Traduzido daqui.
Categoria: Vórtex multidirecional
Textos sobre qualquer outra coisa que não seja literatura.
Vamos viajar para a Terra para CONSUMIR SERES HUMANOS
Comentários sobre O homem duplicado, de José Saramago
Esse livro é uma delícia. É maravilhoso, e se tornou um dos meus dez preferidos em termos de ficção.
É preciso ter em mente uma dupla escolha que foi feita em termos de marketing, na minha opinião: uma delas foi boa, outra foi “neutra”. A neutra é que a história não tem nada a ver com a perda de identidade no mundo moderno ou coisa parecida – pelo menos nenhum elemento me fez pensar nesse paralelo simbólico, e olha que ao longo do texto fiquei esperando que algum aparecesse. A boa é que não se disse o que a história realmente quase é, isto é, uma tragédia. Está certo que ela não termina tão mal quanto uma, mas o jeito como o autor constrói termos como o destino e o senso comum é fenomenal – na verdade toda a ideia do senso comum como um personagem não só é uma infusão de um humor ranzinza incrível como, ao meu ver, torna essa história algo muito semelhante a uma tragédia: a tragédia se compõe justamente das decisões ruins do herói que o levam a essa ruína. E, como a história faz pensar (e indicar), essas decisões em grande parte são justamente um contrariar o senso comum.
- O final é excelente. Todas as coisas que acontecem nele.
- A meta-linguagem é muito, muito, muito bem executada.
- Eu lembrava que ler Saramago era cansativo, mas não tenho muita noção se esse é pior ou melhor nesse sentido que ‘Cegueira’ ou Intermitências da Morte. Talvez os parágrafos pareçam ainda mais avassaladores porque se trata de uma versão de bolso a minha, mas ainda acho o estilo dele fantástico – ainda que entenda quem possa se afastar dele.
- Inclusive, se há uma coisa negativa que posso ter percebido, é como o estilo de diálogo dele favorece que cada diálogo se torne quase um ensaio para uma peça de teatro. Não tem muita fluidez, movimento – sim, na fala sim, e quantas conversas fantásticas ele nos dá; mas parece que elas são entregues enquanto os personagens ficam parados, com caras de tacho, as bocas servindo de alto-falantes passivos. Fica uma coisa meio estática, mas acho que teria dado muito errado se a linguagem, que nesse caso vira a estrela do show, não fosse tão bem talhada e trabalhada. Nenhuma analogia parece forçada, nenhuma poesia, brega; o narrador, nunca identificado, tem uma voz bacana e a história é cheia de insights. Ah, e os diálogos, esses que se fez com coisas boas, também são traçados como bem naturais em suas pausas e desvios, fluxos e refluxos.
- É curioso como o palavrão é tratado às vezes, na literatura em geral, como uma questão de estar por todo o lugar ou não estar em lugar nenhum. Isso porque se ele não aparece com frequência, quando aparece pode confundir o leitor e parecer fora de lugar, já que a narrativa nunca indicou que era esse tipo de história. Mas aqui funciona porque, mesmo que por centenas de páginas ele não tenha aparecido (até que o tenha feito), há um certo tom ranzinza no narrador e uma certa névoa de tensão nos personagens que não nos faz desgostar quando eles aparecem. E, por terem sido raros, quando aparecem, tem muito impacto. Demonstram descontrole do personagem, raiva, energia narrativa.
Absolutamente recomendado!
Stuff
There’s so much stuff out there. Stuff I want to learn. Stuff that could be learnt. I think losing an opportunity to learn is a huge mistake, because most people, in their own pace and with their own goals, end up learning something, somehow, somewhere, with somebody or on their own, with nobody to hold their somewhat confused chins up – and when they do, what usually happens is that you’re left behind, in the dust, unable to keep up with whatever’s going on in their hearts. It’s not about technology, it’s about life’s simple truths that may never get caught by philosophers’ fishnets and chronists’ thick glasses before hazy, desaturated eyes. Truths that might live short-lived lives beneath the lines of what we read on walls that have never been painted, but are there to yell boundaries at our hands and feet. You’re left reminiscing on everything you didn’t learn when you had the chance. You’re left with a feeling, not with the consequences of your acts, and it’s precisely that which could drive one up to a deep, boring, scar-faced despair, with a farced starry body and a sharp sword pointing towards the sky.
Entre o pensar, o decidir e o expressar: identidade, smartphones e internet
No vídeo a seguir do excelente CGP Grey, argumenta-se que os smartphones são hoje basicamente uma extensão do nosso “eu”. Se você precisar escolher, exemplifica Grey, entre dar para alguém o poder de ler a sua mente ou acesso ilimitado ao seu smartphone, o que você escolheria? Bem, a resposta intuitiva parece ser o telefone mas, como ele ressalta, nossa memória é falha; o celular, contudo, sabe muitas coisas sobre nós; dados que nós mesmos esquecemos ou não sabemos que ele possui, e isso é complicado. Veja o vídeo (em inglês):
Pensei nisso porque estava aqui estudando e me ocorreu fazer um comentário sobre um autor: “que idiota!”, digitei. A questão é: se alguém tiver acesso à minha conta do Google, a esse documento no Google Drive, e se eu for notável o bastante para que esse comentário ganhe importância para o público amplo, o que ele diz sobre mim? O fato de eu tê-lo digitado é, creio, a mesma coisa que se eu tivesse tão-somente pensado nele – não é indicativo de nada; é só uma impressão primária que eu quis registrar, mas que eu certamente refinarei antes que qualquer coisa relacionada a esse material venha a público.
Afinal, quantas vezes pensamos coisas desagradáveis para, meio segundo depois, pensarmos melhor e abdicarmos do que atravessou a cabeça? A questão, já disse Graeber e disseram outros, não é o instinto, a vontade, o pensamento solto; esses nós temos quase todos, mas só o fato de existirem não quer dizer nada. A grande questão é como são organizados, hierarquizados, de que forma influenciam nossas ações – em outras palavras, o que escolhemos efetivar em palavras (que outras pessoas vão ouvir ou ler), e principalmente ações. Enquanto o pensamento está dentro da cabeça, tanto faz.
Mas e enquanto ele estiver dentro de um documento que julgo que ninguém lerá? É a mesma coisa que se estivesse dentro da minha cabeça, não é? Ele não foi feito pra ser lido por outras pessoas, nem tem qualquer efeito sobre o resto do mundo. Sem nem entrar no mérito dos diários – embora a temporalidade implica uma reflexão contínua, e portanto uma certa seleção da variedade de pensamentos que nos recorta – isso basicamente faz de nossos dispositivos e recursos pessoais da internet parte de nós mesmos de uma forma bastante interessante.
Apostos
Único método de manter o foco, a clareza, a paciência e a sanidade mental ao ler filosofia ou sociologia contemporânea: ignorar os apostos na(s) primeira(s) leitura(s).
Revolução Francesa ao contrário
“Viver nos Estados Unidos no século XXI é como estar em uma Revolução Francesa ao contrário. Os ignorantes querem colocar uma aristocracia antiética no governo; ocorre o inverso da Queda da Bastilha, já que se enfiam mais e mais pessoas em prisões cheias, para o lucro dos aristocratas, e os pobres estão morrendo não de fome, mas de obesidade epidêmica, por LITERALMENTE COMEREM BOLO.”
O amor bizantino aos livros
Sérgio Buarque tem esse trecho do “Raízes do Brasil” em que ele fala sobre o amor bizantino aos livros: tratamos os libros como sagrados objetos de adoração, e não posso desmenti-lo; acontece com quem gosta de livros e também com quem não gosta (pois eles continuam sendo símbolo de intelectualidade de qualquer forma). Se por um lado isso parece bom, será mesmo que isso não tem a ver com o nosso baixo índice de leitura país afora?
Será que não deveríamos banalizar mais os livros? Afinal, popularizá-los só pode significar que estamos dispostos a sujeitar os coitados a todo tipo de coisa. Popularização sempre significou trazer o sagrado ao mundano, não o contrário. O que ganhamos ao idolatrar o livro? Ao ver rasuras, anotações e “orelhas” como sacrilégios, não estamos afastando-os, por exemplo, do contato verdadeiramente lúdico que as crianças tem com um objeto?
Sobre plantas, ventos e pessoas
Escrito em março de 2009.
As pessoas são como plantas. Plantas que crescem no meio do vento que é o resto do mundo.
O vento das oportunidades, o vento das restrições, o vento da cultura, o vento dos fracassos e dos fracassados.
É um vendaval que nunca para. E a planta cresce. Ela resiste. Cresce também de acordo com sua informação genética, é claro, mas tem que se conformar com o vento e planejar sua adaptação a ele.
Ela pensa em um dia ser frondosa árvore.
Mas o vento é o vento. O vento pode quebrar uma planta. Tamanha força pode afastar polinizadores. No mínimo, a árvore acaba torta depois de tanto contato com essa força implacável. E torta ela cresce. Pra um lado ou pro outro, torta.
É ridículo dizer que a planta cresce sem o vento. Que, não, imagina, o vento não a afeta. Pode o vento transformar pitangueiras em jabuticabeiras? Mas como apontar para uma planta e dizer que ela é torta porque quer?
Mas… Talvez…
Talvez as pessoas não sejam plantas. Talvez não sejam como plantas. Talvez sejam simplesmente humanos. Humanos ao vento, tentando resistir. Às vezes colocando a mão à frente do rosto; às vezes desistindo e resolvendo sentir de vez o vento ao invés de brigar com ele. Por vezes caindo e ficando lá no chão, estatelados.
Às vezes conseguem dar um passo à frente. Elas se desequilibram, é complicado, mas elas seguem. Têm determinação pra tanto.
Eventualmente podem descobrir que não gostam do caminho para onde estão indo. Às vezes é contra o vento, às vezes não. O importante é que tentem; que não sejam plantas, mas humanos. A explicação acaba aí; humanos possuem consciência – de alguma forma somos quem somos e, mesmo que por alguma mínima e ridícula diferença, não somos plantas.
Nós podemos tomar o controle da nossa vida? “Fazer valer à pena” tem como requisito assumir certas responsabilidades para com liberdades que queremos ter e com liberdades que vamos, querendo ou não, ter. Jogar-se ao vento de cabeça – não com galhos e folhagem e contando com uma incerta raiz, esperando o destino atuar.
Talvez ser planta ou uma pessoa seja uma escolha.
A arte é um conceito estéril
Não importa o quanto as pessoas passem a acreditar que gosto é igual a cu: inevitavelmente, ao que tudo indica, cairão ainda em disputas sobre o mérito das coisas que fazemos com base na disputa sobre o que a arte é. E isso importa porque não é só uma questão de conceito filosófico: arte é uma categoria cuja inclusão ou exclusão significa uma avaliação de qualidade.
O problema não está nos critérios utilizados pra definir o que é ou não é arte. O problema é que arte é um conceito grande demais para que qualquer critério satisfaça. É monolítico, genérico e, portanto, estéril. Falar de arte é falar sobre tudo. Portanto, é falar sobre nada.
Veja bem, não estou dizendo nada de ruim sobre “arte em geral”; é só que a coisa é mais complexa que isso. Enquanto quisermos enfiar num conceito só coisas muito diferentes, é óbvio que pessoas diferentes – com objetivos e valores diferentes – verão uns aos outros como proponentes de ideias absurdas.
Isso porque arte é, basicamente… Artifício. É o emprego de engenhosidade e habilidade humana para a resolução de problemas. Mas que problemas são esses? São muitos. A arte pode servir para resolver problemas pessoais; para resolver uma coisa tão pequena quanto a necessidade que um ser humano tem de contar uma história. E talvez ele queira contar essa história porque queira influenciar as pessoas para essa ou aquela direção, e talvez isso seja outro problema que se queira resolver, ou talvez o escritor deixe o escrito numa gaveta e mesmo assim se dê por satisfeito – sinal de que algo dentro dele que pedia por resolução foi resolvido – pra ele.
E não há problema nenhum com isso, por que a arte não existe para ser uma empreitada altruísta em direção à salvação da humanidade (a não ser, é claro, que se espose a visão de que podemos salvar uma pessoa de cada vez se formos apenas mais criativos e artísticos em nossas vidas. Isso não é tão ruim…). Mas também, por outro lado, sim, a arte pode ser usada para resolver problemas políticos porque ela impacta as pessoas. E ela também pode ser usada para o benefício de um grupo de pessoas, mas em termos menos controversos: precisamos de um ritmo para que possamos dançar e nos divertir. Eis um problema que a arte – sim, até as músicas de baixaria – resolve!
Mas veja, a engenharia e a medicina são ambos conjuntos de técnicas e conhecimentos que visam resolver problemas. Então eles são arte? Sim! Mas isso quer dizer alguma coisa? Não! É por isso que arte é esse conceito estéril – porque se você realmente quiser entendê-la, tem que ser abrangente e antropológico – ao invés de se satisfazer com a ideia de que você, ser iluminado, possa descobrir “a verdade” sobre a arte e então ditar ao mundo o que ela é ou deixa de ser, deve procurar olhar para quem interage com ela e aceitar que sim, outras pessoas vão considerar que certas coisas são arte. Portanto a questão sobre o que a arte é não deve ser normativa, e sim exploratória: qual problema essa coisa que estas pessoas estão chamando de arte está tentando resolver?
Talvez visto por esse prisma, e se considerarmos arte apenas como algo que engloba o que já não está em outras categorias (assim preservamos a independência da engenharia e da medicina, por exemplo… Ou de basicamente qualquer outra coisa), a arte possa ser salva como um conceito e ao mesmo tempo ser “pacificada”. O grande problema é que mesmo aí a luta continua: alguns grupos de pessoas vão desconsiderar, vão achar que não é importante, algum problema que alguma arte esteja tentando resolver – e aí isso de repente “não é arte”.
Talvez o resultado de deixar pra lá qualquer preocupação sobre esse conceito megalomaníaco de “arte” seja devolver as coisas a seus lugares: quando discutimos valores, “importâncias”, problemas a serem resolvidos, já não estamos mais falando de arte. Estamos falando de filosofia – mas, principalmente, de política.