridades estão se esforçando para dar conselhos sobre como adaptá-los para uma pandemia. Em 6 de maio, o Instituto Americano de Arquitetos divulgou pela primeira vez orientações com o objetivo de “fornecer uma série de medidas gerais de mitigação a serem consideradas”, tais como mover atividades para fora e reconfigurar móveis para manter as pessoas mais distantes dentro de casa. É muito cedo para dizer como os arquitetos repensarão aspectos mais permanentes dos projetos em andamento. “Acho que há muitos prognósticos acontecendo”, diz Vishaan Chakrabarti, o fundador do escritório de arquitetura PAU e o novo reitor da Universidade da Califórnia, Berkeley, College of Environmental Design. Chakrabarti foi o diretor de planejamento para Manhattan na era Bloomberg depois do 11 de setembro. “Muitos dos prognósticos de então não envelheceram bem”, disse-me ele. “As pessoas disseram que nunca mais haveria arranha-céus e que as cidades estavam mortas”. Em vez disso, o que mudou foi o aumento da vigilância e da segurança.

Sanders e MIX têm uma série de comissões ativas que estão apenas começando a revisar para torná-las compatíveis com a Covid: Uma renovação do Clube SoCal, uma iniciativa de alcance da Fundação de Saúde Masculina em L.A. que busca envolver jovens gays e transexuais de cor no atendimento médico, está em andamento, empreendida com uma empresa local; uma possível remodelação da porta de entrada do Museu Queens está em fase preliminar.

Ao invés de responder com barreiras ou sinais temporários, Sanders está tentando usar o processo de pesquisa da MIX para chegar a projetos que minimizem a propagação do coronavírus e atraiam diversos usuários. Isto, ele espera, resultará em edifícios que perduram, quer uma vacina esteja ou não disponível. “O MIX está realmente liderando o caminho neste conjunto particular de questões”, disse-me Rosalie Genevro, diretora executiva da Architectural League of New York. “Há muitas pessoas rapidamente tentando pensar sobre o espaço na era Covid. O MIX tem o compromisso mais explícito que vi até agora para garantir que o pensamento seja o mais inclusivo possível”.

Logo após a fundação do MIX, Sanders abordou Eron Friedlaender, médica pediátrica de emergência médica no Hospital Infantil da Filadélfia. Do Museu Queens, Sanders soube que pessoas com autismo achavam o átrio principal – um espaço aberto e reverberante – especialmente perturbador. Friedlaender tem um filho adolescente com autismo, e ela estava procurando maneiras de tornar as instalações de saúde mais acessíveis a outras pessoas do espectro, que muitas vezes as acham avassaladoras. Como resultado, eles procuram serviços médicos com menos freqüência do que seus pares e ficam mais doentes quando aparecem. Quando o grupo MIX começou a falar sobre a pandemia, em uma chamada de vídeo, a sobreposição entre a ansiedade que todos sentiam nos espaços públicos e a ansiedade que as pessoas com autismo já sentiam nesses mesmos ambientes era marcante. E as conseqüências também foram semelhantes. Friedlaender observou que hospitais em todo o país, incluindo suas Urgências, tinham visto uma queda acentuada em seu número total de pacientes, que, eles acreditam, ainda estão passando pelos mesmos problemas de saúde, mas estão com muito medo de entrar.

O isolamento que as pessoas sofriam enquanto se abrigavam em casa também era familiar a ela, disse ela em uma reunião da MIX. As pessoas com autismo freqüentemente experimentam a solidão, em parte porque a proximidade com os outros tende a deixá-los desconfortáveis, o que muitas vezes as afasta de lugares com muita gente. De sua perspectiva, “você pode estar fisicamente distante” – mantendo o espaço entre os corpos, disse-me ela – “e mais engajado socialmente”.

Esse aparente paradoxo ressoou com Hansel Bauman, outro membro da MIX, por uma razão diferente, ele disse ao grupo. Como o antigo arquiteto do campus da Universidade Gallaudet, uma instituição para estudantes surdos com deficiências auditivas, ele precisava dobrar qualquer quantidade de espaço normalmente destinado a ouvir pessoas – para dar mais espaço entre os estudantes para que eles usassem a língua de sinais. Na Gallaudet, Bauman trabalhou com estudantes e professores para criar o DeafSpace, um conjunto de princípios de design que levava em conta suas necessidades; eles fizeram isso filmando corredores e refeitórios, por exemplo, e observando centenas de horas de interações lá. “Os cantos do mundo da audição”, disse ele, não são projetados “para antecipar visualmente o movimento dos outros”. O som comunica às pessoas ouvintes quando alguém está vindo – e no passado não importava tanto se elas não percebessem e esbarrassem umas nas outras. “No mundo Covid, você esbarra em alguém que vem virando a esquina sem máscara”, prosseguiu Bauman, “e de repente há uma infecção potencial”. As recomendações do DeafSpace muito provavelmente ajudariam: “Linhas estratégicas de visão; o uso da cor e da luz como meio de encontrar o caminho”. Promover um movimento mais eficiente e menos reativo era, disse ele, o tipo de coisa “com que temos lutado no DeafSpace nos últimos 15 anos”.

Parecia que o design que promove o distanciamento social pode realmente tornar os espaços mais hospitaleiros universalmente. Mas era mais difícil adivinhar qual poderia ser o efeito geral de outras acomodações Covid. “Uma coisa que tem sido interessante, pois cada vez mais artigos estão sendo escritos sobre a Covid – eles não querem mais secadores de mão”, observou Seb Choe, diretor associado da MIX, durante uma reunião de design no final de maio. “Porque os secadores sopram germes ao redor da sala”. O grupo havia acrescentado grandes janelas a um de seus protótipos para desinfetar superfícies com luz solar, mas Bauman apontou que o encandeamento dificultaria a visão recíproca das pessoas, tornando especialmente difícil a comunicação dos usuários surdos e fazendo com que todos se aproximassem potencialmente. Ele sugeriu acrescentar, entre outras coisas, uma saliência lá fora para a sombra.

Choe apontou uma notícia naquele dia que enfatizou novamente a orientação de que o vírus não é transmitido tão facilmente através do contato superficial quanto através do ar. Talvez o sol não fosse mais tão prioritário? De fato, na semana seguinte, em uma operação do Washington Post, Joseph Allen, o diretor do programa Edifícios Saudáveis da Escola de Saúde Pública T.H. Chan de Harvard, pediu janelas abertas e melhor ventilação e sugeriu que 3 metros entre as pessoas seria melhor do que 6 metros.

“Este é o enigma”, disse Sanders. “Como você atira num alvo em movimento desse? Você não quer se prender numa decisão ruim”. E suponha que a forma como o coronavírus é transmitido poderia ser perfeitamente entendida e evitada – isso mudaria a hesitação que as pessoas sentem em andar de elevador juntas ou usar telas sensíveis ao toque? Os projetistas poderiam ter que conciliar a ciência estabelecida com o mal-estar persistente das pessoas.

Ajudar os clientes a articular como um projeto os faz sentir, e por quê, é notoriamente desafiador. “A maneira como os arquitetos conseguem que as pessoas nos digam o que pensam sobre um espaço é passeá-las pelo espaço e dizer: ‘O que você acha? Ou mostramos-lhes fotos”, disse-me Sanders. Ele queria envolver as pessoas com autismo em seu processo de projeto, em parte para aprender outras maneiras de colocar essas perguntas.

Em janeiro, juntamente com Bauman e Friedlaender, Sanders reuniu um grupo de especialistas, incluindo Magda Mostafa, uma arquiteta baseada no Cairo e a autora de “ASPECTOSS DO Autismo” [Autism ASPECTSS], um conjunto de diretrizes de design, para discutir formas de entender como as pessoas com autismo se sentem em relação ao seu ambiente. Em maio, eles se encontraram novamente, junto com pesquisadores do Centro de Autismo e Neurodiversidade do Hospital Universitário Jefferson na Filadélfia, para continuar essa discussão, enquanto consideravam como o coronavírus poderia impactar seu trabalho. “Minha preocupação”, disse Friedlaender, “é que as pessoas com autismo não sabem necessariamente como articular o que estão pensando”. Acho que não podemos depender apenas de suas palavras”.

O grupo começou a pensar em várias formas de engajar pessoas com autismo no processo de projeto. Talvez os participantes pudessem experimentar espaços usando a realidade virtual enquanto os pesquisadores monitoravam suas reações físicas. Sanders se perguntou em voz alta se esta também poderia ser uma maneira útil de trabalhar com outros grupos focais em designs que abordassem preocupações da pandemia. O Museu Queens estava planejando organizar uma dança para as pessoas de um centro de idosos para ver como regiam ao espaço; agora grandes reuniões são perigosas, e o museu está sendo transformado em um centro de distribuição de alimentos.

“Quando penso em um espaço que é bom em relação à covid, penso em um que pode ser fechado rapidamente”, disse ao grupo Joseph McCleery, um pesquisador de autismo da Universidade St. Joseph. “Você tem coisas que estão disponíveis que talvez estejam no porão, mas que podem ser retiradas rapidamente”.

“Flexibilidade e agilidade do espaço, mas também compartimentação do espaço”, disse Mostafa. Seus projetos incluem cápsulas de fuga de áreas de alto tráfego que podem servir como uma fuga para aqueles que se sentem superestimulados. “Mas”, observou ela, “eles também criam espaços com circulação de ar diferente, ocupados por menos pessoas”.

Ouvindo-os descrever várias abordagens para estarmos juntos enquanto permanecemos separados, foi fácil ver como pessoas com autismo, e outros grupos que enfrentaram dificuldades no ambiente construído, estão em uma posição especial para identificar soluções criativas para os desafios espaciais que o vírus representa – e para sugerir melhorias para as falhas de design generalizado que ninguém mais identificou ainda. Talvez o Covid possa inspirar colaborações mais amplas.

Mas o medo também tem o potencial de desencadear respostas reacionárias. Sanders enfatizou esta preocupação cada vez que falávamos. Ele teme que o financiamento destinado à expansão da inclusão seja desviado para tornar as instalações existentes mais seguras para aqueles a quem já privilegiam. Ao longo da história, ele observou que o ambiente construído tem refletido e reforçado a desigualdade ao separar fisicamente um grupo de outro, muitas vezes no suposto interesse da saúde ou segurança. Os banheiros somente para mulheres, assim designados pelos homens, supostamente preservaram sua inocência e castidade; os banheiros somente para brancos separaram seus usuários de pessoas negras supostamente menos “limpas”. Não é coincidência que o Covid-19 tenha adoecido e matado desproporcionalmente membros de grupos demográficos – pessoas negras, indígenas e latinas; que são desabrigadas; que são imigrantes – que têm sido alvos de segregação sistêmica, o que aumentou sua vulnerabilidade. Também não é difícil imaginar a pandemia, e o risco relativo de infecção de uma pessoa, sendo usada para justificar novas versões destas práticas discriminatórias. “Quem será demonizado?” disse Sanders. “Não devemos” – ele bateu no que parecia uma mesa de vidro para enfatizar – “repetir os erros do passado”.

Mabel O. Wilson, professora de arquitetura e Estudos Afro-Americanos e da Diáspora Africana na Universidade de Columbia, acha que a covid “poderia ser alavancada para lembrar às pessoas que muitas pessoas não se sentem confortáveis em público”. Mas isso não significa que ela será. “Meu senso é que o que vai acontecer é que, ter salas limpas, ter maior circulação de ar, vai ser a competência dos ricos que podem pagar por isso em suas casas”, diz ela. “Será determinado pelo mercado e não necessariamente será um bem público”.

Um futuro no qual nos misturamos novamente é difícil de prever agora. No nível mais básico, o que deve acontecer para que a sociedade retome é isto: você se aproxima da porta de um edifício, abre e passa por ela e navega até um destino dentro dela. Os arquitetos chamam esta série de etapas críticas de “seqüência de entrada”, uma viagem através da qual uma pessoa está decidindo se deve sair ou ficar. No final de maio, Marco Li, um associado sênior da MIX, criou planos e renderizações em 3-D de uma seqüência de entrada em um hipotético prédio do campus que incorporou algumas das idéias do grupo para adaptações pandêmicas. Ele as mostrou para Sanders, Bauman e Choe por teleconferência. Eles tinham convidado um colaborador frequente, Quemuel Arroyo, que é um ex-chefe especialista em acessibilidade do Departamento de Transportes da cidade de Nova York e um usuário de cadeira de rodas, para criticá-los durante uma chamada de vídeo. Os protótipos tinham o objetivo de provocar uma discussão sobre como eles poderiam repensar as seqüências de entrada nas universidades, bem como nos museus e estabelecimentos de saúde. “O que os arquitetos fazem bem”, disse-me Choe, “é fornecer imaginação em termos de projetar algo que não existe. Uma vez que as pessoas o vejam, podem falar sobre isso”.

Depois da porta principal, em um vestíbulo, as rotas de entrada e saída unidirecionais foram mediadas por um plantador. Cada lado tinha uma estação de higienização manual ao longo da parede. Uma segunda porta interior separava esta zona de transição do resto do edifício. Uma vez dentro, o visitante encontra um amplo vestíbulo. Do outro lado, diretamente à frente, um balcão de informações foi posicionado de trás para a frente com um banco de armários. Atrás dessa divisória, havia cubículos-banheiro multigênero; salas, com chuveiros, que podiam ser usadas por cuidadores, mães que amamentam e até mesmo por pessoas que se deslocam de bicicleta; e salas de oração e estações de lavagem de pés para práticas religiosas. Os lavatórios ativados por movimento encostam ao passadiço. O espaço agora é mais um “centro de bem-estar” do que um “banheiro”, disse Sanders – então eles decidiram colocá-lo bem na frente em vez de escondê-lo.

Ao longo de todo o saguão foram delimitadas “zonas calmas”, marcadas por um piso de cor e textura diferentes, com opções flexíveis de assentos. “Torna-se particularmente importante com o covid diferenciar os corpos em repouso dos corpos em movimento”, disse Sanders, para que as pessoas não se chocassem umas com as outras. “A definição dessas áreas por intensidade de cor permite que as pessoas localizem onde elas precisam estar no espaço”. Alguém que está evitando um obstáculo, ou que está confuso ou perdido, causa uma ondulação de movimentos imprevisíveis em outros. “O distanciamento social não são pessoas paradas no espaço em uma linha pontilhada na mercearia”, Bauman havia observado anteriormente. “É uma situação dinâmica”.

Arroyo perguntou sobre a demarcação textural entre as áreas onde as pessoas andam e onde elas se sentam. Sanders explicou que os usuários cegos podiam senti-los com uma bengala. “Estas bordas detectáveis são chanfradas?” perguntou Arroyo. “A maioria das pessoas em cadeiras de rodas odeia isso. Certifique-se de que essas áreas são detectáveis, mas que não ofereçam perigo de tropeçar”. Ele também observou que nenhum dos lavatórios de banheiro era suficientemente baixo para uma pessoa sentada. “Em um mundo de Covid e germes sendo compartilhados, o que mais me irrita são superfícies planas, porque a água se acumula”, disse ele. Quando ele chegou à torneira, a água parada pingou no seu colo e molhou suas mangas.

Por um momento, me identifiquei: levar meu filho de 5 anos de idade a um banheiro público quase sempre faz com que sua camisa fique ensopada. Eu tinha imaginado que pais melhores que eu conseguiam evitar isso de alguma forma. O alívio que senti ao saber que isto era um problema para outra pessoa – que a culpa poderia ser da pia, não minha – foi instrutivo ao pensar no trabalho de Sanders, que no papel nem sempre parece tão diferente dos lugares que habitamos agora.

“A missão de Joel para a MIXdesign é tornar ambientes inclusivos tão inevitáveis que ficam invisíveis”, diz Deborah Berke, reitora da Escola de Arquitetura de Yale e fundadora de uma empresa de design epônimo em Manhattan. “Visível é colocar uma rampa do lado de fora de um edifício e dizer: ‘Pronto, está acessível’. O invisível é ter um prédio que ninguém vê como adaptado. Ele simplesmente funciona para todos”.

Quando não percebemos o ambiente, este está silenciosamente afirmando nosso direito de estar lá, o nosso valor para a sociedade. Quando o fazemos, muitas vezes é porque ele está nos dizendo que lá não é o nosso lugar. Essas mensagens podem ser tão sutis que não as reconhecemos pelo que elas são. “Caminhamos sonâmbulos pelo mundo”, disse-me Sanders. “A não ser que o interior de um edifício seja marcadamente diferente ou luxuoso ou incomum, nós não estamos cientes disso”. A covid, ele acrescentou, “está forçando todos nós a estarmos conscientes de como o design dita como experienciamos o mundo e uns aos outros”.