É sabido que a pobreza é, em geral, fator da criminalidade. Isso não implica atribuir a um grupo (os mais pobres) a responsabilidade pela existência do crime; é simplesmente a constatação, tão amplamente confirmada por qualquer estatística, de que a criminalidade cresce junto com a desigualdade social.
Isso é inquietante para muitas pessoas porque significa pôr em cheque todo um modelo de civilização que tanto agrada ao topo de cima de uma sociedade desigual: a ideia de que existem pessoas do bem, e pessoas do mal; e que para vencer as forças do mal é preciso força, força do tipo policial, militar, ostensiva e truculenta. Há uma escolha a ser feita, e é entre a vida dos justos e a dos criminosos, a quem direitos humanos não se aplicam.
O problema é que essa visão precisa necessariamente partir de uma ideia da origem da criminalidade como uma escolha moral: “conheço algumas pessoas pobres e elas não precisaram roubar para viver; por que isso justifica aqueles que roubam?”. Obviamente não justifica, mas é preciso entender que essa ideia do ser humano frente a frente com a escolha da criminalidade é falsa.
Não porque a criminalidade não exista ou porque não faça mal a alguém. O problema é que essa “escolha” perante a criminalidade não é igual para todos, porque tudo no universo dessas duas pessoas hipotéticas difere a nível de conceito: o que elas entendem por comunidade, sociedade, lealdade, vida, futuro, certo, errado, isso tudo é muito diferente. Só que – e aqui, se o texto se encerrasse, todo tipo de higienista viria dizer que aí mesmo que não há salvação para essa gente – essa diferença vem das diferenças de socialização. Das diferenças de ambiente em que as pessoas crescem, das oportunidades que têm.
Quando alguém completamente de fora do circuito mainstream da sociedade olha para a vibrante urbanidade, o que vê? Sua história como o adolescente estrela do rock que alcança glória na televisão? Ou como algo completamente alheio, estranho, mas mesmo assim desejável, respeitável, única medida segundo o qual ele também será respeitável (e desejável)? Esse é só um dos lados da questão. Essa socialização diferente, o costume com a violência que marca as relações (que é diferente não por existir, mas por ser diferente da que marca as nossas), leva a uma visão completamente diferente de mundo. Se leva a uma desvalorização daquilo que nós, “do lado de cá”, valorizamos? Claro. Se isso, em situações extremas, marca às vezes a desvalorização do próprio valor da vida? Sim, claro, mas nas condições de guerra que a situação impõe estou discutindo justamente o quanto muitos “do lado de cá” simplesmente tampouco valorizam a vida quando é a vida desses “outros” “indesejáveis”.
Muitos não têm a fibra de esperar por cem metros para jogar papel num lixeiro ao invés de se livrar dele logo no chão, e põem a culpa nas circunstâncias: a prefeitura é que não instala lixeiros o bastante nas ruas. Mas muitos dos mesmos são os primeiros a exigir que, nas circunstâncias mais adversas (que muitos desses não conhecem), a fibra moral supere tudo e faça com que um excluído escolha a versão das coisas que mais se adeque às exigências de segurança e conveniência destas pessoas de bem.
É importante notar justamente a posição no campo social, ou a disparidade que pode até mesmo, argumentar-se-ia, criar campos sociais distintos, e como isso influencia nossos discursos. Isso é (parcialmente) eurocentrismo, ou pelo menos um de seus efeitos. O pensamento do homem uno, cidadão que efervesce como espuma da Revolução Francesa, universal e indistinguível de seus pares; os valores pelos quais um responde têm que ser os valores pelos quais todos respondem. Mas a situação em que alguém aprende a viver, as regras que internaliza, são muito diferentes em situações de exclusão social. É difícil tomar distância do assunto (especialmente se alguém é atingido diretamente por ele), mas é preciso se quisermos verificar o óbvio: só respeita uma sociedade um membro que é por ela respeitado. Num mundo profundamente desigual vão existir diferentes valorações baseadas na realidade que se apresenta duríssima para alguns; e aí a exigência de valores iguais é a arma de privilegiados incautos, mesmo que bem intencionados, mas é também o desejo de que a realidade fosse outra não nas decisões das pessoas, mas na própria história das coisas. Por isso é essencial entender a estrutura que produz essa desigualdade e atacá-la em seu cerne: a partir daí poderemos vencer o obstáculo maior à produção de uma consciência mais uniforme, entre os cidadãos, em termos do que significa vivermos juntos, vivermos em conjunto, em sociedade, trabalhando uns pelos outros.
Quis escrever isso depois de ler um trecho do livro “A ilusão neoliberal”, do francês René Passet. Confesso que não gastaria dinheiro comprando esse livro se fosse hoje; a questão é que o tenho desde uma época em que não conhecia bem o neoliberalismo, e achei que esse livro me daria ideias interessantes sobre o tema. Mas quem estuda Ciências Sociais acaba se aclimatando bem ao tema, e eu já não precisaria do livro… Mas já que já o tenho, decidi terminá-lo.
Portanto entre passagens que explicam coisas que eu já sabia e outras mais convolutas encontro vez por outra novas informações que, mesmo que nada surpreendentes, acabam bem redigidas ou transmitem as ideias de uma maneira bem didática. Tem uma parte particularmente interessante que explica a obsessão da direita de sempre quanto à inflação: é importante controlar a inflação porque ela mantém o lucro real das rendas de investimentos – e, como bônus, pode ser usada como peça de propaganda para indicar que algo vai mal na economia, já que a alta de preços afeta os meros mortais também.
A passagem que me motivou é a seguinte:
Quando o salário é baixo demais, muitos consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia, em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000, proporcionalmente sete vezes mais que na França(…). Isso explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”, comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego americano.”
A exclusão leva à revolta uma juventude sem futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário, deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do crescimento haveriam de respeitar isso? Em nome do exemplo dado pelas “elites”? Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a “grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os homens. O problema dos bairros periféricos (…) não tem raízes apenas no urbanismo malbaratado, mas nessa lógica que em nome da competitividade transforma a substituição do homem pela máquina em drama da exclusão social.
Não bastará pintar as fachadas de rosa, mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.
Nos mais fracos, o sentimento de impotência ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo, fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na areia… Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos professores da virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.
Entre fevereiro e março de 1991, na Primeira Guerra do Golfo, forças dos Estados Unidos bombardearam, destroçaram, incendiaram milhares de jovens iraquianos que tentavam fugir do Kuwait. Houve uma série de incidentes desse tipo – a “auto-estrada da morte”, a “autoestrada 8” e a “batália de Rumaila” – em que o poderio aéreo norte-americano interceptou iraquianos em fuga, envolvendo-se em uma luta injusta em que inimigos acuados foram chacinados em seus veículos. Imagens de corpos carbonizados desesperadamente rastejando para fora de caminhões tornaram-se ícones da guerra.
Eu nunca entendi por que esse massacre de homens iraquianos não foi considerado um crime de guerra. É claro que, naquela época, o comando dos Estados Unidos tinha medo disso. O Presidente George H. W. Bush rapidamente anunciou um cessar-fogo temporário, e o exército se esforçou muito desde então para minimizar o número de causalidades, obscurecer as circunstâncias, difamar as vítimas (“um bando de estupradores, assassinos e bandidos”, insistiu mais tarde o general Norman Schwarzkopf), e evitar que as fotos mais reveladoras aparecessem na mídia do país. Há rumores de que existem vídeos do pânico dos iraquianos, feitos pelas câmeras montadas nas armas dos helicópteros, que nunca serão vistos pelo público.
Faz sentido que as elites se preocupassem. Afinal, aqueles eram em grande parte homens que tinham sido forçados a lutar e que, quando jogados no combate, fizeram precisamente o que alguém gostaria que todos os jovens numa situação como essa fizessem: mandaram tudo pro inferno, fizeram as malas, e tentaram ir pra casa. E por isso deveriam ser queimados vivos? Quando o Estado Islâmico fez isso com um piloto jordaniano no inverno passado, o ato foi universalmente denunciado como indescritivelmente bárbaro – e ele foi, é claro. Ainda assim, o Estado Islâmico poderia ao menos dizer que o piloto estava jogando bombas neles. Os iraquianos em fuga na “autoestrada da morte” e em outros exemplos de carnificina americana eram apenas garotos que não queriam lutar.
Mas talvez foi justamente essa recusa que fez com que os soldados iraquianos não ganhassem muita simpatia, não apenas nos círculos de elite, onde não dá para esperar tanto, mas também nas cortes da opinião pública. Em algum nível, vamos ser sinceros: esses homens eram covardes. Eles mereceram.
Parece haver mesmo uma falta de compaixão por homens não-combatentes em zonas de guerra. Mesmo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos falam de massacres como sendo dirigidos quase exclusivamente contra mulheres, crianças e, talvez, os idosos. O que está implícito, quase nunca dito claramente, é que homens adultos ou estão lutando ou há algo de errado com eles (“Quer dizer que existem pessoas por aí atacando mulheres e crianças e você não estava lá os defendendo? Você é um homem ou um rato?”). Aqueles que cometem massacres são conhecidos por manipular de forma cínica esse recrutamento tácito: como célebre exemplo, os comandantes servo-bósnios que calcularam que poderiam evitar acusações de genocídio se, ao invés de exterminar populações inteiras nas cidades e vilas conquistadas, matassem apenas homens com idade entre quinze e cinquenta e cinco anos.
Mas há algo a mais circunscrevendo a nossa empatia pelos soldados iraquianos em fuga, vítimas desse massacre. O público dos Estados Unidos foi bombardeado com acusações de que eles eram na verdade um bando de criminosos que estavam pessoalmente estuprando, pilhando, e jogando recém-nascidos fora de suas incubadoras (diferente daquele piloto jordaniano, que estava apenas jogando bombas em cidades cheias de mulheres e crianças a partir de uma altitude, pensava ele, segura). Todos nós aprendemos que os valentões, aqueles que exercem o bullying, são na verdade covardes, então aceitamos que o inverso deve naturalmente ser verdade também. Para a maioria de nós, a experiência primordial de exercer e sofrer bullying está no fundo de nossas mentes em discussões sobre crimes e atrocidades. Ela molda nossa sensibilidade e capacidade para a empatia de maneiras profundas e perniciosas.
A covardia também é uma causa
A maioria das pessoas não gosta de guerras e acha que o mundo seria um lugar melhor sem elas. Mesmo assim, o desprezo por covardes parece ter mais força. Afinal de contas, a deserção – a tendência que têm as pessoas forçadas a participar da glória de um exército pela primeira vez de escapar da marcha, procurar esconderijo na floresta ou fazenda mais próxima e então, tendo a tropa passado, descobrir uma forma de voltar pra casa – é provavelmente a maior ameaça às guerras de conquista. Os exércitos de Napoleão, por exemplo, perderam bem mais soldados para a deserção do que em combate. Exércitos recrutados à força geralmente têm que usar uma significativa parte de suas unidades para ameaçar o resto da tropa com tiros contra fugitivos. Ainda assim mesmo aqueles que dizem odiar as guerras sentem-se desconfortáveis celebrando a deserção.
Quase a única verdadeira exceção que conheço é a Alemanha, que ergueu uma série de monumentos rotulados como “Ao desertor desconhecido”. O primeiro e mais famoso, em Potsdam, lê: “A UM HOMEM QUE SE RECUSOU A MATAR OUTROS HOMENS”. Mesmo assim, quando falo sobre o monumento com meus amigos, eu geralmente encontro um retraimento instintivo. “É de se perguntar: eles realmente desertaram porque não queriam matar ninguém ou porque não queriam morrer?”. Como se tivesse algo de errado com isso.
Em sociedades militarísticas como os Estados Unidos, é quase axiomático que nossos inimigos devem ser covardes – especialmente se o inimigo pode ser rotulado como um “terrorista” (isto é, alguém acusado de desejar criar o medo em nós, transformando-nos, logo a nós, em covardes). Faz-se então necessário um ritual de inversão das coisas para insistir que não, eles é que têm medo. Todos os ataques contra cidadãos americanos são por definição “ataques covardes”. O segundo George Bush estava falando do 11 de setembro como um “ato de covardia” na manhã seguinte aos ataques. Mas se você pensar, isso é estranho. Afinal, não faltam coisas ruins que alguém possa dizer sobre Mohammed Atta e seus comparsas – pode escolher – mas com certeza “covarde” não é uma delas. Destruir uma festa de casamento à distância usando um drone pode ser considerado um ato de covardia. Pessoalmente chocar um avião num arranha-céus requer coragem. De qualquer maneira, a ideia de que uma pessoa pode ser corajosa defendendo uma causa ruim parece não ser um discurso público aceitável, apesar do fato de que muito do que passa por história consiste em incontáveis narrativas de pessoas corajosas fazendo coisas terríveis.
Sobre falhas fundamentais
Mais cedo ou mais tarde, todo projeto de liberdade humana vai ter que entender por que aceitamos que as sociedades sejam classificadas e ordenadas por violência e dominação em primeiro lugar. E me veio a ideia de que nossa reação visceral à fraqueza e à covardia, nossa estranha relutância em nos identificarmos até com as formas mais justificadas de medo, pode ser uma pista.
O problema é que o debate até agora tem sido dominado por proponentes de duas posições igualmente absurdas. De um lado, há aqueles que negam que é possível dizer qualquer coisa sobre seres humanos enquanto espécie; de outro, há aqueles que presumem que o objetivo é explicar por que é que alguns humanos parecem se comprazer com o sofrimento dos outros. Estes últimos invariavelmente acabam formulando teorias sobre babuínos e chimpanzés, geralmente para dizer que humanos – ou pelo menos aqueles de nós com testosterona o bastante – herdaram de nossos ancestrais primitivos uma tendência inata à agressão auto-engrandecedora que se manifesta na guerra, que por sua vez não pode ser eliminada, apenas canalizada rumo à atividade competitiva no mercado. Com base nessas presunções, os covardes são aqueles a quem falta um impulso biológico primário, e não surpreende que nós não gostemos deles.
Há vários problemas com essa linha de pensamento, o mais óbvio que ela simplesmente não é verdade. A perspectiva de participar de uma guerra não ativa automaticamente um gatilho biológico no macho humano. Considere a “parábola das tribos”, de Andrew Bard Schmookler. Cinco sociedades compartilham o mesmo rio em um vale. Elas podem viver em paz apenas se todas elas se mantém pacíficas. O momento em que um “mau elemento” é introduzido – digamos, os jovens de uma tribo decidem que a melhor forma de lidar com a perda de um ente querido é cortar a cabeça de um estrangeiro, ou que seu Deus os escolheu para serem os flagelos dos infiéis – bem, as outras tribos, se não quiserem ser exterminadas, têm apenas três opções: fugir, se submeter, ou reorganizar suas sociedades para favorecer a efetividade militar. Essa lógica parece difícil de refutar.
Contudo, como sabe qualquer um familiar com a história de, digamos, a Oceania, a Amazônia ou a África, um grande número de sociedades simplesmente se recusou a se organizar em termos militarísticos. De novo e de novo, encontramos descrições de comunidades relativamente pacíficas que simplesmente aceitavam o fato de que, a cada tantos anos, eles teriam que correr para as montanhas porque algum grupo local de malvados chegou para pôr fogo em suas vilas, estuprar, pilhar, e fazer infelizes retardatários de troféus. A grande maioria dos humanos do sexo masculino se recusou a perder tempo treinando para a guerra, mesmo quando era de seu interesse imediato fazê-lo. Para mim, isso é prova positiva de que seres humanos não são uma espécie particularmente belicosa.[*]
Ninguém pode negar, é claro, que humanos são criaturas falhas. Praticamente toda língua tem algum análogo ao inglês “humane”, ou expressões como “tratar alguém como um ser humano”, o que significa que simplesmente reconhecer outra criatura como um outro humano implica a responsabilidade de tratá-la com um certo mínimo de candor, consideração e respeito. É óbvio, no entanto, que em nenhum lugar os humanos consistentemente mantêm-se fiéis a esses ideais. E quando falhamos, deixamos para lá e dizemos que “errar é humano”. Ser humano, então, é ao mesmo tempo ter ideais e não conseguir alcançá-los.
Se é assim que vemos a nós mesmos, não é surpreendente que ao tentar entender o que possibilita estruturas violentas de dominação, tendemos a perceber a existência de impulsos antissociais e nos perguntar: por que algumas pessoas são cruéis? Por que elas desejam dominar outras pessoas? Essas, contudo, são precisamente as perguntas erradas a se fazer. As pessoas têm uma variedade infinita de desejos. Eles geralmente nos puxam ao mesmo tempo em diferentes direções. A mera existência de impulsos antissociais não significa nada.
A questão que deveríamos estar fazendo é não por que pessoas são cruéis às vezes, ou mesmo por que algumas pessoas são frequentemente cruéis (todas as evidências sugerem que verdadeiros sádicos são uma porção extremamente pequena da população geral), mas como acabamos criando instituições que encorajam esse tipo de comportamento e que fazem crer que pessoas cruéis são de alguma forma admiráveis – ou pelo menos tão merecedoras de simpatia quanto aquelas que elas violentam.
Aqui eu acho que é importante olhar com cuidado para a maneira como as instituições organizam as reações dos espectadores. Geralmente, quando imaginamos o cenário primordial da dominação, pensamos em algum tipo de dialética hegeliana mestre-escravo em que duas partes competem por reconhecimento mútuo, o que leva a uma sendo permanentemente vencida. Deveríamos imaginar ao invés disso uma relação de três elementos, que consiste em agressor, vítima e testemunha, uma relação em que ambas as partes em disputa apelam para o reconhecimento (validação, simpatia, etc) de um outro alguém. A batalha hegeliana por supremacia, afinal, é só uma abstração. Uma história qualquer. Poucos de nós testemunharam dois homens crescidos duelarem até a morte para que um reconheça o outro como verdadeiramente humano. O cenário de três elementos, em que uma parte machuca a outra enquanto ambas apelam para que aqueles ao redor reconheçam sua humanidade, é um que todos nós testemunharam e do qual participamos, em um ou outro papel, milhares de vezes desde a pré-escola.
A estrutura (do ensino) fundamental da dominação
Estou falando, é claro, do bullying no pátio da escola. Bullying, eu proponho, representa um tipo de estrutura fundamental da dominação humana. Se quisermos entender quando tudo começa a dar errado, é aqui que devemos começar.
Nesse caso também, condições devem ser estabelecidas. Seria muito fácil cair em argumentos evolucionários simplistas. Há uma tradição – A tradição Senhor das Moscas, podemos chamá-la – segundo a qual os valentões da escola são uma encarnação moderna do “macho alfa” primordial e ancestral, que instantaneamente restaura a lei da selva uma vez que não seja contido pela autoridade racional de um macho adulto. Mas isso é claramente falso. Na verdade, livros como O Senhor das Moscas são mais propriamente lidos como reflexões sobre os tipos de técnicas precisas de terror e intimidação de que as escolas públicas britânicas se serviam para transformar crianças de elite em oficiais capazes de gerenciar um império. Essas técnicas não vieram da ausência de autoridade; eram técnicas projetadas precisamente para criar um tipo de autoridade adulta, masculina, calculista e sangue-frio.
Hoje a maioria das escolas não são como a Eton e a Harrow dos dias de William Golding, mas mesmo naquelas que se orgulham de seus programas antibullying ele acontece em formas que de maneira alguma vão contra, ou ocorrem a despeito da, autoridade institucional. O bullying é mais como uma refração dessa autoridade. Para começar com uma coisa óbvia: as crianças não podem sair da escola. Normalmente, o primeiro instinto de uma criança quando ela está sendo atormentada ou humilhada por alguém maior é ir para outro lugar. As crianças na escola, contudo, não têm essa opção. Se elas insistirem em fugir rumo à segurança, autoridades as trarão de volta. Essa é uma das razões, eu suspeito, para a existência do estereótipo do valentão como o puxa-saco do professor ou monitor de corredor: mesmo quando não é verdadeiro, ele se alimenta do conhecimento tácito de que o valentão depende da autoridade da instituição pelo menos nessa única forma – a escola está, basicamente, segurando as vítimas para os valentões baterem. Essa dependência da autoridade é também a razão pela qual as formas mais extremas e elaboradas de bullying acontecem em prisões, onde os condenados dominantes e os carcereiros formam alianças.
Ainda mais importante, os valentões geralmente têm consciência de que o sistema provavelmente vai punir as vítimas que reajam mais fortemente. Assim como uma mulher que, confrontada por um homem que talvez tenha o dobro de seu tamanho, não pode se dar ao luxo de lutar de forma “justa”, e ao invés disso deve aproveitar um momento oportuno para infligir o maior dano possível ao homem que a tem abusado – uma vez que ela não pode deixá-lo em condições de revidar – também a vítima de bullying na escola deve responder com força desproporcional, não para incapacitar o oponente, mas para fazê-lo hesitar da próxima vez que quiser atacar.
Eu aprendi essa lição por experiência própria. Eu era magricela, mais jovem que os outros – eu pulei um ano – e então era um alvo perfeito para algumas das crianças maiores que pareciam ter desenvolvido uma técnica quase científica para dar socos em tampinhas como eu de forma rápida, dura e incisiva o bastante para evitarem ser acusados de terem atacado alguém. Quase não havia dia em que não me batiam. Finalmente, decidi que já era hora de aquilo acabar, encontrei o momento certo, e mandei um imbecil particularmente irritante voando pelo corredor com um soco bem dado na cabeça. Eu acho que posso ter rachado o lábio dele. De certa forma, funcionou como eu queria: por um ou dois meses os valentões, em geral, ficaram longe. Mas o resultado imediato foi que nós dois fomos levados ao diretor por brigar, e o fato de que ele me atacou primeiro foi determinado como irrelevante. Fui considerado culpado e expulso dos clubes de matemática avançada e de ciências (Uma vez que ele não tinha notas muito boas, não havia nenhum clube do qual pudesse ser expulso).
“Não interessa quem começou” são provavelmente as quatro palavras mais pérfidas da língua portuguesa. É claro que interessa.
Crowdsourcing a crueldade
Muito pouco desse foco no papel da autoridade institucional é refletido na literatura da psicologia sobre o bullying, que, uma vez que é escrita principalmente para as autoridades escolares, presume um papel totalmente benigno para elas. Ainda assim, pesquisas recentes – e tem havido muitas desde Columbine – têm revelado, eu penso, várias coisas sobre essa forma fundamental de dominação. Vamos mais fundo.
A primeira coisa que essas pesquisas mostram é que a enorme maioria dos incidentes de bullying acontece na frente de um público. A perseguição privada é relativamente rara. A humilhação é uma grande parte do bullying, e seus efeitos não podem realmente ser produzidos sem alguém para testemunhá-los. Às vezes, o público instiga o valentão, rindo, incitando, ou ajudando. Mais frequentemente, o público fica passivo e quieto. É raro alguém defender um colega de classe sendo ameaçado, ridicularizado ou fisicamente atacado.
Quando pesquisadores perguntam às crianças por que elas não intervieram, uma minoria diz que eles acharam que a vítima teve o que mereceu, mas a maioria diz que eles não gostavam do que estava acontecendo, e certamente não gostavam muito do valentão, mas decidiram que se envolver podia significar que eles acabariam recebendo o mesmo tratamento que a vítima – e isso só ia piorar as coisas. O interessante é que isso não é verdade. Estudos também mostram que, em geral, se um ou dois observadores protestam, os valentões deixam a agressão de lado. Mesmo assim, a maior parte das testemunhas se convence de que o oposto vai acontecer. Por quê?
Primeiro porque quase todo tipo de ficção popular à qual eles provavelmente estão expostos diz a eles que vai. Super-heróis de quadrinhos o tempo todo entram em cena para dizer “Ei, pare de bater nele” – e invariavelmente os vilões de fato passam a odiá-los, o que resulta em todo tipo de problema (se há uma mensagem subliminar nesse tipo de ficção, ela com certeza é algo como “É melhor você não se envolver nesse tipo de coisa a não ser que possa lidar com um monstro interdimensional com lasers nos olhos”). O “herói”, como mostrado na mídia dos Estados Unidos, é principalmente um álibi para a passividade. Pensei nisso pela primeira vez quando vi um jornalista de TV local elogiar um adolescente que pulou num rio para salvar uma criança que estava se afogando. “Quando eu perguntei por que ele fez isso”, o jornalista disse, “ele disse o que os verdadeiros heróis sempre dizem, ‘eu só fiz o que qualquer pessoa faria nessas circunstâncias'”. Quem está assistindo deve entender que, é claro, isso não é verdade. Não é qualquer pessoa que faria isso. E não tem problema. Heróis são extraordinários. É perfeitamente aceitável que você, nas mesmas circunstâncias, fique parado e espere uma equipe profissional de resgate.
Também é possível que as crianças nas escolas reajam de forma passiva ao bullying porque elas já perceberam como a autoridade dos adultos opera e presumem erroneamente que a mesma lógica se aplica às interações com seus pares. Se é, digamos, um policial que está abusando de algum adulto desafortunado, então sim, é absolutamente verdadeiro que intervir vai provavelmente te dar uma séria dor de cabeça. E todos nós sabemos o que acontece com “dedos-duros” do governo (Você se lembra do secretário de estado John Kerry exigindo que Edward Snowden “fosse homem” e se submetesse a uma vida inteira de bullying sádico nas mãos do sistema de justiça criminal americano? O que é que uma criança inocente deve concluir disso?). Os destinos dos Mannings ou Snowdens do mundo são propagandas de alto nível para o princípio maior da cultura Americana: abuso de autoridade pode até ser ruim, mas apontar abertamente que alguém está abusando de autoridade é muito pior – e merece a mais severa punição.
Um segundo surpreendente dado de pesquisas recentes: os valentões não sofrem, na verdade, de baixa auto-estima. Psicólogos há muito tempo presumiram que crianças malvadas estavam descontando suas inseguranças nos outros. Não. Acontece que a maioria dos valentões agem como babacas mimados e arrogantes não porque estão sendo atormentado por duvidarem de si mesmos, mas porque são na verdade babacas mimados e arrogantes. Na verdade, a autoconfiança deles é tanta que eles criam um universo moral no qual seu “estilo” e violência se tornam o padrão a partir do qual os outros devem ser julgados; ser fraco, distraído, meio desajeitado ou reclamão não são apenas pecados, mas provocações que seria errado deixar de corrigir.
Aqui também eu posso oferecer um testemunho pessoal. Eu lembro bem de uma conversa com um atleta que eu conheci no ensino médio. Ele era um tonto, mas era querido. Eu acho que até ficamos chapados juntos uma ou duas vezes. Uma vez, depois de ensaiar para um drama de época, achei que ia ser engraçado entrar no dormitório em trajes renascentistas. Assim que ele me viu, partiu com tudo para cima de mim. Fiquei tão indignado que esqueci de ficar com medo. “Matt! Que porra é essa? Por que você quer me bater?”. Matt parecia tão surpreso que ele esqueceu de continuar a me ameaçar. “Mas… Você entrou no quarto usando calça de malha!”, ele protestou. “Quer dizer, o que é que você esperava?”. Será que Matt estava lidando com profundas inseguranças sobre sua própria sexualidade? Não sei. Provavelmente. Mas a verdadeira pergunta é por que presumimos que sua mente problemática é tão importante? O que realmente importa é que ele sentiu de verdade que precisava defender um código social.
Dessa vez, o valentão adolescente estava usando de violência para fazer cumprir um código de masculinidade homofóbica que também faz parte da autoridade adulta. Mas com crianças menores, esse geralmente não é o caso. Aqui vem um terceiro dado surpreendente da literatura psicológica – talvez o mais revelador de todos. No começo, não é a menina gorda, ou o menino com óculos, que tem mais chances de ser atacado. Isso vem depois, à medida que os valentões (sempre atentos às relações de poder) aprendem a escolher suas vítimas de acordo com os padrões dos adultos. Antes disso, o principal critério é como a vítima reage. A vítima ideal não é a absolutamente passiva. Não, a vítima ideal é aquela que enfrenta o valentão, mas o faz de uma maneira ineficaz, esperneando, chorando, ameaçando contar tudo pra mamãe, ou fingindo que vai lutar e depois fugindo. Fazer isso é precisamente o que torna possível criar um drama moral em que o público pode dizer a si mesmo que o valentão deve, em algum sentido, estar certo.
Essa dinâmica triangular de valentão, vítima e público é o que eu quero dizer com a estrutura profunda do bullying. Ela merece ser estudada em livros didáticos. Na verdade, ela merece estar em todo lugar em letreiros de neon gigantes: O bullying cria um drama moral em que a forma da reação da vítima a um ato de agressão pode ser usada como justificação retrospectiva para o próprio ato original de agressão.
Esse drama não aparece apenas no começo da infância; é precisamente o aspecto que permanece na vida adulta. Eu chamo isso de falácia “parem com isso vocês dois”. Qualquer um que frequenta fóruns de mídia social vai reconhecer o padrão. O agressor ataca. O alvo tenta ser superior a isso e não diz nada. Ninguém intervém. O agressor ataca com mais força. O alvo tenta ser superior e nada faz novamente. Ninguém intervém. O agressor ataca de novo.
Isso pode acontecer uma dúzia de vezes, cinquenta vezes, até que finalmente o alvo responde. Então, e só então, uma penca de vozes imediatamente surgem, dizendo “Treta! Treta! Olha só esses dois idiotas batendo boca!” ou “Será que vocês não podem se acalmar e aprender a ver o ponto de vista um do outro?”. O valentão esperto sabe que isso vai acontecer – e que ele não vai perder nenhum ponto por ser o agressor. Ele também sabe que se ele afinar sua agressão no tom certo, a resposta da vítima pode ser ela mesma representada como o problema.
Joselito: Você é um cara bacana, Pedrinho, mas eu tenho que dizer que você é um pouquinho idiota.
Pedrinho: Um pouquinho… Quê? Que caralhos você quis dizer com isso?
Joselito: Viu só? Te acalma, cara! Eu disse que tu era um cara bacana. Pra que falar palavrão? Você não viu que tem damas lendo a conversa?
E o que é verdadeiro quanto à classe social também é verdadeiro quanto a qualquer outra forma de desigualdade estrutural: daí epítetos como “mulheres loucas”, “nordestinos vagabundos” e uma variedade sem-fim de termos semelhantes. Mas a lógica essencial do bullying vem antes de tais desigualdades. É a matéria da qual são feitas.
Pare de bater em si mesmo
E essa, eu proponho, é a principal falha do ser humano. Não é que como espécie somos particularmente agressivos. É que tendemos a responder mal a agressões. Nosso primeiro instinto quando vemos uma agressão sem motivo é ou fingir que ela não está acontecendo ou, se isso se torna impossível, igualar o agressor e a vítima, colocando-os ambos sob um tipo de lógica de quarentena que, espera-se, pode evitar que contagie os outros (o que explica o fato, descoberto pelos psicólogos, de que as pessoas detestam valentões e vítimas em proporções mais ou menos iguais). O sentimento de culpa causado pela suspeita de que isso é um jeito essencialmente covarde de se comportar – já que é um jeito essencialmente covarde de se comportar – abre caminho para um jogo complexo de projeções, no qual o valentão é ao mesmo tempo um supervilão invencível e um fanfarrão inseguro que dá pena, enquanto a vítima se torna simultaneamente um agressor (aquele que viola seja lá qual for a convenção social que o valentão tenha invocado ou inventado) e um covarde patético que não quer se defender.
Obviamente, estou oferecendo apenas o rascunho mais mínimo de uma psicodinâmica complexa. Mas ainda assim, esses insights podem nos ajudar a entender por que é tão difícil estender nossas simpatias a, entre outros, soldados iraquianos chacinados enquanto fugiam do combate. Aplicamos a eles a mesma lógica de quando assistíamos passivamente a algum valentão da infância aterrorizar sua vítima: igualamos agressores e vítimas, insistimos que todo mundo é igualmente culpado (note como, sempre que se ouve uma notícia de uma atrocidade, alguns vão imediatamente começar a insistir que as vítimas devem ter cometido atrocidades também), e simplesmente esperamos que ao fazer isso, não vamos nos contagiar com a violência.
Essas são coisas difíceis. Eu não afirmo entendê-las completamente. Mas se almejamos uma sociedade genuinamente livre, então vamos ter que reconhecer como a relação triangular e mutuamente constitutiva de valentão, vítima e espectadores realmente funciona, e então desenvolver formas de combatê-la. Lembre-se, não somos um caso perdido. Se não fosse possível criar estruturas – hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum – que pelo menos às vezes evitam que essa dinâmica se inicie, então sociedades igualitárias de qualquer tipo jamais teriam sido possíveis. Lembre-se, também, de quão pouca coragem é geralmente necessária para parar valentões que não são apoiados por qualquer poder institucional. Acima de tudo, lembre-se de que quando os valentões são realmente apoiados por tal poder, os heróis podem ser aqueles que simplesmente vão embora.
[*] Mesmo assim, antes que demos um passe para os adultos do sexo masculino, devo observar que o argumento para a eficiência militar é uma faca de dois gumes: mesmo sociedades cujos homens se recusam a organizar a si mesmos efetivamente para a guerra também insistem, na gigantesca maioria das vezes, que as mulheres definitivamente não deveriam lutar. Isso é bem pouco eficiente. Mesmo se pudéssemos admitir que homens são, geralmente falando, melhor em combates (e isso não é de forma alguma claro; depende do tipo de luta), e se quiséssemos selecionar a metade da população com os corpos mais preparados para lutar, alguns destes corpos seriam femininos. De qualquer forma, em uma situação realmente desesperadora pode ser uma tática suicida não usar todos os recursos à disposição. Mesmo assim, várias e várias vezes encontramos homens – mesmo aqueles relativamente não-beligerantes – decidindo morrer em vez de quebrar seu próprio código social que diz que as mulheres jamais deveriam portar armas. Não surpreende então que tenhamos tanta dificuldade em ter empatia por vítimas masculinas de atrocidades: à medida que segregam as mulheres do combate, eles são cúmplices da lógica de violência masculina que os destruiu. Mas se estamos tentando identificar a falha principal ou o grupo de falhas na natureza humana que permite que essa lógica de violência masculina exista para começo de conversa, isso nos deixa com um cenário de confusão mental. Não temos, talvez, algum tipo de proclividade inata para a dominação violenta. Mas temos uma tendência a tratar aquelas formas de dominação que existem no momento – começando com a de homens sobre mulheres – como imperativos morais em si mesmos.
Nota do tradutor
Aconteceu de eu ler este texto logo depois de ver um vídeo do excelente canal Thunk. Eu absolutamente recomendo que você veja o seguinte vídeo como uma espécie de complemento – e também contraponto – ao texto traduzido acima.
Atualização:O vídeo abaixo conta agora com legenda em português brasileiro!
Muita gente pensa da seguinte forma: tudo que é “natural” é imutável no comportamento humano; é fruto de um instinto inexorável que todos nós temos apenas por existir enquanto espécie. Tudo que é “cultural”, por outro lado, não seria “necessário”, e portanto é absolutamente modificável.
Certa feita discutimos a maternidade em sala de aula. Algumas das mães da sala começaram a descrever como elas se sentiam intimamente ligadas a seus filhotes enquanto estavam ainda em suas barrigas; como aquela sensação era um instinto tão profundo que não poderia jamais ser algo “relativo” e “cultural”.
A questão é que a pecha de natural é “anexada” (culturalmente – haha) àquilo que queremos salvaguardar de discussão; o que é natural é assim porque é assim, então é assim e pronto (cala a boca). Qualquer discriminação mais cedo, mais tarde, vai tentar se fundamentar em alguma teoria biológica, genética, química (negros têm cérebros menores, mulheres cuidavam das cavernas e por isso são melhores em fazer várias coisas ao mesmo tempo, besteiras do tipo). Esse é um dos grandes problemas que nós, cientistas sociais, temos com a ideia de “natureza”: ela é um discurso; uma arma utilizada em batalhas ideológicas que visam, na maior parte das vezes, esconder a origem sociocultural das coisas que sentimos e pensamos para que ninguém tente questioná-las.
A antropologia é justamente uma fonte tão poderosa de onde tirar defesas contra essa arma porque todo o argumento tem uma grande falha: para funcionar, ele precisaenglobar cada homo sapiens do planeta no presente, no passado e no futuro – e o fazer ainda de acordo com uma lógica bastante consistente. É possível dizer que sentir fome é natural, não só porque todos os seres humanos a sentem, mas porque entendemos como a fome funciona (precisamos de comida para viver), e também porque isso é uma constante em praticamente todo animal. Dizer, por exemplo, que a monogamia é natural é algo fácil de contra-atacar: é só mostrar exemplos de sociedades inteiras em que a monogamia não é a regra.
Esse, é claro, é um processo bastante próximo do que conhecemos como “relativismo cultural”: afinal, os proponentes da tese de que a monogamia é natural podem simplesmente dizer que esses povos poligâmicos são aberrações antinaturais ou coisa parecida; o relativismo (e um bastante razoável até aqui) vem com o reconhecimento de que não podemos julgar a cultura dos outros dessa forma; para eles, o que eles fazem provavelmente parece muito mais natural do que a monogamia.
No entanto, o grande problema é que muitos pensam que com esse relativismo passamos a ter um enfraquecimento da cultura enquanto tal. Afinal, se todas as culturas são igualmente válidas e praticamente tudo é cultural, daqui a pouco todo mundo vai fazer o que quiser. O fato de que há um jeito necessariamente certo de ser no mundo pressupõe a exclusão, a oposição de seu inverso.
As mães do exemplo anterior ficavam quase ofendidas quando dizíamos que aqueles sentimentos eram culturais, e não naturais. A razão para isso é mais do que o sentimento de que estávamos atacando a santidade da instituição maternidade: é como se disséssemos que o que elas sentiam não era forte; que não era sequer verdadeiro, mas sim “uma coisa que colocaram na cabeça delas”.
E isso é exatamente o que acontece, mas perceba: não é porque algo é cultural que é falso. Sim, todo um conjunto de ideias sobre a maternidade é passada de geração a geração como algo muito natural – é algo colocado na cabeça das pessoas. Mas isso não deixa de ter poder. Sentimo-nos compelidos a comer pela fome, mas a cultura é capaz de produzir uma pressão igualmente forte sobre as pessoas. Se esse não fosse o caso, só de sabermos que em algumas culturas todos andam pelados, a vergonha de usar roupas em público desaparecia num passe de mágica. Obviamente esse não é o caso.
A maternidade transforma o corpo de várias formas, e é uma questão importantíssima do ponto de vista biológico, e aqui é importante fazer uma distinção: a maternidade é cultural não porque ela não pode ser natural, mas porque nós somos seres extremamente culturais, e tudo que fazemos, inclusive as coisas que se originam desses processos que chamamos de naturais, passa por um “filtro” cultural. A questão não é negar que a dor e a alegria acompanham praticamente toda maternidade; é que essas coisas são interpretadas de acordo com papéis e símbolos sociais contingentes. Se você chegar para uma mãe e dizer “você pode se sentir diferente sobre ser uma mãe, se quiser; tome, aqui está um texto sobre como o povo nômade x do lugar y se sente em relação à maternidade. Estude isso e mude sua atitude!”. Isso… Não funcionaria. Mesmo que a mãe estivesse disposta a passar por essa transformação e resistisse a toda uma pressão dos outros para que ela mantenha-se fiel à própria cultura, o resultado final jamais seria uma pessoa completamente reformulada, com uma cultura nova que tenha tomado o lugar da antiga completamente.
Logicamente, esse assunto é extremamente mais complexo que esses poucos parágrafos, mas escrevo isso em tom de utilidade pública porque gostaria que mais pessoas tivessem em mente duas coisas, mesmo que seja para atacar essas duas coisas (o que é melhor do que o ataque a espantalhos que resulta da desinformação): em primeiro lugar, dizer que algo é cultural, ao invés de natural, é uma frase sobre as origens de um costume, de uma situação, de uma atitude. Quando digo que a maternidade é uma instituição cultural, estou fazendo uma observação sobre o que a origina, não necessariamente tornando-a algo pior ou tentando fazer com que mães e filhos adotem outras atitudes e costumes (eu poderia estar perfeitamente satisfeito em relação a isso e ainda assim observar que não se trata de algo natural). E, em segundo lugar, dizer que algo é cultural não significa dizer que a pessoa pode simplesmente “escolher se sentir como quiser”. A cultura não é uma questão de pura escolha individual!
Contudo, dizer que algo que muitos insistem em naturalizar é cultural é o primeiro passo para uma mudança: é como dizer “ei, olha só: é assim agora. Mas não precisa ser assim. Com o tempo, temos a capacidade de mudar de pensamento. Fazendo um esforço, as novas gerações quem sabe não terão mais contato com esse velho jeito de ser. E assim, a gente pode mudar”. Se a discussão começar a partir da ideia de que algo é naturalmente de um jeito ou de outro, a mudança jamais sairá do metafórico papel. Ou seja, dizer que algo é cultural tem uma força epistemológica, e é isso que deve ser levado em consideração. No entanto, não estou aqui para enganar ninguém: assim como o discurso de naturalização é uma arma política, colocar em evidência a natureza sociocultural de algo também pode sê-lo.
Sim, a inteligência humana é uma coisa importante em tudo que os humanos fazem, mas é importante notar como esse argumento é o tecnicista que já destrinchei no primeiro link acima – a ideia de que as coisas devem ser feitas bem, com eficiência, mas poucos se perguntam que diabo de coisas deveriam ser feitas.
Mas a questão da prioridade da inteligência no processo político vai além. Vai até o cerne da política, e também do que nos faz humanos.
Imaginemos que vivamos na democracia direta de uma comunidade pequena; uma vila de não mais que 150, 200 pessoas. As mesmas pessoas que pensam que políticos e eleitores devem contemplar um “QI mínimo” ou coisa parecida são aqueles que vão dizer que há pessoas burras nessa comunidade, e que elas não devem participar do processo político.
Há tanto que se pode dizer sobre isso. Há pessoas incapazes, certamente; tanto idosos com alguma patologia que degenera o cérebro e nos leva a questionar sua autonomia quanto crianças pequenas que ainda têm que se acostumar mais com o processo político para participar dele com proficiência. Por outro lado, mesmo que se concorde que idosos com problemas graves e crianças não votem, tratá-loscomo incapazes em termos discursivos – especialmente com a exclusão deles – é uma forma de, por exemplo, não acostumar as crianças com o processo político, afastá-las da vida pública, do interesse comunitário, e prejudicar sua auto-estima e confiança. O mesmo acontece com outras pessoas que, devido a uma série de circunstâncias, são excluídas da vida pública na sociedade mais ampla que é a nossa.
Mas voltemos à questão original: pessoas burras. Pessoas que são reconhecidas pela sociedade como tendo menos inteligência que outras. Não vou entrar no mérito quanto à possibilidade e pertinência disso; vamos presumir essa condição para chegar ao ponto. Por acaso decorre que essas pessoas, por conta de suas capacidades intelectuais, não possam participar do processo político?
A resposta é não. Isso só seria razoável se o processo político fosse uma discussão técnica sobre como chegar aos fins que se quer chegar. Mas o embora o processo possa envolver isso, a principal discussão (que às vezes é obscurecida quando o discurso tecnocrático toma conta) é sobre os fins a que se quer chegar. E a dignidade humana essencial, a liberdade, informa-nos que mesmo uma pessoa que não é lá muito brilhante (novamente, estou supondo isso para atacar esse argumento por dentro) tem valores que quer ver realizados, e a liberdade dessa pessoa está absolutamente relacionada à sua capacidade de expor esses valores para seus pares e buscar contribuir para que as decisões de sua comunidade reflitam esses valores (o cerne da política). Como Sandel demonstrou em seu ataque a Rawls, a liberdade tem muito a ver com a nossa identidade; com quem somos, com aquilo que nos constitui, com aquilo que nos move. E isso tudo remete à negociação identitária da comunidade: debater sobre os valores de todos até chegar a uma decisão sobre o que é mais importante fazer.
Voltando às crianças às quais não se permite plena (igualitária, ao nível dos adultos) participação no processo político: não é por serem burras que elas não podem participar. Ou mesmo ignorantes, ou sem experiência. O processo político, suas regras, sua dinâmica; isso tudo pode ser ainda desconhecido em termos de detalhe e nuance para as crianças, mas em pouco tempo elas seriam capazes de se acostumar com quem-fala-o-quê-quando, o que significa votar, o que é um recurso, um bloqueio, etc. O processo em si é como um jogo, e se as crianças podem aprender com facilidade a jogar um jogo de tabuleiro, decorando suas regras, não são as regras da democracia que as impedem de participar. É que elas ainda não passaram tempo o suficiente convivendo no mundo para que se tenha certeza de que compartilham dos mesmos valores que aquela sociedade. Adultos têm medo de que crianças participando do processo político serão egoístas, esperneando no chão, chorando rios de lágrimas porque não conseguiram o que queriam. Isso não é uma questão de inteligência, é uma questão de crianças que não absorveram o valor social de que tomar decisões em grupo é mais do que agir em interesse próprio.
Quando crio uma história (enquanto escritor) primeiro vem a ideia: a situação, o desenvolvimento, o conflito, a premissa. Depois disso vêm os personagens necessários – e as peças cenográficas que, na interação sofrida a partir das ações desses personagens, vão construindo essa premissa. Isso não é um engessamento dos personagens: no fundo eles sempre existiram a partir da situação, a partir da premissa. Foram eles que colocaram-na em movimento em primeiro lugar, só que você não sabia disso; vem mais fácil à cabeça a situação, a figura completa, com a embalagem por fora, do que seus mecanismos internos. Mas eles estão lá, e por isso são necessários. Você não consegue imaginar aquela história sem eles – J. K. Rowling disse que a história de Harry Potter veio inteira, completa, durante uma viagem de trem. E é certo, pode apostar, que Harry, Ron, Hermione, Voldemort, Dumbledore, todos esses e talvez mais alguns (Snape?) estavam lá desde o princípio, desde a primeira semente de ideia.
Aí, por último, vem a vida própria: vem aquilo que os personagens precisam ter que para que haja um desenvolvimento da premissa, para que haja uma história em si: uma narrativa, uma trajetória, uma transformação – uma ação. Você precisa deixar os personagens falarem por si, e suas decisões terem suas consequências, e você deve aceitar as reverberações disso de uma forma tal que, depois de um tempo, as lógicas dos personagens se tornam vidas dos personagens e eles, vivos, são capazes de determinar o destino da trama a partir de seus desenvolvimentos. Nesse ponto é que pode ocorrer o engessamento, se o autor não respeita as vozes dos personagens e decide continuar com um plano anteriormente definido; não, é preciso ouvi-los e segui-los ao invés disso.
Com a vida a coisa é parecida. Não que primeiro venha a sociedade e depois o indivíduo, mas a forma como nós nos aclimatamos, como nos “aculturamos”, como “aprendemos a ser gente”, indica que temos uma certa situação, sempre prenha de um conflito, toda uma premissa cultural que nos guia simbolicamente até começarmos a viver de acordo com certas necessidades. Por isso toda nossa vida, especialmente na forma como vemos a história (uma linha e não um ciclo) é uma trajetória no sentido de uma narrativa mesmo: uma mudança, uma ação que gera transformação. Começamos com essa premissa dentro de nós, muitas vezes servindo como personagens necessários para uma determinada situação cultural, e aí então, a partir dessas possibilidades e desses limites, podemos ser protagonistas para efetivar uma transformação e sermos diferentes.
Em geral, há dois tipos de pessoas contrárias ao voto obrigatório. De vez em quando as motivações coincidem, mas devem ser consideradas separadamente.
Diferencial de inteligência – Há quem faça uma apologia à “distribuição natural de talentos” entre os humanos. Ora, alguns são simplesmente mais inteligentes que outros, dizem; portanto, se nem todos forem obrigados a votar, escolheremos melhores representantes.
Uma questão de princípio – Há quem seja a favor da liberdade no maior número de circunstâncias possível, e que, por esta razão, não deveríamos ser obrigados a nada – especialmente não a votar. Nessa visão, é comum ouvir dizer que votar é um direito, não um dever.
A primeira motivação é na maioria das vezes alguma forma disfarçada de classismo ou racismo. As pessoas que eles querem que não votem são os “burros” – que, para eles, se resumem a pobres, negros, favelados, nordestinos. Nas últimas décadas sempre ouvimos essa ladainha depois da vitória do PT nas urnas. Ah, se apenas os mais ric… Quer dizer, os mais inteligentes escolhessem o presidente. Aí teríamos Aécio. Ou Alckmin. Ou Serra.
A segunda revela algo mais profundo sobre o estatismo moderno; se o voto é um dever, há algo que interessa nele aos poderosos. Não é caridade ou “virtude cívica”; não é achar que fará bem às pessoas. É porque esse é um instrumento de legitimação. Como todo mundo vota, fica fácil virar para os eleitores e botar toda a culpa dos sistemas social, econômico e político nas costas deles. Quando isso acontece, a individualização e internalização da culpa não está muito longe, porque na massa disforme e monolítica dos “eleitores” o engenho de misturar “vocês” com “você” é facilmente empregado. Foram vocês que colocaram esses políticos aí. Não está gostando? Se fode, você deveria ter escolhido melhor.
Eu sempre fui contra o voto obrigatório, mas por causa do segundo princípio. É o que leva quase todo anarquista, arrisco dizer, a ser contra o voto obrigatório.
Mas venho escrever essa postagem para tentar destrinchar um argumento complexo, mas relevante, em especial para a comunidade anarquista: não importa muito por que ser contra o voto obrigatório; se é o motivo 1 ou o motivo 2. No final, o resultado acaba sendo o primeiro.
Uma vez que o voto obrigatório se desfaça em uma sociedade desigual e com baixo capital político como a da nossa população, o primeiro cenário se concretizará; não porque os “burros” não vão votar, mas porque quem é assim classificado pelos proponentes do primeiro cenário são aqueles que estariam mais propensos, por diversas razões, a não votar; desde a desilusão com o sistema até condições socioeconômicas e culturais.
Por outro lado, obviamente o voto não mudará nada. O que me leva a um jeito de explicar o que estou tentando dizer ao refrasear o título: votar torna um anarquista menos anarquista? Eu creio que não, porque aquilo que o anarquista sabe que é irreal, o tipo de feitiço que ele tenta quebrar em outras pessoas e na batalha cultural mais ampla, é a ligação entre voto e mudança sistêmica. O anarquista é aquele que olha para o voto e, embora possa até votar (seja pra evitar se incomodar com a multa depois ou por alguma outra razão), o que faz a diferença em sua ideologia é a perspectiva com a qual aborda seu próprio voto, em especial as expectativas em relação ao voto. O importante é saber que o voto não vai mudar nada. A diferença entre um petista e um anarquista votando no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 são as expectativas que cada um guarda em relação ao processo eleitoral.
Agora, esse parece ser um argumento bastante subjetivista; se não há diferença prática (os dois votam), então não há diferença, ponto. É justo argumentar dessa forma, mas é preciso entender que só abordei o lado indivíduo-a-indivíduo da questão: o voto obrigatório é um tópico social, e precisamos abordar esse lado também. O “cenário 2” do início da postagem trata simplesmente de direitos individuais. Há um outro, e gigantesco, lado da moeda.
O voto obrigatório traz a discussão política (ou pelo menos tem a intenção, e oportunidade, de fazê-lo) para dentro das casas de quem normalmente não discutiria política. É uma forma de envolver a todos no processo político. Ao meu ver, o anarquista que se opõe ao voto obrigatório está colocando uma picuinha pessoal (e admito que esse era eu: “mas que droga, eles estão me forçando a votar. Ugh…”) acima de uma boa oportunidade de desenvolver a discussão política. Isso tem a ver também, aliás, com uma visão contraproducente de liberdade – mas não creio que seja saudável contestar isso nesta postagem…
Em nossa visão de futuro, de sociedade desejável, queremos que as pessoas se envolvam. Queremos a responsabilidade de cada um pelas decisões da comunidade. Como faz sentido rejeitar esse mesmo envolvimento nesse exato instante? – Não é o mesmo envolvimento, responderiam alguns; e nem o mesmo modelo de sociedade. Sim, é verdade, é tudo verdade. Mas é algo próximo, próximo o bastante para servir como oportunidade de discutir princípios e ideias anarquistas. De acostumar quem não está acostumado a debater ideias, projetos, valores, caminhos, e também pessoas. Sim, porque a verdadeira democracia do anarquismo não pode funcionar sem o tipo de responsabilidade pessoal por projetos que implicam a discussão de pessoas para além da discussão de representantes que temos hoje, mas não muito aquém.
O voto obrigatório deve ser dimensionado de forma apropriada pelo anarquista; não é solução para nada – nem o obrigatório nem o voluntário – mas no esquema mais amplo das coisas como estão hoje, opor-se a ele não só ajuda o projeto de poder de quem está muito mais à direita dos anarquistas que a esquerda estatista, como também significa fechar os olhos para uma maré de discussão política que pode ser melhor aproveitada para nossos próprios objetivos.
“Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência, debalde. Por sua própria naturez, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.”
Por todo o mérito que tem a discussão sobre os problemas e os benefícios da privatização, gostaria de atacar outro lado da questão: a mera possibilidade da privatização, que cria um processo político imensamente problemático.
Neste vídeo dos espetaculares Young Turks, Jimmy Dora observa que ocorrem desastres em áreas governamentais gerenciadas pela iniciativa privada porque as pessoas votaram em políticos cuja ideologia dizia que o governo não funcionava. Que o governo não serve para isso, para aquilo ou aquilo outro.
Não seria uma contradição eleger para um cargo público alguém que diz que o governo não funciona? O próprio candidato diria que ele quer entrar no governo justamente para desfazer os laços do Estado com as diversas áreas sob sua supervisão. Mas essa perspectiva não é realista; é simplesmente pessimista. E mesmo quando não é motivada por uma falha na forma como o governo conduz a saúde, a educação, a energia ou coisas do tipo, o resultado só pode ser uma falha. Um governante que não acredita na capacidade do governo de gerenciar alguma coisa… Não vai fazer esforço para que esse gerenciamento dê certo. E isso leva a falhas, que leva por sua vez a mais “evidências” de que o governo não consegue fazer nada direito.
O governo pode cuidar de saúde, de educação e de diversas outras coisas e isso pode dar certo. Existe no mínimo uma experiência em algum lugar do mundo para prová-lo. A questão é que isso demanda esforço, envolvimento comunitário (capital político) e, arrisco a partir do exposto, uma certa dose de inevitabilidade. É como a família: nos sentimos impelidos a gostar deles, perdoá-los, etc, porque, afinal, os laços que temos com eles são indissolúveis na prática. Um irmão sempre será um irmão, os pais sempre serão os pais, e por aí vai. A ideia de que é possível desfazer um laço importante (como o do governo com a saúde ou com a educação) envenena ideologicamente essa relação porque passa a mudar a forma como qualquer falha é vista: não como um acidente, algo inevitável (já que somos humanos) mas passageiro; não como uma oportunidade de aprendizado, depois da qual seguimos em frente com a cabeça erguida e melhoramos. Não – quanto mais passarmos a aceitar que a dinâmica corporativa capitalista possa cuidar melhor (em todos os critérios, não apenas a “eficiência”) de áreas de atenção do governo, mais ficaremos propensos a reinterpretar as falhas como sinais proféticos de que é exatamente isso que deveria ser feito. E, num loop de reforço positivo, vamos dar menos e menos poder para as instituições governamentais (ou instituições de controle público em geral, porque como anarquista também vejo problemas com o Estado) que, assim, falharão mais e mais.
Palavras têm poder. E, antes dos problemas já conhecidos associados à privatização, seu próprio conceito (que gera uma dinâmica) exerce um poder considerável sobre a realidade.
A capacidade humana de fazer prosopopeia é tal que toda ferramenta desvirtua, deturpa um pouco o processo direto. Não significa que não traga para ele vantagens, mas a experiência em si não é apenas “a mesma, só que com uma ferramenta” — há algo diferente ali a partir de um novo elemento que deveria ser transicional, mas com o qual uma relação é estabelecida na mente do humano que a usa.
Para isso, aliás, não é necessário que a ferramenta tenha “características humanas” na simulação da voz ou sejá lá o que mais, como vemos agora em computador, celulares, robôs japoneses. Temos, então, que usar uma superfície irregular da natureza como assento e usar uma cadeira é diferente também pela relação que se estabelece com o martelo, os pregos, etc. É como se o humano estivesse em uma constante relação com o seu ambiente, também personificado. Quando não há deuses para fazer oferendas, tentamos nos tornar amigos dos nossos cúmplices — pois isso que são as ferramentas; peças-chave das quais pedimos a cooperação para transformar uma parte de Gaia em algo que nos seja útil.
Os anarco-primitivistas têm algumas ideias interessantes quanto à tecnologia: deveríamos usá-la até certo ponto, um ponto há muito ultrapassado pelo que temos hoje em dia, que é simplesmente ridículo… Acho que há um entrecruzamento entre grupos políticos pequenos e a vontade de privilegiar mais as relações humanas do que as relações entre coisas. Isso significa mais: significa a busca de relações mais diretas, sem a deturpação de ferramentas — bem como a deturpação de sistemas, que são apenas ferramentas aplicadas à vida social. Da mesma forma como o casamento deturpa a relação, o Estado deturpa a sociedade, os templos deturpam as relações com as divindades e o dinheiro deturpa as relações econômicas e assim por diante (a ideologia é o sistema simbólico produzido por um corpo de especialistas, diz Bourdieu). A busca de relações mais diretas como base — como ponto de partida, e não como objetivo último — é interessante porque é como se buscássemos ser, socialmente, células-tronco, e isso proporciona uma liberdade que não teríamos quando nos prendêssemos a um só sistema cheio de ferramentas e significações que tornaria impraticável, a priori, outros.