Uma defesa Nietzscheana do anarquismo

O livro “A Nietzschean Defense of Democracy: An Experiment in Postmodern Politics” foi escrito por Lawrence Hatab, professor da Old Dominion University. Tive o prazer de conhecê-lo em um colóquio ano passado na UFSC, junto com a professora Christa Acampora. Ambos foram incrivelmente gentis e me providenciaram uma cópia de seus livros (Acampora mandou dois, um deles o excelente Contesting Nietzsche), e agora pude enfim ler o de Hatab.

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Aqui a premissa é a seguinte: Nietzsche estava errado. Não pela perspectiva de seus críticos, mas por sua própria – ele detestava a democracia, e no entanto Hatab procura demonstrar “por eliminação” que esse é o único sistema político que Nietzsche conseguiria aprovar.

Hatab escreve incrivelmente bem; é claro, conciso, engraçado – seu estilo e voz pulam das páginas. E ele é principalmente honesto – a mais importante característica de qualquer investigação científica. Ele não varre para debaixo do tapete aspectos problemáticos de sua pesquisa. Nietzsche não é realmente pós-moderno? Ele faz uma bela exposição sobre o pós-modernismo e explica por que Nietzsche pode ser considerado um. Nietzsche na verdade era, basicamente, um nazista? Bem, ele cita as partes problemáticas do filósofo e explica por que ele considera que ainda assim pode argumentar da forma como argumenta.

Para ser sincero, nada ali me pareceu muito polêmico ou absurdo. Hatab simplesmente prefere que a defesa da democracia não se dê através de ideias essencialistas como “igualdade” ou “direitos humanos”. Antes, o procedimento institucional competitivo, aberto a todos e justo, seria justificável porque nenhuma narrativa pode se arrogar o título de ser “a” Verdade com V maiúsculo (entre outras coisas). Não pretendo aqui fazer um resumo do livro, até porque não fiz anotações que lhe fariam justiça; digo só que as ideias se encadeiam com naturalidade, e se você gosta de pós-modernismo e Nietzsche é difícil não acabá-lo concordando com tudo que foi escrito.

O problema é que sou anarquista.

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Photo by Gigi Ibrahim

A insustentável leveza de ser pós-moderno

Um dos aspectos mais importantes do sistema que Hatab idealiza é o “agonismo” – ele chega até a usar o termo “agonarquia” em alguns momentos – que é basicamente o ideal da competição esportiva, uma competição em que você não quer aniquilar seu adversário; quer, antes, que ele seja capaz, já que isso dá significado à própria vitória (que glória há no Flamengo vencendo, no futebol, um time de ensino fundamental?).

Ele (e Nietzsche) pretende que essa forma de competitividade seja usada também na arena cultural, filosófica, política. Eu concordo em grande parte com isso, mas o que me incomoda é que pode haver uma razão pela qual esse tipo de competição é e sempre foi o padrão nos esportes e nos jogos – uma razão pela qual ela faz todo sentido nessa arena, mesmo que em outras ela nem sempre foi tão bem considerada ou posta em prática. O esporte é precisamente aquilo que não significa nada. Exceto pelo simbolismo, pela diversão e quem sabe pela possibilidade de treinar certas habilidades físicas… Nada. É como a arte, só que incluindo de forma mais direta comparações de performances. A atividade esportiva é esportiva justamente porque não importa. É virtualmente inconsequente. Se não o fosse, seria outra coisa. Caça, guerra, assembleia. Tarefas de casa… Sexo. Você pode “gameificar” algo ou transformar algo numa competição, mas o “esporte” enquanto categoria inclui coisas como futebol americano e esqui – em si mesmas, nenhuma aplicabilidade prática.

Mas quanto ao resto – especialmente a política – não seria melhor não tratar tudo com essa leveza inconsequente? Aliás… Não seria prerrogativa de quem não tem muito a ganhar, ou perder, adotar essa perspectiva enquanto política – enquanto sistema recomendável a todo um grupo ao invés de mera filosofia pessoal? O anarquismo que defendo não é o clássico, que pode ter enamorado a ideia de domesticar e eventualmente eliminar certos instintos, certas vontades humanas, e sim aquele que os reconhece como parte da experiência humana mas busca redirecioná-los culturalmente. A competição jamais acabará, mas isso não significa que ela precise ser o elemento fundante da dinâmica social, econômica e política. De forma semelhante, você pode ser “agonista”, viver sua vida dessa forma, e ainda reconhecer que na política talvez alguns limites e dispositivos sejam necessários pra salvaguardar certas coisas.

Desenvolvo: é perigoso associar o pós-modernismo a mero “privilégio”, pois isso é quase um ad hominem – mas o fato empírico é que, ao redor do mundo, as pessoas não estão exatamente numa corrida para abandonar suas origens e tradições e se tornarem sopas de legumes existenciais. Como diz Raewyn Connell, “somos informados de que vivemos […] na pós-modernidade[, mas] a maioria da população do mundo não vive”. Nesse sentido, para quem o pós-modernismo foi feito? Eu me empolgo com o pós-modernismo, mas por outro lado sou um exemplo de privilégio e caretice tirado direto de um livro didático. Só que o que me interessa no pós-modernismo é uma desconfiança epistemológica – não há como ter qualquer certeza quanto a nada. Não me interessa nada nele uma certa paralisia (que Nietzsche inclusive critica) que alguns tomam como corolário necessário: se você não tem certeza de nada e nada tem uma base metafísica, como pode presumir certas coisas como verdadeiras para ser funcional no mundo, ou como pode defender um valor político, ou como pode cultivar uma identidade específica?

Ora, posso porque posso, bolas. O pós-modernismo, para mim, tem um valor instrumental que se impõe da mesma forma que a evolução se impõe ao biólogo que se dê ao respeito e veja a porra das evidências; eu gosto da forma como ele afia a mente e impulsiona à criatividade e perceptividade (ou seja, creio que eu seria menos criativo e perceptivo se tomasse o mundo como um dado concreto e absoluto). Será possível que uma sociedade inteira seja pós-moderna e agonista e mesmo assim escolha princípios, valores específicos, para nortear seu sistema político? É claro que é. A diferença é que enquanto povos não-pós-modernos poderiam tratar esses valores como religiosos, tabu, questão de natureza humana, etc, os pós-modernos que tratassem tais valores como uma escolha não deveriam ser obrigados necessariamente a permitir que outros valores venham a concorrer por preponderância sistêmica. Um sistema político que se queira aberto e plural (como o anarquismo deve ser) ainda pode ser pensado com base em valores dos quais não pode abrir mão.

A desingênua neutralidade

O anarquismo é “humanista cívico” no sentido de considerar a participação uma coisa essencial. E uma comunidade anarquista elege certos princípios como a base da organização política. Hatab busca em seu arranjo institucional, ao contrário, uma espécie de mecanismo frio desprovido de tais princípios; um esquema neutro, “regras do jogo” que não transformam nenhuma (mera) narrativa em metanarrativa (geral), e assim é o mínimo essencial para que as narrativas possam competir pela vitória temporária na arena política.

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Pois me parece que Hatab não foi tão fundo no próprio pós-modernismo. Fish (um pouquinho aqui, mas principalmente aqui) demonstra que não há como chegar ao lado de fora. Uma lei que proteja a liberdade de expressão é útil mesmo que a liberdade de expressão “não exista” porque qualquer iniciativa que vise limitar a expressão terá que passar por um grande escrutínio. Mas esse escrutínio não é neutro – uma arena hipoteticamente feita sob medida para a discussão política mais abstrata do mundo jamais conseguiria ser neutra. Pombas, Sandel falou exatamente a mesma coisa em relação ao liberalismo deontológico e ele nem é pós-moderno (eu acho).

Mesmo um esquema governamental que se proponha “sem uma concepção de bem” definida ainda falha em ser realmente isento nesse sentido; ainda pressupõe necessariamente algumas coisas. A esquemática de Hatab não é diferente; pressupõe um povo pós-moderno, que valoriza o agonismo, o pluralismo absoluto – o tipo de moral bacana (sem ironia aqui) que Nietzsche expõe para o mundo.

Hatab provavelmente diria que não – não, a agonarquia não precisa pressupor nenhuma identidade fixa, nenhum tipo de pessoa ou grupo em termos de metanarrativa; a sociedade pode ser inteiramente composta por uma pluralidade de pessoas, sendo que nem uma única delas seria pós-moderna / agonista, e mesmo assim esse sistema funcionaria – já que, como dita o sonho liberal que ele não completamente rechaça, a diversidade absoluta pode conviver perfeitamente (se apenas tivermos os instrumentos corretos, puxa vida…).

Duvido. Mesmo que esse sistema seja mesmo adotado “por eliminação” – “como não há outra alternativa e não queremos uma mutually assured destruction, adotemos regras que não favorecem ninguém a priori” – isso significa adotar, em alguma medida, o agonismo e o pós-modernismo como metanarrativa. É esse tipo de coisa que meio que dá base (contradizendo agora o que citei antes da Connell) para que pensadores contemporâneos declarem que o pós-modernismo ganhou / está ganhando. Se ninguém em alguma medida valoriza esse agonismo como metanarrativa, então não vai haver ninguém para defendê-lo – ou mesmo para legitimá-lo como é preciso que seja para que, no mínimo dos mínimos, instituições repressivas funcionem (se nem a polícia defender essas “regras do jogo” que ninguém, aparentemente, precisa realmente adotar como filosofia de vida… Danou-se). Hatab faz crer que grupos e indivíduos podem adotar a narrativa filosófico-política que quiserem (inclusive narrativas que advoguem contra essas regras neutras do jogo) e tudo vai dar certo. Mas se não houver uma defesa desse agonismo fundamental enquanto princípio, ou vai haver o tipo de dominação silenciadora e tirânica que ele teme, ou vai haver guerra. É lindo que Hatab queira que a democracia possa ser defendida por aqueles que não suportam o racionalismo limitado de um Rawls. Mas se as sociedades acabam estruturadas da mesma forma, acarretando os mesmos problemas, que diferença faz?

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É certo que ao final do livro ele admite uma perspectiva trágica, segundo a qual não é bom salvaguardar essas regras do jogo contra certas subversões (por exemplo, não seria bom proibir qualquer discurso, inclusive o racismo, fascismo, etc). Eu posso respeitar essa decisão, e concordar com ela, mas não entendo porque isso seja pós-moderno, mas não uma sociedade adotar o pós-modernismo como metanarrativa mesmo escolhendo preservar certos valores como essenciais à organização política. Um de seus argumentos mais fortes é “deixe o fascismo e o racismo existirem para que o combate a essas ideologias fortaleça perspectivas justas (e, em certo sentido, algo parecido sempre existirá, então falar em “deixar que exista” me parece irrelevante). As coisas se constroem em oposição, diria Nietzsche, pois a vida é vontade de poder, e vontade de poder é vontade de superação. O sonho último iluminista / positivista / cristão de varrer o sofrimento e os problemas é contrário a esse impulso essencial da vida. No entanto, seria o caso de estimular o sofrimento por toda a parte para que haja superação? Obviamente que não. Portanto, deve-se alcançar um equilíbrio da agência humana que visa a superação – para que ela não se torne destrutiva ao desejar a superação daquilo que proporciona a superação em primeiro lugar. Eu só não estou convencido de que o arranjo institucional de Hatab é melhor nesse equilíbrio do que um arranjo parecido, anarquista, que escolha alguns valores como imprescindíveis. Isso nem precisa significar censura e prisão perpétua a fascistas (de novo, o argumento pragmático é bom), mas pode significar um discurso público, uma pedagogia, uma estrutura orientada para a manutenção de certos valores como anteriores à discussão política mais minuciosa.

O importante é que esses valores balizem as discussões políticas. O fato de a competição, de o procedimento ser justo, é o que torna o resultado justo, e portanto binding, diz Hatab. Novamente lembro de Sandel e sua discussão demolidora quanto ao óbvio ululante (depois que você lê): não, o fato de que um contrato é um contrato não necessariamente o torna justo. A competição precisa de um critério de avaliação que, dentro de uma comunidade, não está perenemente em disputa (obviamente que tudo está, na prática, em perene disputa cultural – o que não significa que o sistema político precise ser esquematizado a partir disso, assim como seria escroto estimular o sofrimento no mundo para que as pessoas possam superá-lo e assim como eu não preciso sofrer de paralisia intelectual porque sou pós-moderno).

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Photo by NobMouse

O que mais me fascina é: quem se beneficia desse mundo político em que não há esse critério e simplesmente a maior facção ganha? Quem ganha com o rechaço a certos valores pré-definidos que balizem a discussão? Eu não vejo essa discussão no livro de Hatab – embora certamente ela esteja acontecendo em outro lugar, e não o culpo por não inclui-la – mas sinto como se a democracia agonística satisfizesse um senso de coerência intelectual de quem gosta de Nietzsche e de democracia… E esse seja seu único mérito (voltarei a isso logo). Será que é absolutamente impossível ter um ambiente cultural de não-conformidade, de inovação, uma política tolerante e vivaz como a que ele descreve, sem a necessidade de manter um sistema político absolutamente aberto, destacado de quaisquer valores?

Faltou uma coisa aí

Tem uma hora que Hatab discute se é preciso algum tipo de “positive regard” pelos concidadãos na arena política. Ele diz que não – obviamente, considerando seu objetivo de purgar valores essenciais do esqueleto político agonárquico. Basicamente, só precisamos do respeito pelas outras pessoas – algo um tanto quanto kantiano, ele diz, sobre tratar os outros como fins em si mesmos – e, de qualquer modo, uma pessoa geralmente machuca as outras porque não é “alegre” o bastante.

O que ele sugere não só é absurdo, é sintomático do que foi dito anteriormente sobre o desejo de ser consistente quanto à Nietzsche. Ele precisa evitar essencialismos e assim está disposto a ignorar que muitas pessoas tiram alegria do sofrimento dos outros com bastante frequência.

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Photo by Infynyxx

Adivinha onde a gente vai parar de novo…

Mas há um aspecto aí (mais uma vez, vindo dos pós-modernos) que eu fiquei chocado que ele não analisou. Sendo fiel a Nietzsche, ele introduziu o conceito da multiplicidade do “eu” (que está mais esmiuçado em Contesting Nietzsche, diga-se de passagem) e como o “indivíduo”, o “sujeito” iluminista significa pouco. Mas mesmo explodindo o conceito de eu, as “partes” que compõem essa noção não vão além do indivíduo físico – ou seja, é o corpo que ainda limita os ingredientes que farão parte desse novo “eu” contingente e contextual. Em A ilusão ocidental da natureza humana, Marshall Sahlins diz:

As pessoas são partes umas das outras; elas existem não apenas dentro de si mesmas ou por si mesmas, mas em relações mútuas do ser — pode-se ler Marilyn Strathern e seu trabalho na Nova Guiné, em que uma pessoa se realiza dentro dessas e através dessas mutualidades do ser, a forma como “mãe” e “filho” ou “pai” e “filho” assim tornam-se pela atuação mútua da ligação que assim os identifica. E enquanto a mãe e o pai trabalham em prol do filho, ou os cônjuges em consideração um do outro, o “outro” parental está internamente presente enquanto causa da intencionalidade de alguém. Nessa condição de mutualidade do ser — que parece ser uma boa definição de parentesco — os interesses não são mais confinados às satisfações do corpo individual do que os “eu”s são confinados aos seus limites. Antropólogos de sociedades do Pacífico falam, ao invés disso, do “eu transpessoal”, o “eu” enquanto um “complexo terreno de relacionamentos” ou um “locus de relações sociais compartilhadas ou biografias compartilhadas”. Muitas são as sociedades ao redor do mundo em que parentes devem ser recompensados pela morte de alguém, pelas ofensas que alguém recebe, ou até mesmo por terem cortado o cabelo de alguém.

Ou seja – será pedir demais que ele seja um pouco mais pós-moderno e menos fiel a Nietzsche (afinal, era o que Nietzsche queria, não é mesmo?) e considere também na concepção “múltipla” de sujeito… Outras pessoas? Outros corpos? É esse pressuposto epistemológico quanto ao que define uma pessoa que torna a consistência dele meio tosca, ainda que rigorosa: ele não pode admitir que as pessoas propaguem, como parte de um projeto político, como valor político, que as pessoas cuidem mais umas das outras. Não; só o auto-interesse é inteligível, e se você quer que as pessoas não machuquem as outras, deixam-nas satisfeitas o bastante para que elas não queiram fazer isso (você já viu os efeitos que essa espécie de self-absorption tem em tantos filhos únicos? Multiplique por 100 sob esse discurso…). Bem, que tal, para ser consistente e não tapar o sol com a peneira, considerar que quando agimos em consideração de outra pessoa, fazemos isso porque essa pessoa é também parte de nós, e é assim que relações de afeto funcionam? Isso evita a fantasia de um altruísmo angelical como motivador, ao mesmo tempo que acomoda uma parte enorme da experiência humana.

Por que não?

Olha, eu realmente gostei do livro, tanto na forma como no conteúdo. As críticas que faço vêm do meu anarquismo. Ele mesmo avisa, logo no início do livro, que ele pressupõe um Estado – e no entanto, à medida que lia, pensava: grande parte do que ele diz para defender, a partir de uma perspectiva Nietzscheana e pós-moderna, a democracia, poderia ser dito também para defender o anarquismo contemporâneo.

Mas será que ele realmente entende o anarquismo? Na página 64 ele diz que ele não o considera viável para análise porque se trata de um “desarranjo” em que “nenhuma perspectiva domina” (tradução livre). Sim, ele não vê nenhum problema com a dominação de uma perspectiva na arena política: ele só deseja divisar mecanismos que tornem a dominação fruto de uma vitória obtida numa competição justa e aberta. No entanto, é absolutamente equivocado dizer que no anarquismo não há uma perspectiva dominante – seria o mesmo que dizer que não há sociedade numa sociedade anarquista; que se trata de um bando de indivíduos desagregados (e se a única coisa que ele leu foi Stirner, não o culpo por pensar assim). Se há comunidade, se há política, há um entendimento básico quanto a uma série de coisas – esse entendimento é o que permitefunda a comunidade; Bourdieu discute isso, em parte, em seu texto sobre a violência simbólica. A linguagem, os valores, uma certa visão de mundo – é preciso que uma comunidade compartilhe isso para ser minimamente funcional. É claro que uma perspectiva domina. A questão é: como domina?

Ela certamente não domina à base de força, repressão ou violência simbólica; e certamente não domina como resultado de uma “vitória” endógena. Graeber argumenta que a democracia majoritária só existe quando há a ideia de que todos devem ter uma “voz” nas decisões políticas e, ao mesmo tempo, quando há um dispositivo de poder capaz de forçar a minoria a obedecer a maioria. Para Hatab a glória da política é o agonismo do combate constante entre narrativas, propostas, ideias – ele não é capaz de imaginar o anarquismo porque ele precisa poder forçar a mão dos perdedores.

Na página 65, ele se pergunta “que tipo de política teríamos se, por exemplo, esperássemos por unanimidade ou algum tipo de super-maioria”. Algo próximo ao processo decisório por consenso, e é de fato uma política bastante diferente. Não porque não pode ser agonista; ela é diferente porque é balizada por alguns princípios específicos. O mesmo convite ao debate amplo é feito, e o debate ocorre, mas a resolução dele se encaminha por outros meios. A vontade de superação – vontade de poder – não vai sumir nesse tipo de organização sociopolítica. Vai ser redirecionada para outros alvos, outras relações.

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“No fim das contas”, ele escreve, no fim do livro, “devemos deixar as pessoas viverem as vidas que elas quiserem viver”. Realmente, bastante pós-moderno – e digno de aplauso. Mas a questão é: como isso realmente se traduz em organização política e na própria concepção de “pessoa”? Quem são essas pessoas – indivíduos ou povos? Que interesses regulam essa concepção? Hatab diz que é precisamente porque devemos deixar as pessoas viverem como quiserem que esse sistema democrático Nietzscheano é tão bom. Mas seu processo decisório envolve, a cada decisão (sendo generoso o bastante para imaginar que a minoria não seja composta sempre pelos mesmos), um grupo de pessoas que não vai “viver a vida que elas quiserem”. O processo decisório por consenso (que, é preciso lembrar, não serve para submeter cada passo de todo mundo a constante análise; para isso, bem, existem Estados…) arranja através da cooperação e do entendimento mútuo formas de superar problemas e desafios da vida social. Uma democracia pós-moderna Nietzscheana tem como base para a aceitação geral das pessoas no sistema político o fato de que não se pode pré-estabelecer quem está certo e errado, quem tem ou não tem direito a ser ouvido – mas se o resultado é uma menor possibilidade de que “vivam a vida que quiserem” em vários “setores” da vida, o que é que as impede de se separarem do “grande grupo”, ou mesmo que continuem “juntas” (geográfica ou ideologicamente), ajam à revelia das decisões majoritárias? Ah, é mesmo – o tipo de força que as obriga a se dobrar para a vontade de uma maioria que pode ser tão pequena quanto 51% (e uma defesa Nietzscheana da democracia não pode pressupor algum tipo de “consciência” que as faça voluntariamente querer se submeter, já que exclui essencialismos…).

Se esse for o caso, qual é o sentido dessa democracia? Possibilitar que mais pessoas vivam as vidas que quiserem viver? Ou satisfazer um valor abstrato quanto ao cumprimento de processos e procedimentos? Ou ainda gerenciar as massas de recursos humanos aparentemente necessárias para criar e manter o conforto material? Em qual dessas alternativas as pessoas mais são tratadas como fins em si mesmas?

Na fórmula “viver a vida que se quer”, ajustar uma sociedade para que seus indivíduos sejam livres e ainda concordem implica defender valores como essenciais à vida em comunidade, porque isso influi no sentido do termo “quer” – o debate de valores é o que permite que as pessoas queiram chegar a um comprometimento em que todos saem ganhando, ou no mínimo ninguém sai perdendo. Sem um querer culturalmente balizado, resta a coerção como princípio – e que Hatab não é tímido em aprovar. Não se deve ter moralismos em relação ao poder, diz; condições de liberdade são tão importantes para a criatividade quanto as de restrição, e toda sociedade tem que ser um equilíbrio entre ordem e liberdade. Sim, é verdade; mas isso não significa que não possamos repensar o que dá origemlegitimidade à ordem, além dos mecanismos através dos quais ela se mantém.

O livro é fantástico e vale a pena ler. Apenas acho que, como diz Graeber, o ataque à imaginação fez aqui uma vítima: de que mais formas essa ideia poderia ter florescido se o anarquismo não fosse preterido, enquanto possibilidade, já de antemão?

A boa mediocridade

Outro dia, numa confraternização de final de ano com professores e colegas de um núcleo de pesquisa, falei sobre como eu considerava o separatismo da antropologia uma coisa ridícula – e que a economia, por exemplo, deveria ser reintegrada às ciências sociais. Aí brinquei que todos os cursos de ciências humanas, na verdade, deveriam virar um só “cursão” de dez anos. Entender seres humanos não é fácil não, gente.

Aí alguém comentou que eu sou um pensador como os de antigamente, que queriam saber um pouquinho de cada coisa. E é exatamente isso.

Eu quero me aperfeiçoar em umas três ou quatro coisas na vida, e em tudo mais ser medíocre.

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Photo by quinn.anya

A que me refiro quando falo de mediocridade? Obviamente essa palavra é mais frequentemente usada em seu sentido pejorativo; quando dizemos de algo que não é ruim, mas também não é tão bom quanto desejaríamos. Mas se quisermos, vemos nela um sentido neutro: nem muito bom, nem ruim. Razoável; mediano, passável, OK.

Meu profundamente humano desejo de melhorar, crescer e desenvolver foi tomado por uma perspectiva quantitativa. É o mundo em que vivemos? Pode ser. Ele nunca foi tão grande e tão cheio de coisas para ver. De assuntos para conhecer. De lugares para visitar, de pessoas com quem trocar ideias, de coisas para fazer.

Filmes são coisas relativamente rápidas que dá para rever – mas eu não consigo me convencer a reler livros! Eu os mantenho como referência, e vez ou outra ou quero citá-los ou recuperar alguma passagem específica, mas quando olho pra minha pilha de livros na “fila” não consigo perder tempo com o que já foi. Quero novidade!

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Photo by PatCastaldo

“Mas isso não tem nada a ver com a mediocridade”, você pode dizer. Sim; eu quero ser o melhor escritor que eu puder ser, o melhor cientista social que eu puder ser, e realmente me esforcei para desenvolver a fluência no inglês anos atrás, mas… Perceba: lutar com espadas, escudos e lanças da forma com o SCAM proporciona no treino básico é ótimo, e não quero avançar para ter que lidar com as armaduras e tudo que se associa a elas. Mesmo que eu voltasse para as aulas de dança e não conseguisse ser tão fucking poético no West Coast quanto o Ben Morris, tudo bem; é só para me divertir um pouco. Eu gosto de cozinhar e fazer coisas gostosinhas, mas não quero fazer faculdade de gastronomia – aliás, perceba: hoje em dia tenho um bom apreço pela matemática, adoro a física mesmo não tendo visto The Big Bang Theory (Interestellar já serve?), Breaking Bad me fez gostar mais de química e How I Met Your Mother me fez olhar com um pouco mais de curiosidade para a arquitetura… Mas eu ainda tenho muita dificuldades com os três primeiros, e não sei se gostaria de aprender a desenhar prédios e entender todas as ideias de harmonia e espaço que eles provavelmente têm. E, ainda assim, ideias de espaço, de movimento, de força e tudo o mais vêm como pequenos insights ao longo do costume que o corpo ganha ao lutar (ou dançar…). Sei tocar violão e nisso também sou orgulhosamente medíocre; para tudo que preciso a habilidade que tenho me dá cobertura, mas há muito já deixei pra trás qualquer pretensão de formar uma banda ou coisa parecida. E mesmo para aprender uma terceira língua, não sei se teria motivação para ir “até o final” (que não existe, mas imaginemos que seja a “fluência”) ou se pararia no “meio”, resolvendo que “já tá bom” saber “o básico”. Afinal, quem precisa falar alemão bem quando se fala português e inglês, não é mesmo?

“Jack of all trades, master of none” – ser como o pato, que anda, nada e voa, mas não faz nada bem. Quer dizer, nada não – precisamos contribuir uns com os outros nessa humanidade que precisa, talvez hoje mais do que nunca (outro superlativo quanto ao mundo em que vivemos) de pessoas fazendo bem em prol dos outros as coisas que têm paixão de fazer. E a gente precisa de algo do que se orgulhar também. Um legado.

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Photo by ell brown

Ser uma pessoa melhor para quem amamos – isso todos nós queremos até certo ponto, e nessa jornada também estou inscrito. Mas tirando isso, e algumas poucas coisas, abraço a boa mediocridade de um Leonardo da Vinci, ou a sólida amplitude de um Bauman. É como uma versão mais diluída da bela tirinha do SMBC sobre as muitas vidas em potencial que todos nós temos; não pretendo mudar radicalmente a minha a cada sete anos, mas não seria nada mal saber mais sobre a vida, o universo e tudo o mais, uma coisa de cada vez (mas só um pouquinho de cada).

Estereótipos e arquétipos

O que significaria pensar de forma estereotípica? Eliminar a diversidade do mundo, ou ter o otimismo de fazê-lo pensando o múltiplo como único. É a chama do preconceito: o que sobra do que é consumido pela preguiça de pensar e conhecer. Não sei o que é tal coisa – mas só de olhar, assim, de lado, meio transverso, vejo aqui que pode talvez com certeza ser aquilo mesmo que eu já estava pensando antes de me pedirem a opinião.

O arquétipo, por outro lado… não consigo deixar de vê-lo como uma bobagem, especialmente se estivermos falando do que é associado à linguagem universalista e quase “biologizante” (porque me parece tão mais esotérica que isso) de Jung. – Certa vez ouvi de um filósofo contemporâneo (do qual não lembro) que “não existem arquétipos”, pois “nós é que pensamos de forma arquetípica”. Isso faz toda a diferença. Vai além de ver nossos túneis-realidade como resultados das sombras dos arquétipos, que se projetariam do nosso DNA ou coisa parecida. Nossa forma arquetípica de adaptar nossa visão ao mundo gera esse tipo de percepção conhecida como arquétipo.

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Photo by bixentro

Mas como o arquétipo se diferencia do estereótipo? Etimologicamente temos o princípio (no arquétipo) e a impressão (no estereótipo). Me parece um bom guia: se o estereótipo nega a experiência para impor uma impressão que desconsidera a diversidade, o arquétipo usa de toda sorte de experiência e diversidade para construir um ponto comum que, influenciado por toda uma gama de fatores simultâneos, torna-se princípio, marca que não se sobrepõe à imagem, mas fornece antes um quadro de referências no qual a imagem passa a ser classificada e lida.

Os memes são um grande exemplo de como essa questão de arquétipos universais é baboseira: primeiro porque se os arquétipos são muito parecidos há milênios é porque

  1. As sociedades são, também há milênios, muito parecidas;
  2. Muitas vezes diferenças são desconsideradas rápido demais para que se possa dizer que “no fundo é tudo a mesma coisa”;
  3. Há uma série de eventos vitais que se repetem e que não há muitas formas de as coisas acontecerem diferentemente. Crianças nascem em um mundo de adultos e outras crianças tão ignorantes quanto elas; é óbvio que ao conviverem classificam os adultos como aqueles que são mais bem versados em uma arte ou ofício, e naturalmente a partir dessa convivência aprendem a exercer tal arte ou ofício – a ideia do mentor mais velho é uma obviedade.

Um meme que virou símbolo de “bons conselhos para a vida” é o pato – Mallard Duck – e com ele vemos como o pensamento arquetípico gera arquétipos diferentes – a partir da disseminação contemporânea de informação o pato assume a voz de qualquer pessoa, não necessariamente do sábio mais velho. Na máscara-espelho do animal, o que vemos? Quem sabe o fato de que na era do Google a face do conhecimento não pode ser humana? Ou quem sabe uma perspectiva desiludida da “sociedade humana” enquanto fonte de sabedoria – talvez animais possam, afinal, ser fonte de conhecimento, e esse tipo de arquétipo podemos encontrar em sociedades antigas cuja conexão com os animais era maior que a nossa.

O Forever Alone ou o Bad Luck Brian também são grandes exemplos de arquétipos contemporâneos. Representam parte de uma cultura específica, é verdade, mas não são estereótipos: são princípios de situações, sentimentos e status que tornaram-se mais relevantes para nós nos últimos tempos e, como tendemos a ver as coisas de maneira arquetípica, conceptualizamos esses símbolos para classificar esses princípios.

Um pouco de eurocentrismo

É sabido que a pobreza é, em geral, fator da criminalidade. Isso não implica atribuir a um grupo (os mais pobres) a responsabilidade pela existência do crime; é simplesmente a constatação, tão amplamente confirmada por qualquer estatística, de que a criminalidade cresce junto com a desigualdade social.

Isso é inquietante para muitas pessoas porque significa pôr em cheque todo um modelo de civilização que tanto agrada ao topo de cima de uma sociedade desigual: a ideia de que existem pessoas do bem, e pessoas do mal; e que para vencer as forças do mal é preciso força, força do tipo policial, militar, ostensiva e truculenta. Há uma escolha a ser feita, e é entre a vida dos justos e a dos criminosos, a quem direitos humanos não se aplicam.

O problema é que essa visão precisa necessariamente partir de uma ideia da origem da criminalidade como uma escolha moral: “conheço algumas pessoas pobres e elas não precisaram roubar para viver; por que isso justifica aqueles que roubam?”. Obviamente não justifica, mas é preciso entender que essa ideia do ser humano frente a frente com a escolha da criminalidade é falsa.

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Não porque a criminalidade não exista ou porque não faça mal a alguém. O problema é que essa “escolha” perante a criminalidade não é igual para todos, porque tudo no universo dessas duas pessoas hipotéticas difere a nível de conceito: o que elas entendem por comunidade, sociedade, lealdade, vida, futuro, certo, errado, isso tudo é muito diferente. Só que – e aqui, se o texto se encerrasse, todo tipo de higienista viria dizer que aí mesmo que não há salvação para essa gente – essa diferença vem das diferenças de socialização. Das diferenças de ambiente em que as pessoas crescem, das oportunidades que têm.

Quando alguém completamente de fora do circuito mainstream da sociedade olha para a vibrante urbanidade, o que vê? Sua história como o adolescente estrela do rock que alcança glória na televisão? Ou como algo completamente alheio, estranho, mas mesmo assim desejável, respeitável, única medida segundo o qual ele também será respeitável (e desejável)? Esse é só um dos lados da questão. Essa socialização diferente, o costume com a violência que marca as relações (que é diferente não por existir, mas por ser diferente da que marca as nossas), leva a uma visão completamente diferente de mundo. Se leva a uma desvalorização daquilo que nós, “do lado de cá”, valorizamos? Claro. Se isso, em situações extremas, marca às vezes a desvalorização do próprio valor da vida? Sim, claro, mas nas condições de guerra que a situação impõe estou discutindo justamente o quanto muitos “do lado de cá” simplesmente tampouco valorizam a vida quando é a vida desses “outros” “indesejáveis”.

Muitos não têm a fibra de esperar por cem metros para jogar papel num lixeiro ao invés de se livrar dele logo no chão, e põem a culpa nas circunstâncias: a prefeitura é que não instala lixeiros o bastante nas ruas. Mas muitos dos mesmos são os primeiros a exigir que, nas circunstâncias mais adversas (que muitos desses não conhecem), a fibra moral supere tudo e faça com que um excluído escolha a versão das coisas que mais se adeque às exigências de segurança e conveniência destas pessoas de bem.

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É importante notar justamente a posição no campo social, ou a disparidade que pode até mesmo, argumentar-se-ia, criar campos sociais distintos, e como isso influencia nossos discursos. Isso é (parcialmente) eurocentrismo, ou pelo menos um de seus efeitos. O pensamento do homem uno, cidadão que efervesce como espuma da Revolução Francesa, universal e indistinguível de seus pares; os valores pelos quais um responde têm que ser os valores pelos quais todos respondem. Mas a situação em que alguém aprende a viver, as regras que internaliza, são muito diferentes em situações de exclusão social. É difícil tomar distância do assunto (especialmente se alguém é atingido diretamente por ele), mas é preciso se quisermos verificar o óbvio: só respeita uma sociedade um membro que é por ela respeitado. Num mundo profundamente desigual vão existir diferentes valorações baseadas na realidade que se apresenta duríssima para alguns; e aí a exigência de valores iguais é a arma de privilegiados incautos, mesmo que bem intencionados, mas é também o desejo de que a realidade fosse outra não nas decisões das pessoas, mas na própria história das coisas. Por isso é essencial entender a estrutura que produz essa desigualdade e atacá-la em seu cerne: a partir daí poderemos vencer o obstáculo maior à produção de uma consciência mais uniforme, entre os cidadãos, em termos do que significa vivermos juntos, vivermos em conjunto, em sociedade, trabalhando uns pelos outros.

Quis escrever isso depois de ler um trecho do livro “A ilusão neoliberal”, do francês René Passet. Confesso que não gastaria dinheiro comprando esse livro se fosse hoje; a questão é que o tenho desde uma época em que não conhecia bem o neoliberalismo, e achei que esse livro me daria ideias interessantes sobre o tema. Mas quem estuda Ciências Sociais acaba se aclimatando bem ao tema, e eu já não precisaria do livro… Mas já que já o tenho, decidi terminá-lo.

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Portanto entre passagens que explicam coisas que eu já sabia e outras mais convolutas encontro vez por outra novas informações que, mesmo que nada surpreendentes, acabam bem redigidas ou transmitem as ideias de uma maneira bem didática. Tem uma parte particularmente interessante que explica a obsessão da direita de sempre quanto à inflação: é importante controlar a inflação porque ela mantém o lucro real das rendas de investimentos – e, como bônus, pode ser usada como peça de propaganda para indicar que algo vai mal na economia, já que a alta de preços afeta os meros mortais também.

A passagem que me motivou é a seguinte:

Quando o salário é baixo demais, muitos consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia, em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000, proporcionalmente sete vezes mais que na França(…). Isso explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”, comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego americano.”

A exclusão leva à revolta uma juventude sem futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário, deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do crescimento haveriam de respeitar isso? Em nome do exemplo dado pelas “elites”? Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a “grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os homens. O problema dos bairros periféricos (…) não tem raízes apenas no urbanismo malbaratado, mas nessa lógica que em nome da competitividade transforma a substituição do homem pela máquina em drama da exclusão social.

Não bastará pintar as fachadas de rosa, mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.

Nos mais fracos, o sentimento de impotência ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo, fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na areia… Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos professores da virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.

Bullying: sobre a estrutura fundamental da dominação

Tradução de “The Bully’s Pulpit: On the elementary structure of domination”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2015.

© RANDALL ENOS

Entre fevereiro e março de 1991, na Primeira Guerra do Golfo, forças dos Estados Unidos bombardearam, destroçaram, incendiaram milhares de jovens iraquianos que tentavam fugir do Kuwait. Houve uma série de incidentes desse tipo – a “auto-estrada da morte”, a “autoestrada 8” e a “batália de Rumaila” – em que o poderio aéreo norte-americano interceptou iraquianos em fuga, envolvendo-se em uma luta injusta em que inimigos acuados foram chacinados em seus veículos. Imagens de corpos carbonizados desesperadamente rastejando para fora de caminhões tornaram-se ícones da guerra.

Eu nunca entendi por que esse massacre de homens iraquianos não foi considerado um crime de guerra. É claro que, naquela época, o comando dos Estados Unidos tinha medo disso. O Presidente George H. W. Bush rapidamente anunciou um cessar-fogo temporário, e o exército se esforçou muito desde então para minimizar o número de causalidades, obscurecer as circunstâncias, difamar as vítimas (“um bando de estupradores, assassinos e bandidos”, insistiu mais tarde o general Norman Schwarzkopf), e evitar que as fotos mais reveladoras aparecessem na mídia do país. Há rumores de que existem vídeos do pânico dos iraquianos, feitos pelas câmeras montadas nas armas dos helicópteros, que nunca serão vistos pelo público.

Faz sentido que as elites se preocupassem. Afinal, aqueles eram em grande parte homens que tinham sido forçados a lutar e que, quando jogados no combate, fizeram precisamente o que alguém gostaria que todos os jovens numa situação como essa fizessem: mandaram tudo pro inferno, fizeram as malas, e tentaram ir pra casa. E por isso deveriam ser queimados vivos? Quando o Estado Islâmico fez isso com um piloto jordaniano no inverno passado, o ato foi universalmente denunciado como indescritivelmente bárbaro – e ele foi, é claro. Ainda assim, o Estado Islâmico poderia ao menos dizer que o piloto estava jogando bombas neles. Os iraquianos em fuga na “autoestrada da morte” e em outros exemplos de carnificina americana eram apenas garotos que não queriam lutar.

Mas talvez foi justamente essa recusa que fez com que os soldados iraquianos não ganhassem muita simpatia, não apenas nos círculos de elite, onde não dá para esperar tanto, mas também nas cortes da opinião pública. Em algum nível, vamos ser sinceros: esses homens eram covardes. Eles mereceram.

Parece haver mesmo uma falta de compaixão por homens não-combatentes em zonas de guerra. Mesmo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos falam de massacres como sendo dirigidos quase exclusivamente contra mulheres, crianças e, talvez, os idosos. O que está implícito, quase nunca dito claramente, é que homens adultos ou estão lutando ou há algo de errado com eles (“Quer dizer que existem pessoas por aí atacando mulheres e crianças e você não estava lá os defendendo? Você é um homem ou um rato?”). Aqueles que cometem massacres são conhecidos por manipular de forma cínica esse recrutamento tácito: como célebre exemplo, os comandantes servo-bósnios que calcularam que poderiam evitar acusações de genocídio se, ao invés de exterminar populações inteiras nas cidades e vilas conquistadas, matassem apenas homens com idade entre quinze e cinquenta e cinco anos.

Mas há algo a mais circunscrevendo a nossa empatia pelos soldados iraquianos em fuga, vítimas desse massacre. O público dos Estados Unidos foi bombardeado com acusações de que eles eram na verdade um bando de criminosos que estavam pessoalmente estuprando, pilhando, e jogando recém-nascidos fora de suas incubadoras (diferente daquele piloto jordaniano, que estava apenas jogando bombas em cidades cheias de mulheres e crianças a partir de uma altitude, pensava ele, segura). Todos nós aprendemos que os valentões, aqueles que exercem o bullying, são na verdade covardes, então aceitamos que o inverso deve naturalmente ser verdade também. Para a maioria de nós, a experiência primordial de exercer e sofrer bullying está no fundo de nossas mentes em discussões sobre crimes e atrocidades. Ela molda nossa sensibilidade e capacidade para a empatia de maneiras profundas e perniciosas.

A covardia também é uma causa

A maioria das pessoas não gosta de guerras e acha que o mundo seria um lugar melhor sem elas. Mesmo assim, o desprezo por covardes parece ter mais força. Afinal de contas, a deserção – a tendência que têm as pessoas forçadas a participar da glória de um exército pela primeira vez de escapar da marcha, procurar esconderijo na floresta ou fazenda mais próxima e então, tendo a tropa passado, descobrir uma forma de voltar pra casa – é provavelmente a maior ameaça às guerras de conquista. Os exércitos de Napoleão, por exemplo, perderam bem mais soldados para a deserção do que em combate. Exércitos recrutados à força geralmente têm que usar uma significativa parte de suas unidades para ameaçar o resto da tropa com tiros contra fugitivos. Ainda assim mesmo aqueles que dizem odiar as guerras sentem-se desconfortáveis celebrando a deserção.

Quase a única verdadeira exceção que conheço é a Alemanha, que ergueu uma série de monumentos rotulados como “Ao desertor desconhecido”. O primeiro e mais famoso, em Potsdam, lê: “A UM HOMEM QUE SE RECUSOU A MATAR OUTROS HOMENS”. Mesmo assim, quando falo sobre o monumento com meus amigos, eu geralmente encontro um retraimento instintivo. “É de se perguntar: eles realmente desertaram porque não queriam matar ninguém ou porque não queriam morrer?”. Como se tivesse algo de errado com isso.

Em sociedades militarísticas como os Estados Unidos, é quase axiomático que nossos inimigos devem ser covardes – especialmente se o inimigo pode ser rotulado como um “terrorista” (isto é, alguém acusado de desejar criar o medo em nós, transformando-nos, logo a nós, em covardes). Faz-se então necessário um ritual de inversão das coisas para insistir que não, eles é que têm medo. Todos os ataques contra cidadãos americanos são por definição “ataques covardes”. O segundo George Bush estava falando do 11 de setembro como um “ato de covardia” na manhã seguinte aos ataques. Mas se você pensar, isso é estranho. Afinal, não faltam coisas ruins que alguém possa dizer sobre Mohammed Atta e seus comparsas – pode escolher – mas com certeza “covarde” não é uma delas. Destruir uma festa de casamento à distância usando um drone pode ser considerado um ato de covardia. Pessoalmente chocar um avião num arranha-céus requer coragem. De qualquer maneira, a ideia de que uma pessoa pode ser corajosa defendendo uma causa ruim parece não ser um discurso público aceitável, apesar do fato de que muito do que passa por história consiste em incontáveis narrativas de pessoas corajosas fazendo coisas terríveis.

Sobre falhas fundamentais

Mais cedo ou mais tarde, todo projeto de liberdade humana vai ter que entender por que aceitamos que as sociedades sejam classificadas e ordenadas por violência e dominação em primeiro lugar. E me veio a ideia de que nossa reação visceral à fraqueza e à covardia, nossa estranha relutância em nos identificarmos até com as formas mais justificadas de medo, pode ser uma pista.

O problema é que o debate até agora tem sido dominado por proponentes de duas posições igualmente absurdas. De um lado, há aqueles que negam que é possível dizer qualquer coisa sobre seres humanos enquanto espécie; de outro, há aqueles que presumem que o objetivo é explicar por que é que alguns humanos parecem se comprazer com o sofrimento dos outros. Estes últimos invariavelmente acabam formulando teorias sobre babuínos e chimpanzés, geralmente para dizer que humanos – ou pelo menos aqueles de nós com testosterona o bastante – herdaram de nossos ancestrais primitivos uma tendência inata à agressão auto-engrandecedora que se manifesta na guerra, que por sua vez não pode ser eliminada, apenas canalizada rumo à atividade competitiva no mercado. Com base nessas presunções, os covardes são aqueles a quem falta um impulso biológico primário, e não surpreende que nós não gostemos deles.

Há vários problemas com essa linha de pensamento, o mais óbvio que ela simplesmente não é verdade. A perspectiva de participar de uma guerra não ativa automaticamente um gatilho biológico no macho humano. Considere a “parábola das tribos”, de Andrew Bard Schmookler. Cinco sociedades compartilham o mesmo rio em um vale. Elas podem viver em paz apenas se todas elas se mantém pacíficas. O momento em que um “mau elemento” é introduzido – digamos, os jovens de uma tribo decidem que a melhor forma de lidar com a perda de um ente querido é cortar a cabeça de um estrangeiro, ou que seu Deus os escolheu para serem os flagelos dos infiéis – bem, as outras tribos, se não quiserem ser exterminadas, têm apenas três opções: fugir, se submeter, ou reorganizar suas sociedades para favorecer a efetividade militar. Essa lógica parece difícil de refutar.

Contudo, como sabe qualquer um familiar com a história de, digamos, a Oceania, a Amazônia ou a África, um grande número de sociedades simplesmente se recusou a se organizar em termos militarísticos. De novo e de novo, encontramos descrições de comunidades relativamente pacíficas que simplesmente aceitavam o fato de que, a cada tantos anos, eles teriam que correr para as montanhas porque algum grupo local de malvados chegou para pôr fogo em suas vilas, estuprar, pilhar, e fazer infelizes retardatários de troféus. A grande maioria dos humanos do sexo masculino se recusou a perder tempo treinando para a guerra, mesmo quando era de seu interesse imediato fazê-lo. Para mim, isso é prova positiva de que seres humanos não são uma espécie particularmente belicosa.[*]

Ninguém pode negar, é claro, que humanos são criaturas falhas. Praticamente toda língua tem algum análogo ao inglês “humane”, ou expressões como “tratar alguém como um ser humano”, o que significa que simplesmente reconhecer outra criatura como um outro humano implica a responsabilidade de tratá-la com um certo mínimo de candor, consideração e respeito. É óbvio, no entanto, que em nenhum lugar os humanos consistentemente mantêm-se fiéis a esses ideais. E quando falhamos, deixamos para lá e dizemos que “errar é humano”. Ser humano, então, é ao mesmo tempo ter ideais e não conseguir alcançá-los.

Se é assim que vemos a nós mesmos, não é surpreendente que ao tentar entender o que possibilita estruturas violentas de dominação, tendemos a perceber a existência de impulsos antissociais e nos perguntar: por que algumas pessoas são cruéis? Por que elas desejam dominar outras pessoas? Essas, contudo, são precisamente as perguntas erradas a se fazer. As pessoas têm uma variedade infinita de desejos. Eles geralmente nos puxam ao mesmo tempo em diferentes direções. A mera existência de impulsos antissociais não significa nada.

A questão que deveríamos estar fazendo é não por que pessoas são cruéis às vezes, ou mesmo por que algumas pessoas são frequentemente cruéis (todas as evidências sugerem que verdadeiros sádicos são uma porção extremamente pequena da população geral), mas como acabamos criando instituições que encorajam esse tipo de comportamento e que fazem crer que pessoas cruéis são de alguma forma admiráveis – ou pelo menos tão merecedoras de simpatia quanto aquelas que elas violentam.

Aqui eu acho que é importante olhar com cuidado para a maneira como as instituições organizam as reações dos espectadores. Geralmente, quando imaginamos o cenário primordial da dominação, pensamos em algum tipo de dialética hegeliana mestre-escravo em que duas partes competem por reconhecimento mútuo, o que leva a uma sendo permanentemente vencida. Deveríamos imaginar ao invés disso uma relação de três elementos, que consiste em agressor, vítima e testemunha, uma relação em que ambas as partes em disputa apelam para o reconhecimento (validação, simpatia, etc) de um outro alguém. A batalha hegeliana por supremacia, afinal, é só uma abstração. Uma história qualquer. Poucos de nós testemunharam dois homens crescidos duelarem até a morte para que um reconheça o outro como verdadeiramente humano. O cenário de três elementos, em que uma parte machuca a outra enquanto ambas apelam para que aqueles ao redor reconheçam sua humanidade, é um que todos nós testemunharam e do qual participamos, em um ou outro papel, milhares de vezes desde a pré-escola.

A estrutura (do ensino) fundamental da dominação

Estou falando, é claro, do bullying no pátio da escola. Bullying, eu proponho, representa um tipo de estrutura fundamental da dominação humana. Se quisermos entender quando tudo começa a dar errado, é aqui que devemos começar.

Nesse caso também, condições devem ser estabelecidas. Seria muito fácil cair em argumentos evolucionários simplistas. Há uma tradição – A tradição Senhor das Moscas, podemos chamá-la – segundo a qual os valentões da escola são uma encarnação moderna do “macho alfa” primordial e ancestral, que instantaneamente restaura a lei da selva uma vez que não seja contido pela autoridade racional de um macho adulto. Mas isso é claramente falso. Na verdade, livros como O Senhor das Moscas são mais propriamente lidos como reflexões sobre os tipos de técnicas precisas de terror e intimidação de que as escolas públicas britânicas se serviam para transformar crianças de elite em oficiais capazes de gerenciar um império. Essas técnicas não vieram da ausência de autoridade; eram técnicas projetadas precisamente para criar um tipo de autoridade adulta, masculina, calculista e sangue-frio.

Hoje a maioria das escolas não são como a Eton e a Harrow dos dias de William Golding, mas mesmo naquelas que se orgulham de seus programas antibullying ele acontece em formas que de maneira alguma vão contra, ou ocorrem a despeito da, autoridade institucional. O bullying é mais como uma refração dessa autoridade. Para começar com uma coisa óbvia: as crianças não podem sair da escola. Normalmente, o primeiro instinto de uma criança quando ela está sendo atormentada ou humilhada por alguém maior é ir para outro lugar. As crianças na escola, contudo, não têm essa opção. Se elas insistirem em fugir rumo à segurança, autoridades as trarão de volta. Essa é uma das razões, eu suspeito, para a existência do estereótipo do valentão como o puxa-saco do professor ou monitor de corredor: mesmo quando não é verdadeiro, ele se alimenta do conhecimento tácito de que o valentão depende da autoridade da instituição pelo menos nessa única forma – a escola está, basicamente, segurando as vítimas para os valentões baterem. Essa dependência da autoridade é também a razão pela qual as formas mais extremas e elaboradas de bullying acontecem em prisões, onde os condenados dominantes e os carcereiros formam alianças.

Ainda mais importante, os valentões geralmente têm consciência de que o sistema provavelmente vai punir as vítimas que reajam mais fortemente. Assim como uma mulher que, confrontada por um homem que talvez tenha o dobro de seu tamanho, não pode se dar ao luxo de lutar de forma “justa”, e ao invés disso deve aproveitar um momento oportuno para infligir o maior dano possível ao homem que a tem abusado – uma vez que ela não pode deixá-lo em condições de revidar – também a vítima de bullying na escola deve responder com força desproporcional, não para incapacitar o oponente, mas para fazê-lo hesitar da próxima vez que quiser atacar.

Eu aprendi essa lição por experiência própria. Eu era magricela, mais jovem que os outros – eu pulei um ano – e então era um alvo perfeito para algumas das crianças maiores que pareciam ter desenvolvido uma técnica quase científica para dar socos em tampinhas como eu de forma rápida, dura e incisiva o bastante para evitarem ser acusados de terem atacado alguém. Quase não havia dia em que não me batiam. Finalmente, decidi que já era hora de aquilo acabar, encontrei o momento certo, e mandei um imbecil particularmente irritante voando pelo corredor com um soco bem dado na cabeça. Eu acho que posso ter rachado o lábio dele. De certa forma, funcionou como eu queria: por um ou dois meses os valentões, em geral, ficaram longe. Mas o resultado imediato foi que nós dois fomos levados ao diretor por brigar, e o fato de que ele me atacou primeiro foi determinado como irrelevante. Fui considerado culpado e expulso dos clubes de matemática avançada e de ciências (Uma vez que ele não tinha notas muito boas, não havia nenhum clube do qual pudesse ser expulso).

“Não interessa quem começou” são provavelmente as quatro palavras mais pérfidas da língua portuguesa. É claro que interessa.

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Crowdsourcing a crueldade

Muito pouco desse foco no papel da autoridade institucional é refletido na literatura da psicologia sobre o bullying, que, uma vez que é escrita principalmente para as autoridades escolares, presume um papel totalmente benigno para elas. Ainda assim, pesquisas recentes – e tem havido muitas desde Columbine – têm revelado, eu penso, várias coisas sobre essa forma fundamental de dominação. Vamos mais fundo.

A primeira coisa que essas pesquisas mostram é que a enorme maioria dos incidentes de bullying acontece na frente de um público. A perseguição privada é relativamente rara. A humilhação é uma grande parte do bullying, e seus efeitos não podem realmente ser produzidos sem alguém para testemunhá-los. Às vezes, o público instiga o valentão, rindo, incitando, ou ajudando. Mais frequentemente, o público fica passivo e quieto. É raro alguém defender um colega de classe sendo ameaçado, ridicularizado ou fisicamente atacado.

Quando pesquisadores perguntam às crianças por que elas não intervieram, uma minoria diz que eles acharam que a vítima teve o que mereceu, mas a maioria diz que eles não gostavam do que estava acontecendo, e certamente não gostavam muito do valentão, mas decidiram que se envolver podia significar que eles acabariam recebendo o mesmo tratamento que a vítima – e isso só ia piorar as coisas. O interessante é que isso não é verdade. Estudos também mostram que, em geral, se um ou dois observadores protestam, os valentões deixam a agressão de lado. Mesmo assim, a maior parte das testemunhas se convence de que o oposto vai acontecer. Por quê?

Primeiro porque quase todo tipo de ficção popular à qual eles provavelmente estão expostos diz a eles que vai. Super-heróis de quadrinhos o tempo todo entram em cena para dizer “Ei, pare de bater nele” – e invariavelmente os vilões de fato passam a odiá-los, o que resulta em todo tipo de problema (se há uma mensagem subliminar nesse tipo de ficção, ela com certeza é algo como “É melhor você não se envolver nesse tipo de coisa a não ser que possa lidar com um monstro interdimensional com lasers nos olhos”). O “herói”, como mostrado na mídia dos Estados Unidos, é principalmente um álibi para a passividade. Pensei nisso pela primeira vez quando vi um jornalista de TV local elogiar um adolescente que pulou num rio para salvar uma criança que estava se afogando. “Quando eu perguntei por que ele fez isso”, o jornalista disse, “ele disse o que os verdadeiros heróis sempre dizem, ‘eu só fiz o que qualquer pessoa faria nessas circunstâncias'”. Quem está assistindo deve entender que, é claro, isso não é verdade. Não é qualquer pessoa que faria isso. E não tem problema. Heróis são extraordinários. É perfeitamente aceitável que você, nas mesmas circunstâncias, fique parado e espere uma equipe profissional de resgate.

Também é possível que as crianças nas escolas reajam de forma passiva ao bullying porque elas já perceberam como a autoridade dos adultos opera e presumem erroneamente que a mesma lógica se aplica às interações com seus pares. Se é, digamos, um policial que está abusando de algum adulto desafortunado, então sim, é absolutamente verdadeiro que intervir vai provavelmente te dar uma séria dor de cabeça. E todos nós sabemos o que acontece com “dedos-duros” do governo (Você se lembra do secretário de estado John Kerry exigindo que Edward Snowden “fosse homem” e se submetesse a uma vida inteira de bullying sádico nas mãos do sistema de justiça criminal americano? O que é que uma criança inocente deve concluir disso?). Os destinos dos Mannings ou Snowdens do mundo são propagandas de alto nível para o princípio maior da cultura Americana: abuso de autoridade pode até ser ruim, mas apontar abertamente que alguém está abusando de autoridade é muito pior – e merece a mais severa punição.

Um segundo surpreendente dado de pesquisas recentes: os valentões não sofrem, na verdade, de baixa auto-estima. Psicólogos há muito tempo presumiram que crianças malvadas estavam descontando suas inseguranças nos outros. Não. Acontece que a maioria dos valentões agem como babacas mimados e arrogantes não porque estão sendo atormentado por duvidarem de si mesmos, mas porque são na verdade babacas mimados e arrogantes. Na verdade, a autoconfiança deles é tanta que eles criam um universo moral no qual seu “estilo” e violência se tornam o padrão a partir do qual os outros devem ser julgados; ser fraco, distraído, meio desajeitado ou reclamão não são apenas pecados, mas provocações que seria errado deixar de corrigir.

Aqui também eu posso oferecer um testemunho pessoal. Eu lembro bem de uma conversa com um atleta que eu conheci no ensino médio. Ele era um tonto, mas era querido. Eu acho que até ficamos chapados juntos uma ou duas vezes. Uma vez, depois de ensaiar para um drama de época, achei que ia ser engraçado entrar no dormitório em trajes renascentistas. Assim que ele me viu, partiu com tudo para cima de mim. Fiquei tão indignado que esqueci de ficar com medo. “Matt! Que porra é essa? Por que você quer me bater?”. Matt parecia tão surpreso que ele esqueceu de continuar a me ameaçar. “Mas… Você entrou no quarto usando calça de malha!”, ele protestou. “Quer dizer, o que é que você esperava?”. Será que Matt estava lidando com profundas inseguranças sobre sua própria sexualidade? Não sei. Provavelmente. Mas a verdadeira pergunta é por que presumimos que sua mente problemática é tão importante? O que realmente importa é que ele sentiu de verdade que precisava defender um código social.

Dessa vez, o valentão adolescente estava usando de violência para fazer cumprir um código de masculinidade homofóbica que também faz parte da autoridade adulta. Mas com crianças menores, esse geralmente não é o caso. Aqui vem um terceiro dado surpreendente da literatura psicológica – talvez o mais revelador de todos. No começo, não é a menina gorda, ou o menino com óculos, que tem mais chances de ser atacado. Isso vem depois, à medida que os valentões (sempre atentos às relações de poder) aprendem a escolher suas vítimas de acordo com os padrões dos adultos. Antes disso, o principal critério é como a vítima reage. A vítima ideal não é a absolutamente passiva. Não, a vítima ideal é aquela que enfrenta o valentão, mas o faz de uma maneira ineficaz, esperneando, chorando, ameaçando contar tudo pra mamãe, ou fingindo que vai lutar e depois fugindo. Fazer isso é precisamente o que torna possível criar um drama moral em que o público pode dizer a si mesmo que o valentão deve, em algum sentido, estar certo.

Essa dinâmica triangular de valentão, vítima e público é o que eu quero dizer com a estrutura profunda do bullying. Ela merece ser estudada em livros didáticos. Na verdade, ela merece estar em todo lugar em letreiros de neon gigantes: O bullying cria um drama moral em que a forma da reação da vítima a um ato de agressão pode ser usada como justificação retrospectiva para o próprio ato original de agressão.

Esse drama não aparece apenas no começo da infância; é precisamente o aspecto que permanece na vida adulta. Eu chamo isso de falácia “parem com isso vocês dois”. Qualquer um que frequenta fóruns de mídia social vai reconhecer o padrão. O agressor ataca. O alvo tenta ser superior a isso e não diz nada. Ninguém intervém. O agressor ataca com mais força. O alvo tenta ser superior e nada faz novamente. Ninguém intervém. O agressor ataca de novo.

Isso pode acontecer uma dúzia de vezes, cinquenta vezes, até que finalmente o alvo responde. Então, e só então, uma penca de vozes imediatamente surgem, dizendo “Treta! Treta! Olha só esses dois idiotas batendo boca!” ou “Será que vocês não podem se acalmar e aprender a ver o ponto de vista um do outro?”. O valentão esperto sabe que isso vai acontecer – e que ele não vai perder nenhum ponto por ser o agressor. Ele também sabe que se ele afinar sua agressão no tom certo, a resposta da vítima pode ser ela mesma representada como o problema.

Joselito: Você é um cara bacana, Pedrinho, mas eu tenho que dizer que você é um pouquinho idiota.

Pedrinho: Um pouquinho… Quê? Que caralhos você quis dizer com isso?

Joselito: Viu só? Te acalma, cara! Eu disse que tu era um cara bacana. Pra que falar palavrão? Você não viu que tem damas lendo a conversa?

E o que é verdadeiro quanto à classe social também é verdadeiro quanto a qualquer outra forma de desigualdade estrutural: daí epítetos como “mulheres loucas”, “nordestinos vagabundos” e uma variedade sem-fim de termos semelhantes. Mas a lógica essencial do bullying vem antes de tais desigualdades. É a matéria da qual são feitas.

Pare de bater em si mesmo

E essa, eu proponho, é a principal falha do ser humano. Não é que como espécie somos particularmente agressivos. É que tendemos a responder mal a agressões. Nosso primeiro instinto quando vemos uma agressão sem motivo é ou fingir que ela não está acontecendo ou, se isso se torna impossível, igualar o agressor e a vítima, colocando-os ambos sob um tipo de lógica de quarentena que, espera-se, pode evitar que contagie os outros (o que explica o fato, descoberto pelos psicólogos, de que as pessoas detestam valentões e vítimas em proporções mais ou menos iguais). O sentimento de culpa causado pela suspeita de que isso é um jeito essencialmente covarde de se comportar – já que é um jeito essencialmente covarde de se comportar – abre caminho para um jogo complexo de projeções, no qual o valentão é ao mesmo tempo um supervilão invencível e um fanfarrão inseguro que dá pena, enquanto a vítima se torna simultaneamente um agressor (aquele que viola seja lá qual for a convenção social que o valentão tenha invocado ou inventado) e um covarde patético que não quer se defender.

Obviamente, estou oferecendo apenas o rascunho mais mínimo de uma psicodinâmica complexa. Mas ainda assim, esses insights podem nos ajudar a entender por que é tão difícil estender nossas simpatias a, entre outros, soldados iraquianos chacinados enquanto fugiam do combate. Aplicamos a eles a mesma lógica de quando assistíamos passivamente a algum valentão da infância aterrorizar sua vítima: igualamos agressores e vítimas, insistimos que todo mundo é igualmente culpado (note como, sempre que se ouve uma notícia de uma atrocidade, alguns vão imediatamente começar a insistir que as vítimas devem ter cometido atrocidades também), e simplesmente esperamos que ao fazer isso, não vamos nos contagiar com a violência.

Essas são coisas difíceis. Eu não afirmo entendê-las completamente. Mas se almejamos uma sociedade genuinamente livre, então vamos ter que reconhecer como a relação triangular e mutuamente constitutiva de valentão, vítima e espectadores realmente funciona, e então desenvolver formas de combatê-la. Lembre-se, não somos um caso perdido. Se não fosse possível criar estruturas – hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum – que pelo menos às vezes evitam que essa dinâmica se inicie, então sociedades igualitárias de qualquer tipo jamais teriam sido possíveis. Lembre-se, também, de quão pouca coragem é geralmente necessária para parar valentões que não são apoiados por qualquer poder institucional. Acima de tudo, lembre-se de que quando os valentões são realmente apoiados por tal poder, os heróis podem ser aqueles que simplesmente vão embora.

[*] Mesmo assim, antes que demos um passe para os adultos do sexo masculino, devo observar que o argumento para a eficiência militar é uma faca de dois gumes: mesmo sociedades cujos homens se recusam a organizar a si mesmos efetivamente para a guerra também insistem, na gigantesca maioria das vezes, que as mulheres definitivamente não deveriam lutar. Isso é bem pouco eficiente. Mesmo se pudéssemos admitir que homens são, geralmente falando, melhor em combates (e isso não é de forma alguma claro; depende do tipo de luta), e se quiséssemos selecionar a metade da população com os corpos mais preparados para lutar, alguns destes corpos seriam femininos. De qualquer forma, em uma situação realmente desesperadora pode ser uma tática suicida não usar todos os recursos à disposição. Mesmo assim, várias e várias vezes encontramos homens – mesmo aqueles relativamente não-beligerantes – decidindo morrer em vez de quebrar seu próprio código social que diz que as mulheres jamais deveriam portar armas. Não surpreende então que tenhamos tanta dificuldade em ter empatia por vítimas masculinas de atrocidades: à medida que segregam as mulheres do combate, eles são cúmplices da lógica de violência masculina que os destruiu. Mas se estamos tentando identificar a falha principal ou o grupo de falhas na natureza humana que permite que essa lógica de violência masculina exista para começo de conversa, isso nos deixa com um cenário de confusão mental. Não temos, talvez, algum tipo de proclividade inata para a dominação violenta. Mas temos uma tendência a tratar aquelas formas de dominação que existem no momento – começando com a de homens sobre mulheres – como imperativos morais em si mesmos.

Nota do tradutor

Aconteceu de eu ler este texto logo depois de ver um vídeo do excelente canal Thunk. Eu absolutamente recomendo que você veja o seguinte vídeo como uma espécie de complemento – e também contraponto – ao texto traduzido acima.

Atualização: O vídeo abaixo conta agora com legenda em português brasileiro!

Utilidade pública: “cultural” não significa “uma farsa”

Muita gente pensa da seguinte forma: tudo que é “natural” é imutável no comportamento humano; é fruto de um instinto inexorável que todos nós temos apenas por existir enquanto espécie. Tudo que é “cultural”, por outro lado, não seria “necessário”, e portanto é absolutamente modificável.

Certa feita discutimos a maternidade em sala de aula. Algumas das mães da sala começaram a descrever como elas se sentiam intimamente ligadas a seus filhotes enquanto estavam ainda em suas barrigas; como aquela sensação era um instinto tão profundo que não poderia jamais ser algo “relativo” e “cultural”.

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Photo by D.A.K.Photography

A questão é que a pecha de natural é “anexada” (culturalmente – haha) àquilo que queremos salvaguardar de discussão; o que é natural é assim porque é assim, então é assim e pronto (cala a boca). Qualquer discriminação mais cedo, mais tarde, vai tentar se fundamentar em alguma teoria biológica, genética, química (negros têm cérebros menores, mulheres cuidavam das cavernas e por isso são melhores em fazer várias coisas ao mesmo tempo, besteiras do tipo). Esse é um dos grandes problemas que nós, cientistas sociais, temos com a ideia de “natureza”: ela é um discurso; uma arma utilizada em batalhas ideológicas que visam, na maior parte das vezes, esconder a origem sociocultural das coisas que sentimos e pensamos para que ninguém tente questioná-las.

A antropologia é justamente uma fonte tão poderosa de onde tirar defesas contra essa arma porque todo o argumento tem uma grande falha: para funcionar, ele precisa englobar cada homo sapiens do planeta no presente, no passado e no futuro – e o fazer ainda de acordo com uma lógica bastante consistente. É possível dizer que sentir fome é natural, não só porque todos os seres humanos a sentem, mas porque entendemos como a fome funciona (precisamos de comida para viver), e também porque isso é uma constante em praticamente todo animal. Dizer, por exemplo, que a monogamia é natural é algo fácil de contra-atacar: é só mostrar exemplos de sociedades inteiras em que a monogamia não é a regra.

Esse, é claro, é um processo bastante próximo do que conhecemos como “relativismo cultural”: afinal, os proponentes da tese de que a monogamia é natural podem simplesmente dizer que esses povos poligâmicos são aberrações antinaturais ou coisa parecida; o relativismo (e um bastante razoável até aqui) vem com o reconhecimento de que não podemos julgar a cultura dos outros dessa forma; para eles, o que eles fazem provavelmente parece muito mais natural do que a monogamia.

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Photo by ivanatman

No entanto, o grande problema é que muitos pensam que com esse relativismo passamos a ter um enfraquecimento da cultura enquanto tal. Afinal, se todas as culturas são igualmente válidas e praticamente tudo é cultural, daqui a pouco todo mundo vai fazer o que quiser. O fato de que há um jeito necessariamente certo de ser no mundo pressupõe a exclusão, a oposição de seu inverso.

As mães do exemplo anterior ficavam quase ofendidas quando dizíamos que aqueles sentimentos eram culturais, e não naturais. A razão para isso é mais do que o sentimento de que estávamos atacando a santidade da instituição maternidade: é como se disséssemos que o que elas sentiam não era forte; que não era sequer verdadeiro, mas sim “uma coisa que colocaram na cabeça delas”.

E isso é exatamente o que acontece, mas perceba: não é porque algo é cultural que é falso. Sim, todo um conjunto de ideias sobre a maternidade é passada de geração a geração como algo muito natural – é algo colocado na cabeça das pessoas. Mas isso não deixa de ter poder. Sentimo-nos compelidos a comer pela fome, mas a cultura é capaz de produzir uma pressão igualmente forte sobre as pessoas. Se esse não fosse o caso, só de sabermos que em algumas culturas todos andam pelados, a vergonha de usar roupas em público desaparecia num passe de mágica. Obviamente esse não é o caso.

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Photo by Sera Doll

A maternidade transforma o corpo de várias formas, e é uma questão importantíssima do ponto de vista biológico, e aqui é importante fazer uma distinção: a maternidade é cultural não porque ela não pode ser natural, mas porque nós somos seres extremamente culturais, e tudo que fazemos, inclusive as coisas que se originam desses processos que chamamos de naturais, passa por um “filtro” cultural. A questão não é negar que a dor e a alegria acompanham praticamente toda maternidade; é que essas coisas são interpretadas de acordo com papéis e símbolos sociais contingentes. Se você chegar para uma mãe e dizer “você pode se sentir diferente sobre ser uma mãe, se quiser; tome, aqui está um texto sobre como o povo nômade x do lugar y se sente em relação à maternidade. Estude isso e mude sua atitude!”. Isso… Não funcionaria. Mesmo que a mãe estivesse disposta a passar por essa transformação e resistisse a toda uma pressão dos outros para que ela mantenha-se fiel à própria cultura, o resultado final jamais seria uma pessoa completamente reformulada, com uma cultura nova que tenha tomado o lugar da antiga completamente.

Logicamente, esse assunto é extremamente mais complexo que esses poucos parágrafos, mas escrevo isso em tom de utilidade pública porque gostaria que mais pessoas tivessem em mente duas coisas, mesmo que seja para atacar essas duas coisas (o que é melhor do que o ataque a espantalhos que resulta da desinformação): em primeiro lugar, dizer que algo é cultural, ao invés de natural, é uma frase sobre as origens de um costume, de uma situação, de uma atitude. Quando digo que a maternidade é uma instituição cultural, estou fazendo uma observação sobre o que a origina, não necessariamente tornando-a algo pior ou tentando fazer com que mães e filhos adotem outras atitudes e costumes (eu poderia estar perfeitamente satisfeito em relação a isso e ainda assim observar que não se trata de algo natural). E, em segundo lugar, dizer que algo é cultural não significa dizer que a pessoa pode simplesmente “escolher se sentir como quiser”. A cultura não é uma questão de pura escolha individual!

Contudo, dizer que algo que muitos insistem em naturalizar é cultural é o primeiro passo para uma mudança: é como dizer “ei, olha só: é assim agora. Mas não precisa ser assim. Com o tempo, temos a capacidade de mudar de pensamento. Fazendo um esforço, as novas gerações quem sabe não terão mais contato com esse velho jeito de ser. E assim, a gente pode mudar”. Se a discussão começar a partir da ideia de que algo é naturalmente de um jeito ou de outro, a mudança jamais sairá do metafórico papel. Ou seja, dizer que algo é cultural tem uma força epistemológica, e é isso que deve ser levado em consideração. No entanto, não estou aqui para enganar ninguém: assim como o discurso de naturalização é uma arma política, colocar em evidência a natureza sociocultural de algo também pode sê-lo.

O que importa, na política, para o humano: inteligência ou valores?

Seja no tema “políticos deveriam ter ensino superior” ou “será que só os mais inteligentes deveriam votar?“, essa é uma coisa que vem constantemente à tona no debate político. A inteligência, e como ela é importante na política.

Sim, a inteligência humana é uma coisa importante em tudo que os humanos fazem, mas é importante notar como esse argumento é o tecnicista que já destrinchei no primeiro link acima – a ideia de que as coisas devem ser feitas bem, com eficiência, mas poucos se perguntam que diabo de coisas deveriam ser feitas.

Mas a questão da prioridade da inteligência no processo político vai além. Vai até o cerne da política, e também do que nos faz humanos.

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Photo by dbking

Imaginemos que vivamos na democracia direta de uma comunidade pequena; uma vila de não mais que 150, 200 pessoas. As mesmas pessoas que pensam que políticos e eleitores devem contemplar um “QI mínimo” ou coisa parecida são aqueles que vão dizer que há pessoas burras nessa comunidade, e que elas não devem participar do processo político.

Há tanto que se pode dizer sobre isso. Há pessoas incapazes, certamente; tanto idosos com alguma patologia que degenera o cérebro e nos leva a questionar sua autonomia quanto crianças pequenas que ainda têm que se acostumar mais com o processo político para participar dele com proficiência. Por outro lado, mesmo que se concorde que idosos com problemas graves e crianças não votemtratá-los como incapazes em termos discursivos – especialmente com a exclusão deles – é uma forma de, por exemplo, não acostumar as crianças com o processo político, afastá-las da vida pública, do interesse comunitário, e prejudicar sua auto-estima e confiança. O mesmo acontece com outras pessoas que, devido a uma série de circunstâncias, são excluídas da vida pública na sociedade mais ampla que é a nossa.

Mas voltemos à questão original: pessoas burras. Pessoas que são reconhecidas pela sociedade como tendo menos inteligência que outras.  Não vou entrar no mérito quanto à possibilidade e pertinência disso; vamos presumir essa condição para chegar ao ponto. Por acaso decorre que essas pessoas, por conta de suas capacidades intelectuais, não possam participar do processo político?

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Photo by amish.patel

A resposta é não. Isso só seria razoável se o processo político fosse uma discussão técnica sobre como chegar aos fins que se quer chegar. Mas o embora o processo possa envolver isso, a principal discussão (que às vezes é obscurecida quando o discurso tecnocrático toma conta) é sobre os fins a que se quer chegar. E a dignidade humana essencial, a liberdade, informa-nos que mesmo uma pessoa que não é lá muito brilhante (novamente, estou supondo isso para atacar esse argumento por dentro) tem valores que quer ver realizados, e a liberdade dessa pessoa está absolutamente relacionada à sua capacidade de expor esses valores para seus pares e buscar contribuir para que as decisões de sua comunidade reflitam esses valores (o cerne da política). Como Sandel demonstrou em seu ataque a Rawls, a liberdade tem muito a ver com a nossa identidade; com quem somos, com aquilo que nos constitui, com aquilo que nos move. E isso tudo remete à negociação identitária da comunidade: debater sobre os valores de todos até chegar a uma decisão sobre o que é mais importante fazer.

Voltando às crianças às quais não se permite plena (igualitária, ao nível dos adultos) participação no processo político: não é por serem burras que elas não podem participar. Ou mesmo ignorantes, ou sem experiência. O processo político, suas regras, sua dinâmica; isso tudo pode ser ainda desconhecido em termos de detalhe e nuance para as crianças, mas em pouco tempo elas seriam capazes de se acostumar com quem-fala-o-quê-quando, o que significa votar, o que é um recurso, um bloqueio, etc. O processo em si é como um jogo, e se as crianças podem aprender com facilidade a jogar um jogo de tabuleiro, decorando suas regras, não são as regras da democracia que as impedem de participar. É que elas ainda não passaram tempo o suficiente convivendo no mundo para que se tenha certeza de que compartilham dos mesmos valores que aquela sociedade. Adultos têm medo de que crianças participando do processo político serão egoístas, esperneando no chão, chorando rios de lágrimas porque não conseguiram o que queriam. Isso não é uma questão de inteligência, é uma questão de crianças que não absorveram o valor social de que tomar decisões em grupo é mais do que agir em interesse próprio.

Da aproximação entre o fazer literário e a vida

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Photo by the euskadi 11

Quando crio uma história (enquanto escritor) primeiro vem a ideia: a situação, o desenvolvimento, o conflito, a premissa. Depois disso vêm os personagens necessários – e as peças cenográficas que, na interação sofrida a partir das ações desses personagens, vão construindo essa premissa. Isso não é um engessamento dos personagens: no fundo eles sempre existiram a partir da situação, a partir da premissa. Foram eles que colocaram-na em movimento em primeiro lugar, só que você não sabia disso; vem mais fácil à cabeça a situação, a figura completa, com a embalagem por fora, do que seus mecanismos internos. Mas eles estão lá, e por isso são necessários. Você não consegue imaginar aquela história sem eles – J. K. Rowling disse que a história de Harry Potter veio inteira, completa, durante uma viagem de trem. E é certo, pode apostar, que Harry, Ron, Hermione, Voldemort, Dumbledore, todos esses e talvez mais alguns (Snape?) estavam lá desde o princípio, desde a primeira semente de ideia.

Aí, por último, vem a vida própria: vem aquilo que os personagens precisam ter que para que haja um desenvolvimento da premissa, para que haja uma história em si: uma narrativa, uma trajetória, uma transformação – uma ação. Você precisa deixar os personagens falarem por si, e suas decisões terem suas consequências, e você deve aceitar as reverberações disso de uma forma tal que, depois de um tempo, as lógicas dos personagens se tornam vidas dos personagens e eles, vivos, são capazes de determinar o destino da trama a partir de seus desenvolvimentos. Nesse ponto é que pode ocorrer o engessamento, se o autor não respeita as vozes dos personagens e decide continuar com um plano anteriormente definido; não, é preciso ouvi-los e segui-los ao invés disso.

Com a vida a coisa é parecida. Não que primeiro venha a sociedade e depois o indivíduo, mas a forma como nós nos aclimatamos, como nos “aculturamos”, como “aprendemos a ser gente”, indica que temos uma certa situação, sempre prenha de um conflito, toda uma premissa cultural que nos guia simbolicamente até começarmos a viver de acordo com certas necessidades. Por isso toda nossa vida, especialmente na forma como vemos a história (uma linha e não um ciclo) é uma trajetória no sentido de uma narrativa mesmo: uma mudança, uma ação que gera transformação. Começamos com essa premissa dentro de nós, muitas vezes servindo como personagens necessários para uma determinada situação cultural, e aí então, a partir dessas possibilidades e desses limites, podemos ser protagonistas para efetivar uma transformação e sermos diferentes.

Um anarquista pode ser a favor do voto obrigatório?

Em geral, há dois tipos de pessoas contrárias ao voto obrigatório. De vez em quando as motivações coincidem, mas devem ser consideradas separadamente.

  • Diferencial de inteligência – Há quem faça uma apologia à “distribuição natural de talentos” entre os humanos. Ora, alguns são simplesmente mais inteligentes que outros, dizem; portanto, se nem todos forem obrigados a votar, escolheremos melhores representantes.
  • Uma questão de princípio – Há quem seja a favor da liberdade no maior número de circunstâncias possível, e que, por esta razão, não deveríamos ser obrigados a nada – especialmente não a votar. Nessa visão, é comum ouvir dizer que votar é um direito, não um dever.

A primeira motivação é na maioria das vezes alguma forma disfarçada de classismo ou racismo. As pessoas que eles querem que não votem são os “burros” – que, para eles, se resumem a pobres, negros, favelados, nordestinos. Nas últimas décadas sempre ouvimos essa ladainha depois da vitória do PT nas urnas. Ah, se apenas os mais ric… Quer dizer, os mais inteligentes escolhessem o presidente. Aí teríamos Aécio. Ou Alckmin. Ou Serra.

A segunda revela algo mais profundo sobre o estatismo moderno; se o voto é um dever, há algo que interessa nele aos poderosos. Não é caridade ou “virtude cívica”; não é achar que fará bem às pessoas. É porque esse é um instrumento de legitimação. Como todo mundo vota, fica fácil virar para os eleitores e botar toda a culpa dos sistemas social, econômico e político nas costas deles. Quando isso acontece, a individualização e internalização da culpa não está muito longe, porque na massa disforme e monolítica dos “eleitores” o engenho de misturar “vocês” com “você” é facilmente empregado. Foram vocês que colocaram esses políticos aí. Não está gostando? Se fode, você deveria ter escolhido melhor.

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Photo by manhhai

Eu sempre fui contra o voto obrigatório, mas por causa do segundo princípio. É o que leva quase todo anarquista, arrisco dizer, a ser contra o voto obrigatório.

Mas venho escrever essa postagem para tentar destrinchar um argumento complexo, mas relevante, em especial para a comunidade anarquista: não importa muito por que ser contra o voto obrigatório; se é o motivo 1 ou o motivo 2. No final, o resultado acaba sendo o primeiro.

Uma vez que o voto obrigatório se desfaça em uma sociedade desigual e com baixo capital político como a da nossa população, o primeiro cenário se concretizará; não porque os “burros” não vão votar, mas porque quem é assim classificado pelos proponentes do primeiro cenário são aqueles que estariam mais propensos, por diversas razões, a não votar; desde a desilusão com o sistema até condições socioeconômicas e culturais.

Por outro lado, obviamente o voto não mudará nada. O que me leva a um jeito de explicar o que estou tentando dizer ao refrasear o título: votar torna um anarquista menos anarquista? Eu creio que não, porque aquilo que o anarquista sabe que é irreal, o tipo de feitiço que ele tenta quebrar em outras pessoas e na batalha cultural mais ampla, é a ligação entre voto e mudança sistêmica. O anarquista é aquele que olha para o voto e, embora possa até votar (seja pra evitar se incomodar com a multa depois ou por alguma outra razão), o que faz a diferença em sua ideologia é a perspectiva com a qual aborda seu próprio voto, em especial as expectativas em relação ao voto. O importante é saber que o voto não vai mudar nada. A diferença entre um petista e um anarquista votando no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 são as expectativas que cada um guarda em relação ao processo eleitoral.

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Photo by dcJohn

Agora, esse parece ser um argumento bastante subjetivista; se não há diferença prática (os dois votam), então não há diferença, ponto. É justo argumentar dessa forma, mas é preciso entender que só abordei o lado indivíduo-a-indivíduo da questão: o voto obrigatório é um tópico social, e precisamos abordar esse lado também. O “cenário 2” do início da postagem trata simplesmente de direitos individuais. Há um outro, e gigantesco, lado da moeda.

O voto obrigatório traz a discussão política (ou pelo menos tem a intenção, e oportunidade, de fazê-lo) para dentro das casas de quem normalmente não discutiria política. É uma forma de envolver a todos no processo político. Ao meu ver, o anarquista que se opõe ao voto obrigatório está colocando uma picuinha pessoal (e admito que esse era eu: “mas que droga, eles estão me forçando a votar. Ugh…”) acima de uma boa oportunidade de desenvolver a discussão política. Isso tem a ver também, aliás, com uma visão contraproducente de liberdade – mas não creio que seja saudável contestar isso nesta postagem…

Em nossa visão de futuro, de sociedade desejável, queremos que as pessoas se envolvam. Queremos a responsabilidade de cada um pelas decisões da comunidade. Como faz sentido rejeitar esse mesmo envolvimento nesse exato instante? – Não é o mesmo envolvimento, responderiam alguns; e nem o mesmo modelo de sociedade. Sim, é verdade, é tudo verdade. Mas é algo próximo, próximo o bastante para servir como oportunidade de discutir princípios e ideias anarquistas. De acostumar quem não está acostumado a debater ideias, projetos, valores, caminhos, e também pessoas. Sim, porque a verdadeira democracia do anarquismo não pode funcionar sem o tipo de responsabilidade pessoal por projetos que implicam a discussão de pessoas para além da discussão de representantes que temos hoje, mas não muito aquém.

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Photo by marthax

O voto obrigatório deve ser dimensionado de forma apropriada pelo anarquista; não é solução para nada – nem o obrigatório nem o voluntário – mas no esquema mais amplo das coisas como estão hoje, opor-se a ele não só ajuda o projeto de poder de quem está muito mais à direita dos anarquistas que a esquerda estatista, como também significa fechar os olhos para uma maré de discussão política que pode ser melhor aproveitada para nossos próprios objetivos.

Universos insulares (Citação por Aldous Huxley)

“Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência, debalde. Por sua própria naturez, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.”

Aldous Huxley, em As Portas da Percepção