O recurso menos usado nos videogames da minha infância é o mais presente na minha vida como adulto: a opção “fantasma” dos jogos de corrida, que fazia uma cópia transparente e imaterial do seu carro, refazendo sua volta mais rápida, correr ao mesmo tempo que você. O melhor de você mesmo contra você mesmo: a superação de si, agora empírica e à prova de autoengano.
Escrevo esta crônica às quatro da manhã, sabendo muito bem que deveria acordar às 10 e que, com sorte, acordarei às 11. Antes disso eu estava no Youtube. Antes disso, lavando louça acumulada de dois dias, demorando três horas a mais do que o esperado organizando objetos, mandando e-mails, anotando coisas que eu não deveria esquecer amanhã. O melhor de mim – meu “fantasma” – seria mais organizado. Mais eficiente. E não só daria conta de tudo que me propus, a essa altura da minha vida, a fazer, como também faria mais. Seria engajado na comunidade. Nos movimentos sociais. Seria mais, não sei; saudável. Cuidaria melhor de seu (do meu) cabelo.
O meu fantasma me assombra. É o que fantasmas fazem, é claro, mas ele não me ameaça de verdade. Sei que não pode me atingir. Não vai quebrar meu braço. Vivo bem, e com sorrisos; com a cabeça faço gestos de bom dia para estranhos no caminho. Ainda assim, sinto sua sombra; penumbra pairando no ponto pacífico em que a poeira do meu espírito não rodopia mais com o vento, tomando forma num lento reprovar decepcionado, pondo sobre meus ombros o peso de saber que sou feito de mil pequenos fracassos cotidianos.
E não dá para enxergar os fantasmas como pseudociência ou alucinações, porque eles estão no mundo real, material, social. Meu fantasma não é visível como o do videogame, mas se deixa medir em cada pequena coisa: no tempo que leva para perceber, depois que cheguei, que eu deveria ter feito algo no caminho. No cálculo mel feito do tempo necessário para as tarefas do dia, o que me faz pensar que seria melhor fazer isso amanhã, e aquilo semana que vem, e aquilo só mês que vem. Posso me ver derrotado pelo melhor de mim na figura do empanado de frango e requeijão que 1) eu não deveria ter comprado, porque estou tentando guardar dinheiro e perder peso; 2) definitivamente não vale 4,50; e 3) eu nem estava com fome bastante para comer, quanto mais comê-lo.
Ouvi dizer que é culpa do sono; dormir pouco nos deixa tolos. Mas é um ciclo: raramente me pego pensando que fiz tudo que eu queria fazer. Sinto-me mal e, para escapar ao fantasma, fujo para uma terra de fantasias, preocupações e planos; coisas que nunca vão acontecer. Durmo mal, vivo mal o dia seguinte, mal frustro-me direito e volto a dormir mal.
Os fantasmas estão no mundo, não em cavernas subjetivas; hoje eles vêm da própria tecnologia que nos permite descobrir se pioramos ou melhoramos com o passar do tempo (se tivermos estômago, isto é, para olhar para quem éramos meses ou anos atrás). A evolução do videogame, quando tínhamos que lidar somente com o nosso fantasma individual – não; no Facebook também encaramos, em cada janela, os fantasmas dos outros.
Afinal, só se compartilha o melhor de si. E tudo que se vê nos perfis dos outros é o que eles têm de melhor. Nossa existência mundana, o aqui e o agora da roupa mal passada, dos prazos estourados, da fila de banco por conta de boletos atrasados… Isso nunca vai preencher as máscaras de plástico que se moldam ou se compram na internet. E o curioso é que ninguém, no fundo, sabe de nada: os fantasmas dos outros, com quem interagimos, são mesmo só ilusões. Mas quando os encaramos, essas versões de seres humanos que leram os livros, viram os filmes, ouviram as músicas e têm opiniões sobre tudo, não é isso que passa pela cabeça: é claro que fizeram tudo isso. E eu podia ter feito também.
O inferno não são os outros, porque o fogo do capeta está nos nossos próprios olhos; foi o nosso olhar que morreu sem se arrepender. Cada espiada na vida alheia é de uma ingenuidade doente, algorítmica – o receptor que respeita o emissor, hoje, é um coitado. Os fantasmas das telas provam que o individualismo não existe. Buscamos, nos outros, sinais, dicas, pistas do que fazer para nos orientar na vida. Viver é isso – acreditar que alguém em algum lugar tem um mapa para sair do pântano, ou que todo mundo tem um mapa melhor que o seu. Hoje o GPS nos diz que o melhor é pedir informação para os fantasmas. O resultado? Percebemos que eles podem voar e nós não. E então olhamos uns para os outros – para os fantasmas dos outros – torcendo que eles não percebam como não conseguimos estar à altura de ninguém.
Nunca seremos nossos fantasmas. Nem no além-vida, nem aqui, onde os deuses que nos julgam são quase anônimos – seu poder é ilusório, são fantasmas como nós. Rogamos, mesmo assim: curtam, curtam; ajudem-me a fortalecer o meu fantasma, a erguê-lo aos céus (talvez eu já nem possa vê-lo – mas o que me torno, então?). Nossos fantasmas só nos fazem mal. A razão engana, querendo fazer crer que são como a democracia: tanto faz se não conseguimos ser como eles agora, pois eles são um belo ideal, um horizonte naturalmente inatingível. Besteira: não sei em que sentido estou crescendo ou melhorando a cada dia que meu fantasma me derrota. A melhor versão de mim mesmo, eu acho, não cometeria esse erro.
Com este texto, fui premiado em segundo lugar no 15º Prêmio Literário Paulo Setúbal (Categoria Crônicas), em 2017. Versão em inglês (feita em 2020) aqui.